A Eucaristia nutre a vida sobrenatural

Todo efeito que o alimento produz na vida corporal, a Eucaristia produz na vida sobrenatural”, ensina São Tomás. Vejamos como um famoso teólogo, Frei Ferdinand- Doratien Joret OP, discípulo do Doutor Angélico, desenvolve esta belíssima verdade de fé.

No discurso feito após a multiplicação dos pães, Nosso Senhor afirma com insistência que Ele é o Pão da Vida: “Vossos pais, no deserto, comeram o maná e morreram. Este é o pão que desceu do céu (…) Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão, que eu hei de dar, é a minha carne para a salvação do mundo. (…) Minha carne é verdadeiramente uma comida” (Jo 6,49-55).
E o Doutor Angélico, numa fórmula que depois o Concílio de Florença consagrou, disse: “Todo efeito que o alimento produz na vida do corpo, a Eucaristia produz na vida sobrenatural; quer dizer, ela a conserva, desenvolve, restaura e deleita” (III, q. 79, a. 1).

A Eucaristia conserva a vida sobrenatural
Ela a conserva, preservando-a da morte. Nosso Senhor garante que quem comer desse pão jamais morrerá. Evidentemente, não se trata aqui da vida do corpo, mas da vida da graça na alma, e da morte sobrenatural ocasionada pelo pecado, por isso mesmo chamado de mortal. É dessa morte que a Eucaristia preserva a alma. O Concílio de Trento afirma isso em termos precisos.A Eucaristia não torna essa morte totalmente impossível. Não! O alimento corporal tampouco nos assegura a vida corporal contra todo acidente.
Como diz São Tomás, “o efeito da Eucaristia se adapta à condição do homem que a recebe. A matéria sobre a qual se exerce a ação sempre condiciona o efeito produzido nela pela ação. No entanto, a condição do homem nesta vida é tal que seu livre arbítrio pode se inclinar para o bem ou para o mal. Assim sendo, por mais que esse Sacramento tenha, de si, a potencialidade suficiente para preservar o homem de todo pecado, nem por isso quem o recebe deixará de ser livre para pecar, se quiser, e assim morrer sobrenaturalmente”.
Contudo, notemos bem essa capacidade do Sacramento, em si mesmo, de preservar de todo pecado. Nos alimentos corporais, nada há que se possa comparar à Eucaristia. Os alimentos jamais puderam evitar a morte.
Por outro lado, na Eucaristia, é Cristo que, em pessoa, sob as aparências de pão e vinho, dá-Se a nós como alimento. De onde pode nos vir a morte? De uma afeição interna ou de uma ferida exterior. Pelos alimentos e remédios se evitam as enfermidades internas, e pelas armas a pessoa se previne contra os possíveis ataques externos. A Eucaristia cumpre perfeitamente esses dois requisitos. Cristo mesmo, intimamente unido a nosso coração, Se faz nosso alimento e remédio que nos dá vigor e previne contra todo agente morboso de corrupções internas. E revestido, como aqui se encontra, do simbolismo de sua Paixão, por meio da qual o demônio ficou definitivamente vencido, amedronta-o e afasta de nós seus diabólicos ataques. Por isso diz São João Crisóstomo que, à maneira de leões que exalam fogo e chamas pela boca, aterrorizamos os demônios quando recebemos a divina Eucaristia.

Desenvolve e aumenta
O alimento faz mais que conservar a vida, ele a aumenta. Na vida corporal, esse crescimento é limitado. Contudo, a vida espiritual tem o privilégio de crescer indefinidamente, cada vez mais, pela influência do Pão Eucarístico.

Claro que todos os sacramentos de vivos, pelo simples fato de aumentarem a graça, desenvolvem a vida sobrenatural na alma. Mas fazem-no com outro fim específico.

A Confirmação dá vigor à alma para poder lutar contra os inimigos externos; a Unção dos Enfermos a sustenta na enfermidade que a priva dos recursos normais na hora mais crítica da vida. A Ordem e o Matrimônio dão a quem os recebe a capacidade de concorrer para o bem geral da Igreja, cada qual em seu estado. Entretanto, a Eucaristia desenvolve a vida sobrenatural por si mesma, a fim de que cresçam cada vez mais em nós as energias divinas e cheguemos à perfeição espiritual pela união com Deus.

