A beleza da verdade e a verdade da beleza

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Gostos se discutem, sim! Não é cada um com a sua verdade, pois da mesma forma que não convém à verdade ser mutável, a beleza não deveria depender de preferências ou tendências subjetivas. Se ambas fossem passíveis de volatilidade ou diversidade, não teria sentido falar em verdade ou em beleza, pois estas teriam como medida os gostos e opiniões contraditórios de cada um… Submeter os critérios de verdade e de beleza a divergências de carácter pessoal ou cronológico é próprio a uma cultura relativista com repercussões no campo da ética e da estética. A beleza e a verdade são grandes demais para ficarem sujeitas ao individualismo e ao tempo.

Antes de haver o homem, as coisas já eram belas e verdadeiras, fruto daquela bondade criadora, luz de eterna formosura, que tudo tirou do nada. Da mesma forma que o diálogo está chamado a identificar a verdade que o precede, a beleza poderá ser encontrada na criação e partilha de elementos estéticos, em busca da perfeição e do absoluto. São discutíveis, portanto, não as coisas belas e as verdades, mas as idealizações e argumentações que levem os homens a identificá-las. A verdade e a beleza não podem ser regidos pela história e pelo tempo, pelos homens e pelas ideias dominantes, mas estes é que estão chamados a sujeitarem-se e a serem regidos por aquela verdade e beleza subsistentes.

A verdade da beleza e a beleza da verdade têm a sua referência em Cristo, ao mesmo tempo Verdade (Jo 14, 6) e beleza que salva.[1] Ambas se impõem por si e não são passíveis de esconder debaixo do alqueire (Mt 5, 15) e por isso devem conduzir ao testemunho. Quem contempla e se encontra com Cristo, fato constitutivo do ser cristão (Deus Caritas Est 1), não pode senão comunicar esta experiência. A flecha da beleza que nos atinge tem sua origem no mais belo entre os filhos dos homens (Sl 45, 3).[2] Dele provém e para ele atrai.


[1] Quanto à beleza, encontra-se um excelente texto sobre o pensamento de Bento XVI em RATZINGER, Joseph. A Caminho de Jesus Cristo. Coimbra: Tenacitas, 2006.

[2] Idem.

Da beleza à Beleza

Diác. Dartagnan Alves de Oliveira Souza, EP

As belezas contidas no Universo nos falam de uma Beleza maior, não mutável, mas da qual emanam todas as demais belezas (relativas), sujeitas à mudança.[1] Essas belezas mutáveis são apenas reflexos de uma matriz de Beleza de onde se origina esse transcendental.[2]

Santo Agostinho em um de seus sermões, tratando sobre a beleza, diz: “Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar, interroga a beleza do ar dilatado e difuso, interroga a beleza do céu, interroga o ritmo ordenado dos astros; interroga ao sol, que ilumina o dia com fulgor; interroga a lua, que suaviza com seu resplendor a obscuridade da noite que segue ao dia; interroga aos animais que se movem nas águas, que habitam a terra e que voam no ar […] Interroga todas essas realidades. Todas elas te responderão: Olha-nos, somos belas. Sua beleza é um hino (confissão) de louvor. Quem fez essas coisas belas, ainda que mutáveis, senão a própria Beleza imutável?”[3]

Por meio dos atrativos bons, belos e verdadeiros encontrados na natureza material que nos rodeia a todo momento, podemos nos elevar Àquele que é propriamente o Bem, o Belo e a Verdade por excelência.

A respeito da beleza Platão já falara em seu tempo. Para ele, o princípio de uma ascensão à ideia divina de Beleza tem como ponto de partida o amor. É por meio do amor que o homem poderá contemplar as criaturas corpóreas e dar um passo rumo à beleza moral. Atingindo essa beleza posta nos costumes, o homem poderá ascender aos belos ensinamentos — que outra coisa não é, senão a beleza intelectual — para assim chegar à consideração da ideia de Beleza em si mesma — a Beleza enquanto tal — da qual as demais belezas particulares não são senão mera participação.[4] Assim sendo, segundo esse filósofo, o homem ascende como que a graus que o levam a encontrar e a conhecer, paulatinamente, belezas superiores, até chegar à Beleza em si mesma, que é incriada.[5]

Essa ideia, exposta no Banquete, nos mostra de forma claríssima o que Platão pensava sobre a beleza. Encontramos nesse pensamento a conceitualização da ideia do amor vinculada com a ideia de beleza; para ele, é por meio do amor que o filósofo chegará a uma ciência verdadeira (a contemplação da Beleza em si mesma). Platão atribuirá à ideia de Beleza qualificativos “divinos”. O próprio ser humano, ao entrar em contato com ela, poderá haurir essa “divinização”. Ele chega a afirmar que toda participação de beleza contida no Universo tem como modelo essa Beleza “inmutable, que no nace ni perece, autosuficiente, simple, incorpórea, divina y que diviniza al hombre que la posee…”.[6]

Esse pensamento platônico é uma primeira ideia, ainda não nítida, a respeito da relação da beleza por participação com a Beleza subsistente. Claro está que o pensamento em torno da beleza, em todos os seus graus e formas, foi-se desenvolvendo à medida que o próprio ser humano a foi contemplando.


[1] JOLIVET, Tratado de Filosofia III: Metafísica, Op. Cit., p. 260.

[2] BRUYNE, Edgar de. L’Esthétique du Moyen Age. Louvain: Éditions de L’Institut Supérieur de Philosophie, 1947. p. 10.

[3] SANCTUS AUGUSTINUS, Sermo 241, 2. Interroga pulchritudinem terrae, interroga pulchritudinem maris, interroga pulchritudinem dilatati et diffusi aeris, interroga pulchritudinem coeli, interroga ordinem siderum, interroga solem fulgore suo diem clarificantem, interroga lunam splendore subsequentis noctis tenebras temperantem, interroga animalia quae moventur in aquis, quae morantur in terris, quae volitant in aere […] interroga ista, Respondent tibi omnia: Ecce vide, pulchra sumus. Pulchritudo eorum, confessio eorum. Ista pulchra mutabilia quis fecit, nisi incommutabilis pulcher? (Tradução pessoal).

[4] PLATÃO. Fédon, XLIX, 100. Citado por MANDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo: História da Filosofia Greco-Romana I. 2. ed. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1966. p. 13.

[5] PLATÃO. O banquete. Citado por FRAILE, Guillermo, O. P. Historia de la filosofía I: Grecia y Roma. 5. ed. Madrid: La Editorial Catolica, S. A., 1982. p. 354-355.

[6] Ibid., p. 326-327. “…imutável, que não nasce e nem morre, auto-suficiente, simples, incorpórea, divina e que diviniza ao homem que a possui…” (Tradução pessoal).

Não é qualquer beleza que salva

Pe. José Victorino de Andrade, EPaurora

O Catecismo da Igreja Católica ensina que a obra da criação se nos apresenta sob a forma de vestígios do próprio Criador,[1] a fim de a inteligência poder relacionar as coisas visíveis com o invisível. Este contínuo apelo daquilo que nos rodeia à sua causa e sustento, leva o homem a sair de si para deixar-se surpreender e enlevar, através de experiências estéticas que lhe falam no mais íntimo de realidades superiores, metafísicas, transcendentais.

