Amor e holocausto

Mons. João S. Clá Dias, EP

Para São Tomás, a essência do oferecimento de Jesus, como vítima na Cruz, encontra seu verdadeiro valor espiritual não só na paciência com que suportou a Paixão, ou no auge da dor moral e física a que foi submetido. Ele chama a atenção para a obediência suprema da Divina Vítima, disposta a sofrer o auge de humilhação e dor, até à morte. Com efeito, abdicando de Sua vontade humana — “não seja feito como Eu quero, mas como Tu queres”(Mt 26, 39) — contradiz a soberba do homem pecador (cf. Rm 5, 19), conferindo assim méritos infinitos a Seus sofrimentos e morte.[1]

É notória, como ressalta o próprio Doutor Angélico, a ligação íntima entre a obediência de Cristo e Sua ardente caridade. Sua obediência exímia “procedia da dileção que possuía pelo Pai e por nós”.[2] Ao mesmo tempo, por atingir o extremo de submissão e humilhação, mostrou-nos “a largura, o comprimento, a altura e a profundidade” de Seu amor “que ultrapassa todo o conhecimento” (Ef 3, 18-19).

Ao provar no artigo 2 da questão 22 que Cristo foi sacerdote e vítima ao mesmo tempo, São Tomás dá como principal argumento as palavras do Apóstolo: “Cristo nos amou e Se entregou a Deus por nós em oblação, como vítima agradável” (Ef 5, 2). Parece depreender-se daí que o amor de Jesus por nós foi a causa de Sua total entrega em holocausto.[3]


[1] Cf. Super Philip. cap. 2, lec. 2.
[2]Super Rom. cap. 1, lec. 5.
[3] Cf. Super Eph. cap. 3, lec. 5.

Documentos basilares para o estudo da formação dos seminaristas

Pe. Carlos Adriano, EP

Para se estabelecer um estudo a respeito da formação seminarística nos dias de hoje e sobre os diversos elementos que a compõem, é preciso delimitar onde se encontram as principais diretrizes que tenham servido de fonte para a elaboração da atual legislação do Código, ou para a interpretação da mesma.

Primeiramente, deve-se atentar para o decreto Optatam Totius sobre a formação sacerdotal, do Concílio Vaticano II:

[…] o Concílio Vaticano II, que teve como objetivo último a renovação de toda a Igreja, advertiu também a estreita relação entre essa desejada renovação e o ministério dos sacerdotes. Fruto deste convencimento dos Padres conciliares é o decreto Optatam Totius, em que se proclama a transcendental importância da formação sacerdotal e se expõem os princípios fundamentais que devem inspirá-la, conservando e confirmando o já provado pelos séculos de experiência, e inovando ao mesmo tempo com o que as novas circunstâncias podem exigir (RINCÓN-PEREZ, 1991, p. 178 — tradução minha).

Como se poderá observar, o documento não descarta a experiência da Igreja na formação dos sacerdotes, muito pelo contrário, valoriza-a, mas exorta a que, nas leis eclesiásticas dirigidas para a formação sacerdotal, sejam introduzidas inovações que correspondam à evolução dos tempos.

 O sagrado Concílio reconhece que a desejada renovação de toda a Igreja depende, em grande parte, do ministério sacerdotal, animado do espírito de Cristo; proclama, por isso, a gravíssima importância da formação dos sacerdotes e declara alguns dos seus princípios fundamentais, pelos quais sejam confirmadas as leis já aprovadas pela experiência dos séculos e se introduzam nelas as inovações que correspondam às suas constituições e decretos e à evolução dos tempos. Esta formação sacerdotal, por causa da unidade do mesmo sacerdócio, é necessária aos dois cleros e de qualquer rito. Portanto, estas prescrições, que se referem diretamente ao clero diocesano, devem ser acomodadas na devida proporção a todos os sacerdotes (OT, proêmio).

O decreto conciliar trata sobre diversos temas atinentes à formação sacerdotal: desde a promoção das vocações, organização dos seminários maiores, formação espiritual e ainda outros assuntos de exclusiva relevância.

Além desse documento, o presente estudo deve ter como base a Ratio Fundamentalis Institutiones Sacerdotalis, e a Exortação Apostólica Pastores dabo vobis:

O Concílio Vaticano II dedicou um decreto (Optatam Totius) à formação para o sacerdócio. A disciplina do CIC responde às suas orientações, que recolhem uma tradição multissecular, com as adaptações necessárias às circunstâncias atuais. Ademais, existe para a Igreja universal, um plano de formação (Ratio Fundamentalis Institutiones Sacerdotalis), cujas linhas básicas devem ser seguidas pelas Conferências Episcopais e pelos regulamentos dos seminários (cf. cc. 242-243). Em 25.III.1992, João Paulo II publicou a Exortação Apostólica Pastores dabo vobis, que trata da formação dos sacerdotes na situação atual (CENALMOR E MIRAS, 2004, p. 178).

A Ratio Fundamentalis Institutiones Sacerdotalis, que consiste em normas fundamentais para a formação sacerdotal, foi elaborada pela Congregação para a Educação Católica, e publicada primeiramente em 6 de janeiro de 1970, deixando de vigorar com a promulgação do Código de Direito Canônico de 1983.

Adaptando-se à necessidade de se criar uma nova Ratio, a Congregação para a Educação Católica publicou novas diretrizes em 10 de março de 1985, acrescentando, na verdade, muito poucas mudanças em relação ao documento anterior (cf. Enchiridium, p. 326).

