Cada homem tem também uma vocação única

Pe. José Victorino de Andrade, EP

A vocação de cada homem pode ser entendida num sentido genérico, aplicando-se a todos os batizados, como o pode ser num sentido estrito. Cada homem tem uma vocação única. No Documento Final do Congresso sobre Vocações para o Sacerdócio e a Vida Consagrada na Europa (1998, p.22), da Pontifícia Obra para as Vocações Eclesiásticas decorrente de 5-10 maio 1997, nos é dada a definição de vocação entendida nos seus vários sentidos:

“Como a santidade é para todos os batizados em Cristo, assim existe uma vocação específica para cada vivente; e, como a primeira tem suas raízes no Batismo, assim a segunda se liga ao simples fato de existir. A vocação é o pensamento providente do Criador sobre cada criatura, é a sua idéia-projeto, como um sonho muito querido por Deus, porque a criatura é muito querida por Ele. Deus-Pai o quer diferente e específico para cada vivente”.

De fato, o ser humano “chamado” à vida encontra em si a imagem daquele que o chamou. Vocação é, portanto, a proposta divina de realizar-se segundo essa imagem, e é única, singular, irrepetível, justamente porque tal imagem é inexaurível. Cada criatura está chamada a exprimir um aspecto particular do pensamento de Deus. Ali encontra seu nome e sua identidade; afirma e coloca em segurança a sua liberdade e originalidade.

Portanto, se todo ser humano, desde o nascimento, tem a própria vocação, existem na Igreja e no mundo várias vocações que, enquanto num plano teológico exprimem a semelhança divina impressa no homem, em nível pastoral-eclesial respondem às várias exigências da nova evangelização, enriquecendo a dinâmica e a comunhão eclesial: A Igreja particular é como um jardim florido, com grande variedade de dons e carismas, movimentos e ministérios (cf. ibidem).

O alcance dos efeitos dos sacramentais

vaticano

Diác. Ignácio Montojo, EP

Os efeitos que produzem os sacramentais são principalmente espirituais” (CDC, 1166). Os que normalmente pede a Igreja são em forma de graças atuais para auxilio no exercício da virtude, muito especialmente em ordem às virtudes teologais infusas – fé, esperança e caridade –, a perdoar os pecados veniais, à melhor preparação para a recepção dos sacramentos e à proteção contra os demônios seja por meio de exorcismos ou de bênçãos.

Mesmo as indulgencias, por exemplo, são sacramentais pelos quais é obtida – por obra da Igreja administradora como ministra da Redenção do tesouro dos méritos de Cristo e dos santos – a remissão da pena temporal devida a Deus pelos pecados e que deveria ser satisfeita no Purgatório. Do mesmo modo, no caso das bênçãos constitutivas as quais consagram de maneira permanente para o serviço de Deus uma coisa ou uma pessoa, sua eficácia, é também de caráter infalível.

Mas quem diz efeitos “principalmente espirituais” está admitindo implicitamente a possibilidade de obter graças materiais desde que estas cooperem para a obtenção dum bem espiritual maior na ordem amorosa e sumamente sapiencial da Providência. Tais pedidos poderão ser, por exemplo, o alivio de nossos sofrimentos, o afastamento dos castigos divinos, a cura de doenças, uma abundante colheita ou uma viagem bem sucedida, etc., sempre desde que sejam conforme a vontade de nosso Pai Celeste e, insistimos, para a maior santificação da alma e com vistas à vida eterna.

Os sacramentais oferecem, pois, aos fiéis bem dispostos a possibilidade de santificar quase todos os eventos da sua vida por meio da graça divina que, como vimos, flui dos méritos da Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo e, neste caso, é administrada pela Santa Igreja. Neste sentido preparam para receber com fruto os sacramentos.

Mas é preciso considerar que, se bem que seus efeitos não dependem principalmente da disposição moral do ministro ou do sujeito, pode esta concorrer a uma eficácia maior, pois Deus outorga seus dons em quantidade e qualidade maior em virtude do mérito e disposições que concorrem em quem os administra, confere ou recebe. É mesmo que acontece com a oração. Serão mais eficazes na medida em que nos identificarmos, por nossa religiosidade profunda, com a Igreja que opera através deles e com sua intenção. Pode-se dizer nesse sentido – e é tal a tese defendida por muitos teólogos – que os sacramentais operam quase ex opere operato (REGATILLO apud MARTÍN, 2002: 1647), ou seja que eles não tem o poder natural, como os sacramentos, de operar a graça, mas sim de obtê-la da misericórdia e bondade de Deus. São ajudas poderosas com as quais se recebe, por isso mesmo, proteção contra as tentações, graças e ajudas segundo o caso, assim como capacidade operativa e graças atuais para corresponder a vontade de Deus segundo a vocação e carisma próprios.

