O Carisma dos Fundadores

Pe. Santiago Canals Coma, EPjesus

Houve um Fundador que, pertencente à melhor estirpe real, veio a este mundo na mais humilde das condições. Passou a maior parte da existência terrena na obscuridade, preparando Sua curta vida pública. Ao empreender a atividade apostólica, abalou Ele com a doutrina que ensinava inúmeros conceitos de Sua época, sem temer a reis, a imperadores ou a pontífices. Defendeu Sua religião e filosofia em praças públicas, diante de multidões, conferindo, por meio de milagres inimagináveis, aval às Suas palavras. Por onde passou deixou as indeléveis marcas de Sua bondade, reconciliando com Deus cada um dos que lhe pediam a mediação. Por Sua ilimitada misericórdia pertransivit benefaciendo (At 10, 38): passou por este mundo fazendo o bem, mas apesar disso foi condenado ao mais infamante tipo de morte daquele tempo, ao ser levado ao patíbulo. Do alto da cruz, atraiu o mundo inteiro a Si (Jo 12,32).

Os Fundadores de famílias religiosas são reflexos dos múltiplos aspectos de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Sua missão. Porém estudá-los não é fácil e simples. Vários autores que tratam do assunto deixam claro que esse tema não foi satisfatoriamente estudado ao longo da História face à sua enorme complexidade, pois estudar os Fundadores pode ser comparado a adentrar os mistérios do próprio Deus (Cf. ROMANO, 1991, pp. 63-64).

É muito significativa a dificuldade encontrada pelo Pe. Antonio Romano. Na elaboração de seu aprofundado estudo sobre o tema afirma ele não ter achado em nenhum dicionário anterior à primeira metade do século XX – eclesiástico ou não – referências ao termo “fundador”. De modo análogo, quase não encontrou ele documentos da Igreja com informações claras para a compreensão jurídica desse vocábulo (Cf. ROMANO, 1991, pp. 34-35). Outra evidência de ser o tema “fundadores” de estudo recente na Igreja é a constatação de que apenas em 1947 foram estabelecidos os requisitos necessários para que alguém possa ser considerado Fundador de uma família religiosa. Assim, conforme documento emanado da Sagrada Congregação dos Ritos,

Para se designar alguém Fundador ou Fundadora de uma família religiosa exige-se, antes de tudo, que tal pessoa tenha reunido em torno de si um núcleo, ainda que pequeno, de seguidores, de lhes ter fixado uma meta específica; em segundo lugar, ter deixado leis ou regras – por escrito ou oralmente – especificando a meta e os meios para a alcançar. Há ainda outra observação que se pode fazer: quando um fundador toma como base uma regra anterior já aprovada, então o autor desta se torna o Patriarca ou pater desse instituto religioso. Assim, por exemplo, São Bento é o Patriarca de todas as famílias monásticas que têm como fundamento a regra beneditina; São Francisco de Sales é o Pai dos salesianos, porque São João Bosco se inspirou na legislação e nos escritos do Santo Doutor. Outros exemplos poderiam amplamente se multiplicar. SCR.SH.66, Nova Inquisitio, XVII .

É certo, porém, que sob o ponto de vista carismático-teológico os Papas sempre consideravam os Fundadores como homens inspirados pelo Espírito Santo, apesar de tal tema não ter sido estudado em profundidade sob o aspecto jurídico (Cf. ROMANO, 1991, p. 65-67, 71). Foi Paulo VI quem pela primeira vez, em um documento do Magistério oficial (Evangelica Testificatio), confirmou essa doutrina ao utilizar a expressão carisma dos fundadores: “Só assim podereis despertar de novo os corações para a Verdade e para o Amor divino, segundo o carisma dos vossos Fundadores, suscitados por Deus na sua Igreja” (PAULO VI, 1971, n.p.). Do mesmo modo, o Papa João Paulo II lançou mão dessa expressão em diversos documentos, como, por exemplo, na Mensagem à XIV Assembléia Geral da Conferência dos Religiosos do Brasil: “Anima-vos aquilo que é o sentido ínsito à vida consagrada: crescer no conhecimento e no amor, para serdes testemunhas e profetas de Cristo no mundo de hoje, em fidelidade dinâmica à vocação religiosa e ao carisma dos vossos Fundadores” (JOAO PAULO II, 1986).

Entre os papas, um se destaca por ser conhecedor das profundas realidades eclesiais produzidas pelo Espírito Santo: Bento XVI. Desde muito antes de sua ascensão ao trono pontifício o Cardeal Ratzinger já observava e acompanhava o surgimento de novos movimentos no seio da Igreja. É esse o testemunho do Presidente do Pontifício Conselho para os Leigos, Cardeal Stanislaw Rylko, dado na introdução de uma obra de BENTO XVI:

O Papa Bento XVI segue, desde há muitos anos, com paixão de teólogo e de pastor, o fenómeno dos movimentos e das novas comunidades que nasceram na Igreja depois do Concílio Vaticano II. Os seus primeiríssimos contatos com estas realidades eclesiais remontam a meados dos anos 60, quando ainda era professor em Tubinga. Depois, com o passar do tempo, essas relações intensificaram-se e aprofundaram-se, transformando-se numa verdadeira amizade (2007, pp. 25-26).

Porém não foi apenas por uma experiência pessoal que Bento XVI se converteu em um ponto de referência para os novos movimentos. Dado o importante papel que exerceu ao lado de João Paulo II como prefeito da Congregação para a a Doutrina da Fé, podemos considerá-lo um fiel intérprete do magistério dos movimentos eclesiais.

Passemos então a abordar a inspiração dos Fundadores. Na abertura do Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais em 1998 (quando ainda era o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé), ao comparar o nascimento da ordem franciscana com o nascer de um novo “movimento” o Cardeal Ratzinger assinalou a presença de uma inspiração personalizada na base dos movimentos religiosos:

Talvez possamos identificar com a máxima clareza um movimento no sentido próprio no desabrochar franciscano do século XIII. Na sua maioria, os movimentos nascem de uma carismática personalidade-guia, configurando-se em comunidades concretas que, em virtude da sua origem, revivem o Evangelho na sua inteireza e, sem hesitações, reconhecem na Igreja a sua razão de vida, sem a qual não poderiam subsistir (ibid, pp. 55-56).

Vejamos os desdobramentos da realidade teológica chamada pelo Papa de “carismática personalidade-guia”, que está na origem dos movimentos religiosos. Inicialmente devemos considerar o carisma dos Fundadores como algo que a Igreja assume como próprio quando aprova uma nova forma de vida religiosa. De acordo com Romano, o carisma dos fundadores tem uma dupla dimensão. Por um lado o Fundador, consciente de sua dependência total à Igreja, espera que ela reconheça e acolha seu carisma. Por outro lado, a Igreja vê um novo fruto do Espírito Santo, e o quer preservar de qualquer modo. Essa identidade com a Igreja é fundamental para o Fundador, pois dá a ele a certeza de que o espírito que o move, que o impulsiona no sentido de criar novos estilos de vida, e que o inflama com um “fogo profético”, é o mesmo Espírito Santo da Igreja. Ademais, por outro lado, isso fortalece as relações com seus discípulos, pois com freqüência na vida dos Fundadores “não há ninguém capaz de compreender totalmente a novidade e a profundidade do que ele é e do que ele contém em si” (Cf. ROMANO, 1991, pp. 72-73).

Este assunto é tão fundamental que uma das preocupações de Bento XVI sempre foi acolher e preservar com carinho as novas famílias religiosas, deixando claro que, junto com as igrejas locais, elas fazem parte da própria estrutura viva da Igreja. E, portanto, é necessário preservar esses novos dons para edificação de toda a mesma Igreja.

