O agir e o contemplar no ensinamento de São Tomás

Diác. Inácio de Almeida, EP

Diversos são os trechos da obra de São Tomás em que ele versa sobre a Contemplação, como o IV artigo do opúsculo De Magistro (questões Discutidas sobre a Verdade, XI) que tem por título: “Se ensinar é ato da vida contemplativa ou ativa”. O Angélico também abordou esse tema em seus Comentários ao III Livro das Sentenças de Pedro Lombardo (Distinção XXV, Q. I, A. 2) quando analisava se a vida contemplativa consistia somente num ato do entendimento. Entretanto, foram nas questões 179 a 182 da II- IIa, da Suma Teológica, que ele tratou mais largamente desta temática.

Convém recordar que, de acordo com Camello (2000, p. 18), quando São Tomás escrevia sobre a natureza ativa ou contemplativa do ensino, tinha bem presente a polêmica suscitada pelos mestres seculares da Universidade de Paris, que discutiam sobre a verdadeira natureza do ensino, e se o magistério convinha somente aos homens de vida ativa ou também àqueles de vida contemplativa ia se desenvolvendo um surdo conflito entre professores do clero secular e os mestres que provinham das ordens religiosas. O que se há de preferir: a vida ativa ou a vida contemplativa? A quem está reservada uma e outra? Ensinar é missão de ativos ou de contemplativos? Não parece inadequado que se pense nos desdobramentos teóricos do conflito político-universitário, como fazendo pano de fundo para o texto de São Tomás.

 No Doutor Angélico, o ensino e a pregação, a transmissão daquilo que se contemplou passará a fazer parte da vida contemplativa. O ideal da vida cristã será uma vida na qual o contemplativo, movido pelo dinamismo suscitado pela própria contemplação, é capaz de deixar “a Deus por Deus”, ou seja, para servi-Lo nos irmãos. A vida ativa, na concepção tomista, é ordenada para o bem do próximo, sendo mais perfeitamente levada à luz da contemplação quando se procura a verdade suprema que é Deus.

Forment (2005) afirma que a supremacia da contemplação apresenta-se como fundamental no pensamento de São Tomás. Seu ideal de perfeição se baseia na primazia da contemplação sobre a ação, embora reconhecendo que esta última é necessária, porque o homem não é só espírito e deve adquirir sua perfeição como homem.

Sem embargo, a ação não se revela como oposta à contemplação, senão que é um instrumento seu, sua preparação, ou até mesmo um de seus efeitos. Por isso, São Tomás declara que quando as necessidades nos levam por um momento a deixar a contemplação, não quer dizer que devemos abandoná-la por completo:

Às vezes, premidos pelas necessidades, temos de deixar a contemplação para nos darmos às obras da vida ativa; mas não de modo que devamos abandonar completamente a contemplação. Por isso diz Agostinho: O amor da verdade deseja um santo repouso. Mas, a caridade, se for preciso, faz-nos aceitar um justo trabalho, isto é, o da vida ativa. Se ninguém, contudo, nos impuser essa carga entreguemo-nos ao estudo e à contemplação da verdade. Mas, sendo-nos ela imposta, a caridade mesmo nos impõe a necessidade de aceitá-la. Nem por isso, contudo, devemos abandonar de todo a doce contemplação da verdade, não seja que, privados dessa suavidade, sintamos a opressão da necessidade. Por onde é claro que quem é chamado da vida contemplativa para a ativa, não sofre uma subtração, mas deve fazer antes uma adição (q. 182 II-IIa, a.1).

Com base nesta compreensão da contemplação, se entende a defesa que o Angélico faz do ideal de vida inaugurado por São Domingos e continuado pelos frades Dominicanos. Assim, São Tomás citado por Velasco (2003, p. 95) falando desse centro da vida espiritual que é o amor, escreverá que:

No amor devem-se levar em conta estes três graus. É a Deus a quem devemos amar por si mesmo. Mas há muitos que com gosto e sem grande pesar se afastam da contemplação de Deus, para seguir atrás dos negócios terrenos. Nestes só se torna presente um pequeno amor. Outros, em compensação, sentem na contemplação de Deus uma alegria tal que não podem abandonar nem para ocupar-se do serviço de Deus para a salvação do próximo. Finalmente, há outros que conseguem um grau tão alto de amor que, embora sintam sua alegria maior na contemplação de Deus, deixam-na para servir a Deus no cuidado pela salvação do próximo. Esta foi a perfeição de Paulo. Esta é a perfeição própria dos prelados e pregadores.

