Qual a realidade do ser?

Mons. João S. Clá Dias, EPpensadores

Os filósofos gregos que se dedicaram a resolver esse árduo problema — indagando a respeito da origem das coisas, no que consistem, qual o princípio primeiro de tudo — elaboraram várias teorias.

Sem pretender dar uma lista exaustiva das soluções propostas, lembramos, por exemplo, Thales de Mileto, cuja conclusão era de que esse princípio era a água, que impregna todas as coisas. Os filósofos posteriores rejeitaram sua explicação, argumentando que a água é um elemento extremamente mutante.

Abordando o problema da mutação do mundo material, Platão procurou solucioná-lo dizendo que as coisas participam de ideias imutáveis, um pouco como a sombra depende de um objeto real. As essências, os universais, são imutáveis e existem no mundo das ideias. Essas ideias são a verdadeira realidade, e independem das coisas.

Seu discípulo Aristóteles, um fino observador das coisas, discordou do mestre, atribuindo importância ao mundo material. Ele resolveu o problema da permanência e mudança introduzindo noções de potência e ato, as quais aparecem como matéria e forma. As coisas da natureza estão em ato, são reais, mas têm potência para sofrer mudanças.

A partir de Aristóteles, a filosofia passou a ter por objeto estudar o ser enquanto ser, e não este ou aquele ser determinado. Estava iniciada toda uma metafísica do ser, cujo desenvolvimento último é devido de modo particular à genialidade de São Tomás de Aquino.

Além de aperfeiçoar as noções de potência e ato, São Tomás mostra que essência e existência guardam, entre si, a proporção de passivo e ativo, analogicamente à matéria e à forma, que são como potência e ato. São duas realidades da mesma coisa.A existência é realmente distinta da essência, pois o ato de ser se distingue de sua potência, que o recebe e o limita.

Em termos mais simples, a essência se atualiza, ou seja, passa de potência a ato, o que significa ainda, adquire existência, em cada ser particular e concreto. Não importa que um cavalo seja grande ou pequeno, forte ou fraco, negro, alazão ou rajado, nem importa que tenha nascido com algum defeito. Em todos a mesma essência “cavalo”, ou a “cavalaridade”, se atualiza, se torna real. A essência não é algo de meramente abstrato, mas também não existe por si só. Ela existe de fato, mas somente no ser real.

A essência é, pois, potência; pode existir ou não. De seu turno, o ato de seresse.A essência, por si mesma, não pode passar de potência a ato, ou seja, vir a ter existência. É preciso haver um ato criativo e, portanto, um Criador, um Ser no qual essência e existência sejam inseparáveis. Em Deus, o Ato de Ser e a Essência se identificam: Ele é Ato Puro, Eterno e Necessário, capaz de subsistir independentemente de qualquer potência.

Já as criaturas são seres contingentes, e poderiam não existir; seu ser chegou ao ato, à existência, depois de estar em potência.

As criaturas participam do ato de ser em graus diversos, segundo suas respectivas essências: quanto mais perfeitas são, maior é o ato de ser do qual participam. Desse modo, um pedregulho participa do ato de ser de um modo menos intenso que uma rosa. E uma formiga, de um modo menos intenso que um leão. O homem, por sua vez, participa desse ato menos intensamente que os anjos. Assim, a fonte última de toda perfeição individual é o esse.

Esta é, pois, uma das principais doutrinas metafísicas de São Tomás: a distinção real entre essentia e esse. Sem ela o ensinamento tomista sobre essência e existência torna-se incompreensível.

São Tomás e o hilemorfismo

Ms. Antônio Chaves Sobrinho (IFAT)tomas

São Tomás aceita e desenvolve a doutrina aristotélica da matéria e da forma, do ato e da potência. Aperfeiçoa e aprofunda esses conceitos, tirando deles ensinamentos que se perpetuaram na Escolástica até nossos dias. Mais ainda, ele sublima a doutrina hilemórfica e chega a alturas não sonhadas por Aristóteles. Através da multiplicidade das formas chega àquelas que são puras e se identificam com as substancias angélicas. Fala de formas independentes da matéria que são inteligências, substâncias espirituais puras, quididades simples e perfeitas. Ele afirma:

[…] o relacionamento da matéria e da forma é tal que a forma dá ser à matéria e, deste modo, é impossível que haja matéria sem alguma forma; no entanto, não é impossível haver alguma forma sem matéria. Mas se se encontram algumas formas, que não podem ser senão na matéria, isto lhes advém na medida em que estão distanciadas do primeiro princípio que é o ato primeiro e puro. Donde, aquelas formas, que estão próximas ao máximo do primeiro princípio, serem formas substanciais por si, sem matéria. De fato, a forma, de acordo com a totalidade de seu gênero, não necessita da matéria, como foi dito. Tais formas são inteligência e, por isso, não é preciso que as essências ou quididades destas substâncias sejam algo de outro que a própria forma (AQUINO, n. 48).