Depois de ter sido eleito Papa, Bento XVI não cessou de manifestar o seu afecto e a sua atenção pastoral a estas novas realidades. Bastará recordar as suas palavras dirigidas aos jovens reunidos em Colónia em Agosto de 2005 para celebrar o vigésimo Dia Mundial da Juventude:

“Formais comunidades na base da fé! Nos últimos decénios, nasceram movimentos e comunidades em que a força do Evangelho se faz sentir com vivacidade”. E as que sempre disse aos bispos alemães sobre o tema dos movimentos – “A Igreja deve valorizar estas realidades e, oportunamente, guiá-las com sabedoria e prudência pastorais, para que, com os seus diversos dons, contribuam da melhor maneira para a edificação da comunidade” –, acrescentando um pormenor importante: “As igrejas locais e os movimentos não se opõem mutuamente, mas constituem a estrutura viva da Igreja” (BENTO XVI, 2007, p. 29).

O tema da inserção eclesial dos novos carismas é muito complexo e não se relaciona diretamente com nosso assunto. Contudo desperta a atenção o aviso que o Papa faz aos bispos sobre a necessidade de valorizar tais realidades e saber guiá-las com sabedoria. De fato, com freqüência nos deparamos na História com fatos em sentido contrário que tantas incompreensões e mal-entendidos produziram. É o que nos explica ROMANO:

A fim de que a inserção de uma comunidade religiosa no tecido da Igreja local seja autêntica e conforme a inspiração do Espírito, existe o direito, por parte da autoridade eclesiástica, de discernir os carismas e, portanto, aprová-los. (…) Esta é uma enorme responsabilidade, que leva Girardi a afirmar que as pessoas aptas para verificar a iniciativa do Espírito deveriam tomar maior consciência disso para pôr mais atenção e munir-se de uma doutrina apropriada que permita interpretar verdadeiramente o impulso do Espírito. Se, por exemplo, um bispo nada soubesse a respeito da teologia dos carismas, como seria capaz de interpretar esses dons do Espírito? Essa é a razão da existência de tantos entraves na Igreja. Contudo, isso também forma parte do desígnio de Deus, desígnio misterioso… que permite que seus dons passem sempre através de um caminho Pascal de sofrimento e purificação. Assim como outros autores, Girardi situa a autenticidade de um carisma dentro da constante histórica da Cruz como verdadeiro critério e garantia de fecundidade (op. cit. pp. 27-28, 132, tradução minha).

Essa inserção não deve ser entendida como uma perda da própria identidade, mas, pelo contrário, a Igreja sempre insistiu na necessidade de salvaguardar cada carisma. Isto é feito com normas concretas dadas tanto às autoridades eclesiásticas como aos membros de cada família religiosa.

Igualmente, “corresponde à dita autoridade a obrigação de respeitá-los [os novos carismas], e, conseqüentemente, acolhê-los e conservá-los tal como foram dados pelo Espírito Santo. Cada um dos institutos tem direito à sua própria autonomia a fim de manter íntegro seu patrimônio espiritual e institucional; mais ainda, há o dever fundamental – tanto dos institutos em si como de cada um de seus membros – de conservar o carisma original, mesmo que seja preciso adaptá-los às mutantes exigências históricas da Igreja e do mundo (cc. 574, § 2; 576; 578; 586; 677 § 1).

Mantendo-se um instituto fiel a seu carisma e sendo respeitado por todos – inclusive pela autoridade hierárquica – por essa fidelidade, mais autêntica e eficaz será sua inserção na vida da Igreja, pois esta se realizará conforme a inspiração do Espírito”. Ghirlanda G., La vita consagrata nella vita della Chiesa, en Informationes SCRIS (2/1984)88.4 Podemos então chegar a uma conclusão: o Fundador pede o reconhecimento eclesial de seu carisma porque é consciente de ser o portador de um novo dom dentro do Corpo Místico. E a Igreja, ao concedê-lo, confirma a existência de um novo carisma, de uma nova inspiração do Espírito Santo, a ser desenvolvida para o bem do Povo de Deus.

BIBLIOGRAFIA

BENTO XVI. Os Movimentos na Igreja – presença do Espírito e esperança para os

homens. S. João de Estoril: Lucerna, 2007.

ROMANO, Antonio. Los fundadores profetas de la Historia – la figura y el carisma de los fundadores dentro de la reflexión teológica actual. Madrid: Claretianas, 1991.

CIARDI OMI, Fabio. Los fundadores, hombres del espíritu. Para una teología del carisma del fundador. Madrid: Ediciones Paulinas, 1983.

_____. Experiencia comunitaria de los fundadores. Vida Religiosa, Madrid, vol. 74, n. 1, enero, 1993.

_____. Riscoperta dei carismi dei fondatori. Vita Consacrata, Milano, n. 29, junio, 1993.

Qumram: As misteriosas cavernas de Israel

QumranEspírito audaz e muita perspicácia: eis os predicados exigidos tanto dos componentes da equipe do Pe. Roland de Vaux quanto posteriormente, dos estudiosos que decifrariam os enigmas dos objetos encontrados nas cavernas e ruínas próximas ao Mar Morto.

Thiago de Oliveira Geraldo

Ele a procura por todos os lados, mas não encontra. Onde estará a ovelha de Mohammed ed-Dib (“o Lobo”)? Pertencente à tribo beduína dos Ta’âmireh, o jovem pastor tenta localizar o animal desgarrado entre as reentrâncias da falésia que se estende a centenas de metros do nível do Mar Morto. Os nativos da região sabiam da existência de ruínas a pouco mais de dez quilômetros da cidade de Jericó, esse lugar era denominado Qirbet Qumran. Suas ruínas se situam cerca de um quilômetro da margem do “Mar Salgado”. Para Mohammed o que lhe interessava naquele início de 1947 era encontrar seu animal que havia se desgarrado a 1.300 metros ao norte da Qirbet. Enquanto procurava a ovelhinha, entrou em uma das cavernas e ali observou que havia jarros de argila, porém não quis permanecer sozinho naquele lugar; mais tarde voltou com um companheiro e acharam, dentro dos jarros, rolos de pele manuscritos envoltos em pano de linho e levaram sete que estavam em melhor estado. Parece lenda, mas foi assim que em pleno século XX, um jovem de uma tribo nômade descobre a primeira gruta de Qumran, suscitando o interesse e esforço de estudiosos do mundo inteiro para cuidadosas pesquisas. Inicialmente quatro destes rolos foram vendidos ao bispo do mosteiro sírio (São Marcos de Jerusalém) e depois transportados para os Estados Unidos. Voltaram a Israel mediante pagamento de 250.000 dólares, em 1954. Os outros três foram adquiridos pelo Pe. E. L. Sukenik (em nome da Universidade Hebraica). Por meio de negociações, a Universidade Hebraica de Jerusalém, acabou possuindo os sete rolos desta primeira descoberta.

O reconhecimento inicial

O conflito árabe-israelense (1948-1949) impediu qualquer reconhecimento arqueológico. Somente após seu término foi possível a uma comissão iniciar as pesquisas arqueológicas na gruta. A expedição comandada pelo Pe. de Vaux (diretor da Escola Bíblica e Arqueológica Francesa e presidente do Comitê Internacional para a Gestão do Museu Arqueológico Palestino), tinha a colaboração do inglês Gerald Lankester Harding, diretor do Serviço de Antiguidades da Jordânia, e do Capitão belga, Philipper Lippens, um observador da ONU. No início de 1949, esta comissão explorou a gruta que só permitia acesso por uma estreita janela ou rastejando por uma abertura rente ao chão; posteriormente as escavações ampliaram essas fendas. Com oito metros de comprimento e dois de largura, a gruta continha – além dos sete manuscritos extraídos pelos beduínos − dois candeeiros de argila, cerca de cinquenta jarros e 600 fragmentos de pele, correspondendo a setenta manuscritos. Encontraram também quarenta papiros muito deteriorados e alguns pedaços de tecido de linho (provavelmente utilizados para envolver os escritos).