Diversos autores deixaram testemunhos surpreendentes em torno de especulações perante as múltiplas manifestações de Deus, nas suas criaturas. Nesse sentido, há um célebre episódio de Napoleão no qual, certa noite, interrompe uma discussão materialista entre soldados a fim de apontar as cintilantes estrelas do céu e questioná-los: “Vós podeis falar quanto tempo quiserdes, senhores, mas quem terá feito tudo isso?”.[2]

Não só diante da magnanimidade da Criação houve reações. Também a ordem e complexidade do Universo levariam Newton, ou mesmo Voltaire, a afirmarem que não há relógio sem relojoeiro,[3] reportando-se à necessidade de um Criador, ainda que envolto em concepções filosóficas distantes da Teologia cristã.

Entretanto, encontramos ainda no homem, em meio ao secularismo de hoje, um conjunto considerável de interrogantes e disposições que o levam a sair de si e ter a capacidade de se maravilhar com os vestígios de Deus.[4] Já São Tomás de Aquino fazia uma interessante reflexão ao considerar o 13º Capítulo do Livro da Sabedoria,[5] servindo-se para isso da seguinte imagem:

Se alguém indo a uma casa e desde a porta fosse sentindo calor e cada vez mais nela penetrasse e mais calor sentisse, evidentemente perceberia que havia fogo no seu interior, mesmo que não estivesse vendo o fogo. Acontece o mesmo conosco, ao considerarmos as coisas deste mundo. Todas as coisas estão ordenadas conforme diversos graus de beleza e de nobreza, e quanto mais próximas de Deus, tanto melhores e mais belas.[6]

Vemos, desta forma, o quanto a beleza pode ser comparada a uma chama. Quem será insensível ao seu calor? Este abrasa e arrebata, alça-nos a considerações salutares, tira-nos da nossa condição, do “eu”. Esta especulação tinha sido feita por Platão, em Fedro, e não foi estranha a Santo Agostinho. O então Cardeal Ratzinger aproveitou os escritos de ambos para comparar o belo a uma flecha capaz de ferir o homem no seu íntimo, para desse modo “lhe conferir asas e o elevar às alturas”.[7] Não será esta uma solução para o mundo materialista e relativista no qual vivemos? Não se apresentará à Igreja como um instrumento preciosíssimo, desde sempre ao seu alcance, quer através da Liturgia, quer através da arte sacra? Mons. Luigi Giussani já o reconhecia ao propor, certa vez, em seus exercícios: “Noi dobbiamo lottare per la bellezza. Perché senza la bellezza non si vive. E questa lotta deve investire ogni particolare: altrimenti come faremo un giorno a riempire la piazza San Pietro?”.[8]

“A beleza salvará o mundo”, propôs Dostoiévski,[9] numa frase múltiplas vezes utilizada em variadas reflexões. O próprio Papa João Paulo II citou-a na sua Carta aos Artistas (1999), e o Pontifício Conselho para a Cultura viria a desenvolvê-la no excelente documento elaborado em torno deste assunto, que se intitula Via Pulchritudinis.

Entretanto, cabe aqui realizar uma importante precisão, de acordo com estes dois documentos: não se trata de qualquer beleza, capaz de salvar o mundo, como se coubesse ao conceito, mesmo com todo seu valor, qualquer força própria e redentora. É para Cristo, “o mais belo dos filhos dos homens” (Sl 44, 3), que o nosso pensamento deve remeter; Aquele em cuja face a glória de Deus resplandece (cf. 2Cor 4, 6).

Encontra-se traçada a pedagógica via que nos conduzirá à fonte absoluta da pulcritude, de onde dimana a relativa, os vestígios, através dos quais aprendemos “quão mais belo que tudo é o Senhor, o próprio autor da beleza” (Sb 13, 3). Porque, como escreveu Bento XVI, quando ainda cardeal: “nada há que melhor nos possa pôr em contacto com a beleza do próprio Cristo do que o mundo do Belo criado pela fé, bem como a luz resplandecente no rosto dos santos, através da qual se torna visível a Sua própria Luz”.[10]

VICTORINO DE ANDRADE, José. Editorialin: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 10, Jan-Mar 2010. p. 3-5.


[1]Cf. n. 1147.

[2] Cf. BOURRIENNE, Louis. Memoirs of Napoleon Bonapart. V.1. [s.l.]: Bibliobazaar, 1891. p. 327.

[3] Ver FIORIN, José (org.). O pensamento humano na história da filosofia. Ijuí: Sapiens, 2007, p. 261. BANDET, François. Estará a ciência oposta à Fé? Lumen Veritatis, n. 6, jan-mar, 2009, p. 70.

[4] Ver, por exemplo: JOÃO PAULO II. Angelus de 21 de Julho de 1996, ed. port. de L’Osservatore Romano de 27/7/1996, p. 1.

[5] Especificamente, as seguintes passagens: “Sim, insensatos são todos aqueles homens em que se instalou a ignorância de Deus e que, a partir dos bens visíveis, não foram capazes de descobrir Aquele que É, nem, considerando as obras, reconheceram o Artífice” (Sb 13, 1); “na grandeza e na beleza das criaturas se contempla, por analogia, o seu Criador” (Sb 13, 5).

[6] AQUINO, Tomás de. Exposição sobre o Credo. 5 ed. São Paulo: Loyola, 2002, p. 27.

[7] Publicado em 30 Giorni, n. 91 (2002). Messaggio al XXIII Meeting per l’amicizia fra i popoli. Rimini, 21 agosto 2002.

[8] Esercizi a Varigotti, 1964. Apud FARINA, Renato. Ratzinger ricorda don Gius, «mio vero amico», Libero, 25 marzo 2007.

[9] Ver DOSTOÉVSKI, Fiódor. L’idiota. Trad. PACINI G. Parte III, cap. V. Milão, 2005, p. 478.

[10] RATZINGER, Joseph. A Caminho de Jesus Cristo. Coimbra: Tenacitas, 2006, p. 45.

Via Pulchritudinis: caminho privilegiado

Diác. Felipe Ramos, EP

São Tomás não compôs nenhum tratado específico sobre a beleza, e tampouco a tratou de modo esquemático.

Por outro lado, o Aquinate interpreta o conceito de graduação para remeter a um máximo sempre no conceito dos transcendentais,[1] “facetas” do ser, por assim dizer. Os exemplos que ele nos oferece na quarta via são bonum, verum e nobile. Bonum e verum ele sempre enumerou entre os transcendentais,[2] mas e o nobile? Seria também um transcendental?

Não é possível dizer com absoluta certeza o que o Angélico quis dizer exatamente com nobile, pois há inclusive diversas interpretações. Uma delas é o conceito filosófico de valor que também pode ser interpretado como propriedade transcendental.[3]

Entretanto, podemos bem crer que ele quis se referir à beleza quando fala de nobreza na quarta via. Em outras obras relaciona a nobreza com a beleza: “Quia est nobilis, sive pulcher[4] ou “nobilitas enim seu pulchritudo[5] ou “nam ipse invenit res omnes secundum diversos gradus pulchritudinis et nobilitatis esse dispositas”.[6] Portanto, ele os toma nessas partes praticamente como sinônimos.

Independentemente do significado implícito da palavra nobile, podemos relacionar a beleza como uma das perfeições absolutas aplicáveis à quarta via. Mas faz-nos crer que de modo mais arquitetônico tratasse ele da beleza.