Na união com Deus, nosso último fim, encontramos a perfeição de nosso ser. Essa união terá sua consumada realização na glória celeste, na qual gozaremos da felicidade eterna. Para ela nos encaminha em linha reta a Eucaristia. “Ó Sagrado Banquete, no qual nos alimentamos de Cristo, recorda-se sua Paixão, a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da glória futura!” – canta a Igreja. A Paixão, representada ao vivo na Eucaristia, abriu-nos as portas do Céu. A Comunhão nos aplica a virtude reparadora e regeneradora da Paixão, dando-nos forças para subir o caminho da Cruz, que lentamente conduz o membro de Cristo à glória celeste.

Com muita razão damos o nome de viático à Eucaristia, e ela está bem representada por aquele pão que deu ao profeta Elias o vigor necessário para chegar ao cume da montanha de Deus.

A Eucaristia é mais que um viático.
Nesse penhor da vida futura temos já um antegozo da felicidade celestial.
Ainda que misteriosamente, sem dúvida, pela Comunhão temos já em nós o objeto de nossa felicidade eterna, e comemos aquele manjar do qual falava o Anjo Rafael a Tobias: “Eu me nutro de um alimento que vós não conheceis” (Tb 12,19). O Pão dos Anjos veio para ser alimento dos homens, e estes o comem já nesta terra, real, se bem que imperfeitamente, enquanto esperam chegar ao Céu, quando Deus lhes aparecerá e, passando um por um, os irá servindo, sentados todos eles no banquete que faz a felicidade das Três Pessoas Divinas.
Nosso próprio corpo ressuscitará para participar também de Cristo, que lhe terá dado um título especial para a vida futura e depositado nele o fermento da imortalidade. Nosso Senhor prometeu formalmente que ressuscitará no último dia todo aquele que tiver comido da sua Carne e bebido do seu Sangue.

Restaura
Um terceiro efeito da nutrição além de conservar e desenvolver a vida, é o de restaurá-la, reparando as forças que incessantemente vão se gastando.
O Pão Eucarístico nos restaura também, perdoando os pecados veniais. É o seu antídoto, afirma o Concílio de Trento. Assim, convém comungar com a maior freqüência possível.

Dá bem-estar espiritual
Em quarto e último lugar, quem come desse Pão experimenta em sua alma um bem-estar análogo ao que costuma proporcionar ao corpo uma boa comida.
É um fato comprovado pela experiência. Quantas almas oprimidas pelos trabalhos e sofrimentos tiram da Comunhão matinal a resignação, a serenidade e a alegria!

(Revista Arautos do Evangelho, Dez/2005, n. 48, p. 22 e 23)

Vida interior e vida ativa mutuamente se reclamam

Dom J. B. Chautard

A ALMA DE TODO

APOSTOLADO

Cap.IV 2ª parte

 

hermannComo o amor de Deus se revela pelos atos da vida interior, assim o amor do próximo se manifesta pelas operações da vida exterior. Portanto, não podendo o amor de Deus separar‑se do amor do próximo, resulta daí que essas duas formas de vida não podem também, de maneira alguma, subsistir uma sem a outra.[1] 20

De igual sorte, diz Suárez, não pode existir estado correta e normalmente ordenado para chegar à perfeição, sem que participe em certa medida da ação e da contemplação.[2]

O ilustre jesuíta limita‑se a comentar o ensinamento de São Tomás. Aqueles que são chamados às obras da vida ativa, diz o Doutor Angélico, erram se julgam que este dever os dispensa da vida contemplativa. Tal dever é um acréscimo desta vida e não lhe diminui a intensidade. Destarte, as duas vidas, longe de se excluir, reclamam‑se, supõem‑se, misturam‑se, completam‑se mutuamente; e, se de qualquer das duas se deve fazer um quinhão mais considerável, é por sem dúvida da vida contemplativa, a mais perfeita e a mais necessária.[3]

A ação, para ser fecunda, carece da contemplação; quando esta atinge certo grau de intensidade, difunde sobre a primeira algum tanto do seu excedente e, por meio dela, a alma vai haurir diretamente no coração de Deus as graças que a ação se encarrega de distribuir.