Tomás “viveu a vida de um mestre e com toda a entrega que era capaz” (PIEPER, 2005). Na Suma Contra os Gentios se encontra uma discreta indicação do que ele considerava como a principal tarefa de sua vida, fazendo suas as palavras de Santo Hilário: “Sou consciente de que o principal dever de minha vida para com Deus é esforçar-me para que minhas palavras e todos meus sentidos falem dele” (2007, p. 40). Aquela perfeita união que havia em São Tomás entre a vida de oração e a vida do estudo era “o segredo de sua santidade”:

Eis aqui o segredo do singular esplendor de seu magistério. O magistério — nos ensina ele mesmo — é uma obra da vida ativa e é preciso confessar bem alto que às vezes não se encontram nele mais que as cargas e os estorvos próprios da ação, se oculta também ali um perigo para a vida do espírito, na pesada revolta dos conceitos que constitui o labor pedagógico e que está sempre exposta, se não se a vigia constantemente, a fazer-se material e mecânica. “São Tomás foi um professor completo, porque foi mais que um simples professor, já que nele o discurso descendia por inteiro dos simplíssimos cumes da contemplação” (MARITAIN, 1942, p. 98-99).

São João da Cruz diz algo semelhante quando trata daqueles que têm a função de ensinar. Este autor afirma que a grande força de quem é mestre não está propriamente nas palavras, mas sim na vida interior, porque o ensinar é um exercício mais espiritual do que propriamente vocal, já que embora seja exercido por meio da palavra, não teria verdadeira força nem eficácia se não viesse da vida interior. São João da Cruz (1984) conclui dizendo

Por mais alta que seja a doutrina, de si não causa ordinariamente mais proveito do que o que tiver de espírito. Por isso que se diz: “Tal mestre, tal discípulo”. E é por isso que vemos geralmente, pelo menos tanto quanto podemos julgar neste mundo, que quanto melhor é a vida (dos que ensinam), tanto maior é o fruto que tiram; (quanto aos demais), embora tenham dito maravilhas, logo são esquecidos (Subida do Monte Carmelo; L. III, C. 45).

Desta forma é que se entende melhor toda a eficácia do ensino de São Tomás, pois de acordo com Grabmann (apud AMEAL, 1947, p. 130) “a figura científica de São Tomás não se pode separar da grandeza ético-religiosa de sua alma; em Tomás, não se pode compreender o investigador da verdade sem o Santo”. Para o Angélico, embora a contemplação de Deus nesta vida seja imperfeita se comparada com a celeste, contudo, é mais agradável que qualquer outra contemplação por causa da excelência do objeto contemplado, e citando Aristóteles, diz que:

As nossas teorias são fracas relativamente a essas nobres e divinas substâncias: mas, embora o que delas conhecemos seja pouco, contudo, a elevação mesma desse conhecimento nos causa um prazer maior que tudo o mais que ele possa abranger. E o mesmo ensina Gregório: “A vida contemplativa é muito amável e cheia de doçura, eleva a alma acima de si mesma, abre-nos os tesouros celestes e torna patente o mundo espiritual aos olhos da alma” (II-IIa q.180 a.7).

São Tomás faz suas as palavras de Santo Agostinho, quando este explica o trecho do Evangelho de Lucas que narra a visita de Jesus à casa de Marta e Maria:

‘No princípio era o Verbo’ a quem Maria ouvia. ‘O Verbo se fez carne’ a quem Marta servia. […] Escolham para si a melhor parte, isto é, da vida contemplativa; exerçam a palavra, abeberem-se da doce doutrina, cultivem a ciência da salvação… (Marta), tu não escolheste algo de mal, entretanto, (Maria) escolheu a melhor”.

 E citando São Gregório conclui: “Passada esta vida, com ela desaparece a vida ativa; ao contrário, começada nesta vida, a vida contemplativa se consuma na pátria celeste” (II, II, q. 181, a. 4).