Todos esses documentos têm uma particular influência na legislação atual em relação aos responsáveis pela formação dos seminaristas.

Vocação Universal à Santidade

Pe. José Victorino de Andrade, EP

A comum vocação de todos os homens à santidade, seja qual for o seu estado, é atestada pelo Catecismo da Igreja Católica1 e por numerosos documentos do Concílio Vaticano II.2 Conforme Bento XVI: “No contexto da vocação universal à santidade (cf. 1 Ts 4, 3) encontra-se a vocação especial para a qual Deus exorta todos os indivíduos”.3 A Constituição Dogmática Lumen Gentium dedica-lhe um capítulo inteiro,4 exortando o cristão a ser exemplo para todo o próximo na medida em que, praticando os conselhos evangélicos, edifica toda a sociedade.

Se bem que todos os homens sejam convidados à santidade, alguns o são de modo muito especial, sobretudo enquanto chamados a dar exemplo, pois pela própria perfeição estão chamados a aperfeiçoar os demais. São Tomás salienta entre estes, sobretudo, os bispos e aqueles que levam vida religiosa, pois abdicam de certos bens terrenos, que poderiam usufruir livremente, para se dedicarem de modo mais integral e livre ao serviço de Deus.5

A Constituição Dogmática Lumen Gentium6 hierarquiza-os deste modo:

1. Os Bispos, que devem fazer do seu ministério “um sublime meio de santificação” a fim de serem “modelos do rebanho” (cf. 1 Ped. 5, 3) e com o seu exemplo suscitarem na Igreja “uma santidade cada vez maior”.

2. Os presbíteros, à semelhança da ordem dos Bispos e sempre em fiel e generosa cooperação, para que crescendo no amor de Deus e do próximo sigam aqueles que “nos deixaram magnífico exemplo de santidade” a fim de alimentar e afervorar a sua ação “para alegria de toda a Igreja de Deus”.

3. Os diáconos, atendendo “a toda a espécie de boas obras diante dos homens” (cf. 1 Tim 3, 8-10. 12-13) e fazendo tudo para glória e honra de Deus. Aqui se incluem também todos aqueles que são chamados ao cumprimento de algum ministério para que, consagrando-se às atividades apostólicas, dêem fruto em abundância.

4. Os esposos e pais cristãos para que, na fidelidade mútua e imbuídos da doutrina cristã e das virtudes evangélicas eduquem a prole que amorosamente receberam de Deus dando “exemplo de amor incansável e generoso” e edificando a comunidade.

Por fim, incluem-se todos os fiéis, sejam quais forem as condições, tarefas ou circunstâncias de seu estado para, através de todas elas, “receberem tudo com fé da mão do Pai celeste e cooperarem com a divina vontade, manifestando a todos, na própria atividade temporal, a caridade com que Deus amou o mundo”.7

1) Ver, por exemplo, n. 941, 1533, 2013.

2) Entre outros: Lumen Gentium, n. 32; Gaudium et Spes, n. 34 ; Gravissimum Educationis, n. 2; Presbyterorum Ordinis, n. 2.

3) Visita Ad Limina Apostolorum dos Bispos do Canadá – Atlântico. 20 mai. 2006.

4) Capítulo V: A Vocação de todos à santidade na Igreja.

5) Cf. Sum. Theol. II-II Q. 184, a. 5.

6) Cf. Lumen Gentium, n. 41

7) Idem.

A Solenidade de Pentecostes

espirito

Mons. João S. Clá Dias, EP

Chegada a tarde daquele mesmo dia, que era o primeiro da semana, e estando fechadas as portas da casa onde os discípulos se encontravam juntos, por medo dos judeus, foi Jesus, colocou-Se no meio deles e disse-lhes: “A paz esteja convosco!”

A prova pela qual haviam passado os Apóstolos excedia as forças da frágil natureza humana e, apesar do testemunho entusiasmado de Maria Madalena, não lhes era fácil crer na Ressurreição; talvez seu abatimento fosse o resultado de não se julgarem dignos de receber uma aparição do Senhor, segundo pondera São João Crisóstomo, devido ao horroroso abandono no qual deixaram o Mestre em sua agonia.

Na sua bondade infinita, Jesus não deixou transcorrer muito tempo para se manifestar também a eles. Escolheu uma excelente oportunidade para tal: no entardecer e estando as portas fechadas, para tornar ainda mais patente a grandeza do milagre de sua Ressurreição.

A chegada da noite é o momento em que a apreensão cresce no interior de todos os temerosos. Por outro lado, penetrar num recinto com portas e janelas fechadas, só mesmo em corpo glorioso poderia alguém realizar tamanho prodígio.

Qual seria o lugar onde estavam reunidos, não se sabe com exatidão. A hipótese mais provável recai sobre o Cenáculo.

Outro particular interessante é a posição escolhida por Cristo para lhes dirigir a palavra. Ele poderia ter preferido saudá-los logo à entrada, entretanto caminhou entre eles e foi colocar-Se bem ao centro. Esse deve ser sempre o posto de Jesus em todas as nossas atividades, preocupações e necessidades. O deixá-Lo de lado, além de ser falta de respeito e consideração, é condenar ao fracasso qualquer iniciativa, por melhor que seja.

Sua saudação também nos chama especialmente a atenção: “A paz esteja convosco”.