Por isso é que, fundindo‑se, na alma de um santo, a ação e a contemplação, em harmonia perfeita, ambas dão à vida dele unidade maravilhosa. Tal, por exemplo, São Bernardo, o homem mais contemplativo e ao mesmo tempo mais ativo do seu século, e de quem faz esta admirável pintura um dos seus contemporâneos: a contemplação e a ação harmonizavam‑se nele a ponto tal que este santo a um tempo parecia inteiramente dedicado às obras exteriores e inteiramente absorvido na presença e no amor do seu Deus.[4]

Comentando este texto da Sagrada Escritura: Pone me ut signaculum super cor tuum, ut signaculum super brachium tuum,[5] o Pe. Saint Jure descreve admiravelmente as mútuas relações entre as duas vidas. Vamos resumir as suas reflexões:

O coração significa a vida interior, contemplativa. O braço, a vida exterior, ativa.

O texto sagrado fala do coração e do braço para mostrar que as duas vidas se podem aliar e harmonizar perfeitamente na mesma.

O coração é indicado em primeiro lugar, porque é um órgão sobremaneira mais nobre e necessário que o braço. Da mesma forma, a contemplação é muito mais excelente e mais perfeita e merece muito mais estima que a ação.

Dia e noite, o coração palpita. Um só instante que este órgão essencial parasse, logo a morte sobreviria. O braço, parte apenas integrante do corpo humano, esse somente se move por intervalos. Do mesmo modo, devemos algumas vezes dar tréguas a nossos trabalhos exteriores; mas, ao invés, nunca devemos afrouxar na nossa aplicação às coisas espirituais.

O coração dá vida e força ao braço por meio do sangue que lhe envia e, sem este, o braço se dessecaria. Da mesma forma, a vida contemplativa, vida de união a Deus, graças às luzes e à perpétua assistência que a alma recebe desta intimidade, vivifica as ocupações exteriores; só ela é capaz de lhes comunicar simultaneamente o caráter sobrenatural e a real utilidade. Sem ela, tudo fica enlanguescido, estéril, cheio de imperfeições.

O homem, ai! amiúde separa o que Deus uniu; por isso é que tão rara é essa união perfeita. Demais, para ser realizada, exige ela um conjunto de precauções de freqüente negligenciadas. Nada empreender que exceda as próprias forças. Ver em tudo, habitual mas simplesmente, a vontade de Deus. Não nos metermos em obras senão quando Deus quer, e na medida exata em que lhe apraz ver‑nos consagrados a elas, e somente com o desejo de exercer a caridade. Logo no princípio, oferecer‑lhe nosso trabalho e, no decurso de nossos labores, reanimar amiúde, por meio de pensamentos santos, por meio de ardentes orações jaculatórias, nossa resolução de não trabalhar senão por Ele e para Ele. Em suma, seja qual for a atenção que devamos prestar a nossos trabalhos, conservar‑nos sempre em paz, perfeitamente senhores de nós mesmos. Quanto ao bom êxito, deixá‑lo unicamente nas mãos de Deus e aspirarmos a ver‑nos livres de todos os cuidados apenas para nos reencontrarmos a sós com Jesus Cristo. Tais são os sapientíssimos conselhos dos mestres da vida espiritual para chegarmos a essa união.

Por vezes, as ocupações hão de multiplicar‑se a ponto tal que exijam o dispêndio de todas as nossas energias, sem que, por outro lado, nos possamos desembaraçar do fardo, ou mesmo aligeirá‑lo. A conseqüência poderá ser a privação, por um tempo mais ou menos longo, do gozo da união a Deus, mas essa união somente sofrerá algum dano se nós assim o quisermos. Prolongando‑se este estado, é necessário por tal motivo gemer, sofrer e temer acima de tudo o habituarmo‑nos a ele.