Dado o que acima foi dito, pode-se concluir que São Tomás foi eminentemente contemplativo e que sua obra contém numerosos ensinamentos sobre a prática da oração e da contemplação. Por isso, seu ideal de vida bem poderia ser formulado num lema que resume o exercício e a compreensão da contemplação: Contemplata aliis tradere[1], transmitir aos outros as realidades que se contemplam.

In: Lumen Veritatis, n. 5, 2008.


[1] Suma Teológica, IIa IIae, q. 188, a. 6.

Considerações sobre o ministério presbiteral no contexto do Ano Sacerdotal

Diác. José Victorino de Andrade, EPCura d'Ars

O Ano Sacerdotal que estamos celebrando tem trazido fecundos aportes ao ministério presbiteral, fruto das reflexões realizadas em todo o orbe católico e da renovada esperança que esta conclamação produziu no seio da Igreja. A esperança, nota distintiva da Instituição nascida do costado do Senhor e edificada sobre a rocha inabalável de Pedro, tende a se afirmar cada vez mais como a luz orientadora de nossa época, tal como o Magistério Pontifício a apresenta em duas de suas recentes encíclicas: a Novo Millenio Ineunte, de João Paulo II e a Spe Salvi, de Bento XVI. [1]

Nesta perspectiva, os numerosos problemas enfrentados pelos sacerdotes em nossos dias nos encorajam a pedir ao Senhor que, além de conduzi-los à plenitude da santidade por meio da qual serão vitoriosos em seus desafios, mande mais operários para a Sua messe (cf. Mt 9, 38; Lc 10, 2).

Nota o Cardeal Franc Rodé, CM, que o florescimento de novos chamados constitui, antes de tudo, o fruto de uma moção divina, mas não exclui a colaboração humana:

As vocações são um dom de Deus, e a iniciativa é completamente d’Ele. Entretanto, como é Seu costume, Ele normalmente Se serve de causas secundárias e depende de nossa colaboração para realizar Seus planos.[2]

No caso específico das vocações sacerdotais, a “causa secundária” muitas vezes se traduz na exemplaridade do sacerdote junto aos vocacionados. E para oferecerem um testemunho plenamente persuasivo, deverão eles próprios estar convencidos em seu íntimo da força sobrenatural que acompanha seu ministério e da presença constante de Cristo e da Igreja em tudo quanto realizam. O ensinamento do Concílio Vaticano II no Decreto Presbyterorum Ordinis salienta esta verdade alentadora:

 Lembrem-se, pois, os presbíteros que no exercício da sua missão nunca estão sós, mas apoiados na força onipotente de Deus e assim, com fé em Cristo que os chamou a participar do Seu sacerdócio, deem-se com toda a confiança ao seu ministério, sabendo que Deus é poderoso para aumentar neles a caridade. Lembrem-se ainda que têm os seus irmãos no sacerdócio, e até os fiéis de todo o mundo, associados a si. (n. 22)

Diante das exigências e dificuldades inerentes ao ministério sacerdotal, cumpre repetir com São Paulo: “Omnia possum in eo qui me confortat” (Fl 4, 13). O Apóstolo nos adverte a não confiarmos na carne, esperando das forças humanas a eficácia que uma ilusória auto-suficiência nunca poderá conceder. Os que confiam na graça, por sua vez, revestem-se da eficácia divina e este parece ser o segredo pelo qual os presbíteros se tornam instrumentos verdadeiramente úteis nas mãos da Providência. Só assim serão capazes de “cultivarem em si mesmos e difundirem na sociedade as virtudes morais e sociais, de maneira a tornarem-se realmente, com o necessário auxílio da graça divina, homens novos e construtores duma humanidade nova”.[3] Nesse sentido, cabe aos sacerdotes uma responsabilidade não pequena.

Hoje, mais do que nunca, exige-se ao presbítero que seja verdadeiramente pastor, à semelhança do Bom Pastor que é Cristo, a fim de conduzir e orientar o Povo de Deus, ciente, entretanto, dos perigos que o circundam: lobos que procuram reduzir ou dispersar o redil, ovelhas desgarradas que precisam ser libertas do triste carrascal em que se encontram, reconduzidas, amparadas e, se necessário, carregadas. Deste modo, atingirá sua própria perfeição:

 Fazendo todo o sacerdote, a seu modo, as vezes da própria pessoa de Cristo, de igual forma é enriquecido de graça especial para que, servindo todo o Povo de Deus e a porção que lhe foi confiada, possa alcançar de maneira conveniente a perfeição d’Aquele de quem faz as vezes, e cure a fraqueza humana da carne a santidade d’Aquele que por nós se fez pontífice ‘santo, inocente, impoluto, separado dos pecadores’ (Heb. 7, 26).[4]

Entretanto, será que tantas exigências e tarefas correspondentes ao presbítero em nossos dias não o sobrecarregarão? Será razoável exigir-lhe mais responsabilidade? Para mais agora, que se desdobra numa ocupação contínua, extenuante, diante de uma comunidade desproporcionada ou de um elevado número de pastorais a seu encargo… A realidade cotidiana de tantos ministros ordenados aparece-nos muitas vezes preocupante, podendo ser, de imediato, talvez superada por uma equilibrada simbiose entre contemplação e ação e, quando esse equilíbrio não for possível, a estratégia será fazer com que todos os atos sejam impregnados de espírito sobrenatural e tornem-se oração, oblação, serviço. Conforme João Paulo II:

 se a consciência do sacerdote é penetrada pelo imenso mistério de Cristo, se ela está totalmente dominada por ele, então todas as suas atividades, mesmo as mais absorventes (vida ativa) encontrarão raiz e alimento na contemplação dos mistérios de Deus (vida contemplativa), de que ele é administrador.[5]

Embora o ministério sacerdotal exija uma contínua doação de si mesmo, este zelo não deve descurar a “própria casa”, como recomendava Santo Afonso Maria de Ligório: “Visto que sois padre, é muito louvável que trabalheis na salvação das almas, mas não posso aprovar que, para serdes útil aos outros, vos esqueçais de vós mesmo”.[6] A santificação torna-se assim, não uma possibilidade, mas uma necessidade para o próprio desempenho do presbítero, na Igreja e no mundo, conforme afirmou o Vaticano II:

 […] este sagrado Concílio, para atingir os seus fins pastorais de renovação interna da Igreja, difusão do Evangelho em todo o mundo e diálogo com os homens do nosso tempo, exorta veementemente todos os sacerdotes a que, empregando todos os meios recomendados pela Igreja, se esforcem por atingir cada vez maior santidade, pela qual se tornem instrumentos mais aptos para o serviço de todo o Povo de Deus.[7]

Ao proclamar o Ano Sacerdotal, o Papa Bento XVI abriu as portas, tanto para numerosas e criativas iniciativas das Igrejas particulares – de caráter vocacional, pastoral, formativo, entre outras – como, sobretudo, para uma enriquecedora reflexão e encorajamento de todos os presbíteros, a fim de que seu ministério se torne mais fecundo e “constitua para cada sacerdote uma oportunidade de renovação interior e, consequentemente, de sólido fortalecimento no compromisso pela própria missão”.[8]

VICTORINO DE ANDRADE, José. Editorialin: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 9, Out-Dez 2009. p. 3-6.


[1] Encontram-se mais de 100 referências à esperança na recente encíclica de Bento XVI,  Spe Salvi, além de numerosos e significativos incentivos para os tempos vindouros na Novo Millenio Ineunte,  como a marcante exortação: “DUC IN ALTUM! Sigamos em frente, com esperança! Diante da Igreja abre-se um novo milênio como um vasto oceano onde aventurar-se com a ajuda de Cristo”. (n. 58) 

[2] RODÉ, Frank. Simpósio sobre vida apostólica religiosa desde o Vaticano II no Stonehill College. Tradução do Corpo Editorial da Revista Arautos Evangelho. Boston: [s.e.], 2008.

[3] Gaudium et Spes, n. 30.

[4] Presbyterorum Ordinis, n. 22.

[5] JOÃO PAULO II. Discurso aos párocos e ao clero de Roma. 2 mar. 1979. Disponível em <www.vatican.va>. Acesso: 13 dez. 2009.

[6] MARIA DE LIGÓRIO, Afonso. A Selva. Tradução de MARINHO. Porto: Fonseca, 1928. p. 88.

[7] Presbyterorum Ordinis, n. 12.

[8] BENTO XVI. Audiência Geral Praça de São Pedro, quarta-feira – 1 jul. 2009. Disponível em: <http://www.annussacerdotalis.org>. Acesso 13 dez. 2009.

