O agir e o contemplar no ensinamento de São Tomás

Diác. Inácio de Almeida, EP

Diversos são os trechos da obra de São Tomás em que ele versa sobre a Contemplação, como o IV artigo do opúsculo De Magistro (questões Discutidas sobre a Verdade, XI) que tem por título: “Se ensinar é ato da vida contemplativa ou ativa”. O Angélico também abordou esse tema em seus Comentários ao III Livro das Sentenças de Pedro Lombardo (Distinção XXV, Q. I, A. 2) quando analisava se a vida contemplativa consistia somente num ato do entendimento. Entretanto, foram nas questões 179 a 182 da II- IIa, da Suma Teológica, que ele tratou mais largamente desta temática.

Convém recordar que, de acordo com Camello (2000, p. 18), quando São Tomás escrevia sobre a natureza ativa ou contemplativa do ensino, tinha bem presente a polêmica suscitada pelos mestres seculares da Universidade de Paris, que discutiam sobre a verdadeira natureza do ensino, e se o magistério convinha somente aos homens de vida ativa ou também àqueles de vida contemplativa ia se desenvolvendo um surdo conflito entre professores do clero secular e os mestres que provinham das ordens religiosas. O que se há de preferir: a vida ativa ou a vida contemplativa? A quem está reservada uma e outra? Ensinar é missão de ativos ou de contemplativos? Não parece inadequado que se pense nos desdobramentos teóricos do conflito político-universitário, como fazendo pano de fundo para o texto de São Tomás.

 No Doutor Angélico, o ensino e a pregação, a transmissão daquilo que se contemplou passará a fazer parte da vida contemplativa. O ideal da vida cristã será uma vida na qual o contemplativo, movido pelo dinamismo suscitado pela própria contemplação, é capaz de deixar “a Deus por Deus”, ou seja, para servi-Lo nos irmãos. A vida ativa, na concepção tomista, é ordenada para o bem do próximo, sendo mais perfeitamente levada à luz da contemplação quando se procura a verdade suprema que é Deus.

Forment (2005) afirma que a supremacia da contemplação apresenta-se como fundamental no pensamento de São Tomás. Seu ideal de perfeição se baseia na primazia da contemplação sobre a ação, embora reconhecendo que esta última é necessária, porque o homem não é só espírito e deve adquirir sua perfeição como homem.

Sem embargo, a ação não se revela como oposta à contemplação, senão que é um instrumento seu, sua preparação, ou até mesmo um de seus efeitos. Por isso, São Tomás declara que quando as necessidades nos levam por um momento a deixar a contemplação, não quer dizer que devemos abandoná-la por completo:

Às vezes, premidos pelas necessidades, temos de deixar a contemplação para nos darmos às obras da vida ativa; mas não de modo que devamos abandonar completamente a contemplação. Por isso diz Agostinho: O amor da verdade deseja um santo repouso. Mas, a caridade, se for preciso, faz-nos aceitar um justo trabalho, isto é, o da vida ativa. Se ninguém, contudo, nos impuser essa carga entreguemo-nos ao estudo e à contemplação da verdade. Mas, sendo-nos ela imposta, a caridade mesmo nos impõe a necessidade de aceitá-la. Nem por isso, contudo, devemos abandonar de todo a doce contemplação da verdade, não seja que, privados dessa suavidade, sintamos a opressão da necessidade. Por onde é claro que quem é chamado da vida contemplativa para a ativa, não sofre uma subtração, mas deve fazer antes uma adição (q. 182 II-IIa, a.1).

Com base nesta compreensão da contemplação, se entende a defesa que o Angélico faz do ideal de vida inaugurado por São Domingos e continuado pelos frades Dominicanos. Assim, São Tomás citado por Velasco (2003, p. 95) falando desse centro da vida espiritual que é o amor, escreverá que:

No amor devem-se levar em conta estes três graus. É a Deus a quem devemos amar por si mesmo. Mas há muitos que com gosto e sem grande pesar se afastam da contemplação de Deus, para seguir atrás dos negócios terrenos. Nestes só se torna presente um pequeno amor. Outros, em compensação, sentem na contemplação de Deus uma alegria tal que não podem abandonar nem para ocupar-se do serviço de Deus para a salvação do próximo. Finalmente, há outros que conseguem um grau tão alto de amor que, embora sintam sua alegria maior na contemplação de Deus, deixam-na para servir a Deus no cuidado pela salvação do próximo. Esta foi a perfeição de Paulo. Esta é a perfeição própria dos prelados e pregadores.