O homem é fraco, inconstante. Se descuida a sua vida espiritual, depressa perde o gosto dela. Absorvido pelas ocupações materiais, acaba por comprazer‑se nelas. Pelo contrário, se o espírito interior manifesta a sua vitalidade latente por meio de suspiros e gemidos, esses lamentos contínuos, como provém de uma ferida que se não fecha mesmo no meio de uma atividade transbordante, constituem o mérito da contemplação sacrificada, ou melhor, a alma realiza essa admirável e fecunda união da vida interior e da vida ativa.

Oprimida por essa sede de vida interior que não logra apagar a seu bel‑prazer, a alma há de voltar com ardor, logo que possa, à vida de oração. Nosso Senhor sempre lhe há de reservar alguns instantes de entretenimento com Ele. Exige, porém, que a alma os não despreze e há de então compensar‑lhe com o fervor a brevidade desses felizes momentos.

Como as vias de Deus se assinalam pela sabedoria e pela bondade! Que maravilhosa direção não dá Ele às almas por meio da vida interior! Conservada no seio da ação e sem embargo generosamente oferecida, essa pena profunda de termos de consagrar tanto tempo às obras de Deus, e tão pouco ao Deus das obras, tem a sua compensação. Graças a ela, desvanecem‑se todos os perigos de dissipação, de amor próprio, de afeições naturais. Essa disposição da alma longe de prejudicar a liberdade do espírito e a atividade, dá‑lhes um caráter mais ponderado. É ela a forma prática do exercício da presença de Deus, porque a alma, na graça do momento presente encontra Jesus vivo, oferecendo‑se‑lhe oculto sob a obra a realizar. Jesus trabalha com ela e ampara‑a. Quantas pessoas, que desempenham cargos, hão de dever a essa pena salutar bem compreendida, a esse desejo sempre sacrificado e sempre vivo de ter mais momentos livres para estar junto do sacrário, e essas comunhões espirituais desde então quase incessantes, hão de dever, repetimos, a fecundidade de sua ação e ao mesmo tempo assim a salvaguarda da sua alma como seus progressos na virtude!

in: CHAUTARD, J. B. A ALMA DE TODO APOSTOLADO. São Paulo: Coleção, 1962.

[1] ) Sicut per contemplationem amandus est Deus, ita per actualem vitam diligendus est proximus, ac per hoc, sic non possumus sine utraque esse vita, sicut et sine utraque dilectione esse nequaquam possumus (S.Isid., Different., Lib. II, XXXIV, N. 135).

 

[2] ) Concedendum ergo est nullum esse posse vitae studium recte institutum ad perfectionem obtinendam, quod non aliquid de actione et de contemplatione participet (Suarez, I De Relig. Tract., 1, I, c. v, n. 5).

[3] ) Cum aliquis a contemplativa vita ad activam vocatur, non fit per modum substractionis, sed per modum additionis (D. Thom., 2, 2.ae, q. 182, a. 1).

[4] ) Interiori quadam, quam ubique ipse circumferebat solitudine fruebatur, totus quodammodo exterius laborabat, et totus interius Deo vacabat (God., Vita S. Bern. 1, I, c. v, et 1, III).

[5] ) Põe‑me como um selo sobre o teu coração, como um selo sobre o teu braço (Cant. 8, 6).


Gênese do conceito de contemplação

Inácio Almeida, EP

capela-subiacoA palavra contemplação tem sua origem etimológica na raiz latina templum (do grego temnein: para cortar ou dividir). É formada de cum, com, e templum, templo. Significa também examinar e considerar profunda e atentamente uma coisa, já espiritual, já visível e material, olhar com determinação ou complacência a uma pessoa.

Na filosofia grega a palavra contemplação era denominada teoria, por oposição a práxis, ou ação. Por isso, os gregos designavam a vida contemplativa como vida teórica, por oposição à vida ativa, ou vida prática. Alguns autores afirmam que a etimologia da palavra “teoria” deriva de um verbo grego que significa ver; deste verbo é que se origina também o nome Deus, que em grego se diz Teos, ou “Aquele que vê”. Com o tempo, essa nomenclatura veio também a ser utilizada na língua latina, resultando dizer que a vida teórica seria a vida contemplativa e a práxis, a vida ativa.