Onze grutas, onze mistérios

As grutas de Qumran foram classificadas de acordo com os manuscritos nelas encontrados. Levam o número cronológico de sua descoberta, mais a letra representativa do local (a primeira gruta de Qumran = 1Q, etc.). Em março 1952, a mesma tribo beduína encontrou mais duas grutas (2Q e 3Q). Na primeira delas – ao sul da 1Q e de acesso muito difícil – foram extraídos 185 fragmentos, o que representa cerca de quarenta manuscritos. A dois quilômetros ao norte da Qirbet encontra-se a 3Q, com dificuldade de ingresso devido a um desmoronamento do teto. Aqui 274 fragmentos são encontrados, mas apenas 90 aproveitáveis; ademais de 30 rolos de peles muito deteriorados pelo clima e animais roedores. A grande riqueza encontrada na 3Q são alguns rolos de cobre, com textos em caracteres hebraicos, alguns destacados em relevo. Com estas descobertas o Pe. de Vaux iniciou uma campanha visando explorar oito quilômetros de extensão na falésia, a fim de localizar novas cavernas. Das áreas pesquisadas (entre cavidades e gretas), 40 apresentaram restos de materiais, inclusive cerâmica e 230 não deram nenhum resultado positivo. Mais tarde, a família dos Ta’âmireh encontra mais duas grutas (4Q e 5Q), baseados na narração de uma caçada feita por um velho beduíno, que dizia ter encontrado cerâmica antiga ao perseguir uma perdiz ferida no terraço da falésia (os exploradores não tinham dado grande importância a estas cavidades). Avisados, a equipe de pesquisadores comandados pelo Pe. de Vaux e pelo abade Milik exploram a região lateral daquele rochedo íngreme durante uma semana, até que localizam a caverna indicada pelos beduínos. Cerca de 400 manuscritos foram encontrados na 4Q. A 5Q abrigava alguns poucos escritos em estado de fragilidade extrema. Próximo desse local, os pesquisadores encontram um orifício na falésia que continha 718 fragmentos de papiro e 57 de pele. Calcula-se que seu número era de 30 manuscritos. Esta passou a ser a 6Q. Possuía sinais de pessoas – provavelmente beduínos – que tinham passado há pouco pelo local. Uma expedição realizada de fevereiro a abril de 1955 conduziu os exploradores a encontrarem mais quatro grutas. Essas foram escavadas por homens, mas a erosão fez com que houvesse um desmoronamento nas bordas do terraço. Pouco se extraiu dessas grutas “artificiais”. No início de 1956, os beduínos localizaram a última gruta (11Q) cerca de dois quilômetros do Qirbet Qumran. Depois disso, não se encontrou mais nenhuma gruta com manuscritos. No entanto, um objeto descoberto na gruta onze levantou polêmica. Trata-se de uma ferramenta ao mesmo tempo parecida com uma machadinha e uma espécie de picareta que poderia fazer alusão a um instrumento usado pelos essênios.

Quem eram os essênios?

Na época de Jesus havia três grandes facções religiosas: os saduceus, os fariseus e os essênios. Posteriormente surgiram outras. Essas divisões se fizeram sentir na época da resistência dos Macabeus (século II a.C.). Os saduceus (referência ao sacerdócio de Sadoc) eram constituídos pelos sacerdotes, os quais cuidavam do Templo de Jerusalém e tinham sido influenciados pela mentalidade helênica. Os fariseus (palavra que significa “separados”) era uma corrente de leigos que não queria compartilhar da influência estrangeira e, por isso, se aprofundaram no estudo da Torá (Lei). Os essênios eram conhecidos pelo seu modo de vida austero, pela sua crença na imortalidade da alma e pela continência que praticavam. Atraíam muito a admiração de seus compatriotas, bem como de estrangeiros. Os relatos sobre sua conduta estão contidos, de maneira especial, em escritores antigos, como: Fílon de Alexandria, Flávio Josefo, Hipólito de Roma e Plínio, o Antigo. As descobertas do Mar Morto trazem informações mais precisas sobre a comunidade essênica, a provável moradora de Qumran.

Qirbet Qumran: uma história por trás de ruínas

Após a descoberta da 11Q, fizeram-se explorações ao sul do Qirbet Qumran. Encontraram uma habitação, na qual a parte ocidental constituía a moradia dos vivos e a oriental o descanso dos mortos. Os túmulos localizados chegaram a 1.200, e uma grande quantidade deles era constituído por homens entre vinte a quarenta anos, que provavelmente foram mortos numa resistência militar e sepultados após a retirada do inimigo vencedor. Dentre as descobertas realizadas ali, chama a atenção uma oficina de cerâmica (cujos formatos assemelhavam-se às encontradas nas grutas) e um scriptorium (escritório). Apesar de não se encontrarem manuscritos no local, estes dois ambientes indicam que seus moradores escreviam e faziam jarros de cerâmica para guardar os escritos. Portanto, havia uma atividade de escribas (copistas) em Qumran. Apesar de não se ter notícia de moedas nas onze grutas exploradas, nas ruínas de Qumran foram encontradas 1.250 peças (segundo o Pe. de Vaux), das quais a maioria podia ser reconhecida. Através do tipo de moeda pode-se prever os períodos de ocupação de Qumran. Restos de muros e cacos de cerâmica encontrados a nordeste da edificação principal faz remontá-la ao século VIII-VII a.C. Esta habitação pode estar fazendo menção à “Cidade do Sal” (Jos 15,62), mas da qual não se tem mais informações. Provavelmente o primeiro período de ocupação em Qumran (segundo as moedas ali localizadas) se deu por volta do ano 100 a.C., terminando com um tremor de terra assolador no ano 31 a.C. O segundo período que se iniciou cerca de 30 anos depois da tragédia, vai até o ano 68 d.C., onde um destacamento do general romano, Vespasiano, conquistou Qumran durante a ocupação de Jericó. As moedas encontradas na segunda camada arqueológica (dos anos 67-68 d.C.) correspondem ao período da Primeira Revolta dos Judeus contra Roma (anos 66 a 70 d.C.). A partir de então, o terceiro período de ocupação limita-se à manutenção do edifício por parte de um posto romano, até o domínio completo da revolta (com a queda da fortaleza de Massada no ano 73 d.C). As moedas resgatadas pelos arqueólogos – correspondentes a este período – datam dos anos 69-70 a 72-73. Possivelmente os ocupantes de Qumran nesta época seriam a 10ª legião romana (comandada pelo general Trajano – pai do futuro imperador Trajano). Das peças descobertas, sete moedas referem-se ao Período da Segunda Revolta dos Judeus contra Roma (anos 132-135 d.C.); isso mostra que um destacamento de judeus resistiu na Qirbet durante esse período. Com este contexto histórico, a colocação dos manuscritos nas grutas do Mar Morto deu-se no mais tardar em junho do ano 68 d.C., por causa dos conflitos. O que contêm esses manuscritos? Os fragmentos encontrados nas onze grutas correspondem a cerca de 600 manuscritos. Neles estão contidos livros bíblicos e obras até então desconhecidas, como: comentários bíblicos (Targum) de cunho polêmico, regulamentos para a admissão de adeptos e modo de vida para uma comunidade, tática militar, etc. Apenas 11 destes manuscritos se apresentam quase íntegros (sete da 1Q e quatro da 11Q). Os conservados na gruta 11 continham um manuscrito do Levítico, uma compilação de Salmos, um Targum de Jó e um texto litúrgico de caráter apocalíptico. Os localizados na 1Q correspondem aos seguintes temas: duas cópias do livro de Isaías, um comentário de Habacuc (estes são os bíblicos), regulamento da Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas, Apócrifo do Gêneses, Regra de disciplina e Hinos. O rolo do Regulamento da Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas é o que está em melhor conservação e o Apócrifo do Gêneses é o único que apresenta o texto em aramaico. Da lista geral dos 600 manuscritos, praticamente um quarto deles refere-se a textos bíblicos, inclusive com livros deuterocanônicos. Também chamam a atenção alguns textos de códigos disciplinares (Regra de disciplina e sobre a Guerra) que apresentam semelhanças com textos encontrados por Salomon Schechter na genizá (sacristia) de uma sinagoga do Cairo (1896-1897), conhecidos como Documento (ou Escrito) de Damasco. Isto indica que provavelmente tinham várias comunidades essênicas espalhadas. Testes científicos começaram a realizar-se, a fim de comprovar a veracidade dos documentos. O Prof. Willard F. Libby efetuou uma pesquisa nuclear (teste carbono 14) no Instituto de Física Nuclear de Chicago. Este comprovou que um pedaço de linho retirado de um rolo do Profeta Isaías era do tempo de Jesus. A publicação das descobertas de Qumran não tardou. Por volta da década de 50 começou a divulgação das pesquisas; no entanto, só o tempo e o trabalho apurado de especialistas poderão desvendar todo o valor contido nestes documentos.