Entretanto, deve-se sempre levar em consideração que a oração da Igreja, Esposa Mística de Nosso Senhor Jesus Cristo, não pode deixar de ser plenamente aceita pela Divindade e, por tanto, se bem que o sacramental não é totalmente infalível como o sacramento (desde que devidamente recebido) senão que segue, como vimos, as regras habituais da oração, e ainda que opera mais por via de misericórdia que de justiça, não deixa de ser evidente que sua eficácia supera de longe a duma obra boa feita sem ser sacramental, tanto quanto pode ter de aceito e sumamente agradável à Divina Majestade a oração da Esposa amantíssima, indefectivelmente santa, castíssima e fidelíssima de Jesus Cristo. Isto mais se aplicará, se couber, quanto a principal finalidade é contribuir à santificação dos fieis.

Há diversidade de dons, mas um só Espírito

Mons. João S. Clá Dias, EPFim ano sacerdotal

No Catecismo da Igreja Católica explica-se “o mistério sagrado da Igreja Una” em função da sua origem divina, tendo ela por “modelo e supremo princípio a unidade de um só Deus na Trindade de pessoas”. “Contudo — prossegue o texto — desde a origem, esta Igreja Una se apresenta com uma grande diversidade, que provém ao mesmo tempo da variedade dos dons de Deus e da multiplicidade das pessoas que os recebem” (n. 813-814).

“Há diversidade de dons, mas um só Espírito” (1Cor 12, 4), ensina São Paulo aos Coríntios. Com efeito, ante a abundância das manifestações carismáticas entre os fiéis, o Apóstolo orienta os discípulos a considerar a unidade da Igreja, o “Corpo de Cristo” (1 Cor 27), pois a variedade dos dons — sabedoria, palavra de ciência, poder de realizar milagres, discernimento dos espíritos, e tantos outros (cf. 1 Cor 8-10) — é concedida pelo mesmo Deus “que opera tudo em todos” (1 Cor 6).

Assim, a unidade na variedade da Igreja explica-se pela ação do Espírito Santo, “princípio de toda ação vital e verdadeiramente salutar em cada uma das diversas partes do Corpo” (Catecismo, 798).

Consumada, pois, a obra que o Pai confiara ao Filho realizar na terra (cf. Jo 17, 4), foi enviado o Espírito Santo no dia de Pentecostes a fim de santificar perenemente a Igreja para que assim os crentes pudessem aproximar-se do Pai por Cristo num mesmo Espírito (cf. Ef 2, 18). Ele é o Espírito da vida ou a fonte de água que jorra para a vida eterna (cf. Jo 4, 14; 7, 38-39). […] O Espírito habita na Igreja e nos corações dos fiéis como num templo (cf. 1 Cor 3, 16; 6, 19). […] Unifica-a na comunhão e no ministério. Dota-a e dirige-a mediante os diversos dons hierárquicos e carismáticos. E adorna-a com Seus frutos (cf. Ef 4 11-12; 1 Cor 12, 4;  Gl 5, 22) (LG, 4).

É importante ressaltar que nessa mesma Igreja, acompanhada sempre pelo sopro do Paráclito, há uma ordenação hierárquica dos carismas por Ele mesmo instituída, pois, segundo o próprio São Paulo: “Deus constituiu primeiramente os apóstolos, em segundo lugar os profetas, em terceiro os doutores, depois os que têm o dom dos milagres” (1 Cor 28).

Com efeito, sendo Cristo “pedra angular”, edificou Sua Igreja sobre “o fundamento dos apóstolos” (Ef 2, 20), dando-lhes o poder de ligar e desligar na terra e no Céu (Mt 18, 18). E, dentre eles, designou Pedro e seus sucessores como princípio e fundamento visível da unidade da fé (D 4147), a quem incumbe confirmar os seus irmãos (Lc 22, 32).

É por essa determinação divina que São Pedro e os Apóstolos constituíram um Colégio. E também, em virtude da função conferida de forma singular pelo Senhor a Pedro, e que se transmite aos seus sucessores, o Bispo de Roma é cabeça do Colégio dos Bispos, Vigário de Cristo e Pastor de toda a Igreja na terra, com poder ordinário, supremo, pleno, imediato e universal, podendo exercê-lo sempre livremente (câns. 330 e 331).