Porém, contemplar no sentido teológico, e é deste que trataremos, é segundo São Tomás (S. The. II, II, qq, 179-182) “a aplicação voluntária do entendimento aos dogmas sobre a divindade com o desejo vivo de gozar das grandes verdades nelas contidas” ou de acordo com Tanquerey (1955, p. 44) “uma intuição ou vista simples e afetuosa de Deus ou das coisas divinas.” Pode ser chamada também de contemplação adquirida quando “é fruto da nossa atividade auxiliada pela graça; infusa, quando, ultrapassando essa atividade, é operada por Deus com o nosso consentimento”.

Quanto ao uso da palavra “contemplação” nas Sagradas Escrituras, ele propriamente não acontece. No entanto, “se a expressão não existe, a realidade é claramente descrita”, especialmente no Capítulo X do Evangelho de São Lucas:

Indo eles de viagem, entrou Jesus em uma povoação; e uma mulher, de nome Marta, recebeu-O em sua casa. Tinha esta uma irmã chamada Maria, a qual, sentando-se aos pés do Senhor, ouvia a sua palavra. Marta, pelo contrário, andava atarefada com muito serviço. Deteve-se, então, e disse: “Senhor, não te importas que minha irmã me tenha deixado só a servir? Diz-lhe, pois, que me ajude”. Mas o Senhor respondeu-lhe: “Marta, Marta, inquietas-te e te confundes com muitas coisas; mas uma só coisa é necessária, e Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada” (Lc 10, 38-42).

 

Entretanto, cumpre recordar que as primeiras referências sobre a importância da contemplação são anteriores ao cristianismo. Sabe-se que Platão tratou desse tema, bem como Aristóteles e Plotino. Mas, sobretudo no século V com o início do monaquismo cristão, é que a primazia da contemplação sobre a ação foi mais defendida, e teve como um dos seus principais expoentes um monge chamado João de Cassiano, o qual publicou uma série de 24 conferências, que são um relato das conversas tidas entre ele e os monges que habitavam o deserto do Egito a respeito de diversos temas da vida espiritual.

Essas conferências foram elogiadas por São Bento[1] em sua regra. São Domingos, o fundador da Ordem dos Pregadores, à qual pertencia São Tomás, dedicou-se com especial empenho ao estudo desses textos[2]. Tocco (2007) nos recorda que o próprio Aquinate, à imitação de seu fundador, lia com frequência algumas páginas das 24 Conferências[3].

ALMEIDA, Inácio. A contemplação no ensino de São Tomás. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho, n. 5, out-dez 2008. p. 60-62.


[1] In: Regra de São Bento, C. 73.

[2] Conf. Beato Jordão de Saxônia: Origem da Ordem dos Pregadores, C.8. In: Santo Domingo de Guzman, su vida, su orden, sus escritos; Madrid, BAC, 1947; p. 170.

[3] Conf. In Guillelmus de Tocco: Vita Sancti Thomae Aquinatis, C. 21.

Deus quer que Jesus seja a vida das obras

Dom J. B. CHAUTARD O.C.R. A alma de todo apostolado. São Paulo: Editora Coleção,1962.

 Capítulo IIjesus-e-apostolos1

 

 A ciência toda se ufana com os seus imensos triunfos e certo é que títulos legítimos tem para disso se ufanar. No entanto, uma coisa até hoje lhe tem sido impossível e impossível lhe será de futuro: criar a vida, fazer sair um grão de trigo, uma larva, do laboratório de um químico. As estrondosas derrotas dos partidários da geração espontânea já nos ensinaram o que devíamos pensar acerca dessas pretensões. Deus guarda o poder de criar a vida.

Na ordem vegetal e animal, os seres vivos podem crescer e multiplicar‑se e, ainda assim, a sua fecundidade apenas se realiza dentro das condições estabelecidas pelo Criador. Ao tratar‑se, porém, da vida intelectual, Deus reserva‑a para Si e Ele é quem diretamente cria a alma racional. Um domínio há, contudo, de que ele é ainda mais cioso — o domínio da vida sobrenatural, emanação da vida divina comunicada à humanidade do Verbo encarnado.