Três tradições textuais da Bíblia

Quando nos dias de hoje se toma uma Bíblia na mão, talvez nem se imagine que ela teve mais de uma versão na antiguidade. Três são as principais versões (tradições) da Bíblia: a Samaritana, o Cânon de Jâmnia e a Tradução dos Setenta. Na tradição Samaritana está presente apenas o Pentateuco (cinco primeiros livros da Bíblia: Torá – Lei). Não modificaram seu cânon mesmo depois de novas edições da Bíblia Hebraica. O Cânon de Jâmnia se fez necessário depois da dispersão dos judeus com a tomada de Jerusalém pelas tropas de Tito no ano 70 d.C., a fim de resguardar a integridade religiosa da nação naquela emergência. Este trabalho foi realizado pelos fariseus em Jâmnia (Yabnéh) onde sua escola rabínica se tornou próspera. O Cânon de Jâmnia excluiu de sua Bíblia sete livros sagrados (conhecidos como deuterocanônicos: Tobias, Judite, Baruc, Eclesiástico, Sabedoria, 1 e 2 Macabeus); além de fragmentos de Daniel (3,24-90; 13-14) e Ester (10,4-16,24). Este texto de Jâmnia não continha vogais, por isso, foi realizado um exaustivo trabalho – iniciado no século VI d.C. e terminado no século X – com a finalidade de colocar sinais que indicassem as vogais das palavras, evitando equívocos de interpretação. Estes sinais são pontos vocálicos que não modificam a estrutura da palavra hebraica. O texto tornou-se conhecido como Massorá e os compositores destes sinais como massoretas (“testemunhas da Tradição”). Uma terceira tradição, mais antiga que a massoreta é a de Alexandria. Esta é a versão grega da Escritura Hebraica. A primeira referência a esta versão dá-se por volta do ano 200 a.C. na chamada “Carta de Aristéias”. Segundo esta correspondência, o rei do Egito, Ptolomeu II Filadelfo (287-247 a.C.) encomendou, a pedido do responsável da – recém fundada – biblioteca de Alexandria, Demétrio de Fálaro, uma cópia dos livros sagrados dos judeus. Foi enviada uma embaixada judaica ao Egito composta por seis membros de cada tribo de Israel, somando 72 sábios. Daí provém o nome de “Tradução dos Setenta” ou “Septuaginta” (LXX). Durante sete dias foram submetidos a 72 perguntas das quais responderam com toda sabedoria. Em 72 dias sua missão estava terminada; a tradução dos livros sagrados do hebraico para o grego chegava a seu curso. Desde então a obra passou a fazer parte do acervo daquela biblioteca. As descobertas de Qumran traziam manuscritos correspondentes a estas três tradições. Isso significa um importante acervo para comparações e estudos das versões vigentes até aquele momento (como, por exemplo, o texto em hebraico, onde o mais antigo manuscrito conhecido datava do século IX d.C.). Como sublinha o Pe. Dupont-Sommer, esta descoberta não invalida os estudos já realizados referentes à crítica, mas fornece material que possibilitará uma pesquisa mais sólida.

O mapa do tesouro O que faríamos se nos fosse entregue um mapa de um tesouro? Acreditaríamos ter em mãos um guia para encontrar riquezas incalculáveis? Ou pensaríamos ser isto uma fraude qualquer? Na gruta 3Q foram encontrados rolos de cobre. Após averiguar o estado dos rolos e tê-los preparado, o Pe. H. Wright Baker (da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Manchester) resolveu cortá-los em 23 tiras, a fim de ler o que neles estava escrito. Primitivamente estes rolos pareciam estar unidos por rebites. Tudo indica que são três folhas de cobre, medindo trinta centímetros por oitenta. Os caracteres gravados nos rolos estão em hebraico. E o que estava escrito neles? Uma relação de tesouros! Na lista, 63 desses tesouros estavam descritos e sua localização indicada. Inclusive constava haver uma segunda lista mais detalhada. A soma destas preciosidades (ouro, prata, objetos sagrados para o culto, vestimentas, substâncias odoríferas, etc.) somava 4.632 talentos, o que equivale mais ou menos de 150 a 160 toneladas de material valioso. Tudo no território da Palestina. A lista será verdadeira? Pode-se, pelo contrário, perguntar o que teria levado à confecção de tais rolos, com a preocupação de escondê-los numa gruta, se tudo fosse mera lenda… Há indícios históricos (documentais) de valores semelhantes ou superiores a esse, como o caso narrado por Flávio Josefo, quando Pompeu exigiu cerca de 10.000 talentos por ocasião da tomada de Jerusalém; ou quando Crasso – mais tarde – se apoderou de 2.000 talentos do Templo nos quais Pompeu não havia tocado, além de 8.000 talentos dos tesouros do Templo. No entanto, não é provável que este tesouro ao qual se referem os rolos de cobre, fosse do Templo, pois este havia sido saqueado pelos romanos na tomada de Jerusalém no ano 70 d.C. Uma hipótese é a de que o tesouro pertencera a um grupo de judeus insurrectos da Segunda Revolta contra Roma (132-135 d.C.), comandados por Bar-Kokheba (chamado de “filho da estrela” por Justino e Eusébio) mas, devido à aproximação das legiões romanas, teriam julgado mais prudente espalhar o tesouro e alguns, refugiados em Qumran, ali guardaram os rolos de cobre. Outra hipótese é que o tesouro pertencera à Comunidade de Qumran, pois havia um encarregado de administrar as riquezas pertencentes aos membros da comunidade.