A partir desses conceitos São Tomás explicita um ponto fundamental da filosofia escolástica que é o da essência e da existência. São princípios ontológicos distintos, mas inseparáveis, cuja composição explica a estrutura metafísica profunda do ser.

No plano da criatura, antes do ser, não há nem essência, nem existência, entidades que, por outro lado, são absolutamente incapazes de existir independentemente uma da outra. Nem a essência nem a existência existem isoladamente; somente o ser que elas compõem: são dois princípios correlativos que só têm realidade enquanto se completam (GARDEIL, 1967, p. 121).

A essência é aquilo que faz com que um ser seja ele mesmo e não outro. É o que define cada ente, diz o que é uma realidade, está no íntimo de cada ser e o caracteriza. Ela responde à pergunta: o que é isto ou aquilo (quid sit)?

A existência é a última atualização da essência, é o ato ou a perfeição essencial de cada ente. Ela responde à pergunta: isto ou aquilo é (an sit)? De fato, “a existência é sempre dada, como atualidade de uma essência determinada tanto que essência e existência, se são realmente distinguíveis, são necessariamente inseparáveis em um ser dado” (JOLIVET, 1972, p. 229). O esse ou existência desempenha a função de ato e a essência a de potência. Nessa análise que São Tomás faz do ser ele opera uma profunda transformação e elevação da ontologia de Aristóteles. A partir da existência como última perfeição dos entes ele chega ao “Ipsum esse subsistens.” O ser é, para ele, tanto em Deus quanto nas criaturas, existência por excelência. Estes dois princípios, que nas criaturas são distintos mas inseparáveis, no Criador se identificam em sua pura simplicidade. Nele, essência e existência são, pois, uma só coisa. Como se vê, o Doutor comum chega à mais alta concepção do ser, à sua noção e constituição essencial. O ser é ato que engloba todas as perfeições, pois o ato de ser é o fundamento da realidade de tudo quanto existe. O ser é ato em sentido pleno porque não inclui nenhuma limitação. Indo além dos universais, ele considera o ser sobretudo como transcendental. O Doutor Angélico voa do visível para o invisível, do finito para o infinito a fim de chegar à mais alta concepção do “esse” que tem sua fonte em Deus. Portanto, o ato de ser é o núcleo de sua metafísica, enquanto a composição essência-existência constitui, em sua filosofia, a estrutura fundamental dos entes criados (cf. SOBRINHO, 2007, p. 49-52).

A essência ou quididade é o objeto da primeira operação de nossos espíritos, é uma aptidão para existir, para o ser, em função do qual é medida e definida como uma autêntica essência. “Ens e essência se divisam como ‘aquilo’ que, primeiro, o intelecto concebe” (AQUINO, 2005, p. 7).

É, portanto, penetrando em sua essência que a inteligência se adequa aos seres e os conhece. Ela como que se torna um com eles e os ilumina como um farol. Etiene Gilson afirma que a corporeidade ou a matéria limita o ser, mas o que ele contém de espiritual tem por efeito amplificá-lo (cf. p. 293). E Maritan, discorrendo sobre o mistério do ser, afirma que ele é rico demais em inteligibilidade, puro demais para nossa inteligência, em se tratando das coisas espirituais. Ao mesmo tempo ele comporta certa resistência inteligível quando se trata do não ser ou da potência (cf. p. 15).

A existência ou ato de ser (actus essendi), é, portanto, o termo do pensamento, o objeto para o qual, primeiramente e por si, se orienta a inteligência. E é por isto que Santo Tomás afirma que é na segunda operação do espírito (juízo) que propriamente se realiza a apreensão do ser, porque é pelo juízo que a existência é apreendida, não mais, somente, como significada ou indicada ao espírito (o que é o caso do conceito), mas, como exercida, atual e “possivelmente por um sujeito. Assim, também, devemos dizer que é no juízo que se completa o conhecimento, enquanto está orientada (sic) para a apreensão do ser (JOLIVET, 1972, p. 197-198).

Como se vê, o conceito transcendental do ser, a essência e a existência ou ato de ser, sendo esta a última atualização daquela, são pontos fundamentais da ontologia tomista, que estavam vagamente esboçados ou sugeridos no hilemorfismo aristotélico e em sua teoria do ato e da potência. São Tomás via com os olhos da razão e entrevia com os da fé. Quem tem visão sobrenatural vai ao coração das coisas.

Em sua hierarquia ontológica ou graus de perfeição dos seres visíveis e invisíveis ele ultrapassa também Platão. As ideias deste, consideradas independentes e existentes por si mesmas, são concebidas por São Tomás na Mente Divina, tendo uma realidade lógica que passa a ser ontológica, se a vontade de Deus as concretiza. Esses possíveis são infinitos em Sua mente, alguns dos quais, concretizados, constituem o universo criado. Também as formas puras de São Tomás, correspondentes ao mundo angélico, vão além da pluralidade de motores imóveis sugerida por Aristóteles. Mais ainda, se o estagirita considera esses motores independentes do Ato Puro, que é o Motor Imóvel por excelência, o Doutor Angélico subordina todos os anjos a Deus. Estes guardam os homens, regem os astros e governam os demais seres criados por ordem de seu Criador. E cada ente, nessa hierarquia, desempenha a função de mestre, regente, modelo e guia em relação a seu inferior. Deste modo, toda a obra da criação realiza, na ordem do ser, uma “servitudo ex caritate”, atraída pelo divino amor.