Per Dominum nostrum Jesum Christum. Per ipsum et cum ipso et in ipso.[1]

A Encarnação e a Redenção constituem Jesus Fonte e Fonte única dessa vida divina, da qual todos os homens são chamados a participar. A ação essencial da Igreja consiste em difundir essa vida por meio dos sacramentos, da oração, da pregação e de todas as obras que com isso se relacionam.

Deus tudo faz por meio de seu Filho: Omnia per ipsum facta sunt et sine ipso factum est nihil.[2]

Isto já é verdade na ordem natural; mas quanto mais o é ainda na ordem sobrenatural, desde que se trata de comunicar a sua vida íntima e de tornar os homens participantes da sua natureza para torná‑los filhos de Deus.

Veni ut vitam habeant. In ipso vita erat. Ego sum vita.[3]

Que precisão nestas palavras! Que luz nessa parábola da videira e dos sarmentos, onde o Mestre desenvolve esta verdade! Como Ele se empenha em gravar no espírito dos seus apóstolos este princípio fundamental: que unicamente Ele, Jesus, é a vida; e esta conseqüência: que, para participar dessa vida e comunicá‑la aos outros, hão mister de ser enxertados no Homem‑Deus!

Os homens chamados à honra de colaborar com o Salvador em transmitir às almas essa vida divina devem, portanto, considerar‑se como modestos canais encarregados de haurir tal vida nessa fonte única.

Grosseiro erro teológico deixaria transparecer um homem apostólico, se desconhecesse estes princípios e julgasse que podia produzir o mínimo vestígio de vida sobrenatural sem ir totalmente buscá‑la em Jesus.

Desordem menor, mas também insuportável aos olhos de Deus, seria se o apóstolo, reconhecendo embora que o Redentor é a causa primordial de toda a vida divina, na sua ação olvidasse esta verdade e, obcecado por louca presunção injuriosa a Jesus Cristo, apenas contasse com as suas próprias forças. Tão somente falamos aqui da desordem intelectual, que teórica ou praticamente implica a negação de um princípio ao qual devemos tanto a adesão de nosso espírito como a conformidade da nossa conduta; e não da desordem moral do homem de obras, o qual, reconhecendo realmente o Salvador como fonte de toda a graça e esperando dEle todo o bom êxito, tenha o próprio coração em desacordo com o dEle, devido ao pecado ou à tibieza voluntária. Ora, o proceder praticamente, ao ocupar‑se de obras, como se Jesus não fosse o único princípio da vida delas, é qualificado pelo Cardeal Mermillod de “Heresia das Obras”. Com esta expressão, estigmatiza ele a aberração de um apóstolo que, esquecendo‑se do seu papel secundário e subordinado, unicamente esperasse o bom êxito do seu apostolado, da sua atividade pessoal e dos seus talentos. Praticamente, não é isto a negação de grande parte do Tratado da Graça? Esta conseqüência à primeira vista revolta; mas por pouco que sobre ela se reflita, logo se vê que é infelizmente muito verdadeira.

Heresia das obras! A atividade febril substituindo‑se à ação de Deus, a graça desconhecida, o orgulho humano querendo destronar Jesus, a vida sobrenatural, o poder da oração, a economia da Redenção atiradas, pelo menos na prática, à categoria das abstrações, eis um caso que longe está de ser imaginário e que a análise das almas revela como freqüentíssimo, embora em graus diversos, neste século de naturalismo em que o homem julga sobretudo pelas aparências e procede como se o bom êxito de uma obra dependesse principalmente de engenhosa organização.

A vista de uma alma pagã, recusando‑se a atribuir ao Autor de todo o bem e de todos os dons as maravilhas dos seus talentos naturais, já seria motivo de indignação para um espírito esclarecido, quanto mais não seja pela filosofia. Que sentimento experimentará então um católico instruído na sua religião, perante o espetáculo de um apóstolo que ostentasse, pelo menos implicitamente, a pretensão de não querer saber de Deus para comunicar às almas, quanto mais não fosse, o mínimo grau de vida divina? “Que insensato”! Diríamos nós ao ouvir um operário evangélico usar da seguinte linguagem: “Meu Deus, não me levanteis obstáculos à minha empresa, não lhe traveis o funcionamento e eu me encarrego de a levar a bom termo”. Este sentimento nosso seria um reflexo da aversão que em Deus provoca a vista de tal desordem, a vista de um presunçoso levando o orgulho a ponto de querer dar a vida sobrenatural, produzir a fé, fazer cessar o pecado, conduzir à virtude, gerar almas para o fervor, unicamente com as suas forças e sem atribuir esses efeitos à ação direta, constante, universal e efusiva do Sangue divino, preço, razão de ser e meio de toda a graça e de toda a vida espiritual.