A apreensão do belo é mais misterioso e matizado do que parece. A beleza ― este “transcendental esquecido” segundo expressão de E. Gilson ― não é apenas uma qualidade sensorial (quae visa placent)[7], mas uma verdadeira “epifania do ser” em que Deus manifesta a Sua ação embelezadora[8] nas criaturas segundo um mais e um menos.

Quando entendemos o belo segundo os axiomas: “splendor veritatis”,[9] splendor bonitatis ou “splendor ordinis”,[10] contemplamos o esplendor da criação em seus diversos graus nos transcendentais.[11] Assim, o belo enquanto transcendental na linha do bonum,[12] possui propriedades fundamentais de integritas (perfeição), proportio (equilíbrio entre as partes) e claritas (clareza) do objeto conhecido. Desta forma, aquilo que é apetecível (bonum), inteligível (verum) e aprazível se torne como numa síntese, admirável.

Diante disso, a alma humana ao admirar o belo se eleva de tal maneira sobre si mesma que poderíamos glosar a São Paulo: não sou em quem vivo, mas é a própria Beleza que vive em mim. Tornamo-nos verdadeiramente reflexos d’Aquele que admiramos. Por isso, sob influxo de atração ao sublime, chegamos a ter um conhecimento de Deus superior ainda que as vias da verdade, a ponto que o conhecido esteja no conhecedor e o desejado esteja em quem o deseja[13]. Neste âmbito afirma o documento Via Pulchritudinis:

“Esse apelo aos filósofos pode surpreender, mas a Via Pulchritudinis não é, talvez, uma Via Veritatis na qual o homem se empenha por descobrir a bonitas do Deus de Amor, fonte de toda beleza, de toda verdade e de toda bondade? O belo, como também a verdade ou o bem, nos conduz a Deus, Verdade primeira, Bem supremo e Beleza. Mas o belo fala mais do que a verdade ou o bem. Dizer de um ser que é belo não significa apenas reconhecer nele uma inteligibilidade que o torna amável. E dizer, ao mesmo tempo, que especificando o nosso conhecimento ele nos atrai, também nos cativa através de um influxo capaz de despertar um maravilhar-se. Se ele expressa certo poder de atração, ainda mais, talvez, o belo expressa a própria realidade na perfeição de sua forma. Isso é a epifania. Ele a manifesta expressando sua íntima clareza. Se o bem expressa o desejável, o belo expressa ainda mais o esplendor e a luz de uma perfeição que se manifesta” (ASSEMBLEIA PLENÁRIA DOS BISPOS, 2007, p. 17).

Com muito propósito foi a Via Pulchritudinis qualificada como “caminho régio para conduzir a Deus” (Ass. Plen. dos BISPOS, 2007, p. 17). Quase que se poderia dizer que esta seria a única via para chegar a Deus pelo homem hodierno.

Ora, se utilizarmo-nos desta grande força de atração que é a beleza, ela poderá verdadeiramente salvar o mundo.[14] Caso contrário, esta terra só poderá tender a uma autêntica antinomia do desígnio divino nas criaturas.

In: Lumen Veritatis, n. 10.


[1] Ver o belo como transcendental: LOBATO, Abelardo apud PICKAVÉ, Martin, & AERTSEN Jan A.. Die Logik des Transzendentalen. Berlin: de Gruyter, 2003.

[2] No De Veritate I, 1 enumera ele seis: ens, res, unum, aliquid, verum, bonum. Já no I Sent., dist. 8, q. 1, a. 3. enumera apenas três: unum, verum, bonum.

[3] Ver MONDIN, Battista. Dizionario enciclopedico del pensiero di San Tommaso d’Aquino. Bologna: Ed. Studio Domenicano, 2000, p. 709-714.

[4] Super Epistolam B. Pauli ad Galatas lectura, cap. 2, lect. 2.

[5] Idem.

[6] In Symbolum Apostolorum, a. 1.

[7] S. Theol. Ia., q. 5 a. 4, ad 1.

[8] (Pulchrifica) Cf. In Div. Nom., IV, lect. 5, n. 340.

[9] Segundo Platão.

[10] Segundo Santo Agostinho.

[11] O belo é chamado por Maritain: «Splendeur de l’être et de tous les transcendantaux réunis». MARITAIN, Jacques ; MARITAIN, Raïssa. Oeuvres complètes 1, [1906 – 1920]. Fribourg, Suisse: Ed. Univ, 1986, p. 663.

[12] (Sola ratione differens). S. Theol. q. 27, a. 1, ad tertium.

[13] Cf. S. Theol. Ia., q. 8, a. 3, co.

[14] Cf. DOSTOIEVSKI, Fiodor Mikhailovitch, O idiota. (trad. José Geraldo Vieira) São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 422-423

A Estética Moral

Paris nocturna

BRUYNE, Edgar de. L’Esthétique du Moyen Age. Louvain: Éditions de L’Institut Supérieur de Philosophie, 1947. p. 109-113. Tradução a partir do original em francês e latim, por Pe. José Manuel Victorino de Andrade (IFAT) para a Revista Lumen Veritatis.

Podemos admitir duas espécies de beleza. Quando nós vemos alguém empreender um ato heróico, espontaneamente dizemos que isso é bonito: a beleza, nesse caso, é moral, espiritual, puramente inteligível. Se prestarmos atenção numa forma sensível e que consideramos agradável à vista, nós a dizemos bela: trata-se, aqui, da beleza visível. Essas duas formas de beleza são paralelas: é suficiente, para nos convencermos disso, analisarmos a maneira como nós as percebemos.

Se refletirmos na estrutura do ato moral que denominamos “honrar os parentes”, vemos que a intuição desse ato nos é agradável, que logo no começo aprovamos essa ação e espontaneamente louvamos aquele que a cumpre; julgamos tratar-se de algo conveniente. A beleza inteligível é, então, uma forma espiritual que aparece como deleitável à nossa experiência íntima, porque pela sua natureza é considerada como anterior ao nosso prazer: “natum est per se ipsum placere”.1 Se agora quisermos saber o que é a beleza visível, consultemos novamente as reações de nossa sensibilidade, desta vez na sua dependência face aos sentidos externos. Confiemo-nos ao seu testemunho, como no caso da consciência moral.2 O que é a beleza visível? Uma forma que nos parece de maneira anterior, de direito e por ela mesma, deleitar a visão daqueles que a observam: “Pulchrum visum dicimus quod natum est per se ipsum placere spectantibus et delectare secundum visum”.3

Eis-nos diante de uma concepção original da beleza. Não se trata mais de a definir por ações sensíveis de harmonia, de grandeza, de cor, mas de fazer um apelo a uma noção mais espiritual: aquilo que convém de direito. Levamos em nós mesmos uma aspiração incompreensível ao ideal, à perfeição, àquilo que nós julgamos “dever ser”. Desde que um dado, seja ele qual for — moral ou sensível —, apareça na consciência com as qualidades “daquilo que convém de maneira absoluta” e nos sobressalte de emoção, nós somos agradavelmente surpreendidos, empreendemos o louvor e julgamos que “devemos fruir”. Ao caráter objetivo “quod per se decet”,4 corresponde uma reação subjetiva que se impõe de direito: “Quod natum est per se ipsum placere et delectare”.5

O belo nasce, portanto, do encontro do dado (considerado na sua estrutura conveniente) com a nossa alma (de acordo com sua tenção para um ideal). Desde que o contato se faça, produz-se necessariamente (natum est), por sua vez, visão e prazer: “Est enim delectatio conjuntio convenientis cum conveniente”.6

Não procuremos mais longe. Para definir a beleza moral de um ato como o de “honrar os parentes”, basta constatar que a percepção do sentido de um tal ato agrada imediatamente, de modo natural, pela sua “conveniência” à nossa consciência íntima, que não é senão o sentido espontâneo do nosso élan para o conveniente ou o belo. Mesmo quando queremos definir a beleza física de uma simples cor, não é necessário referirmo-nos a outra coisa que não seja a relação da coloração à sensibilidade estética do olhar: “Ab ipso colore non est separabile actu vel ratione hoc ipsum quod est visibile et hoc est quoniam visibilitas essentia ejus est”.7 A essência da cor se identifica com a percepção, mas a própria percepção não se distingue do prazer estético: “Nec aliud est delectatio subjecto et essencia quam visio ipsa… necessario (enim apprehensio) delectabilis”.8

Está claro que partindo destas bases, Guillaume projeta por sua vez a estética na moral, e a moral na estética. Teremos apenas de segui-lo na sua comparação da consciência do bem e do mal com a do belo e do feio.