O fragmento 7Q5

“De fato, não tinham compreendido nada a respeito dos pães. O coração deles continuava endurecido. Tendo atravessado o lago, foram para Genesaré e atracaram” (Mc 6,52-53). Talvez o texto acima já tenha sido lido em várias ocasiões ou contemplado na liturgia, mas ele traz uma grande mudança para os estudos bíblicos. Nas descobertas de Qumran acreditava-se que todos os textos pertenciam ao Antigo Testamento, mas o Pe. José O’Callaghan S.J. (professor de papirologia grega no Instituto Pontifício Bíblico – Roma) publicou um estudo em março de 1972 intitulado “Papiros do Novo Testamento dentro da gruta 7 de Qumran?”, onde estudos de papirologia indicavam que alguns textos de Qumran faziam parte do Novo Testamento. Em especial o Evangelho de Marcos 6,52-53, fragmento denominado como 7Q5 (a gruta 7 de Qumran e o número 5 é para identificá-lo entre os demais papiros ali encontrados). Com o achado dos versículos 52 e 53 do Evangelho de S. Marcos, o tempo de “tradição oral” que se supunha ser de quarenta anos depois da morte de Jesus Cristo, para a redação final do Evangelho, se reduziria para vinte, contradizendo o que a crítica pensava até então. Acerca desta hipótese, comenta o Pe. Martini – hoje cardeal – (em maio do mesmo ano de 1972, enquanto Reitor do Instituto Bíblico de Roma) que era uma hipótese baseada em considerações graves e dignas de atenção, que precisava ser estudada sob o ponto de vista paleográfico, papirológico e arqueológico. Ainda comenta que algumas oportunidades novas e interessantes estavam se abrindo para avaliar a origem dos Evangelhos. Conclui dizendo que era prematuro se ocupar desses problemas antes que tenham sido examinados com mais cuidado os papiros e o contexto em que foram descobertos. Da mesma forma, o vice-reitor do Instituto Bíblico de Roma, o Pe. Schökel, dizia que a ciência ainda não teve tempo de se pronunciar. Mas que concretamente – naquele momento – era uma hipótese séria e sólida. O Pe. O’Callaghan encontra respaldo na ciência – como ele mesmo o atesta – por meio da professora de Papirologia, Montevecchi, que foi presidente da Associação Internacional de Papirólogos, e do Catedrático de Matemáticas, o Dr. Albert Dou. Ambos são afins com a hipótese do Pe. O’Callaghan. Outros, porém, são de tese contrária, como o Pe. Pierre Grelot (biblista do Instituto Católico de Paris e membro da Comissão Pontifícia Bíblica). Numa entrevista para 30 giorni em junho de 1991, acusava O’Callaghan de ter feito uma conjectura completamente absurda, que tem um fim apologético. A suposição do Pe. O’Callaghan é uma hipótese em estudo. Vale ressaltar que na sétima gruta, ao contrário das demais (que continham a escrita hebraica ou aramaica sobre pergaminho), os escritos estavam em grego sobre papiro.

Uma realidade atual

As descobertas realizadas nas grutas e ruínas de Qumran não caíram no esquecimento e ainda continuam fascinando o mundo. A Dra. Pnina Shor, chefe da Seção de Conservação de Artefatos do Departamento de Antiguidades de Israel, foi a encarregada de uma exposição de 17 artigos ocorrida em Toronto, no Royal Ontario Museum, encerrada em 3 de janeiro deste ano. O maior descobrimento arqueológico do século XX fez com que uma geração inteira de estudiosos – para não dizer o mundo − dedicasse suas vidas para analisá-las. O tema ainda desperta interesse em estudiosos e muitos debates se fazem a propósito desta descoberta. No entanto, a Providência somente permitiu que estes manuscritos fossem encontrados quase vinte séculos depois de sua inclusão nas grutas. Por que tanto tempo? Será que não havia reservado esta descoberta para uma época em que a fé se tornou “passível de dúvida”, para assim despertar novamente o senso religioso nos corações humanos?

Bibliografia:

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O que os anjos vêem: natureza e graça

Pe. Colombo Pires, EPanjos Tradução do Original Pe. Romanus Cessario, O.P.

Apesar da inteligência humana e angélica possuírem uma performance diferente, a distinção clássica entre a visão matutina e vespertina dos anjos sugere uma verdade importante acerca do conhecimento disponível a todos que vivem na Fé de Jesus Cristo. A noção que os anjos possuem dois tipos de visão aparece inicialmente nos comentários de Santo Agostinho acerca da criação na Bíblia, o De Genesi ad litteram, Book IV, chapters 22-31 onde o Doutor da Graça fala de um amanhecer e de um anoitecer no conhecimento dos Anjos. A tradição teológica subsequente alargou essa distinção, pois, como Hugo de São Vítor observa, “ há muitas questões acerca da natureza angélica, as quais a curiosidade da mente humana não foi capaz de descobrir”.1 Então, na sua Summa theologiae, não surpreende descobrir que São Tomás de Aquino estende a intuição do conhecimento angélico de Agostinho.

O Santo de Hipona inventou as expressões conhecimento “matutino” e “vespertino” como parte da sua interpretação dos seis dias da criação presentes no Gênesis… (Ele) chamou “matutino” ao conhecimento angélico das coisas no seu primordial começo, precisamente como existem no Mundo; e “vespertino” ao seu conhecimento da realidade criada enquanto existindo na sua própria natureza.2

Porque a “escuridão da noite” caracteriza, mais propriamente, o conhecimento dos anjos decaídos que se fixaram na realidade criada, o Aquinate rejeita esse ponto de vista. Ele defende que como o amanhecer e o anoitecer estão conotadas com a luz do dia, “ambos os tipos de conhecimento expressados por estes termos pertencem aos anjos que estão na luz”.3

Nenhum teólogo contestaria que o que os anjos vêem na manhã, nomeadamente, tudo como existe no divino mundo da criação, forma a única base para a genuína reflexão teológica. O próprio São Paulo testemunha a centralidade desse tipo de conhecimento quando ele lembra aos Colossenses que Cristo “é a imagem de Deus invisível, o primogênito de toda a criação; Por Ele todas as coisas foram criadas, no céu e na terra, visíveis e invisíveis” (Col 1, 15-16).

Enquanto nós frequentemente associamos a teologia com a realidade de Deus e os Seus feitos, com mistérios como a Trindade, a Ressurreição de Cristo, e a Imaculada Conceição da Virgem Maria, a reflexão teológica estende-a apropriadamente ao que os homens e as mulheres fazem. Por outras palavras, a fé do cristão determina a questão ética. Também as virtudes da vida cristã estão entre aquelas realidades visíveis que encontram a sua realização em Cristo. De fato, Orígenes, autor do II século, afirma esta verdade quando escreve: “Não se surpreendam ao falarmos das virtudes do amado Cristo, porque em outros casos nós estamos afeitos a olhar o próprio Cristo como a substância daquelas muitas virtudes”.4

Pelo fato de Cristo permanecer a fonte de todo o bem moral para a pessoa que aceita a mensagem do Evangelho, a Igreja afirma que o ensino da moral cristã possui uma distinta especificidade. Numa variedade de maneiras, os teólogos contemporâneos enfatizam a importante ligação entre a reta conduta Cristã e a autêntica crença cristã.

Hans Urs von Balthasar, por exemplo, identifica Cristo como a “norma pessoal e concreta”5 da vida moral. Isto quer dizer, entre outros, que sem uma efetiva união com Cristo, nenhuma pessoa humana pode, na prática, atingir a perfeição da vida moral que conduz à beatífica companhia com a Trindade, os anjos e os santos. Para mais, “é Cristo, o novo Adão, que plenamente desvenda a própria humanidade e desdobra o Seu nobre chamado revelando o mistério do Pai e do amor do Pai”.6

Por outras palavras, apenas a pessoa que abraça uma vida cristã de virtudes vive inteiramente de acordo com a norma da verdade moral que Cristo, a “imagem do Deus invisível,” comunica ao mundo, e em Cristo realiza a perfeição da natureza humana.