À primeira vista seríamos levados a julgar compreensível que Ele desejasse acalmá-los das perturbações que os acometiam desde a prisão no Horto das Oliveiras. E de fato, esse bem poderia ser um de seus intentos, mas o significado mais profundo não reside nessa interpretação. Para melhor o entendermos, perguntemo-nos o que é paz.

“Paz é a tranqüilidade da ordem”, diz Santo Agostinho (4), ou seja, uma ordem permanentemente tranqüila. E São Tomás demonstra ser a paz efeito próprio e específico da caridade, pois todo aquele que está em união com Deus vive na perfeita ordem, ao harmonizar todas as suas potências, sentidos e faculdades à sua causa eficiente e final (5). Essa união faz brotar na alma que a possui um profundo repouso interior e nem sequer os inimigos externos a perturbam, porque nada lhe interessa a não ser Deus: “Se Deus está conosco, quem será contra nós?” (Rom. 8, 31).

Ora, sabemos pela Teologia que o Espírito Santo é a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade e procede do Pai e do Filho por via do Amor. N’Ele está a raiz, ou semente, da qual nasce o fruto da caridade. Ao amarmos a Deus e ao próximo, a alegria e o consolo penetram em nosso interior. Desse amor e gozo, procede a paz (6).

Jesus, desejando-lhes a paz, oferecia-lhes um dos principais frutos desse Amor infinito que é o Espírito Santo.

20 Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos alegraram-se muito ao ver o Senhor.

Por esta atitude do Senhor podemos bem avaliar o quanto o pavor havia penetrado na alma de todos, apesar de ouvirem a voz do Divino Mestre desejando-lhes a paz.

Por isso tornou-se indispensável mostrar-lhes aquelas mãos que tanto haviam curado cegos, surdos, leprosos e inúmeras outras enfermidades, mãos que talvez eles mesmos tivessem, a seu tempo, osculado. Sim aquelas mãos que, havia pouco, tinham sido transpassadas por terríveis cravos. Era preciso comprovarem tratar-se do Redentor, vendo seu lado perfurado pela lança de Longinus.

Naquele momento sentiram a alegria pervadir suas almas, pois constataram não estar diante deles um fantasma, mas sim o próprio Jesus em Corpo, Sangue, Alma e Divindade. Cumpria-se assim sua promessa: “Hei de ver-vos de novo, e o vosso coração se alegrará, e ninguém vos tirará a vossa alegria” (Jo 16, 22).

Transparece nessa atitude seu profundo intuito apologético, ao fazê-los ver suas santas chagas, ao contrário de como procedera com Santa Maria Madalena, ou até mesmo com os discípulos de Emaús.

Outra nota de bondade consiste no fato de Ele ter velado o esplendor de seu Corpo glorioso, caso contrário a natureza humana dos Apóstolos não teria suportado o fulgor da majestade do Homem-Deus ressurrecto.

21 Ele disse-lhes novamente: “A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também vos envio a vós”.

Novamente Jesus lhes deseja a paz, e deixa assim entrever quão importante é a tranqüilidade da ordem. Como objetivo imediato, visava Jesus proporcionar-lhes a indispensável serenidade de espírito face às desavenças e mortais perseguições que lhes moveriam os judeus. Por outro lado, Jesus se dirige aos séculos futuros e, portanto, à própria era na qual vivemos. Também a nós Ele nos repete o mesmo desejo de paz formulado aos Apóstolos naquele momento. Sim, especialmente à nossa civilização que tem suas raízes em Cristo — Rei, Profeta e Sacerdote — cuja entrada neste mundo fez-se sob o belo cântico dos Anjos: “Paz na terra” (Lc 2, 14). Não foi outro o dom por Ele oferecido antes de morrer na Cruz, ao despedir-se: “Dou-vos a paz, deixo-vos minha paz” (Jo 14, 27). Entretanto, a humanidade hoje se suicida em guerras, terrorismos e revoluções. E qual a causa? Não queremos aceitar a paz de Cristo.

Tal qual a caridade, a paz começa na própria casa. Antes de tudo, é preciso construí-la dentro de nós mesmos, dando à razão iluminada pela Fé o governo de nossas paixões. Sem essa disciplina, entramos na desordem. Ora, vai se tornando cada vez mais raro encontrar-se um ser humano no qual esse equilíbrio é procurado com base no esforço e na graça. O espontaneísmo domina despoticamente em todos os rincões. Vivemos os axiomas da Sorbonne de 1968: “É proibido proibir” — “A imaginação tomou conta do poder” — “Nada reivindicar, nada pedir, mas tomar, invadir”. Eles pareciam ser para a humanidade uma pedra filosofal de felicidade, sucesso e prazer… Que desilusão!

A paz deve ser a condição normal e corrente para o bom relacionamento social, sobretudo na célula mater da sociedade, a família. Eis um dos grandes males de nossos dias: a autoridade paterna se auto-destruiu, a sujeição amorosa da mãe se evanesceu e a obediência dos filhos foi carcomida pelo capricho, desrespeito e revolta. Essas enfermidades morais, transpostas para a vida da sociedade, redundam em luta civil, de classes e até mesmo entre os povos.

A humanidade sofre essas e muitas outras conseqüências do pecado de ter repudiado a paz de Cristo e abraçado a paz do mundo, ou seja, o consumismo, o igualitarismo, o laicismo, a adoração da máquina, etc.