Por sua vez, o Colégio Episcopal, no qual persevera continuamente o corpo apostólico, também é sujeito do poder supremo e pleno sobre toda a Igreja, em união com sua cabeça e nunca sem ela (cân. 336). Existe na Igreja, também, por instituição divina, o poder de regime ou de jurisdição (cân.129), que se divide em legislativo, executivo e judiciário (cân. 135).

A essa Igreja, verdadeira construção de Deus (cf. 1 Cor 3, 9), em sua unidade fundamental e em sua diversidade carismática, cada fiel, exercendo sua função peculiar, deve dedicar todo seu entusiasmo, sua obediência e seu amor. Amor que brotando do mais profundo do coração, mova-o à dedicação e ao apostolado, em função da vocação cristã comum a todos os batizados:

Existe na Igreja diversidade de serviços, mas unidade de missão. Aos Apóstolos e a seus sucessores foi por Cristo conferido o múnus de, em nome e com o poder dEle, ensinar, santificar e reger. Os leigos, por sua vez, participantes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, compartilham a missão de todo o povo de Deus na Igreja e no mundo (AA 2).

O Carisma dos Fundadores

Pe. Santiago Canals Coma, EPjesus

Houve um Fundador que, pertencente à melhor estirpe real, veio a este mundo na mais humilde das condições. Passou a maior parte da existência terrena na obscuridade, preparando Sua curta vida pública. Ao empreender a atividade apostólica, abalou Ele com a doutrina que ensinava inúmeros conceitos de Sua época, sem temer a reis, a imperadores ou a pontífices. Defendeu Sua religião e filosofia em praças públicas, diante de multidões, conferindo, por meio de milagres inimagináveis, aval às Suas palavras. Por onde passou deixou as indeléveis marcas de Sua bondade, reconciliando com Deus cada um dos que lhe pediam a mediação. Por Sua ilimitada misericórdia pertransivit benefaciendo (At 10, 38): passou por este mundo fazendo o bem, mas apesar disso foi condenado ao mais infamante tipo de morte daquele tempo, ao ser levado ao patíbulo. Do alto da cruz, atraiu o mundo inteiro a Si (Jo 12,32).

Os Fundadores de famílias religiosas são reflexos dos múltiplos aspectos de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Sua missão. Porém estudá-los não é fácil e simples. Vários autores que tratam do assunto deixam claro que esse tema não foi satisfatoriamente estudado ao longo da História face à sua enorme complexidade, pois estudar os Fundadores pode ser comparado a adentrar os mistérios do próprio Deus (Cf. ROMANO, 1991, pp. 63-64).

É muito significativa a dificuldade encontrada pelo Pe. Antonio Romano. Na elaboração de seu aprofundado estudo sobre o tema afirma ele não ter achado em nenhum dicionário anterior à primeira metade do século XX – eclesiástico ou não – referências ao termo “fundador”. De modo análogo, quase não encontrou ele documentos da Igreja com informações claras para a compreensão jurídica desse vocábulo (Cf. ROMANO, 1991, pp. 34-35). Outra evidência de ser o tema “fundadores” de estudo recente na Igreja é a constatação de que apenas em 1947 foram estabelecidos os requisitos necessários para que alguém possa ser considerado Fundador de uma família religiosa. Assim, conforme documento emanado da Sagrada Congregação dos Ritos,

Para se designar alguém Fundador ou Fundadora de uma família religiosa exige-se, antes de tudo, que tal pessoa tenha reunido em torno de si um núcleo, ainda que pequeno, de seguidores, de lhes ter fixado uma meta específica; em segundo lugar, ter deixado leis ou regras – por escrito ou oralmente – especificando a meta e os meios para a alcançar. Há ainda outra observação que se pode fazer: quando um fundador toma como base uma regra anterior já aprovada, então o autor desta se torna o Patriarca ou pater desse instituto religioso. Assim, por exemplo, São Bento é o Patriarca de todas as famílias monásticas que têm como fundamento a regra beneditina; São Francisco de Sales é o Pai dos salesianos, porque São João Bosco se inspirou na legislação e nos escritos do Santo Doutor. Outros exemplos poderiam amplamente se multiplicar. SCR.SH.66, Nova Inquisitio, XVII .