O grande mestre da escolástica trata também da natureza humana, bem como da angélica, em sua substância. O homem é um composto hilemórfico de corpo e alma, matéria e espírito, constituindo, assim, um elemento de ligação entre o mundo material — minerais, vegetais e animais — e o mundo espiritual — os anjos. Estes dois elementos — matéria e espírito — estão de tal modo unidos, no ser humano, que formam uma só substância composta. A essência do homem abarca a forma e a matéria, ou seja, a alma e o corpo. Ele é um animal racional. Os anjos, pelo contrário, são substâncias simples ou formas puras.

“Portanto, a essência da substância composta e da substância simples diferem nisto que a essência da substância composta não é apenas a forma, mas abarca a forma e a matéria; no entanto, a essência da substância simples é apenas forma”. (AQUINO, n. 49)

Entretanto “tais substâncias, embora sejam apenas formas sem matéria, não há nelas uma simplicidade completa nem são ato puro, mas têm uma mistura de potência” (Idem, 52). Mesmo não sendo ato puro, a substância simples é forma e ser, pois “tem o ser a partir do ente primeiro que é apenas ser; e este é a causa primeira que é Deus.” (Idem, n. 55).

Tendo matéria em sua composição, cada homem não pode esgotar as perfeições de sua espécie. Daí a necessidade da pluralidade de indivíduos. O anjo, contrariamente, esgota as perfeições de sua espécie e, por isso, esta não comporta multiplicidade. Cada anjo é uma espécie diferente. Conforme a Introdução à Suma Teológica de Marie-Joseph Nicolas:

“A natureza humana só se realiza numa pluralidade, em si ilimitada, de indivíduos. Cada natureza angélica, ao contrário, é única. Toda multiplicidade no mundo dos puros espíritos é uma multiplicidade entre essências diversas, e a singularidade se identifica com a especificidade” (p. 49).

Estes são alguns reflexos do hilemorfismo aristotélico que, incidindo sobre a mente cristalina de São Tomás de Aquino, como uma luz ultrapassando um belo vitral, saem do outro lado purificados, sublimados e multicoloridos.

O sublime reflexo de Deus nas criaturas

aurora

Felipe de Azevedo Ramos

Vemos que no mundo sensível é fato evidente a graduação das perfeições transcendentais numa maravilhosa hierarquia. É fácil compreender que todas as coisas são ontologicamente boas secundum magis et minus. A apreensão dos graus se torna ainda mais evidente quando se considera o pulchrum, escada segura de contemplação hierárquica das coisas, com a qual atinge, em seu vértice, a sua Suma Perfeição.

Tal Perfeição, absolutamente desproporcional ao homem, nos é revelada por meio desse sublime reflexo de Deus nas criaturas: a beleza.

Ao analisar a Criação e sua multifacetada variedade podemos nos perguntar por que Deus quis criar tal imensidade de seres. Pois sendo Ele infinitamente perfeito, bastaria-se a Si mesmo, sem a absoluta necessidade de criá-los. Porém, na Sua infinita bondade e misericórdia, assim o desejou.

Ora, Seu intuito, ao criar quantidade insondável de seres, foi para que estes não somente refletissem Sua perfeição infinita, mas também a reproduzisse em seus mais variados graus. Deste modo se explica o caráter hierárquico que Deus imprimiu ao Universo.

Contudo, não poderia Deus originar uma única criatura que por si só refletisse todas as suas perfeições tão bem como o conjunto dos seres criados? Parece que isso seria metafisicamente impossível. Pois Deus criou um Universo composto de muitas criaturas para que elas, de um lado pela sua pluralidade, de outro pela sua hierarquização, espelhassem convenientemente a Sua beleza e perfeição divina. Pois assim como um acorde sonoro é belo pela formação de uma unidade harmoniosa numa “terça”, mais belo ainda quando acrescentamos apenas uma nota num acorde de “quinta”, constituindo o que se chama “consonância perfeita”. Analogamente, a ordem da criação é ainda mais bela por sua rica pluralidade, quando coesa na unidade. Portanto, o homem, ao contemplar o mundo ao seu redor pode — aliando-se com a quarta via, ou seja, a partir da observação da gradualidade dos seres criados — inferir nestes, os esplêndidos reflexos da divina Pulchritudo.

Deste modo, o espírito hierárquico dos diversos graus aliados à ordem, às desigualdades harmônicas, ao pulchrum, em suma, leva-nos de proche en proche até a demonstração da existência de Deus, à Sua consideração e, por fim, à contemplação de Sua Suma Perfeição, causa de todas as perfeições.