Sentencia a Escritura: “Não há paz — diz Javé — não há paz para os ímpios” (Is 57, 20). “Curavam as chagas da filha do meu povo com ignomínia, dizendo: Paz, paz; quando não havia paz” (Jer 6,14). Os milênios transcorreram e nos encontramos novamente na mesma perspectiva de outrora, com uma agravante: corruptio optimi pessima (a corrupção do ótimo resulta no péssimo). Sim, a rejeição da paz verdadeira trazida pelo Verbo Encarnado é muito pior do que a impiedade antiga, e de conseqüências ainda mais drásticas.

A ordem fundamental do edifício da paz deriva essencialmente do Evangelho e do Decálogo, ou seja, do amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por amor a Ele (7). Daí floresce a paz interior do homem e a harmonia com todos os outros, amados por ele com real caridade. Esse é o melhor remédio para todos os males atuais, desde a “epidemia” das depressões — enfermidade paradigmática de nosso século — até o terrorismo. É indispensável reconhecermos em Deus nosso Legislador e Senhor, pois, se ao longo da vida não existir a moral individual nem a familiar, haverá menos ainda o verdadeiro equilíbrio social e internacional. O caos de nossos dias no-lo demonstra em demasia.

Sendo a paz fruto do Espírito Santo, fora do estado de graça, e da prática da caridade, não nos é dado encontrá-la. Por isso quem se torna empedernido no pecado não pode gozar da paz: “Mas os malvados são um mar proceloso que não pode aquietar-se e cujas ondas revolvem lodo e lama. Não há paz — diz Javé — para os ímpios” (Is 57, 20).

O mesmo Isaías nos proclama a prodigalidade e a grandeza da bondade de Deus para com os justos: “Porque assim diz Javé: Vou derramar sobre ela (Jerusalém) a paz como um rio, e a glória das nações como torrentes transbordantes” (Is 66, 12).

Essa é a razão mais específica do fato de Jesus ter desejado uma segunda vez a paz a seus discípulos. É Ele o autor da graça e, portanto, o autor da paz: “Cristo é a nossa paz” (Ef 2, 14). “A graça e a verdade foram trazidas por Jesus Cristo” (Jo 1, 17).

Após esse segundo voto de paz, Jesus envia seus discípulos à ação, tornando claro o quanto é necessário jamais se deixar tomar pelo afã dos afazeres, perdendo a serenidade. Um dos elementos essenciais para o apostolado bem sucedido é a paz de alma de quem o faz.

Outro importante aspecto a considerar neste versículo é a afirmação do princípio da mediação tão do agrado de Deus. Jesus se apresenta aqui como o Mediador Supremo junto ao Pai e, ao mesmo tempo, constitui os Apóstolos como mediadores entre o povo e Ele. Aqui podemos medir quanto são enganosas as máximas igualitárias ao procurarem destruir o senso de hierarquia.

22 Tendo dito estas palavras, soprou sobre eles e disse-lhes: “Recebei o Espírito Santo”.

Na festa de hoje se comemora a descida do Espírito Santo sobre Maria e os Apóstolos a qual se encontra tão bem narrada na primeira leitura (At 2, 1-11). Esse acontecimento deu-se depois da subida de Jesus ao Céu e talvez daí decorre o fato de alguns negarem a realidade do grande mistério operado por Ele na ocasião, narrada no versículo em análise. Esse erro, mais explícito no começo do séc. VI, foi solenemente condenado pela Igreja no V Concílio Ecumênico de Constantinopla, em 552: “Se alguém defende o ímpio Teodoro de Mopsuestia, que disse (…) que depois da Ressurreição, quando o Senhor insuflou sobre os discípulos e lhes disse ‘Recebei o Espírito Santo’ (Jo 20, 22), não lhes deu o Espírito Santo, senão que tão-só o deu figurativamente (…), seja anátema” (8).

O Espírito Santo não procede somente do Pai, mas também do Filho. Ele é o Amor entre ambos. E como definir o amor? É muito mais fácil senti-lo do que defini-lo. Dois amigos que muito se querem, ao se encontrarem depois de longo período de separação, se abraçam fortemente e cheios de alegria. O que significa esse gesto tão espontâneo e efusivo, senão a manifestação de um amor recíproco? Os dois quase desejam, nessa hora, uma fusão de seus seres. O interior das mães se desfaz, suas entranhas parecem estar sendo arrancadas ao verem seus filhos partirem. Os que se amam querem estar juntos e se olhar. E quanto mais robusto é o amor, maior será a inclinação de se unirem.

Ora, quando os dois seres que se amam são infinitos e eternos, jamais esse impulso de união poderá manter-se dentro dos estreitos limites de uma mera tendência emocional, como muitas vezes se passa entre nós homens. Entre o Pai e o Filho, esse Amor é tão vigoroso que faz proceder uma Terceira Pessoa, o Espírito Santo.

Nossos amores, em não raras circunstâncias, são volúveis. Deus, muito pelo contrário, porque se contempla a Si próprio, Bom, Verdadeiro e Belo, eterna e irresistivelmente, Se ama desde todo o sempre e para sempre, e, tal qual assevera Santo Agostinho, desse amor faz proceder uma Terceira Pessoa infinita, santa e eterna, o Divino Espírito Santo. O amor é eminentemente difusivo e por isso tende a comunicar-se, a entregar-se.

Curiosa é a diferença de forma empregada por uma e outra Pessoa para se comunicar com os homens.