É certo, porém, que sob o ponto de vista carismático-teológico os Papas sempre consideravam os Fundadores como homens inspirados pelo Espírito Santo, apesar de tal tema não ter sido estudado em profundidade sob o aspecto jurídico (Cf. ROMANO, 1991, p. 65-67, 71). Foi Paulo VI quem pela primeira vez, em um documento do Magistério oficial (Evangelica Testificatio), confirmou essa doutrina ao utilizar a expressão carisma dos fundadores: “Só assim podereis despertar de novo os corações para a Verdade e para o Amor divino, segundo o carisma dos vossos Fundadores, suscitados por Deus na sua Igreja” (PAULO VI, 1971, n.p.). Do mesmo modo, o Papa João Paulo II lançou mão dessa expressão em diversos documentos, como, por exemplo, na Mensagem à XIV Assembléia Geral da Conferência dos Religiosos do Brasil: “Anima-vos aquilo que é o sentido ínsito à vida consagrada: crescer no conhecimento e no amor, para serdes testemunhas e profetas de Cristo no mundo de hoje, em fidelidade dinâmica à vocação religiosa e ao carisma dos vossos Fundadores” (JOAO PAULO II, 1986).

Entre os papas, um se destaca por ser conhecedor das profundas realidades eclesiais produzidas pelo Espírito Santo: Bento XVI. Desde muito antes de sua ascensão ao trono pontifício o Cardeal Ratzinger já observava e acompanhava o surgimento de novos movimentos no seio da Igreja. É esse o testemunho do Presidente do Pontifício Conselho para os Leigos, Cardeal Stanislaw Rylko, dado na introdução de uma obra de BENTO XVI:

O Papa Bento XVI segue, desde há muitos anos, com paixão de teólogo e de pastor, o fenómeno dos movimentos e das novas comunidades que nasceram na Igreja depois do Concílio Vaticano II. Os seus primeiríssimos contatos com estas realidades eclesiais remontam a meados dos anos 60, quando ainda era professor em Tubinga. Depois, com o passar do tempo, essas relações intensificaram-se e aprofundaram-se, transformando-se numa verdadeira amizade (2007, pp. 25-26).

Porém não foi apenas por uma experiência pessoal que Bento XVI se converteu em um ponto de referência para os novos movimentos. Dado o importante papel que exerceu ao lado de João Paulo II como prefeito da Congregação para a a Doutrina da Fé, podemos considerá-lo um fiel intérprete do magistério dos movimentos eclesiais.

Passemos então a abordar a inspiração dos Fundadores. Na abertura do Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais em 1998 (quando ainda era o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé), ao comparar o nascimento da ordem franciscana com o nascer de um novo “movimento” o Cardeal Ratzinger assinalou a presença de uma inspiração personalizada na base dos movimentos religiosos:

Talvez possamos identificar com a máxima clareza um movimento no sentido próprio no desabrochar franciscano do século XIII. Na sua maioria, os movimentos nascem de uma carismática personalidade-guia, configurando-se em comunidades concretas que, em virtude da sua origem, revivem o Evangelho na sua inteireza e, sem hesitações, reconhecem na Igreja a sua razão de vida, sem a qual não poderiam subsistir (ibid, pp. 55-56).

Vejamos os desdobramentos da realidade teológica chamada pelo Papa de “carismática personalidade-guia”, que está na origem dos movimentos religiosos. Inicialmente devemos considerar o carisma dos Fundadores como algo que a Igreja assume como próprio quando aprova uma nova forma de vida religiosa. De acordo com Romano, o carisma dos fundadores tem uma dupla dimensão. Por um lado o Fundador, consciente de sua dependência total à Igreja, espera que ela reconheça e acolha seu carisma. Por outro lado, a Igreja vê um novo fruto do Espírito Santo, e o quer preservar de qualquer modo. Essa identidade com a Igreja é fundamental para o Fundador, pois dá a ele a certeza de que o espírito que o move, que o impulsiona no sentido de criar novos estilos de vida, e que o inflama com um “fogo profético”, é o mesmo Espírito Santo da Igreja. Ademais, por outro lado, isso fortalece as relações com seus discípulos, pois com freqüência na vida dos Fundadores “não há ninguém capaz de compreender totalmente a novidade e a profundidade do que ele é e do que ele contém em si” (Cf. ROMANO, 1991, pp. 72-73).

Este assunto é tão fundamental que uma das preocupações de Bento XVI sempre foi acolher e preservar com carinho as novas famílias religiosas, deixando claro que, junto com as igrejas locais, elas fazem parte da própria estrutura viva da Igreja. E, portanto, é necessário preservar esses novos dons para edificação de toda a mesma Igreja.