Por um lado, devido à sua inteligência superior, os anjos conhecem os divinos mistérios do mundo com grande clareza. Nós, por outro lado, conhecemos as verdades da fé sombriamente, isto é, apenas pela crença na Palavra de Deus, Primeira Verdade.7 E por causa da escuridão moral que caracteriza o pecado no mundo, as verdades da fé acerca da conduta humana parecem por vezes obscuras para a pessoa que ainda deve aprender a apreciar a medida espiritual que Cristo estabelece para vida humana. Certamente, uma ponderação contemplativa mais profunda da verdade revelada — um esforço na fé para ver mais claramente o que os anjos bons vêem na “manhã” quando tudo aparece na “imagem perfeita” — forma a característica básica do dinamismo da vida Cristã. Significa isto, então, que o conhecimento da fé apenas pode fornecer instrução moral para o crente Cristão? Tradicionalmente, a Igreja dá uma resposta negativa a essa questão. A razão humana — a que está inerente a capacidade e o objeto próprio — não está abrogada pelo dom da fé. O ser humano, alumiado pela fé em Cristo continua a englobar o mundo com a sua capacidade racional de inteligência. E para que se possa compreender plenamente o esplendor da vida Cristã, é importante conhecer as razões porque o conhecimento humano autêntico ajuda a crença Cristã, especialmente em matérias que concernem a própria conduta da vida humana.

O fato de a razão preservar todo o seu vigor no contexto da vida cristã indica um papel genuíno para a filosofia dentro de uma compreensão cristã do mundo e da pessoa humana. Nas suas Gifford Lectures (1931-32), Étienne Gilson levantou a questão da filosofia Cristã: “Eu chamo Cristã a toda a filosofia que, apesar de manter as duas ordens formalmente distintas, considera a revelação Cristã um auxiliar indispensável para a razão”.8 Quer nós aceitemos ou não esta proposta especifica, Gilson deixa ao menos uma noção de como a crença Cristã pode considerar o esse rerum, o ser das coisas, de um ponto de vista formalmente distinto daquele da fé divina. E se essa procura pessoal por sabedoria se desenvolve num inquérito intelectual, nós podemos justamente chamar à pessoa que o pratica um filósofo Cristão. O conhecimento filosófico demanda esse rerum quod in propria natura habent, isto é, busca desvendar as naturezas próprias que as coisas têm nelas mesmas. Apesar da filosofia poder apenas conseguir um conhecimento limitado da natureza das coisas, o ensinamento filosófico ainda representa um esforço discursivo da parte da pessoa humana a fim de obter o que os anjos vêm ao escurecer, um “conhecimento da realidade criada enquanto existente na sua própria natureza.” A Igreja, cada vez mais, incentiva este esforço, e ela fá-lo baseada em São Paulo: “Com efeito, o que é invisível nele — o seu eterno poder e divindade — tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras” (Rm 1, 20).

O Cristão sabe que há limites para os “princípios e as causas” que os filósofos procuram. A “filosofia primordial” de Aristóteles, na realidade, convida-nos a contemplar a existência da mais alta verdade, embora os poços que alcançaram esta meta obtiveram apenas um oblíquo, inferencial conhecimento deste último princípio; isto é, um conhecimento da dependência dos seres criados de uma única, fonte que todas as pessoas chamam Deus.9 Devido a ter explorado extensivamente a diferença entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, São Tomás de Aquino oferece uma nota incaracteristicamente acabrunhada acerca daquelas pessoas que se apóiam apenas na razão para descobrir a verdade acerca da existência humana.

Porque Aristóteles viu que não há nenhum outro conhecimento humano nesta vida exceto através das ciências especulativas, ele sustentou que o homem não pode atingir uma completa, mas apenas uma relativa felicidade. Com isto fica claro o que o nobre gênio entre os filósofos experienciou no curso do seu tempo.10

Mas enquanto o Cristão escapa a esse triste estado, ele ou ela precisam experimentar alguma frustração dos filósofos. Como um teólogo aponta, “se o homem não estabelece um contato definitivo com Deus a um ponto que não é graça (no sentido teológico da palavra), então o Deus que se revela não se pode endereçar ao homem de modo significante. Daí, a solene declaração da Igreja que a existência de Deus pode ser naturalmente conhecida (Dz 3004, 3026) e que a alma humana é imortal (Dz 1440)”.11

Quando a Igreja defende a dignidade do chamado humano e restaura a esperança para aqueles desconsolados de qualquer destino mais alto, ela reconhece que a sua mensagem atingiu o mais profundo do coração humano. Ao mesmo tempo, por causa do sobrenatural senso de fé, o Povo de Deus recebe uma verdade que excede a capacidade do conhecimento humano, a verdade que os liberta (Cf. Jo 8, 32).

Retornemos à distinção que Santo Agostinho e São Tomás de Aquino fizeram entre o conhecimento matutino e vespertino dos anjos — o seu cognitio matutina e vespertina — a fim de ver que aplicação pode ter na ética teológica. O Aquinate explica a base para distinguir os dois tipos de conhecimento angélico da seguinte maneira: Para o ser das coisas deflui do Mundo como de um primeiro (ou primordial) princípio, e esta efusão termina no ser das coisas o que elas possuem em sua própria natureza.

São Tomás fala de um “defluir” que se espalha da fonte criativa de todas as coisas em Deus e termina na variedade de naturezas criadas que existem no mundo.12 A expressão da verdade divina assemelha-se a este fluir do ser. No ponto de vista do Aquinate, encontra-se a inesperada compleição da metafísica na revelação Cristã. Através da revelação divina, Deus comunica um conhecimento da realidade como ela existe no Seu Filho, mesmo apesar de os crentes ainda gozarem da capacidade de adquirir um conhecimento das coisas reais como elas existem nelas próprias.

O filósofo americano vai ainda tão longe de afirmar que “a teologia revelada promete uma visão dos princípios que o metafísico busca, e até mesmo deseja”.13

In: Lumen Veritatis, nº5.

Este texto foi publicado com a gentil permissão do corpo editorial da AMATECA series of Handbooks of Catholic Theology e foi traduzido pelo Pe. Colombo Pires E.P. da edição inglesa do Father Cessario’s Le Virtù (Milan 1994).

[Romanus Cessario, O.P. The Virtues, Or the Examined Life (London/New York: Continuum, 2002)].

1 De Sacramentis Bk 1, chap. 5, no. 19 (PL 176: 254).
2 Summa theologiae Ia q. 58, a. 6.
3 Ibidem.
4 Origen, Commentary on the Song of Songs, Bk 1, in Origen, The Song of Songs: Commentary, trans. R. P. Lawson (Ancient Christian Writers, vol. 26; Westminster, MD and London, 1957), p. 89.
5 Hans Urs von Balthasar, “Nine Theses in Christian Ethics”, in International Theological Commission: Texts and Documents 1969-1985, ed, Michael Sharkey (San Francisco, 1989), p. 108.
6 Gaudium et spes, nº. 22.
7 O Aquinate chega a especular se os anjos possuem essa claridade acerca das verdades da fé mesmo antes da sua confirmação na glória (ver Summa theologiae IIa-IIae q. 5, a. 1). Em qualquer caso, a distinção de Santo Agostinho refere-se ao que os anjos conhecem após a sua irreversível escolha de amor a Deus.
8 The Spirit of Medieval Philosophy (New York, 1940), p. 37.
9 Cf. In De Trinitate Bk 5, chap. 4.
10 Contra gentiles Bk III, c. 48.
11 Edward Schillebeeckx, Revelation and Theology, vol. 1 (New York, 1967), pp. 154, 155.
12 Porque ele afirma firmemente a total implicação da doutrina Cristã da criação ex nihilo, São Tomás reconhece que toda a natureza criada possui mas nunca extingue o seu próprio ato de ser. A grande contingência dos seres criados deriva da tênue afirmação que têm na existência, onde quer que a divina omnipotência e infinitude repousem na identidade da essência e existência que pertence unicamente a Deus. Por outras palavras, a explicação do Aquinate acerca do “defluir” permanece livre de emanacionismo ou outra conotação panteísta.