O Filho veio a este mundo assumindo nossa natureza em humildade e apagamento. Pelo contrário, o Espírito Santo, sem assumir outra natureza, marca sua presença com símbolos de estrépito e majestade. A face da terra será renovada por Ele, daí a manifestação do esplendor, força e rapidez dos fenômenos físicos que acompanharam sua infusão de graças nos que se encontravam reunidos no Cenáculo (conforme a 1ª leitura de hoje, At 2, 1-11), porque eles deveriam ser Apóstolos e testemunhas. Era preciso que fossem iluminados e protegidos, e soubessem ensinar.

No Evangelho de João, essa doação do Espírito Santo tem em vista a faculdade de perdoar os pecados:

23 “Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados, àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos.”

Que grande dom concedido aos mortais por meio dos sacerdotes: o perdão dos pecados! Por outro lado, que imensa responsabilidade a de um Ministro de Deus! Dele diz São João Crisóstomo: “Se o sacerdote tiver conduzido bem sua própria vida, mas não tiver cuidado com diligência da dos outros, condenar-se-á com os réprobos” (9).

4 ) De civitate Dei XIX 13: PL 41, 640 – 5 ) Cf. Suma Teológica II-II, q 29. – 6 ) cf. Santo Tomas de Aquino, Suma Teológica, I-II, q 70, a 3c. – 7 ) Cf. São Tomás de Aquino, Suma Teológica II-II, q 29, a 3. – 8 ) Cânon 12 in Denzinger, Ench. Symbol. nº 224 – 9 ) São Tomás de Aquino, Catena Áurea, in Jo., c 20, l 3.

In: Arautos do Evangelho, nº 41

Papel da espera, até a vinda do Espírito Santo

Ascenção

Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

Antes de subir aos Céus, o Redentor não dá nenhuma recomendação política e muito menos insinua algo na linha de uma reconquista do poder de Israel. Pelo contrário, suas palavras visam uma atuação estritamente moral, religiosa e penitencial em nome de Deus.

Essa conversão, a qual na sua essência é a mudança de mentalidade (metanóia), já havia sido intensamente estimulada pelo Precursor. João Batista se apresentara como a voz que clama no deserto, a fim de que todos endireitassem os caminhos para a chegada do Senhor. Esse é também o legado do Redentor aos seus, antes da Ascensão. A substituição dos critérios equivocados pelos verdadeiros é indispensável para a real conversão. Saulo, em um só instante a realizou, logo ao cair do cavalo, e assim mesmo passou por um retiro de três anos no deserto para torná-la irreversível, como também profunda e eficaz. Comumente, ela se faz de maneira lenta, após os fulgores de um primeiro como que “flash”, mediante o qual, pela graça do Espírito Santo, a alma se dá conta das belezas das vias sobrenaturais e por elas resolve trilhar com decidida firmeza. Sem essa conversão, é-nos praticamente inútil o Mistério da Redenção e de nada nos adianta o Evangelho. De forma explícita ou implícita – dada nossa natureza racional – a atuação de nossa inteligência e vontade se faz com base em princípios e máximas que norteiam as potências de nossa alma. É sobre essa fonte que se concentra o esforço da conversão. Em síntese, trata-se de substituir o amor próprio, o qual se manifesta no apego às criaturas, pelo amor a Deus.

É de dentro da visualização perfeita a respeito da retidão da prática da Lei de Deus e de sua santidade que brota o eficaz pedido de perdão dos pecados. É nesse contraste que o penitente tem plena consciência da grande misericórdia anunciada por Jesus, antes de sua partida para os Céus. Nem os anjos revoltosos e nem os homens que morreram em pecado receberam essa dádiva incomensurável. E, nesse momento, ela nos foi oferecida pelo próprio Filho de Deus.

Iniciando-se em Jerusalém, do Sagrado Costado de Cristo nasce a Igreja a pregar ali, e depois pelo mundo afora, a Boa Nova do Evangelho. Assim havia profetizado o Antigo Testamento, assim ordenou naquela ocasião o próprio Jesus Cristo.

“Eu vou mandar sobre vós o Prometido por meu Pai. Entretanto, permanecei na cidade até que sejais revestidos da força do Alto” (Lc 24, 49). Trata-se da Terceira Pessoa da Trindade, que Jesus enviaria, segundo a promessa feita pelo Pai, ou seja, “a força do Alto”. É o Espírito Santo, que procede do amor entre o Pai e o Filho, que descerá sobre eles, a fim de serem n’Ele submersos, penetrados e revestidos por Ele, para, assim transformados, realizarem sua missão de testemunhas. Os Apóstolos “serão preparados com a grande força renovadora e fortalecedora de Pentecostes. Receberão o Espírito Santo, de cujo envio tanto falou o Evangelista João nos discursos da Última Ceia” (1).

A ordem de não saírem de Jerusalém sob qualquer pretexto tinha por objetivo a espera de Pentecostes para começarem a pregar. Entenderam eles que, esse período, deveriam passá- lo em recolhimento, pois é nessas circunstâncias que mais profundamente Ele age.

São João Crisóstomo comenta a esse propósito: “Para não se poder dizer que tinha abandonado os seus para ir manifestar-Se – mais ainda, ostentar- Se – aos estranhos, ordenou-lhes Jesus apresentar as provas de sua Ressurreição primeiramente àqueles mesmos que O tinham matado, na cidade onde foi cometido o temerário atentado, pois, se os que haviam crucificado o Senhor davam mostras de crer, ter-se-ia uma grande prova da Ressurreição” (2).