Depois de ter sido eleito Papa, Bento XVI não cessou de manifestar o seu afecto e a sua atenção pastoral a estas novas realidades. Bastará recordar as suas palavras dirigidas aos jovens reunidos em Colónia em Agosto de 2005 para celebrar o vigésimo Dia Mundial da Juventude:

“Formais comunidades na base da fé! Nos últimos decénios, nasceram movimentos e comunidades em que a força do Evangelho se faz sentir com vivacidade”. E as que sempre disse aos bispos alemães sobre o tema dos movimentos – “A Igreja deve valorizar estas realidades e, oportunamente, guiá-las com sabedoria e prudência pastorais, para que, com os seus diversos dons, contribuam da melhor maneira para a edificação da comunidade” –, acrescentando um pormenor importante: “As igrejas locais e os movimentos não se opõem mutuamente, mas constituem a estrutura viva da Igreja” (BENTO XVI, 2007, p. 29).

O tema da inserção eclesial dos novos carismas é muito complexo e não se relaciona diretamente com nosso assunto. Contudo desperta a atenção o aviso que o Papa faz aos bispos sobre a necessidade de valorizar tais realidades e saber guiá-las com sabedoria. De fato, com freqüência nos deparamos na História com fatos em sentido contrário que tantas incompreensões e mal-entendidos produziram. É o que nos explica ROMANO:

A fim de que a inserção de uma comunidade religiosa no tecido da Igreja local seja autêntica e conforme a inspiração do Espírito, existe o direito, por parte da autoridade eclesiástica, de discernir os carismas e, portanto, aprová-los. (…) Esta é uma enorme responsabilidade, que leva Girardi a afirmar que as pessoas aptas para verificar a iniciativa do Espírito deveriam tomar maior consciência disso para pôr mais atenção e munir-se de uma doutrina apropriada que permita interpretar verdadeiramente o impulso do Espírito. Se, por exemplo, um bispo nada soubesse a respeito da teologia dos carismas, como seria capaz de interpretar esses dons do Espírito? Essa é a razão da existência de tantos entraves na Igreja. Contudo, isso também forma parte do desígnio de Deus, desígnio misterioso… que permite que seus dons passem sempre através de um caminho Pascal de sofrimento e purificação. Assim como outros autores, Girardi situa a autenticidade de um carisma dentro da constante histórica da Cruz como verdadeiro critério e garantia de fecundidade (op. cit. pp. 27-28, 132, tradução minha).

Essa inserção não deve ser entendida como uma perda da própria identidade, mas, pelo contrário, a Igreja sempre insistiu na necessidade de salvaguardar cada carisma. Isto é feito com normas concretas dadas tanto às autoridades eclesiásticas como aos membros de cada família religiosa.

Igualmente, “corresponde à dita autoridade a obrigação de respeitá-los [os novos carismas], e, conseqüentemente, acolhê-los e conservá-los tal como foram dados pelo Espírito Santo. Cada um dos institutos tem direito à sua própria autonomia a fim de manter íntegro seu patrimônio espiritual e institucional; mais ainda, há o dever fundamental – tanto dos institutos em si como de cada um de seus membros – de conservar o carisma original, mesmo que seja preciso adaptá-los às mutantes exigências históricas da Igreja e do mundo (cc. 574, § 2; 576; 578; 586; 677 § 1).

Mantendo-se um instituto fiel a seu carisma e sendo respeitado por todos – inclusive pela autoridade hierárquica – por essa fidelidade, mais autêntica e eficaz será sua inserção na vida da Igreja, pois esta se realizará conforme a inspiração do Espírito”. Ghirlanda G., La vita consagrata nella vita della Chiesa, en Informationes SCRIS (2/1984)88.4 Podemos então chegar a uma conclusão: o Fundador pede o reconhecimento eclesial de seu carisma porque é consciente de ser o portador de um novo dom dentro do Corpo Místico. E a Igreja, ao concedê-lo, confirma a existência de um novo carisma, de uma nova inspiração do Espírito Santo, a ser desenvolvida para o bem do Povo de Deus.

BIBLIOGRAFIA

BENTO XVI. Os Movimentos na Igreja – presença do Espírito e esperança para os

homens. S. João de Estoril: Lucerna, 2007.