Não haveria vantagens em salientar, neste momento, as influências aristotélicas que traem seu ciceronianismo, em particular na sua interpretação emocionalista da consciência. Se a alma, como ele a considera, não se distingue das suas faculdades, conhecer é experimentar sentimentos. Ver o belo está em fruir, porque isto é o ato de amar.9

Quanto às consequências da emoção estética, procuremos recordar o essencial: a percepção é acompanhada do prazer ou todavia se identifica com ele; o prazer é seguido de uma aprovação, “puchrum laudabile est”,10 e esta última, de um élan para o belo, “intuentium animos delectat et ad amorem sui allicit”.11

Tudo isso se explica metafisicamente de acordo com os princípios tradicionais: “Nada é belo, que não agrade a Deus”. Se, em consequência, nós nos deleitamos espontaneamente com o belo, é porque, na forma “que convém por si mesma”, descobrimos um reflexo de Deus, que é o Ideal absoluto, isto é, que se impõe como absolutamente digno do ser. Em nossa alma “que se reporta à bela forma”, sentimos de maneira confusa um élan enigmático para Deus. O sentimento confuso — mas quão profundo e deleitável —, do belo, seja moral, seja físico, é portanto o sinal do reencontro consciente de uma parcela realizada da almejada perfeição, com nosso movimento pré-consciente rumo ao ideal infinito.

Guillaume ainda vai mais longe: a ação das criaturas não é senão uma expressiva parte da Atividade divina que lhes é imanente. O desejo do belo, a alegria da visão, o élan para a beleza, é a Atividade primeira que se manifesta: “Hoc cogit vehementia et velut torrens primi fluxus”.12 Deus nos preenche à maneira de um rio de bondades, à semelhança de uma torrente de suavidades que inunda veementemente inumeráveis córregos e riachos.13 Não é apenas a Beleza divina que nós fruímos nas belas formas criadas, mas a nossa própria potência de fruir é um sinal particular de seu Ato presente e agindo em nós.14

___________

1Nasceu para agradar por si mesmo (Et. III, 75).

2 Ib. 75.

3 Dizemos que a beleza visível nasceu por si mesma para agradar aos que a contemplam e deleitar através da visão (Ib. 73).

4 Que convém por si.

5 Que nasceu para agradar e deleitar por si mesmo.

6 O deleite é efetivamente a união da conveniência com o conveniente (Ib. 77).

7 Da própria cor não é separável pelo ato ou pela razão aquilo que é visível devido à visibilidade pertencer à sua essência (Ib. 86).

8 Nem é outro deleite sujeito e essência quanto a própria vista… necessariamente (na verdade percepção) deleitável (Ib. 82).

9 Ib. 80, 81, 72.

10 A beleza é louvável.

11 Contemplando deleita as almas e alicia para o seu amor (Ib. 72).

12 Por isso aumenta o volume com veemência tal como a torrente do primeiro fluxo (De Trin. XI, 15b-16a).

13 Ib. XI, 16ª et XII, 16b (cf. J. de Finance, Etre et agir, 1945, pp. 216 ss).

14 J. de Finance, Op. cit. p. 217.

O senso do maravilhoso capaz de regenerar o homem

auroraMons. João S. Clá Dias, EP

O homem é um todo substancial, harmonioso, constituído de um corpo cuja forma é a alma, e potências: vegetativa, sensitiva e intelectiva, que interatuam. Assim, se alguém, durante um passeio pelo campo, se encontra com um touro furioso, produz-se no organismo uma série de reações em cadeia: a glândula suprarrenal injeta imediatamente adrenalina no sangue, o coração se acelera, os brônquios se dilatam e a respiração também se acelera. A sensação de medo provoca reações fisiológicas que colocam o corpo em um estado correspondente à alma. Existem, pois, os estados físicos de medo, vaidade, coragem e muitos outros.

Entretanto, existe também o estado físico provocado pelo maravilhoso, que produz enorme bem estar e dispõe para o esforço e para a dedicação ao bem. A saúde se beneficia, uma série de indisposições orgânicas entram em ordem e se enfrentam melhor os estados de aflição e angústia. O deleite produzido pelo senso do maravilhoso é insuperável. Uma “experiência do maravilhoso” está ao alcance do homem e, quando bem assimilada, produz no organismo um efeito que poderá ser comparado a alguns medicamentos e antidepressivos. O que não quer dizer que os medicamentos não devam ser utilizados, mas a “maravilho-terapia” poderá favorecer uma recuperação mais rápida e eficaz.

Bosques, campinas, montanhas, as variações do céu diurno e noturno, as auroras e os ocasos, o mar majestoso… são remédios naturais postos por Deus à nossa disposição. Mas não são os únicos; também as obras humanas, as netas de Deus, segundo expressão de Dante.1

Faz parte da arte de bem viver o aproveitar tudo o que possa ser objeto de contemplação. O maravilhoso é o melhor da realidade, e aponta para o Absoluto. Os medievais eram especialistas nesta arte e fomentavam com naturalidade a “celestialização” das coisas; tudo o que faziam tendia ao ápice do maravilhoso. Comentava Dr. Plinio Corrêa de Oliveira que “a alma maravilhável é uma alma maravilhosa, capaz de fazer maravilhas”.2

O homem de hoje não perdeu a capacidade de admirar, por mais que a sociedade lhe faça muitos outros convites. É preciso proporcionar-lhe ocasiões para, maravilhando-se, discernir nas coisas aquilo que elas têm de belo, de bom e de verdadeiro, ou sua ausência, e com isto poder voltar-se para o essencial: Deus.

D. Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, descreve a adesão daquele que deixa “seduzir-se” pela Beleza que salva:

“É no interior da evidência objetiva, que se deixa perceber a partir do sujeito com a  primeira reação do ‘espanto’ e da ‘admiração’, que se encontra já a força que leva o homem a reconhecê-la como bela e, portanto, boa e verdadeira e por isso mesmo cheia de sentido para ser amada e seguida”.3

1 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. X vol. Trad. de Pinto de Campos J.; Augusto Falcão C. e Della Ninna A., São Paulo [s. d.]. Vol. II.  Inferno, canto XI, verso 105.

2 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. A admiração é a nossa estrela de Belém: Pronunciamento. São Paulo, 13 maio 1988.