Tomás “viveu a vida de um mestre e com toda a entrega que era capaz” (PIEPER, 2005). Na Suma Contra os Gentios se encontra uma discreta indicação do que ele considerava como a principal tarefa de sua vida, fazendo suas as palavras de Santo Hilário: “Sou consciente de que o principal dever de minha vida para com Deus é esforçar-me para que minhas palavras e todos meus sentidos falem dele” (2007, p. 40). Aquela perfeita união que havia em São Tomás entre a vida de oração e a vida do estudo era “o segredo de sua santidade”:

Eis aqui o segredo do singular esplendor de seu magistério. O magistério — nos ensina ele mesmo — é uma obra da vida ativa e é preciso confessar bem alto que às vezes não se encontram nele mais que as cargas e os estorvos próprios da ação, se oculta também ali um perigo para a vida do espírito, na pesada revolta dos conceitos que constitui o labor pedagógico e que está sempre exposta, se não se a vigia constantemente, a fazer-se material e mecânica. “São Tomás foi um professor completo, porque foi mais que um simples professor, já que nele o discurso descendia por inteiro dos simplíssimos cumes da contemplação” (MARITAIN, 1942, p. 98-99).

São João da Cruz diz algo semelhante quando trata daqueles que têm a função de ensinar. Este autor afirma que a grande força de quem é mestre não está propriamente nas palavras, mas sim na vida interior, porque o ensinar é um exercício mais espiritual do que propriamente vocal, já que embora seja exercido por meio da palavra, não teria verdadeira força nem eficácia se não viesse da vida interior. São João da Cruz (1984) conclui dizendo

Por mais alta que seja a doutrina, de si não causa ordinariamente mais proveito do que o que tiver de espírito. Por isso que se diz: “Tal mestre, tal discípulo”. E é por isso que vemos geralmente, pelo menos tanto quanto podemos julgar neste mundo, que quanto melhor é a vida (dos que ensinam), tanto maior é o fruto que tiram; (quanto aos demais), embora tenham dito maravilhas, logo são esquecidos (Subida do Monte Carmelo; L. III, C. 45).

Desta forma é que se entende melhor toda a eficácia do ensino de São Tomás, pois de acordo com Grabmann (apud AMEAL, 1947, p. 130) “a figura científica de São Tomás não se pode separar da grandeza ético-religiosa de sua alma; em Tomás, não se pode compreender o investigador da verdade sem o Santo”. Para o Angélico, embora a contemplação de Deus nesta vida seja imperfeita se comparada com a celeste, contudo, é mais agradável que qualquer outra contemplação por causa da excelência do objeto contemplado, e citando Aristóteles, diz que:

As nossas teorias são fracas relativamente a essas nobres e divinas substâncias: mas, embora o que delas conhecemos seja pouco, contudo, a elevação mesma desse conhecimento nos causa um prazer maior que tudo o mais que ele possa abranger. E o mesmo ensina Gregório: “A vida contemplativa é muito amável e cheia de doçura, eleva a alma acima de si mesma, abre-nos os tesouros celestes e torna patente o mundo espiritual aos olhos da alma” (II-IIa q.180 a.7).

São Tomás faz suas as palavras de Santo Agostinho, quando este explica o trecho do Evangelho de Lucas que narra a visita de Jesus à casa de Marta e Maria:

‘No princípio era o Verbo’ a quem Maria ouvia. ‘O Verbo se fez carne’ a quem Marta servia. […] Escolham para si a melhor parte, isto é, da vida contemplativa; exerçam a palavra, abeberem-se da doce doutrina, cultivem a ciência da salvação… (Marta), tu não escolheste algo de mal, entretanto, (Maria) escolheu a melhor”.

 E citando São Gregório conclui: “Passada esta vida, com ela desaparece a vida ativa; ao contrário, começada nesta vida, a vida contemplativa se consuma na pátria celeste” (II, II, q. 181, a. 4).

Dado o que acima foi dito, pode-se concluir que São Tomás foi eminentemente contemplativo e que sua obra contém numerosos ensinamentos sobre a prática da oração e da contemplação. Por isso, seu ideal de vida bem poderia ser formulado num lema que resume o exercício e a compreensão da contemplação: Contemplata aliis tradere[1], transmitir aos outros as realidades que se contemplam.

In: Lumen Veritatis, n. 5, 2008.


[1] Suma Teológica, IIa IIae, q. 188, a. 6.