ROMANO, Antonio. Los fundadores profetas de la Historia – la figura y el carisma de los fundadores dentro de la reflexión teológica actual. Madrid: Claretianas, 1991.

CIARDI OMI, Fabio. Los fundadores, hombres del espíritu. Para una teología del carisma del fundador. Madrid: Ediciones Paulinas, 1983.

_____. Experiencia comunitaria de los fundadores. Vida Religiosa, Madrid, vol. 74, n. 1, enero, 1993.

_____. Riscoperta dei carismi dei fondatori. Vita Consacrata, Milano, n. 29, junio, 1993.

Os Carismas

Mons. João Clá Dias, EP

espirito

Os carismas, “quer extraordinários quer simples, são graças do Espírito Santo que, direta ou indiretamente, têm uma utilidade eclesial, pois são ordenados à edificação da Igreja, ao bem dos homens e às necessidades do mundo” (CIC, n. 799; 800).[1]

Por meio deles, o Povo de Deus participa do múnus profético de Cristo, através do Espírito Santo que santifica e conduz a Igreja. Ele não apenas se beneficia com as riquezas doadas pela magnificência de Deus, mas assume as responsabilidades inerentes a essa participação em proveito da Igreja, como ensina o Concílio Vaticano II:

A todos os fiéis incumbe, portanto, o glorioso encargo de trabalhar para que a mensagem divina da salvação seja conhecida e recebida por todos os homens em toda a terra. […] A recepção destes carismas, mesmo dos mais simples, confere a cada um dos fiéis o direito e o dever de atuar na Igreja e no mundo, para bem dos homens e a edificação da Igreja, na liberdade do Espírito Santo, que ‘sopra onde quer’ (Jo 3, 8) e, simultaneamente, em comunhão com os outros irmãos em Cristo, sobretudo com os próprios pastores (Apostolicam Actuositatem, n. 3).

 

Caberá, evidentemente, a critério superior das autoridades eclesiásticas fazer o julgamento sobre a autenticidade desses dons e ordenar seu exercício, provando-os e ficando com aqueles que sejam bons (cf. LG 12; 1 Tes 5, 12), pois o próprio Espírito submeteu à autoridade dos Apóstolos até os carismáticos (LG 7; 1 Cor 14). A esse propósito, assim se exprimiu João Paulo II:

Como conservar e garantir a autenticidade do carisma? É fundamental, a respeito disso, que cada movimento se submeta ao discernimento da autoridade eclesiástica competente. Por essa razão, nenhum carisma dispensa da reverência e da submissão aos Pastores da Igreja.[2]

 

Cumpridas essas condições, os carismas devem ser acolhidos com reconhecimento e generosidade, não só por quem os recebe, mas também por todos os membros do Corpo Místico de Cristo. E se, por um lado, cabe aos pastores discernir a autenticidade divina desses dons e carismas, compete-lhes, por outro lado, zelar especialmente para não se extinguir a ação do Espírito, buscando a cooperação de todos em sua diversidade e complementaridade (cf. LG 12).[3]

Tais carismas, que manifestam a presença atuante do Espírito Santo, não são atributos de funções eclesiásticas particulares — segundo George e Grelot (1966, p. 120) — mas podem encontrar-se em qualquer batizado, seja qual for seu ministério ou função na Igreja. São concedidos com o objetivo de dar o poder e a graça para corresponder à própria vocação e ser útil à comunidade, a fim de que seja edificado o Corpo de Cristo.

 

CLÁ DIAS, João. Os novos movimentos: Quando espírito e jurisprudência se encontram…

 in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 6, jan-mar 2009. p. 11-13.


[1] A esse respeito também interessa a afirmação de João Paulo II no discurso aos participantes do Congresso Mundial dos Movimentos, em 30 de maio de 1998: “Não esqueçais que cada carisma é dado para o bem comum, isto é, em benefício de toda a Igreja!”

[2] Discurso aos participantes do Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais, de João Paulo II, em 30 de maio de 1998. Disponível em: <www.vatican.va>. Acesso em: <15 maio 2008>.

[3] “Esses carismas, quer eminentes, quer mais simples e mais amplamente difundidos, devem ser recebidos com gratidão e consolação, pois que são perfeitamente acomodados e úteis à necessidades da Igreja. […] O juízo sobre a autenticidade e seu ordenado exercício compete aos que governam a Igreja. A eles, em especial, cabe não extinguir o Espírito, mas provar as coisas e ficar com o que é bom (cf. 1Tes 5, 12 e 19, 21)” (LG 12).