Vida interior e vida ativa mutuamente se reclamam

Dom J. B. Chautard

A ALMA DE TODO

APOSTOLADO

Cap.IV 2ª parte

 

hermannComo o amor de Deus se revela pelos atos da vida interior, assim o amor do próximo se manifesta pelas operações da vida exterior. Portanto, não podendo o amor de Deus separar‑se do amor do próximo, resulta daí que essas duas formas de vida não podem também, de maneira alguma, subsistir uma sem a outra.[1] 20

De igual sorte, diz Suárez, não pode existir estado correta e normalmente ordenado para chegar à perfeição, sem que participe em certa medida da ação e da contemplação.[2]

O ilustre jesuíta limita‑se a comentar o ensinamento de São Tomás. Aqueles que são chamados às obras da vida ativa, diz o Doutor Angélico, erram se julgam que este dever os dispensa da vida contemplativa. Tal dever é um acréscimo desta vida e não lhe diminui a intensidade. Destarte, as duas vidas, longe de se excluir, reclamam‑se, supõem‑se, misturam‑se, completam‑se mutuamente; e, se de qualquer das duas se deve fazer um quinhão mais considerável, é por sem dúvida da vida contemplativa, a mais perfeita e a mais necessária.[3]

A ação, para ser fecunda, carece da contemplação; quando esta atinge certo grau de intensidade, difunde sobre a primeira algum tanto do seu excedente e, por meio dela, a alma vai haurir diretamente no coração de Deus as graças que a ação se encarrega de distribuir.

Por isso é que, fundindo‑se, na alma de um santo, a ação e a contemplação, em harmonia perfeita, ambas dão à vida dele unidade maravilhosa. Tal, por exemplo, São Bernardo, o homem mais contemplativo e ao mesmo tempo mais ativo do seu século, e de quem faz esta admirável pintura um dos seus contemporâneos: a contemplação e a ação harmonizavam‑se nele a ponto tal que este santo a um tempo parecia inteiramente dedicado às obras exteriores e inteiramente absorvido na presença e no amor do seu Deus.[4]

Comentando este texto da Sagrada Escritura: Pone me ut signaculum super cor tuum, ut signaculum super brachium tuum,[5] o Pe. Saint Jure descreve admiravelmente as mútuas relações entre as duas vidas. Vamos resumir as suas reflexões:

O coração significa a vida interior, contemplativa. O braço, a vida exterior, ativa.

O texto sagrado fala do coração e do braço para mostrar que as duas vidas se podem aliar e harmonizar perfeitamente na mesma.

O coração é indicado em primeiro lugar, porque é um órgão sobremaneira mais nobre e necessário que o braço. Da mesma forma, a contemplação é muito mais excelente e mais perfeita e merece muito mais estima que a ação.

Dia e noite, o coração palpita. Um só instante que este órgão essencial parasse, logo a morte sobreviria. O braço, parte apenas integrante do corpo humano, esse somente se move por intervalos. Do mesmo modo, devemos algumas vezes dar tréguas a nossos trabalhos exteriores; mas, ao invés, nunca devemos afrouxar na nossa aplicação às coisas espirituais.

O coração dá vida e força ao braço por meio do sangue que lhe envia e, sem este, o braço se dessecaria. Da mesma forma, a vida contemplativa, vida de união a Deus, graças às luzes e à perpétua assistência que a alma recebe desta intimidade, vivifica as ocupações exteriores; só ela é capaz de lhes comunicar simultaneamente o caráter sobrenatural e a real utilidade. Sem ela, tudo fica enlanguescido, estéril, cheio de imperfeições.

O homem, ai! amiúde separa o que Deus uniu; por isso é que tão rara é essa união perfeita. Demais, para ser realizada, exige ela um conjunto de precauções de freqüente negligenciadas. Nada empreender que exceda as próprias forças. Ver em tudo, habitual mas simplesmente, a vontade de Deus. Não nos metermos em obras senão quando Deus quer, e na medida exata em que lhe apraz ver‑nos consagrados a elas, e somente com o desejo de exercer a caridade. Logo no princípio, oferecer‑lhe nosso trabalho e, no decurso de nossos labores, reanimar amiúde, por meio de pensamentos santos, por meio de ardentes orações jaculatórias, nossa resolução de não trabalhar senão por Ele e para Ele. Em suma, seja qual for a atenção que devamos prestar a nossos trabalhos, conservar‑nos sempre em paz, perfeitamente senhores de nós mesmos. Quanto ao bom êxito, deixá‑lo unicamente nas mãos de Deus e aspirarmos a ver‑nos livres de todos os cuidados apenas para nos reencontrarmos a sós com Jesus Cristo. Tais são os sapientíssimos conselhos dos mestres da vida espiritual para chegarmos a essa união.