Por outro lado, continua São João Crisóstomo: “Assim como, num exército que se alinha para atacar o inimigo, o general não permite a ninguém sair antes de estarem todos preparados, da mesma forma Jesus não permite a seus Apóstolos saírem a pelejar enquanto não estejam preparados pela vinda do Espírito Santo” (3).

E por qual razão o Espírito Santo não desceu sobre os Apóstolos, de imediato? “Convinha que nossa natureza se apresentasse no Céu e fossem realizadas as alianças, e depois então viesse o Espírito Santo e se celebrassem os eternos júbilos”, opina Teofilacto (4).

In: (Revista Arautos do Evangelho, Maio/2007, n. 65).

Evangelho e cultura nos atuais desafios da evangelização

Pe. José Victorino de Andrade, EP

A Sagrada Escritura teve um papel fundamental para a cultura ocidental. Cultura, no seu sentido mais elevado, que na Grécia correspondia à paideia, no sentido de educação, aquilo que plasma aos homens um modo de pensar, sentir e agir.

É neste âmbito que se insere o Evangelho, modelando a sociedade, ou seja, o ser humano enquanto participe de uma comunidade. O mandamento novo trazido por Cristo levou os cristãos à edificação de uma sociedade mais justa e próspera. É inegável que encontramos estas frondosas raízes na sociedade ocidental e que deve o que é hoje a valores indeléveis oferecidos pelo catolicismo. Bento XVI, na Verbum Domini, é mais abrangente ao afirmar que “na Sagrada Escritura, estão contidos valores antropológicos e filosóficos que influíram positivamente sobre toda a humanidade” (n. 110).

Desassociando-se a cultura hodierna do fenômeno religioso, renova-se o apelo do Vaticano II a que os fiéis leigos assumam um papel preponderante e fundamental na presença e inspiração a partir do Evangelho nos mais variados campos, conforme a Christifidelis Laici:

 “A Igreja pede aos fiéis leigos que estejam presentes, em nome da coragem e da criatividade intelectual, nos lugares privilegiados da cultura, como são o mundo da escola e da universidade, os ambientes da investigação científica e técnica, os lugares da criação artística e da reflexão humanística. Tal presença tem como finalidade não só o reconhecimento e a eventual purificação dos elementos da cultura existente, criticamente avaliados, mas também a sua elevação, graças ao contributo das originais riquezas do Evangelho e da fé cristã” (n. 44).  

O Evangelho e a tradição cristã constituem, em si, uma cultura que pode e deve brindar a sociedade com um enriquecimento impar, que marque todos os campos e aspectos da vida cotidiana. Os fiéis leigos deverão, assim, levar aos homens um testemunho d’Aquele que é a Bondade, a Verdade, e a Beleza. E neste contributo, se empenharem para serem testemunhas da original riqueza do Evangelho.

Concedei-me 1

Oração composta e rezada diariamente por São Tomás 2
São Tomás de Aquino 3

 

Concedei-me, Deus misericordioso,
Aquilo que vos agrada:
Ardentemente desejar,
Prudentemente investigar,
Sinceramente apreciar,
Perfeitamente consumar.
Para louvor e glória de vosso nome,
Ordenai o meu estado;
O que me quereis conceder,
Fazei-me conhecer;
O que é necessário e útil à minha alma,
Ajudai-me a exercer.
Que minha via rumo a Vós, Senhor, seja segura e reta,
Sem esmorecer nas prosperidades ou adversidades,
Agradecendo-Vos nas prosperidades,
Conservando a paciência nas adversidades,
Não me deixando exaltar por aquelas,
Nem desanimando com estas.
Que nada me alegre senão o que me leva a Vós,
Nem me entristeça, senão o que me afasta de Vós,
Que a ninguém deseje comprazer, ou temer desagradar, senão a Vós.
Que as coisas passageiras a mim se aviltem por Vós,
Estimadas me sejam todas as vossas coisas, mas Vós,
Ó Deus, mais que tudo.
Que me causem desgosto todas as alegrias sem Vós,
Que nada mais deseje além de Vós.
Que me deleite o trabalho por Vós,
E que me seja tedioso o repouso sem Vós.
Dai-me constantemente um coração por Vós elevado,
Com dor e propósito de emenda por minhas faltas, ponderado.
Fazei-me, meu Deus:
Humilde sem simulação,
Alegre sem dissipação,
Sério sem depressão,
Oportuno sem opressão,
Ágil sem frivolidade,
Veraz sem duplicidade,
Temendo-Vos sem desesperação,
Confiante sem presunção,
Corrigindo o próximo sem pretensão,
Edificando-o pela palavra
E pelo exemplo, sem ostentação;
Obediente sem contradição,
Paciente sem murmuração.
Dai-me, ó dulcíssimo Deus, um coração:
Vigilante, que não se afaste de Vós por nenhuma curiosa cogitação,
Nobre, que não o rebaixe nenhuma indigna afeição,
Invencível, para que não fraqueje sob nenhuma tribulação,
Íntegro, que não seja seduzido por nenhuma violenta tentação,
Reto, que não se desvie por nenhuma perversa intenção.
Concedei-me, generosamente, Senhor meu Deus:
Uma inteligência para Vos conhecer,
Um amor para Vos buscar,
Uma sabedoria para Vos encontrar,
Uma vida para Vos agradar,
Uma perseverança fiel para Vos esperar,
E, por fim, uma confiança para Vos abraçar.
Que eu seja transpassado por vossas penas, pela penitência,
Que no caminho seja agraciado por vossos benefícios, pela graça,
E possa gozar de vossas alegrias na Pátria, pela glória.
Amém.