A humanidade de seu Filho exige, pois, que Deus confunda esses falsos cristos, já paralisando as suas obras de orgulho, já permitindo que elas apenas provoquem uma miragem efêmera. Salvo em tudo o que opera sobre as almas ex opere operato, Deus deve ao Redentor o subtrair ao apóstolo, cheio de arrogância, as suas melhores bênçãos para reservá‑las ao ramo que humildemente reconhece que somente pode haurir a sua seiva no tronco divino. De outra sorte, se abençoasse com resultados profundos e duradouros uma atividade envenenada por esse vírus a que chamamos heresia das obras, Deus dava mostras de animar essa desordem e permitir seu contágio.

[1] ) Por Nosso Senhor Jesus Cristo. Por Ele, com Ele e nEle (Liturgia).

[2] ) Todas as coisas foram feitas por Ele, e nada do que foi feito, foi feito sem Ele (Jo., 1, 3).

[3] ) Eu vim para eles terem vida (Jo., 10). NEle estava a vida (Jo., 4). Eu sou a vida (Jo., 14, 6).


O Homem enquanto ser eminentemente contemplativo

pordosolDiác. José Victorino de Andrade

 

            O homem foi criado com uma alta finalidade: a contemplação de Deus. “Para antecipar em certa medida este objectivo já nesta vida, ele deve progredir incessantemente para uma vida espiritual, uma vida de diálogo com Deus”.[1] De acordo com Corrêa de Oliveira, o homem tem necessidade de fixar a atenção sobre determinadas cenas do quotidiano, sejam elas uma paisagem, um monumento ou um teatro, entre muitas outras, extraindo as suas próprias conclusões, tirando da observação ou daquilo que os sentidos lhe indicam elações, que poderão passar pela impressão que tenha de algo ser verdadeiro ou falso, bom ou mau. Diante disto, aceita ou rejeita o que sensoriou e tira uma série de princípios. Assim sendo, ele tem diante de si criaturas que representam e refletem a Deus. Como ser profundamente comunicativo, o homem transmitirá de alguma forma as impressões que as coisas lhe causam, isto é, comunica o que lhe vai na alma, fala da abundância do coração, e isto conduz também ao serviço, pois, o homem, pela sua própria natureza, serve aquilo a que ama.[2]

            Porém o homem poderá elevar-se a um ato de louvor através da contemplação ou rejeitar esta elevação de alma e se deter na fruição egoística e circunscrita do ser que tem diante de si. Isto traz como consequência um realce da matéria e uma negação das relações daquilo com o Ser absoluto.[3] Conforme dizia Santo Irineu:

 

Não é a arte de Deus, capaz de suscitar das pedras filhos para Abraão, que é insuficiente, mas é aquele que não a segue a causa da própria perfeição falhada. De fato, não é a luz que falta devido à culpa dos que se tornaram cegos, mas quem se tornou cego permanece na obscuridade por sua culpa, enquanto a luz continua a brilhar. A luz não submete ninguém à força, nem Deus obriga ninguém a aceitar a sua arte.[4]

           

 

VICTORINO DE ANDRADE, José. A Igreja e o Verdadeiro Progresso: Sacralização e Pleno Desenvolvimento no mundo contemporâneo. 17 f. Trabalho (Mestrado em Teologia Moral) – UPB, 2009. p. 9-10.

[1] Bento XVI. Audiência Geral, Quarta-feira, 29 de Agosto de 2007

[2] Cf. Correa de Oliveira. Notas para a Conceituação da Cristandade, Década de 50. p .7. (Extraído do Original).

[3] Idem.

[4] Adversus haereses IV, 39, 3