3 FISICHELLA, Rino. Introdução à Teologia Fundamental. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2006. p. 142.

O sublime reflexo de Deus nas criaturas

aurora

Felipe de Azevedo Ramos

Vemos que no mundo sensível é fato evidente a graduação das perfeições transcendentais numa maravilhosa hierarquia. É fácil compreender que todas as coisas são ontologicamente boas secundum magis et minus. A apreensão dos graus se torna ainda mais evidente quando se considera o pulchrum, escada segura de contemplação hierárquica das coisas, com a qual atinge, em seu vértice, a sua Suma Perfeição.

Tal Perfeição, absolutamente desproporcional ao homem, nos é revelada por meio desse sublime reflexo de Deus nas criaturas: a beleza.

Ao analisar a Criação e sua multifacetada variedade podemos nos perguntar por que Deus quis criar tal imensidade de seres. Pois sendo Ele infinitamente perfeito, bastaria-se a Si mesmo, sem a absoluta necessidade de criá-los. Porém, na Sua infinita bondade e misericórdia, assim o desejou.

Ora, Seu intuito, ao criar quantidade insondável de seres, foi para que estes não somente refletissem Sua perfeição infinita, mas também a reproduzisse em seus mais variados graus. Deste modo se explica o caráter hierárquico que Deus imprimiu ao Universo.

Contudo, não poderia Deus originar uma única criatura que por si só refletisse todas as suas perfeições tão bem como o conjunto dos seres criados? Parece que isso seria metafisicamente impossível. Pois Deus criou um Universo composto de muitas criaturas para que elas, de um lado pela sua pluralidade, de outro pela sua hierarquização, espelhassem convenientemente a Sua beleza e perfeição divina. Pois assim como um acorde sonoro é belo pela formação de uma unidade harmoniosa numa “terça”, mais belo ainda quando acrescentamos apenas uma nota num acorde de “quinta”, constituindo o que se chama “consonância perfeita”. Analogamente, a ordem da criação é ainda mais bela por sua rica pluralidade, quando coesa na unidade. Portanto, o homem, ao contemplar o mundo ao seu redor pode — aliando-se com a quarta via, ou seja, a partir da observação da gradualidade dos seres criados — inferir nestes, os esplêndidos reflexos da divina Pulchritudo.

Deste modo, o espírito hierárquico dos diversos graus aliados à ordem, às desigualdades harmônicas, ao pulchrum, em suma, leva-nos de proche en proche até a demonstração da existência de Deus, à Sua consideração e, por fim, à contemplação de Sua Suma Perfeição, causa de todas as perfeições.

Os transcendentais e a beleza

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In: Lumen Veritatis, nº 10 (p. 33-49)

Um dos importantes benefícios para a sociedade consiste em preservar e aperfeiçoar os valores, ou seja, as qualidades que tornam alguma coisa mais estimada ou menos.

Há uma hierarquia entre os valores, os quais podem ser religiosos, metafísicos, morais, culturais, econômicos, etc. Conforme afirma Garcia (1989, p. 60 e 64), um valor não depende da mera preferência, mas geralmente é o fruto de um arrazoado mais ou menos profundo e a consequência de um juízo estético. E acrescenta: “Os valores que mais motivam a conduta […] são a verdade, a beleza, o transcendente”.

Em filosofia se emprega o termo ‘axiologia’ — do grego ‘axia’, valor, e ‘logos’, tratado — para indicar o “estudo ou teoria de alguma espécie de valor, particularmente dos valores morais” (FERREIRA, 1986, p. 209).

Estudaremos neste trabalho um desses valores, o belo, baseando-nos especialmente em autores medievais. Como se sabe, na Idade Média houve grande desenvolvimento das doutrinas sobre o pulchrum, as quais se concretizaram em diversos campos, sobretudo no artístico.

1. Que é a beleza?

Para conceituar a beleza, é necessário dar alguns passos no campo da metafísica, a qual, segundo H. D. Gardeil (1967), designa a parte superior da filosofia, que pretende dar as razões e os princípios últimos das coisas.

1.1 Os transcendentais do ser

Em todas as coisas há qualidades que constituem seu próprio ser e estão além da matéria; por essa razão são chamadas transcendentais. A palavra ‘transcendental’ provém do verbo latino ‘transcendo’ (trans: passar; scando: subir), e significa literalmente “passar subindo” (cf. SARAIVA, 1983, p. 1216).

Jan Aertsen (2003, p. 120) afirma: “A metafísica […] é a ciência do que é transcendente”. E o Dicionário Aurélio esclarece: os transcendentais são “qualidades que pertencem ao ser enquanto tal, convindo, em graus diversos, a todos os seres” (FERREIRA, 1986, p. 1699).

Em cada ser existem quatro propriedades: “Unum, bonum, verum, pulchrum” — ente indiviso, bom, verdadeiro e belo. São Tomás de Aquino acrescenta uma quinta propriedade: ‘aliquid’, aquilo que torna um ser diferente de outro (cf. MARTINS FILHO, 2003, p. 33).

Jacques Maritain (1882-1973), filósofo que foi embaixador da França junto à Santa Sé, considera o pulchrum como “o esplendor de todos os transcendentais reunidos”. E Francis J. Kovach afirma: A beleza é o “mais rico, mais nobre e mais compreensivo de todos os transcendentais, […] o único transcendental que inclui todos os demais” (apud AERTSEN, 2003, p. 325 e 326).

1.2 Método etimológico

Filósofos da Antiguidade pagã, em especial Platão, Aristóteles e também Cícero, escreveram sobre a beleza. Com o advento da era cristã, esse tema foi desenvolvido particularmente por Santo Agostinho. E na Idade Média, sobretudo nos séculos XI a XIII, alcançou um auge. As palavras beleza, decoro e formosura têm sentidos semelhantes, mas não idênticos. Para se compreender o significado de um vocábulo, um ótimo método consiste em recorrer a sua etimologia, segundo o costume medieval.

Edgar de Bruyne (1947), que foi professor na Universidade de Gand (Bélgica), transcreve diversas opiniões a respeito desses termos, as quais podem ser assim sintetizadas.

Beleza tem um sinônimo, pulcritude, proveniente do latim ‘pulcher’, síncope de ‘pulvere carens’, ou seja, “sem poeira, sujeira ou defeito”.

O termo ‘decoro’, de ‘decorus’, segundo um autor é composto de ‘decus oris’ (beleza do rosto). Outro prefere focalizar a beleza na alma ou no coração, e não na forma do rosto: ‘decorus’ se decompõe em ‘decus cordis’ (ornato do coração).

E ‘formosura’ se origina de ‘formosus’. Segundo Dom Bruno Forte (2006), arcebispo de Chieti (Itália), nessas questões tal é a importância da forma que o latim emprega também a palavra ‘formosus’ para designar aquilo que é belo.

Conforme o artista plástico Cláudio Pastro (Revista Passos, janeiro-fevereiro 2008, p. 41), “a palavra beleza tem origem no sânscrito: bet-El-za. Za: brilho; El: Deus, o que está acima; bet: casa. Beleza: a casa onde Deus brilha”.

1.3 Características da beleza

Santo Agostinho, em uma de suas epístolas (PL 33, 65), escreveu: “‘Omnis pulchritudo est partium congruentia cum quadam suavitato coloris’ — Toda beleza é a congruência das partes com certa suavidade de cor” (apud BRUYNE, 1947, p. 16).