Por vezes, as ocupações hão de multiplicar‑se a ponto tal que exijam o dispêndio de todas as nossas energias, sem que, por outro lado, nos possamos desembaraçar do fardo, ou mesmo aligeirá‑lo. A conseqüência poderá ser a privação, por um tempo mais ou menos longo, do gozo da união a Deus, mas essa união somente sofrerá algum dano se nós assim o quisermos. Prolongando‑se este estado, é necessário por tal motivo gemer, sofrer e temer acima de tudo o habituarmo‑nos a ele.

O homem é fraco, inconstante. Se descuida a sua vida espiritual, depressa perde o gosto dela. Absorvido pelas ocupações materiais, acaba por comprazer‑se nelas. Pelo contrário, se o espírito interior manifesta a sua vitalidade latente por meio de suspiros e gemidos, esses lamentos contínuos, como provém de uma ferida que se não fecha mesmo no meio de uma atividade transbordante, constituem o mérito da contemplação sacrificada, ou melhor, a alma realiza essa admirável e fecunda união da vida interior e da vida ativa.

Oprimida por essa sede de vida interior que não logra apagar a seu bel‑prazer, a alma há de voltar com ardor, logo que possa, à vida de oração. Nosso Senhor sempre lhe há de reservar alguns instantes de entretenimento com Ele. Exige, porém, que a alma os não despreze e há de então compensar‑lhe com o fervor a brevidade desses felizes momentos.

Como as vias de Deus se assinalam pela sabedoria e pela bondade! Que maravilhosa direção não dá Ele às almas por meio da vida interior! Conservada no seio da ação e sem embargo generosamente oferecida, essa pena profunda de termos de consagrar tanto tempo às obras de Deus, e tão pouco ao Deus das obras, tem a sua compensação. Graças a ela, desvanecem‑se todos os perigos de dissipação, de amor próprio, de afeições naturais. Essa disposição da alma longe de prejudicar a liberdade do espírito e a atividade, dá‑lhes um caráter mais ponderado. É ela a forma prática do exercício da presença de Deus, porque a alma, na graça do momento presente encontra Jesus vivo, oferecendo‑se‑lhe oculto sob a obra a realizar. Jesus trabalha com ela e ampara‑a. Quantas pessoas, que desempenham cargos, hão de dever a essa pena salutar bem compreendida, a esse desejo sempre sacrificado e sempre vivo de ter mais momentos livres para estar junto do sacrário, e essas comunhões espirituais desde então quase incessantes, hão de dever, repetimos, a fecundidade de sua ação e ao mesmo tempo assim a salvaguarda da sua alma como seus progressos na virtude!

in: CHAUTARD, J. B. A ALMA DE TODO APOSTOLADO. São Paulo: Coleção, 1962.

[1] ) Sicut per contemplationem amandus est Deus, ita per actualem vitam diligendus est proximus, ac per hoc, sic non possumus sine utraque esse vita, sicut et sine utraque dilectione esse nequaquam possumus (S.Isid., Different., Lib. II, XXXIV, N. 135).

 

[2] ) Concedendum ergo est nullum esse posse vitae studium recte institutum ad perfectionem obtinendam, quod non aliquid de actione et de contemplatione participet (Suarez, I De Relig. Tract., 1, I, c. v, n. 5).

[3] ) Cum aliquis a contemplativa vita ad activam vocatur, non fit per modum substractionis, sed per modum additionis (D. Thom., 2, 2.ae, q. 182, a. 1).

[4] ) Interiori quadam, quam ubique ipse circumferebat solitudine fruebatur, totus quodammodo exterius laborabat, et totus interius Deo vacabat (God., Vita S. Bern. 1, I, c. v, et 1, III).

[5] ) Põe‑me como um selo sobre o teu coração, como um selo sobre o teu braço (Cant. 8, 6).