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1) Texto latino da oração Concede michi extraído de: Guilelmus de Tocco. Ystoria sancti Thome de Aquino, cap. 29. In: Ibid. Ed. Claire Le Brun-Gouanvic. Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 1996, p. 156, l. 56-86. Tradução pelo Diác. Felipe de Azevedo Ramos, EP, com ligeiras adaptações para a língua portuguesa. Embora não conste o formato versificado no texto original acima mencionado, optou-se por dividi-lo em versos, a fim de obter uma melhor compreensão e destacar o estilo rimado do original.

2) A introdução completa a respeito desta oração lê-se em Guilherme de Tocco (cf. op. cit., p. 156, l.53-56): “De quo deuoto et sancto doctore dicitur quod infra scriptam orationem composuit, continentia completam, affectione deuotam et stilo politam, quam omni die dicebat. Oratio quam fecit beatus Thomas, quam omni die dicebat”.

3) Embora alguns catálogos mencionem esta oração como sendo de dúbia autenticidade, assignamos a autoria a São Tomás de Aquino por estar inserida na quarta e última revisão do próprio Guilherme de Tocco (feita aproximadamente em julho de 1323) à sua História de São Tomás de Aquino, quando se dedica ao tema da contemplação e da oração. Para mais detalhes sobre este texto e sua autenticidade: Cf. Doyle, A. I. A Prayer Attributed to St. Thomas d’Aquinas. Dominican Studies, l, 1948, p. 229-238; Editorial [Nota Editoris]. Sancti Thomae de Aquino Concede michi. Disponível em: <http://www.corpusthomisticum.org/d04n.html>. Acesso em: 12 fev. 2012.

A alma assistida pelo dom de sabedoria

Mons. João S. Clá Dias, EP

A alma assistida pelo dom de sabedoria conhece e julga através de critérios divinos, porque age por um especial instinto do Espírito Santo. Por isso, não será difícil para um justo, penetrado por um alto grau do dom de sabedoria, solucionar questões do mundo do pensamento, da esfera da ação concreta, ou da contemplação divina.1

O raciocínio lhe será necessário para construir uma exposição didática com vistas a instruir a terceiros, mas, para si, esse instinto do divino lhe bastará em profusa generosidade. 2 Sua atenção, além disso, não se deterá nas causas segundas; seu espírito voará diretamente à causa primeira, ou seja, o próprio Deus. A ordem da criação se lhe apresentará com uma luz especial. E, enquanto para outros essa ordem poderá estar na sombra, ou, quiçá, constituirá um mistério, para quem é movido pelo instinto do divino, o Espírito Santo faz incidir sobre sua alma uma luz pela qual tudo se lhe torna claro e assimilável.

Assim, o universo será para ele objeto de contemplação e análise. E até a História e os acontecimentos humanos poderão ser contemplados e julgados a partir do mirante da eternidade. 3 Desse mais alto patamar, todo o resto lhe ficará claro e compreensível.

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1) Philipon pondera, acertadamente, que alguma intuição está presente em todos os procedimentos da inteligência humana, da qual Deus pode fazer uso conforme seu beneplácito, tal qual um artista faz uso de seus dotes e instrumentos. Diz ele: “Au lieu de raisonner lentement, péniblement, à partir des réalités sensibles, à travers le long dédale des jugements successifs et discursifs, l’esprit de l’homme, sous l’action directe et illuminatrice de l’Esprit-Saint, pénètre d’un seul coup au fond des choses. Il juge de la connexion des causes secondes à la manière d’un Dieu vivant sur la terre. Il apprécie tout à la manière de Dieu, contemplant l’univers, dans la lumière de Celui qui en est la Cause suprême, selon un mode supra-discursif, supra-humain, quasi intuitif, déiforme, participation éminente de la Sagesse incréée, parvenant ainsi à la plus haute vie intellectuelle ici-bas” (PHILIPON, Marie-Michel. Les dons du Saint-Esprit, p. 227).

2) Os raciocínios habituais para compreender as coisas não são necessários à alma possuidora do dom de sabedoria, pois, segundo afirma Díaz-Caneja, é “característica propia de este don el procedimento por el que llega el alma a este profundo saber de una manera rápida, sin comprobaciones, sin datos. El hombre bajo este don siente que las cosas son así y no de otra manera, y aunque no lo pueda comprobar ni demostrar, está seguro de ello más aún que si lo viera, no con su entendimiento, sino con sus ojos. Siente a Dios en sí y con más seguridad que el sabio que, a fuerza de raciocinios llegara a convencerse de esa misma verdad. La fe de muchas almas descansa en este don” (DÍAZ-CANEJA, Moisés, p. 415).

3) Royo Marín, a esse respeito, é categórico ao afirmar: “Su juicio [del don de sabiduría] se extiende también a las cosas creadas, descubriendo en ellas sus últimas causas y razones, que las entroncan y relacionan con Dios en el conjunto maravilloso de la creación. Es como una visión desde la eternidad que abarca todo lo creado con una mirada escrutadora, relacionándolo con Dios, en su más alta y profunda significación, por sus razones divinas” (ROYO MARÍN, Antonio. Teología de la perfección cristiana, p. 529).