A congruência das partes é a proporção ou harmonia e a suavidade de cor, a luminosidade. Conforme Guillaume d’Auvergne (1190-1245), que foi Arcebispo de Paris, a beleza visível se caracteriza, ora pela posição das partes no interior do todo, ora pela cor; ou mais ainda por esses dois elementos reunidos (cf. BRUYNE, 1947, p. 61).

Santo Alberto Magno (1206-1280) e seu discípulo Ulric de Strasbourg ensinam que a beleza é “o resplendor da forma substancial ou atual nas partes da matéria perfeitamente proporcionadas e determinadas” (apud BRUYNE, 1947, p. 84). A proporção caracteriza a “matéria” de uma substância estética; a luz é sua forma. Os dois princípios subsistem, porém fundidos, constituindo uma unidade harmoniosa.

Entre as características da beleza, o Doutor da Graça inclui a grandeza (cf. BRUYNE, 1947, p. 107), a qual evidentemente não se refere ao tamanho de um corpo. Assim se pode, por exemplo, afirmar: “Tal pessoa tem grandeza de alma”, ou seja, não é mesquinha, mas está voltada para horizontes grandiosos.

Complementando a ideia de Santo Agostinho e de Guillaume d’Auvergne, São Tomás de Aquino (Suma Teológica I, q. 39, a. 8, ad. a) afirma que a beleza possui três características: luminosidade, proporção ou harmonia entre as partes e integridade.

1.4 Beleza visível imagem da invisível

Ensina a Igreja (Catecismo da Igreja Católica, n. 190 a 301) que Deus criou todas as coisas a partir do nada; e as sustenta, pois do contrário desapareceriam. A finalidade da criação é glorificar o Onipotente, e todos os seres são vestígios, imagens ou semelhanças de Deus.

O Criador é a Perfeição, a própria Beleza, com B maiúsculo. E as criaturas são belas enquanto reflexos da Beleza divina.

Esse tema foi amplamente desenvolvido pelos vitorinos, escola de pensamento assim chamada em razão do nome da abadia São Vítor, situada em Paris e fundada no ano 1100. Seus principais representantes foram Hugo e Ricardo de São Vítor.

Hugo de São Vítor (1096-1141) — mestre de Ricardo — escreveu, entre outras obras, Eruditio didascalica (Instrução didática), composta de seis livros que tratam de pedagogia.

Por sua vez, Ricardo de São Vítor (1110-1173) redigiu uma obra sobre a Santíssima Trindade, que influenciou profundamente a espiritualidade medieval e moderna (cf. Le Petit Robert, 1995, p. 1762).

Segundo os vitorinos, “omnis visibilis pulchritudo invisibilis pulchritudinis imago est — toda beleza visível é imagem da beleza invisível” (BRUYNE, 1947, p. 90).

Explica Hugo que existem duas espécies de beleza: a simples (invisível) e a composta (sensível), regida pela proporção. A alma, cuja beleza é impalpável, se rejubila, se honra, se emociona com as belas formas sensíveis porque as ama na medida em que sua estrutura lhe é aparentada, familiar e querida. A beleza das coisas corporais e a dos espíritos derivam do mesmo Artista, isto é, Deus, que as pré-adapta uma à outra.

1.5 Teofania

A beleza da criatura é uma revelação da Beleza infinita e indivisível; ou seja, é em sentido próprio uma teofania, palavra proveniente do grego ‘theophania’, a qual significa “manifestação de Deus em algum lugar, acontecimento ou pessoa” (FERREIRA, 1986, p. 1664).

Explica Bruyne (1947): As coisas são belas na medida em que manifestam — de maneira sem dúvida perecedora, mutável e imperfeita — a perfeição divina. Assim como a palavra da Sagrada Escritura, a beleza da natureza nos revela Deus. Pelas imagens sensíveis de Sua invisível Beleza, o Criador nos recorda que devemos amá-Lo.

O conjunto da criação é uma autêntica teofania, como afirma Santo Agostinho em um de seus sermões:

Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar, interroga a beleza do ar que se dilata e se difunde, interroga a beleza do céu… interroga todas estas realidades. Todas elas te respondem: Olha-nos, somos belas. Sua beleza é um hino de louvor (confessio). Essas belezas sujeitas à mudança, quem as fez senão o Belo (Pulcher), não sujeito à mudança? (apud Catecismo da Igreja Católica, n. 32).

1.6 Beleza, Bem e Verdade

Os transcendentais belo, verdadeiro e bom não devem ser vistos como compartimentos separados, pois estão intimamente relacionados entre si. A beleza é considerada “splendor boni et veri” — o esplendor do bom e do verdadeiro (RETEGUI, 1999, p. 42).

Podemos fazer uma comparação com o arco gótico, o qual se compõe de duas linhas verticais paralelas que se erguem, se curvam elegantemente e se unem. Uma das linhas do arco se refere ao “verdadeiro”, a outra, ao “bom”, e o ponto de junção, ao “belo”.

Segundo Santo Alberto Magno, “o belo é uma síntese do verdadeiro e do bom” (apud BRUYNE, 1959, p. 154).

Tomás Gallus, também chamado Tomás de Verceil, o último dos vitorinos, escreveu uma obra sob o título A estética mística, na qual mostra, entre outras coisas, o profundo relacionamento entre a beleza e o bem: a vista e o ouvido colaboram especialmente para captar o belo; o olfato, o paladar e o tato para perceber o bem. Comentando esse livro, explica Bruyne que o Altíssimo é o Bem e a Beleza. Amando a Deus nós nos transformamos n’Ele: contemplando a Beleza, nos tornamos bons e nos tornamos belos amando o Bem (cf. BRUYNE, 1947, p. 124).

Carlos Magno, citado por Weiss (1969, p. 779), costumava dizer que a Religião é em geral mãe das artes, e a beleza naturalmente irmã do verdadeiro e do bom. Quem compreende e ama a beleza não cai facilmente em vícios vulgares.

O teólogo suíço Hans Urs von Balthasar, em sua obra Glória, escreveu que, num mundo sem beleza ou incapaz de percebê-la, o bem perde igualmente sua força de atração. Quando se perde a capacidade de afirmar a beleza, os argumentos em favor da verdade esgotam sua força de conclusão lógica (cf. FORTE, 2006, p. 77).

Segundo a filosofia perene, o aspecto do Absoluto percebido por meio da sensibilidade é o belo; o compreendido pela inteligência, o verdadeiro; e o desejado pela vontade, o bom.

Se o bom, o verdadeiro e o belo estão intimamente relacionados entre si, o mesmo sucede com o mau, o falso e o feio. Como observa Ulric de Strasbourg, “a fealdade e o mal — também o erro, acrescentamos — resultam da privação” (apud BRUYNE, 1959, p. 287), ou seja, não têm essência.

1.7 Não depende do gosto de cada pessoa

Muito se fala hoje em dia que a beleza é subjetiva. Tal assertiva não é nova, pois já David Hume (1711-1776), em sua História de seis ideias, escreveu: “A beleza não é nenhuma qualidade das coisas em si mesmas. Existe na mente de quem as contempla, e cada mente percebe uma beleza diferente” (apud VÁZQUEZ, 1999, p. 173).

Essas afirmações entram em choque com o ensinamento de Hugo de São Vítor: “A beleza é uma propriedade estritamente objetiva da maneira de ser das coisas. Ela se impõe por si mesma, antes da consideração de qualquer relação utilitária para o homem” (apud BRUYNE, 1947, p. 104).