13 Mark D. Jordan, Ordering Wisdom:The Hierarchy of Philosophical Discourses in Aquinas (Notre Dame, IN, 1986), p. 178. Jordan explica mais tarde esta conexão: “Se há uma diferença metodológica entre metafísica e teologia, não haveria então uma segregação material delas nos textos (de São Tomás). O discurso da metafísica não está encerrado em algum ponto abaixo da teologia na hierarquia das ciências. O leitor passa imperceptivelmente de um discurso para outro. De fato, não é como se estivéssemos a passar ao lado da metafísica, mesmo se alguém sabe que a metafísica, enquanto ela mesma, não pode prover a necessidade de um estágio mais alto. Pelo contrário, encontra-se a inesperada compleição da metafísica na revelação” (p. 177).

O Direito de Associação no Vaticano II e no CIC: As Associações Privadas de Fiéis

EncontroMons. João S. Clá Dias, EP

1. Explicitação do Direito de Associação no Concílio Vaticano II

A noção do papel de todos os fiéis na vida da Igreja foi notavelmente ressaltada no Concílio Vaticano II. E, com ela, a concepção ainda mais clara e precisa de que os fiéis possuem um direito de se associar, inclusive para finalidades espirituais, de caridade, de apostolado e, enfim, religiosas de um modo geral.1 Nesse sentido, diz o Decreto Apostolicam Actuositatem:

18. Os cristãos são chamados, como indivíduos, a exercerem o apostolado nas diversas circunstâncias de sua vida. Lembrem-se, no entanto, que o homem é por natureza social e aprouve a Deus reunir os fiéis em Cristo num povo de Deus (cf. 1 Pd 2, 5-10) e num só corpo (cf. 1 Cor 12, 12). […] Exerçam, pois, os fiéis, o apostolado em espírito de unidade. Façam-se apóstolos tanto em suas comunidades familiares quanto nas paroquiais e diocesanas — comunidades que por sua vez exprimem a índole comunitária do apostolado — como também em agrupamentos livres aos quais decidiram agregar-se.

O apostolado de grupo é de grande importância também porque, nas comunidades da Igreja ou em diversos ambientes, muitas vezes exige que seja realizado por uma ação comum. Os grupos constituídos para a ação apostólica comunitária sustentam seus membros e os formam para o apostolado, organizam e dirigem seu trabalho apostólico, de forma a se poder esperar daí frutos bem mais abundantes do que no caso de agirem todos em separado.

Nas atuais circunstâncias, pois, é de extrema necessidade que no ambiente da atividade dos leigos se fortaleça a forma de apostolado em grupo organizado. É só a união estreita de forças que pode atingir plenamente os fins todos do apostolado moderno e ainda defender vigorosamente seus benefícios. […]

19. Grande é a variedade que existe entre as associações de apostolado. […]

Salva a devida relação com a autoridade eclesiástica, é direito dos leigos fundarem grupos e dirigirem-nos, bem como inscreverem-se nos existentes (AA 18-19).

2. O direito de reunião e de associação no atual CIC

Uma das grandes inovações introduzidas no ordenamento jurídico canônico pelo atual CIC consiste no reconhecimento, aos fiéis católicos em geral, ou seja, clérigos e leigos2, das liberdades de associação e de reunião, nos termos do cân. 215:

Os fiéis têm o direito de fundar e dirigir livremente associações para fins de caridade e piedade, ou para favorecer a vocação cristã no mundo, e de se reunir para a consecução comum dessas finalidades.

Manzanares (2005, p. 127), em nota a esse cânon, destaca o reconhecimento não só do direito de associação, mas também do de simples reunião, e manifesta a origem conciliar desses conceitos: “Refere-se o cânon tanto ao direito de associação como ao de simples reunião. Veja-se sua motivação e sua clara afirmação doutrinal em AA 18-19”.

Em dicção semelhante, embora sem mencionar explicitamente a liberdade de reunião, o Código repete o conceito no que se refere aos clérigos seculares, ou seja, afirma claramente o direito de associar-se que lhes assiste, no cân. 278, § 1 e 2 3:

§ 1. É direito dos clérigos seculares associarem-se para finalidades conformes ao estado clerical.

§ 2. Os clérigos seculares dêem importância principalmente às associações que, tendo os estatutos aprovados pela autoridade competente, por uma organização de vida adequada e convenientemente aprovada e pela ajuda fraterna, são de estímulo à santidade no exercício no ministério e favorecem a união dos clérigos entre si e com o Bispo.

Segundo Hortal, o Código explicita, no cân. 278, o direito dos clérigos seculares à associação “não porque eles não sejam ‘fiéis cristãos’, mas porque historicamente esse direito lhes foi negado com freqüência” (HORTAL, 2008, p. 153). Quanto aos membros dos estados de vida consagrada, como também aponta Hortal4, estão eles sujeitos ao que estabelece o § 3 do cân. 307: “Os membros de institutos religiosos podem inscrever-se em associações, de acordo com o direito próprio e com o consentimento Superior.” Como o próprio Papa João Paulo II declarou, na Constituição Apostólica de promulgação do novo Código (2008, p. 15), as inovações nele contidas refletem o “grande esforço de transferir para a linguagem canonística, a própria eclesiologia conciliar”. E acrescenta: “A conseqüência é que a razão fundamental da novidade que, sem jamais afastar-se da tradição legislativa da Igreja, se encontra no Concílio Vaticano II, principalmente sua eclesiologia, constitui também a razão da novidade no novo Código” (p. 15).

Se o Concílio Vaticano II hauriu elementos antigos e novos do tesouro da Tradição e se sua novidade se constitui por estes e outros elementos, é manifesto que o Código deve possuir a mesma característica de fidelidade, conformando-se a ela em seu próprio campo e sua maneira especial de expressar-se (JOÃO PAULO II, 2008, p. 15 e 17).

E, como refere Gruszynski (1999, p. 20), no discurso de apresentação do novo CIC, João Paulo II afirma que:

[…] ele não pode ser adequadamente valorizado e corretamente interpretado se for considerado, de acordo com a ideologia das codificações civis, como um texto normativo autônomo, completo e exaustivo. Ele deve, pelo contrário, ser colocado ao lado do “Livro que contém os atos do Concílio”, em um acoplamento bem válido e significativo, que vê estes dois livros elaborados pela Igreja do século XX se integrarem numa unidade harmônica e complementar.

Conclui-se, pois, que as normas canônicas vigentes sobre os fenômenos associativos decorrem dos ensinamentos emanados do Concílio Vaticano II, são por eles complementados e a essa luz devem ser interpretados. Deve-se ter em vista, porém, que, em matéria de explicitação e precisão de definição, o CIC foi além do próprio Concílio, conforme a observação de Feliciani (2002, p. 120-121):

O Vaticano II, embora afirmando de modo claro o direito de associação dos fiéis, não se preocupou de propor uma definição formal e exaustiva. Pelo contrário, o novo Código chega, no cân. 215, a um reconhecimento totalmente explícito: “Os fiéis têm o direito de livremente fundar e dirigir associações para fins de caridade e de piedade e para favorecer a vocação cristã no mundo e a reunir-se para atingir juntos esses fins”.