São Tomás e o hilemorfismo

Ms. Antônio Chaves Sobrinho (IFAT)tomas

São Tomás aceita e desenvolve a doutrina aristotélica da matéria e da forma, do ato e da potência. Aperfeiçoa e aprofunda esses conceitos, tirando deles ensinamentos que se perpetuaram na Escolástica até nossos dias. Mais ainda, ele sublima a doutrina hilemórfica e chega a alturas não sonhadas por Aristóteles. Através da multiplicidade das formas chega àquelas que são puras e se identificam com as substancias angélicas. Fala de formas independentes da matéria que são inteligências, substâncias espirituais puras, quididades simples e perfeitas. Ele afirma:

[…] o relacionamento da matéria e da forma é tal que a forma dá ser à matéria e, deste modo, é impossível que haja matéria sem alguma forma; no entanto, não é impossível haver alguma forma sem matéria. Mas se se encontram algumas formas, que não podem ser senão na matéria, isto lhes advém na medida em que estão distanciadas do primeiro princípio que é o ato primeiro e puro. Donde, aquelas formas, que estão próximas ao máximo do primeiro princípio, serem formas substanciais por si, sem matéria. De fato, a forma, de acordo com a totalidade de seu gênero, não necessita da matéria, como foi dito. Tais formas são inteligência e, por isso, não é preciso que as essências ou quididades destas substâncias sejam algo de outro que a própria forma (AQUINO, n. 48).

A partir desses conceitos São Tomás explicita um ponto fundamental da filosofia escolástica que é o da essência e da existência. São princípios ontológicos distintos, mas inseparáveis, cuja composição explica a estrutura metafísica profunda do ser.

No plano da criatura, antes do ser, não há nem essência, nem existência, entidades que, por outro lado, são absolutamente incapazes de existir independentemente uma da outra. Nem a essência nem a existência existem isoladamente; somente o ser que elas compõem: são dois princípios correlativos que só têm realidade enquanto se completam (GARDEIL, 1967, p. 121).

A essência é aquilo que faz com que um ser seja ele mesmo e não outro. É o que define cada ente, diz o que é uma realidade, está no íntimo de cada ser e o caracteriza. Ela responde à pergunta: o que é isto ou aquilo (quid sit)?

A existência é a última atualização da essência, é o ato ou a perfeição essencial de cada ente. Ela responde à pergunta: isto ou aquilo é (an sit)? De fato, “a existência é sempre dada, como atualidade de uma essência determinada tanto que essência e existência, se são realmente distinguíveis, são necessariamente inseparáveis em um ser dado” (JOLIVET, 1972, p. 229). O esse ou existência desempenha a função de ato e a essência a de potência. Nessa análise que São Tomás faz do ser ele opera uma profunda transformação e elevação da ontologia de Aristóteles. A partir da existência como última perfeição dos entes ele chega ao “Ipsum esse subsistens.” O ser é, para ele, tanto em Deus quanto nas criaturas, existência por excelência. Estes dois princípios, que nas criaturas são distintos mas inseparáveis, no Criador se identificam em sua pura simplicidade. Nele, essência e existência são, pois, uma só coisa. Como se vê, o Doutor comum chega à mais alta concepção do ser, à sua noção e constituição essencial. O ser é ato que engloba todas as perfeições, pois o ato de ser é o fundamento da realidade de tudo quanto existe. O ser é ato em sentido pleno porque não inclui nenhuma limitação. Indo além dos universais, ele considera o ser sobretudo como transcendental. O Doutor Angélico voa do visível para o invisível, do finito para o infinito a fim de chegar à mais alta concepção do “esse” que tem sua fonte em Deus. Portanto, o ato de ser é o núcleo de sua metafísica, enquanto a composição essência-existência constitui, em sua filosofia, a estrutura fundamental dos entes criados (cf. SOBRINHO, 2007, p. 49-52).

A essência ou quididade é o objeto da primeira operação de nossos espíritos, é uma aptidão para existir, para o ser, em função do qual é medida e definida como uma autêntica essência. “Ens e essência se divisam como ‘aquilo’ que, primeiro, o intelecto concebe” (AQUINO, 2005, p. 7).

É, portanto, penetrando em sua essência que a inteligência se adequa aos seres e os conhece. Ela como que se torna um com eles e os ilumina como um farol. Etiene Gilson afirma que a corporeidade ou a matéria limita o ser, mas o que ele contém de espiritual tem por efeito amplificá-lo (cf. p. 293). E Maritan, discorrendo sobre o mistério do ser, afirma que ele é rico demais em inteligibilidade, puro demais para nossa inteligência, em se tratando das coisas espirituais. Ao mesmo tempo ele comporta certa resistência inteligível quando se trata do não ser ou da potência (cf. p. 15).