Devido à limitação deste artigo, não apresentaremos os diversos argumentos para refutar a ideia da subjetividade da beleza, a qual, aliás, se aplica também aos outros dois transcendentais. Pois, se a beleza é subjetiva, por que não serão subjetivos a verdade e o bem? Vemos assim que subjetivismo e relativismo são doutrinas afins.

Recordemos apenas a consideração formulada pelos autores de uma obra publicada pela Universidade de Navarra (Espanha): Se a pulcritude de algo dependesse do gosto de cada um, não teria nenhum sentido falar de beleza e feiura (cf. ALVIRA et al., 2001, p. 193).

1.8 Definições de beleza

Tendo em vista os textos acima, podemos agora apresentar algumas definições de beleza.

Conforme Cícero, “a beleza é o brilho objetivo da forma indivisível, a superabundância da luz formal, a liberalidade sem limites da ideia, impregnando todas as harmonias e dando-lhes um sentido” (apud BRUYNE, 1947, p. 85).

Em sua obra Convite à estética, Adolfo Sánchez Vázquez (1999, p.186) apresenta várias definições de beleza, entre as quais destacamos as seguintes:

Ideia eterna, perfeita, imutável, da qual participam, temporal, imperfeita e diversamente, as coisas empíricas belas (Platão); resplendor de uma luz inteligível nas coisas sensíveis (Plotino); esplendor do Supremo Bem nas coisas sensíveis (Marsilio Ficino); esplendor da forma no sensível (Maritain); modo de estar presente a verdade como desvelamento do ser (Heidegger).

Alguns autores conceituam a beleza como sendo “o esplendor da forma nas partes proporcionadas da matéria” (COLLIN, 1950, p. 556).

Segundo os escolásticos, a beleza é a unidade na variedade (cf. LECLERCQ, 1947, p. 17).

Sem integridade não pode haver beleza

 

 Paulo Martosbruxelas

 

 

Sem integridade não pode haver beleza. A estátua de Moisés esculpida por Michelangelo é considerada uma obra-prima. Suponhamos que um indivíduo malévolo conseguisse amputar um dos braços da mesma. A escultura perderia sua integridade e, portanto, ficaria carente de beleza.

1.1 Unidade na variedade

Bruyne (1947, p. 80) assim sintetiza as teorias de São Boaventura e Santo Alberto Magno, a respeito da estética metafísica:

Admitindo-se que o próprio espírito é belo, deve-se construir uma definição de pulchrum abarcando os seres espirituais e os materiais. Assim, duas reduções desde logo se impõem: a da cor à luz espiritual, ou seja, ao resplendor metafísico da forma; a da proporção quantitativa à ordem como tal, isto é, à unidade na multiplicidade.

Para os medievais, explica Bruyne (1947, p. 250-251), a lei estética fundamental é a unidade na variedade. A multiplicidade superabundante que se observa nas artes — por exemplo, na catedral gótica, na canção de gesta — não faz senão reproduzir as inumeráveis variedades do universo físico.

A palavra ‘universo’ provém do latim ‘universus’ (unum y versus), significando que todas as coisas convergen para o uno. Ou seja, o universo é belo, pois nele se realiza a unidade na variedade.

A unidade na variedade se observava de modo excelente na Cristandade: as nações cristãs apresentavam uma rica diversidade de idiomas, trajes, canções, costumes, modos de ser, etc., constituindo um todo guiado, instruído e governado pela Igreja Católica (cf. DANIEL-ROPS, 1993, v. 3, p. 41).

1.2 Princípio da totalidade

Santo Agostinho, quando jovem, escreveu a obra De pulchro et aptoSobre o belo e o conveniente, na qual fez referência ao princípio da totalidade. Mesmo nos corpos, individualmente considerados, há uma beleza em sentido absoluto e que se ama por ela mesma. Existe também a beleza do conjunto em que cada coisa é adaptada ao todo e apreciada em função da forma global.

O princípio da totalidade é aplicado por todos os autores medievais, quando intentam definir a beleza de um conjunto. Escreve Guilherme d’Auvergne: Imaginai uma cor ou uma forma belas em si mesmas; se mancharem um conjunto, porque não convém que estejam ali, elas próprias e a forma inteira aparecerão como feias. O vermelho é belo em si, mas não na parte do olho que deve ser branca; o olho é pulcro em si mesmo, porém não no lugar que convém à orelha (cf. BRUYNE, 1947, p. 127).

1.3 O mal, o erro e a feiura

Se todos os seres são belos, como explicar que haja no mundo a feiura? Pergunta semelhante pode ser feita quanto ao mal e ao erro, pois todas as criaturas são boas e verdadeiras. Assim, analisemos conjuntamente as questões do errado, do mau e do feio.

Quanto ao problema do mal, São Tomás na “Suma contra os gentios” (AQUINO, 1953, v. 2, p. 96) afirma:

O mal não é senão privação do que um ser tem e deve ter por natureza; pois este é o sentido com que todos usam a palavra mal. Ora, a privação não é uma essência, mas negação na substância. Logo, o mal não é nenhuma essência na realidade.

Raciocínio análogo pode ser feito em relação ao erro e à feiura: são privações da verdade e da beleza.

Ulrico de Strasbourg escreveu um tratado intitulado De Pulchro, no qual declara: “A feiura é uma ausência de beleza […] A feiura e o mal resultam da privação” (apud BRUYNE, 1959, v. 3, p. 264 e 287).

A sentença: “Bonum ex integra causa, malum ex quocumque defecto O bem provém de uma íntegra causa, o mal de qualquer defeito” pode, com as devidas alterações, ser aplicada à verdade e à beleza. Estas derivam de una íntegra causa, enquanto que o erro e a fealdade, de qualquer defeito.

É preciso considerar o universo como um todo. O cosmos, ou seja, o conjunto ordenado de seres é bom, verdadeiro e belo. Ensina Santo Agostinho: O mundo é um maravilhoso quadro onde inumeráveis matizes são harmoniosamente traçados; os sombreados postos em lugar apropriado realçam o esplendor das cores brilhantes. Esta é a imagem do universo, onde as faltas morais realçam os atos virtuosos e os monstros servem para destacar a beleza (cf. BRUYNE, 1947, p. 128).

O problema da fealdade foi explicado, entre outros, pelo Doutor Irrefragável, Alexandre de Hales (1185-1245), teólogo franciscano inglês que ensinou Filosofia e Teologia em Paris e fundou a escola franciscana (cf. Grande Enciclopédia Larousse Cultural, 1998, v. 1, p. 184). Em sua “Suma”, na qual consagra um capítulo à beleza do mundo, escreve:

O universo é belo porque leva em si o rastro da beleza divina […] É perfeito em seu gênero, porque nada lhe falta de quanto lhe é essencial. Constitui um grande Todo e, por consequência, exige ser considerado antes de tudo em seu conjunto “secundum formam Totius”. Quando se o recorre em suas diversas partes é preciso referir cada detalhe à estrutura geral: o que parece feio, ao ser visto isolado do conjunto, surge belo no Todo (apud BRUYNE, 1959, v. 3, p. 119).

E, fundamentando-se em Santo Agostinho, assevera o mestre franciscano: as coisas deformadas e feias são necessárias à ordem universal, pois Deus fez tudo com número, peso e medida (cf. BRUYNE, 1959, v. 3, p. 120).

Afirma o Doutor da Igreja São João Damasceno que a beleza das estrelas se torna ressaltada, quanto mais escura é a noite (apud BRUYNE, 1959, p. 143).