Relativismo e consciência

Diác. Inácio Almeida, EP

Uma das manifestações mais evidentes do relativismo contemporâneo liga-se a uma nova compreensão do conceito de consciência, que tem acarretado profundas implicações tanto no campo gnosiológico quanto moral.

Segundo essa nova teoria, cada consciência é autônoma, infalível e independente. Ela funciona como uma espécie de tribunal de última instância, capaz de ditar por si mesma as regras de toda conduta moral e social. Ratzinger considera esta interpretação do conceito de consciência como uma espécie de deificação da subjetividade, pois o critério da verdade acaba sendo ditado pelo próprio ego interior: “Consciência, na modernidade, tornou-se a divinização da subjetividade, enquanto que na tradição cristã é exatamente contrário. A consciência é a convicção de que o homem é transparente e pode sentir em si mesmo a voz da própria razão, a razão que dá fundamento do mundo”.1

Com efeito, a tradição cristã compreende a consciência como a capacidade que o homem tem de abrir-se à verdade objetiva e universal e que constitui não somente um direito, mas também um dever de buscar aquilo que é verdadeiro. 2 Dessa forma, a consciência deve ser entendida como unidade de conhecimento e verdade, sem ser confundida com a autoconsciência, pois viver conforme a consciência não significa encerrar-se na própria convicção.

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1) Dialogo fra Ratzinger e Galli della Loggia su storia, politica e religione. In: Tosatti, Marco. Il dizionario di papa Ratzinger: Guida al pontificato. Milano, Baldini Castoldi Dalai, p. 34 (tradução nossa): “Coscienza, nella modernità, diventa la divinizzazione della soggettività, mentre nella tradizione cristiana è proprio il contrario, è la convinzione che l’uomo è trasparente e può sentire in se stesso la voce della ragione stessa, della ragione fondante del mondo”.

2) Cf. Idem. El elogio de la conciencia: la Verdad interroga al corazón. Madrid: Palabra, 2010, p. 45.

Após a Ressurreição, o Senhor faz dos apóstolos continuadores da Sua missão

Pe. Juan Carlos Casté, EP

O Senhor, depois de ter rezado ao Pai, constituiu Doze apóstolos para enviá-los a pregar o Reino de Deus.[1] O número dos Doze recorda as doze tribos de Israel; de um lado expressa a edificação do novo Israel, nascido do “resto” do antigo, mas por outro lado, é intenção de Nosso Senhor romper com a casta sacerdotal limitada a uma tribo.

O próprio ato de eleição comporta já uma participação dos apóstolos à consagração e missão de Jesus, porque os escolhe para enviá-los a pregar, portanto, fá-los partícipes da Sua consagração e da Sua missão, realizando-se isto em diversos momentos e coincidindo com a instituição do sacramento da ordem, observável em diversas ocasiões nas quais recebem de Jesus a chamada, a potestade e a missão, completada no Pentecostes.

O magistério une a instituição da ordem à Eucaristia. João Paulo II, por exemplo, reafirmou a doutrina tridentina da união da ordem com a Eucaristia. Depois da Ressurreição, o Senhor faz dos apóstolos os continuadores da Sua missão e lhes dá o poder de perdoar os pecados.[2] Essa missão dos apóstolos deriva da consagração recebida. Não é própria, em duplo sentido: é uma iniciativa de Outro e a sua capacidade para desenvolvê-la é participada.

Nessa missão os apóstolos foram confirmados no dia de Pentecostes. Ao descer o Espírito Santo, realizou-se o cumprimento da promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo e se completa a instituição da ordem sagrada enquanto dá aos apóstolos a graça necessária para cumprir a Sua missão exercitando a potestas sacra. Os apóstolos receberam, deste modo, a qualificação que permanecerá nos detentores do sacerdócio ministerial: uma capacidade ontológica e um “impulso interior” — o dom de Pentecostes contém também aquilo que posteriormente se chamará “graça sacramental específica” da ordem.[3] Se a missio Ecclesiae é sempre reconduzível à missão invisível do Filho e do Espírito Santo, a missio apostólica deverá ter a sua origem não só em Cristo, como também no Espírito Santo.

O grupo dos Doze reunido no Cenáculo, como gérmen da Igreja, tinha já sido enviado pelo Senhor aos filhos de Israel, e depois a todas as gentes, a fim de que, participando da sua potestade, os convertessem em discípulos, os santificassem e os governassem, porém, foram confirmados nessa missão no Pentecostes. Foram impulsionados à missão e a predicar audazmente o Evangelho. Esse dom do Espírito Santo, o mesmo Espírito de Cristo, desceu sobre eles para que O comuniquem a todos os homens.

A posição dos Doze, ademais de serem embaixadores e ministros de Cristo, situa-os também à cabeça da comunidade cristã. Eles estão conscientes de estar investidos de autoridade, executando-a inclusive com veemência.[4] Escolhidos juntos, a sua união fraterna estará a serviço da comunidade. Sua autoridade não é de domínio, mas exercitada “para edificar e não para destruir”.[5]


[1] Mc 3, 13-19; Mt 10, 1-42.

[2] Cf. Jo 20, 21-23.

[3] Cf. Philipe Goyret Chiamati, Consacrati, Inviati Il Sacramento dell’Ordine. Libreria Editrice Vaticana, 2003.

[4] Cf. 1 Cor 4, 21; 5, 5.

[5] 2 Cor 13, 10.