A existência ou ato de ser (actus essendi), é, portanto, o termo do pensamento, o objeto para o qual, primeiramente e por si, se orienta a inteligência. E é por isto que Santo Tomás afirma que é na segunda operação do espírito (juízo) que propriamente se realiza a apreensão do ser, porque é pelo juízo que a existência é apreendida, não mais, somente, como significada ou indicada ao espírito (o que é o caso do conceito), mas, como exercida, atual e “possivelmente por um sujeito. Assim, também, devemos dizer que é no juízo que se completa o conhecimento, enquanto está orientada (sic) para a apreensão do ser (JOLIVET, 1972, p. 197-198).

Como se vê, o conceito transcendental do ser, a essência e a existência ou ato de ser, sendo esta a última atualização daquela, são pontos fundamentais da ontologia tomista, que estavam vagamente esboçados ou sugeridos no hilemorfismo aristotélico e em sua teoria do ato e da potência. São Tomás via com os olhos da razão e entrevia com os da fé. Quem tem visão sobrenatural vai ao coração das coisas.

Em sua hierarquia ontológica ou graus de perfeição dos seres visíveis e invisíveis ele ultrapassa também Platão. As ideias deste, consideradas independentes e existentes por si mesmas, são concebidas por São Tomás na Mente Divina, tendo uma realidade lógica que passa a ser ontológica, se a vontade de Deus as concretiza. Esses possíveis são infinitos em Sua mente, alguns dos quais, concretizados, constituem o universo criado. Também as formas puras de São Tomás, correspondentes ao mundo angélico, vão além da pluralidade de motores imóveis sugerida por Aristóteles. Mais ainda, se o estagirita considera esses motores independentes do Ato Puro, que é o Motor Imóvel por excelência, o Doutor Angélico subordina todos os anjos a Deus. Estes guardam os homens, regem os astros e governam os demais seres criados por ordem de seu Criador. E cada ente, nessa hierarquia, desempenha a função de mestre, regente, modelo e guia em relação a seu inferior. Deste modo, toda a obra da criação realiza, na ordem do ser, uma “servitudo ex caritate”, atraída pelo divino amor.

O grande mestre da escolástica trata também da natureza humana, bem como da angélica, em sua substância. O homem é um composto hilemórfico de corpo e alma, matéria e espírito, constituindo, assim, um elemento de ligação entre o mundo material — minerais, vegetais e animais — e o mundo espiritual — os anjos. Estes dois elementos — matéria e espírito — estão de tal modo unidos, no ser humano, que formam uma só substância composta. A essência do homem abarca a forma e a matéria, ou seja, a alma e o corpo. Ele é um animal racional. Os anjos, pelo contrário, são substâncias simples ou formas puras.

“Portanto, a essência da substância composta e da substância simples diferem nisto que a essência da substância composta não é apenas a forma, mas abarca a forma e a matéria; no entanto, a essência da substância simples é apenas forma”. (AQUINO, n. 49)

Entretanto “tais substâncias, embora sejam apenas formas sem matéria, não há nelas uma simplicidade completa nem são ato puro, mas têm uma mistura de potência” (Idem, 52). Mesmo não sendo ato puro, a substância simples é forma e ser, pois “tem o ser a partir do ente primeiro que é apenas ser; e este é a causa primeira que é Deus.” (Idem, n. 55).

Tendo matéria em sua composição, cada homem não pode esgotar as perfeições de sua espécie. Daí a necessidade da pluralidade de indivíduos. O anjo, contrariamente, esgota as perfeições de sua espécie e, por isso, esta não comporta multiplicidade. Cada anjo é uma espécie diferente. Conforme a Introdução à Suma Teológica de Marie-Joseph Nicolas:

“A natureza humana só se realiza numa pluralidade, em si ilimitada, de indivíduos. Cada natureza angélica, ao contrário, é única. Toda multiplicidade no mundo dos puros espíritos é uma multiplicidade entre essências diversas, e a singularidade se identifica com a especificidade” (p. 49).

Estes são alguns reflexos do hilemorfismo aristotélico que, incidindo sobre a mente cristalina de São Tomás de Aquino, como uma luz ultrapassando um belo vitral, saem do outro lado purificados, sublimados e multicoloridos.