1.4 O sofrimento pode ter sublime grandeza

A perfeita saúde física e mental de um indivíduo supõe que haja harmonia em seu corpo e sua alma. Ora, a dor é causada por alguma desarmonia na pessoa humana. Além disso, devemos considerar que o sofrimento entrou no mundo devido ao pecado original, em virtude do qual Adão perdeu o dom de integridade. Assim, a dor, sendo consequência da desarmonia e da falta de integridade, não tem nenhuma beleza.

Entretanto, é preciso analisar esse tema à luz da visão de conjunto, conforme esclarece Bruyne (1947, p.132):

Na perspectiva do Todo imenso e eterno — ou seja, Deus —, a própria dor adquire uma sublime grandeza, quer porque provoca a beleza moral infinitamente superior à beleza física, quer porque intensifica, por contraste, os matizes e as profundidades da alegria.

De fato, se uma pessoa sofre com resignação, serenidade e, sobretudo, por amor a Deus, sua dor adquire uma pulcritude particular. Compreende-se, assim, como a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo tem uma Beleza de infinitas proporções.

in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 10, Jan-Mar 2010. p. 45-47.

A Via Pulchritudinis, o caminho da Verdade e da Bondade

Tradução do original em italiano de l’Assemblea plenaria del Pontificio Consiglio della Cultura – 27 al 28 marzo 2006 –  La Via pulchritudinis – Cammino privilegiato di evangelizzazione e di dialogo.

altarPropondo uma estética teológica, Hans Urs von Balthasar pretendia abrir os horizontes do pensamento à meditação e à contemplação da beleza de Deus, do seu mistério e de Cristo no qual Ele se revela. Na introdução ao primeiro volume da sua obra magistral, Glória, o teólogo cita a palavra beleza “que para nós será a primeira” e não exprime a levada em relação ao bem que “também perdeu a sua força de atração” e na qual “os argumentos a favor da verdade exauriram a sua força de conclusão lógica”.

A nossa palavra inicial se chama beleza… A beleza é a última palavra que o intelecto pensante pode ousar pronunciar, porque essa não faz senão coroar, qual auréola de esplendor inefável, o dúplice astro da verdade e do bem e a sua relação indissolúvel. Essa é a beleza desinteressada sem a qual o velho mundo era incapaz de se entender, mas a qual se colocou na ponta dos pés do moderno mundo de interesses, para abandoná-lo à sua cupidez e à sua tristeza. Essa é a beleza que não é mais amada e protegida nem mesmo pela religião e que, todavia, salta como uma máscara do próprio rosto, coloca a nu os tratos que ameaçam tornar incompreensíveis aos homens… Os quais, em seu nome, ondulam o sorriso nos lábios, julgando-a como uma bagatela exótica de um passado burguês, do qual pode estar seguro de que — secretamente ou abertamente — não é mais capaz de rezar e, logo, não é mais capaz de amar…

Num mundo sem beleza — mesmo se os homens não se arriscam a ficar sem esta palavra e a têm continuamente nos lábios, equivocando o sentido — num modo que não está forçosamente provado, mas que não é mais capaz de vê-la, de se relacionar com ela, e mesmo o bem perdeu a sua força de atração, a evidencia de seu dever-ser-preenchido… Num mundo que não se crê mais capaz de afirmar o belo, os argumentos a favor da verdade esgotaram a sua força de conclusão lógica.[1]

 

Paralelamente, com outras preocupações, Aleksandr I. Solženicyn nota com acento profético, no seu discurso pela atribuição do Prêmio Nobel da Literatura:

Esta antiga trindade da Verdade, do Bem e da Beleza não é simplesmente uma caduca fórmula da parada, como era assinalado nos tempos da nossa presunçosa juventude materialista. Se, como diziam os sábios, o cume destes três arbustos se reúnem, enquanto os rebentos da Verdade e do Bem, muito precoces e indefesos são esmagados, desfeitos e não chegam à maturidade, talvez estranhos, imprevistos, inesperados serão os rebentos da Beleza a despontar e a crescer no mesmo lugar e serão eles de tal modo que cumprem o trabalho dos três.[2]

 

Então, bem longe de renunciar a propor a Verdade e o Bem, que estão no coração do Evangelho, é necessário seguir uma via que permita para esses juntar o coração do homem e da cultura. Padre Turoldo, cantor da beleza, reporta esta significativa afirmação de D. Barsotti:

O mistério da beleza! Até a verdade e o bem tornaram-se beleza, a verdade e o bem parecem permanecer de alguma forma estranhas ao homem, impõem-se-lhe do exterior; ele lhes adere, mas não os possui; exigem-lhe uma obediência que de alguma forma os mortifica.[3]

 

O mundo nascente tem uma urgente necessidade, como sublinhava Paulo VI na sua vibrante mensagem aos Artistas de 8 de Dezembro 1965, no encerramento do Concílio Ecumênico Vaticano II:

O mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para não cair no desespero. A beleza, como a verdade, é a que traz alegria ao coração dos homens, é este fruto precioso que resiste ao passar do tempo, que une as gerações e as faz comungar na admiração.[4]

 

Contemplada com ânimo puro, a beleza fala diretamente ao coração, eleva interiormente da estupefação ao maravilhamento, da admiração à gratidão, da felicidade à contemplação. Portanto, cria um terreno fértil para a escuta e o diálogo com o homem e para aferrá-lo inteiramente de mente e coração, inteligência e razão, capacidade criadora e imaginação. Essa, de fato, dificilmente deixa indiferença: suscita emoções, coloca num certo dinamismo de profundas transformações interiores que geram alegria, sentimento de leveza, desejo de participar gratuitamente nesta mesma beleza, de se apropriar dela interiorizando-a e inserindo-a na própria existência concreta.

A Via da Beleza responde ao íntimo desejo de felicidade que está albergado no coração de todos os homens. Ela abre horizontes infinitos, que levam o ser humano a sair de si próprio, da rotina e do efêmero instante que passa, para se abrir ao Transcendente e ao Mistério, a desejar, como fim último do seu desejo de felicidade e da sua nostalgia de absoluto, esta Beleza original que é o próprio Deus, Criador de toda a beleza criada. Muitos Padres fizeram referência a isto no Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia, em Outubro de 2005. O homem, no seu íntimo desejo de felicidade, pode encontrar-se colocado de frente para o mal do sofrimento e da morte. Do mesmo modo, as culturas são de tal maneira postas diante de fenômenos análogos aos malefícios, que poderão conduzir até ao seu eclipse. A voz da beleza ajuda a abrir-se à luz da verdade, e ilumina, de tal forma, a condição humana, ajudando-a a colher o significado da dor. Desse modo, favorece a sanar os males.

A Via Pulchritudinis. Tradução de VICTORINO DE ANDRADE, José. in: Lumen Veritatis. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho, n. 6, jan-mar 2009.   p. 126-128.


[1] H. Urs von Balthasar, Gloria. Gli aspetti estetici della Rivelazione. I, Milano 1975, 10-11.

[2] Lezione per il Premio Nobel, in Opere, t. IX, YMCA Press, Vermont-Paris 1981, p. 9.

[3] “Bellezza” in Nuovo Dizionario di Mariologia, Ed. Paoline, 1985, p. 222-223.

[4] O Papa João Paulo II retomou esta afirmação essencial na sua Lettera agli Artisti, n. 11.