3. As Associações Privadas de Fiéis no atual CIC

Uma definição do que são as associações de fiéis nos é dada pelo cân. 298 § 1 5. Ele o faz em parte por exclusão, ao referir que se trata de associações “distintas dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica”; em parte designando os que delas podem ser membros, quais sejam clérigos ou leigos, quer sendo facultadas as associações compostas exclusivamente por clérigos ou exclusivamente por leigos, quer podendo haver clérigos e leigos conjuntamente em seus quadros; e, também, complementa a conceituação enumerando fins a que podem visar, enumeração essa que “é exemplificativa, não exclusiva” (HORTAL, 2008, p. 162).

Sobre a gama muito ampla de fins a que podem visar as associações privadas de fiéis, Fuentes (2002, p. 513) esclarece: “Qualquer fim próprio da condição de batizado pode ser pretendido pelos fiéis unidos em associação” (p. 513). Observa apenas que, em se tratando de associações privadas, “os fins que pretendem não os persigam em nome da Igreja”, o que, porém, não lhes diminui o caráter eclesial, ou restringe sua atuação ao âmbito temporal:

Isto não quer dizer que a missão destas associações seja menos eclesial, ou que estas associações sejam aquelas nas quais os fiéis se unem com fins civis, sociais, políticos ou culturais. As associações privadas de fiéis são associações na Igreja e para cumprir fins eclesiais, para cumprir aqueles fins que se assinalam no cân. 298, § 1 (cf. CD, 17 e AA, 19).6

Examinando o cân. 298, § 1, Ghirlanda (2007) destaca os elementos que considera fundamentais para se aferir a conveniência de aprovar-se e, enfim, discernir as características de uma associação de fiéis leigos. Embora o autor pretenda delimitar critérios para o reconhecimento de tais associações, eles também se prestam para uma melhor compreensão do que sejam as associações de fiéis em si mesmas. Ghirlanda (2007, p. 268-269) os vai recolher na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Christifideles Laici, resumindo-os como segue:

1) As associações devem ser instrumentos de santidade para seus membros. Isto verifica-se pela sua fidelidade para com o Senhor e pela docilidade ao Espírito; portanto, pelo uso de meios de santificação concordes com a doutrina, a disciplina e a tradição da Igreja.

2) Pelo respeito para com o magistério verifica-se a sua realidade de lugar de anúncio da fé e de formação integral.

3) Pelo testemunho de uma comunhão sólida e convicta com o Romano Pontífice e os bispos comprovam-se o amor sincero para com a Igreja e a vontade de inserção ativa na sua vida de oração e de ação apostólica para o seu incremento.

4) De acordo com a finalidade apostólica da Igreja deve ser manifesta a dinamicidade apostólica, e também missionária, ou então discreta na sociedade humana, na humildade e na capacidade de colaboração com todos os outros organismos ativos na Igreja tanto universal como particular.

5) Empenho no agir na sociedade humana a serviço da dignidade integral do homem, à luz da doutrina social da Igreja.

Além dos pontos destacados por Ghirlanda (2007), chama a atenção o último parágrafo da Christifideles Laici (n. 30), o qual ressalta a necessidade de se ter em vista os “frutos concretos que acompanharam a vida e as obras” da instituição.

Este critério nos faz lembrar o ensinamento evangélico de que “pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7, 20), e certamente está também nos fundamentos do que Feliciani (2003, p. 158) propõe como parâmetro para o reconhecimento eclesiástico:

[…] em toda esta matéria parece oportuno evitar o mais possível preocupações formalísticas e privilegiar o aspecto substancial. Em conseqüência, a autoridade deverá ter presente não só e não tanto os dados resultantes da documentação submetida ao seu exame, mas também e, sobretudo, a efetiva realidade da associação assim como a pode conhecer por experiência direta ou por testemunhas dignas de crédito.

CLÁ DIAS, João. Os carismas e as instituições jurídicas: A Graça e a Lei enquanto realidades harmônicas. Lumen Veritatis. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 11, abr-jun 2010. p. 23-28.

_____________

1 Essa dificuldade de se compreender o papel e a liberdade dos leigos na Igreja e o correspondente direito de atuarem de forma associada chega a ser enunciada por Corral y Urteaga como algo que a autoridade eclesiástica por vezes repeliu e, segundo esse autor, teria ela chegado a ver nisso um perigo de subversão ou um obstáculo ao exercício de seu próprio poder: “O fenômeno associativo sempre foi muito importante na Igreja. Mas assim como na base, tanto clerical como secular, tinha uma vitalidade muito forte, contudo a autoridade eclesiástica nem sempre apreciou no seu valor este aspecto da vida eclesial. Assim como a Igreja é uma comunidade, dentro desta comunidade, por afinidades espirituais ou finalidades similares, os fiéis e os clérigos procuravam a comunidade de vida e atuações. Mas a autoridade via nisso antes um perigo de subversão ou de impedimento da ação da autoridade na Igreja. Daí que houvesse tantas limitações para a constituição destas associações, que no Direito antigo não se podiam constituir sem aprovação do legítimo superior eclesiástico (cf. cân. 708 do Código de 17). Essa força associativa na Igreja foi aumentada. O Concílio Vaticano II, acolhendo o fenômeno eclesial e avaliando positivamente a sua ação na Igreja, deu lugar a uma orientação mais favorável a essas associações, que já antes na Igreja, sobretudo da parte dos leigos, tinham conseguido um reconhecimento, principalmente na Ação Católica e organizações equiparadas”. (CORRAL Salvador, Carlos; URTEAGA Embil, José Maria. Dicionário de Direito Canônico. São Paulo: Loyola, 1997. Trad. Jesús Hortal et al. p. 698).

2 Como já foi referido e se depreende dos câns. 204 e 207, por fiéis o CIC entende “os que incorporados pelo batismo foram constituídos como povo de Deus e, assim, feitos participantes, a seu modo, do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, são chamados a exercer, segundo a condição própria de cada um, a missão que Deus confiou para a Igreja cumprir no mundo” (cân. 204). Ou seja, todos os batizados. Ainda conforme o cân. 207, §1, leigos são todos os fiéis que não são clérigos. E segundo o §2 do mesmo cânon, tanto clérigos quanto leigos podem, “pela profissão dos conselhos evangélicos, mediante votos ou outros vínculos sagrados, reconhecidos e sancionados pela Igreja”, consagrar-se “a Deus e contribuir para a missão salvífica da Igreja”. São aqueles que o CIC regula ao tratar “Dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica”.

3 Que essas liberdades não são ilimitadas, deixam-no claro o § 3 do cân. 278 e o § 2 do 287, quanto aos clérigos seculares; e o cân. 223, §§ 1 e 2, entre outros, no que se refere a todos os fiéis. Extrapolaria os objetivos deste trabalho entrar em minúcias a respeito de tais limitações.

4 “Advirta-se, porém, que se trata [no cân. 278] dos clérigos seculares, pois os membros dos estados de vida consagrada, pela própria natureza das coisas, estão muito mais limitados no seu direito de associação” (Hortal, 2008, p. 153).

5 Cân. 298, §1. Na Igreja existem associações distintas dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica, nas quais os fiéis, clérigos ou leigos, ou conjuntamente clérigos e leigos, se empenham, mediante esforço comum, para fomentar uma vida mais perfeita, ou para promover o culto público ou a doutrina cristã, ou para outras obras de apostolado, isto é, iniciativas de evangelização, exercício de obras de piedade ou caridade, e animação da ordem temporal com espírito cristão.

6 Fuentes (2002, p. 514) prossegue tratando de uma delicada distinção entre as associações civis, que tendam a fins “que afetam mais ou menos diretamente à Igreja” (p. 514), e as associações eclesiais. Para não alongar demasiadamente o presente estudo e desviar o foco, que são propriamente as associações privadas de fiéis, deixamos de tratar desse interessante assunto aqui e recomendamos a quem nele deseje se aprofundar que consulte o próprio texto de Fuentes.