Deus quer que Jesus seja a vida das obras

Dom J. B. CHAUTARD O.C.R. A alma de todo apostolado. São Paulo: Editora Coleção,1962.

 Capítulo IIjesus-e-apostolos1

 

 A ciência toda se ufana com os seus imensos triunfos e certo é que títulos legítimos tem para disso se ufanar. No entanto, uma coisa até hoje lhe tem sido impossível e impossível lhe será de futuro: criar a vida, fazer sair um grão de trigo, uma larva, do laboratório de um químico. As estrondosas derrotas dos partidários da geração espontânea já nos ensinaram o que devíamos pensar acerca dessas pretensões. Deus guarda o poder de criar a vida.

Na ordem vegetal e animal, os seres vivos podem crescer e multiplicar‑se e, ainda assim, a sua fecundidade apenas se realiza dentro das condições estabelecidas pelo Criador. Ao tratar‑se, porém, da vida intelectual, Deus reserva‑a para Si e Ele é quem diretamente cria a alma racional. Um domínio há, contudo, de que ele é ainda mais cioso — o domínio da vida sobrenatural, emanação da vida divina comunicada à humanidade do Verbo encarnado.

Per Dominum nostrum Jesum Christum. Per ipsum et cum ipso et in ipso.[1]

A Encarnação e a Redenção constituem Jesus Fonte e Fonte única dessa vida divina, da qual todos os homens são chamados a participar. A ação essencial da Igreja consiste em difundir essa vida por meio dos sacramentos, da oração, da pregação e de todas as obras que com isso se relacionam.

Deus tudo faz por meio de seu Filho: Omnia per ipsum facta sunt et sine ipso factum est nihil.[2]

Isto já é verdade na ordem natural; mas quanto mais o é ainda na ordem sobrenatural, desde que se trata de comunicar a sua vida íntima e de tornar os homens participantes da sua natureza para torná‑los filhos de Deus.

Veni ut vitam habeant. In ipso vita erat. Ego sum vita.[3]

Que precisão nestas palavras! Que luz nessa parábola da videira e dos sarmentos, onde o Mestre desenvolve esta verdade! Como Ele se empenha em gravar no espírito dos seus apóstolos este princípio fundamental: que unicamente Ele, Jesus, é a vida; e esta conseqüência: que, para participar dessa vida e comunicá‑la aos outros, hão mister de ser enxertados no Homem‑Deus!

Os homens chamados à honra de colaborar com o Salvador em transmitir às almas essa vida divina devem, portanto, considerar‑se como modestos canais encarregados de haurir tal vida nessa fonte única.

Grosseiro erro teológico deixaria transparecer um homem apostólico, se desconhecesse estes princípios e julgasse que podia produzir o mínimo vestígio de vida sobrenatural sem ir totalmente buscá‑la em Jesus.

Desordem menor, mas também insuportável aos olhos de Deus, seria se o apóstolo, reconhecendo embora que o Redentor é a causa primordial de toda a vida divina, na sua ação olvidasse esta verdade e, obcecado por louca presunção injuriosa a Jesus Cristo, apenas contasse com as suas próprias forças. Tão somente falamos aqui da desordem intelectual, que teórica ou praticamente implica a negação de um princípio ao qual devemos tanto a adesão de nosso espírito como a conformidade da nossa conduta; e não da desordem moral do homem de obras, o qual, reconhecendo realmente o Salvador como fonte de toda a graça e esperando dEle todo o bom êxito, tenha o próprio coração em desacordo com o dEle, devido ao pecado ou à tibieza voluntária. Ora, o proceder praticamente, ao ocupar‑se de obras, como se Jesus não fosse o único princípio da vida delas, é qualificado pelo Cardeal Mermillod de “Heresia das Obras”. Com esta expressão, estigmatiza ele a aberração de um apóstolo que, esquecendo‑se do seu papel secundário e subordinado, unicamente esperasse o bom êxito do seu apostolado, da sua atividade pessoal e dos seus talentos. Praticamente, não é isto a negação de grande parte do Tratado da Graça? Esta conseqüência à primeira vista revolta; mas por pouco que sobre ela se reflita, logo se vê que é infelizmente muito verdadeira.

Heresia das obras! A atividade febril substituindo‑se à ação de Deus, a graça desconhecida, o orgulho humano querendo destronar Jesus, a vida sobrenatural, o poder da oração, a economia da Redenção atiradas, pelo menos na prática, à categoria das abstrações, eis um caso que longe está de ser imaginário e que a análise das almas revela como freqüentíssimo, embora em graus diversos, neste século de naturalismo em que o homem julga sobretudo pelas aparências e procede como se o bom êxito de uma obra dependesse principalmente de engenhosa organização.

A vista de uma alma pagã, recusando‑se a atribuir ao Autor de todo o bem e de todos os dons as maravilhas dos seus talentos naturais, já seria motivo de indignação para um espírito esclarecido, quanto mais não seja pela filosofia. Que sentimento experimentará então um católico instruído na sua religião, perante o espetáculo de um apóstolo que ostentasse, pelo menos implicitamente, a pretensão de não querer saber de Deus para comunicar às almas, quanto mais não fosse, o mínimo grau de vida divina? “Que insensato”! Diríamos nós ao ouvir um operário evangélico usar da seguinte linguagem: “Meu Deus, não me levanteis obstáculos à minha empresa, não lhe traveis o funcionamento e eu me encarrego de a levar a bom termo”. Este sentimento nosso seria um reflexo da aversão que em Deus provoca a vista de tal desordem, a vista de um presunçoso levando o orgulho a ponto de querer dar a vida sobrenatural, produzir a fé, fazer cessar o pecado, conduzir à virtude, gerar almas para o fervor, unicamente com as suas forças e sem atribuir esses efeitos à ação direta, constante, universal e efusiva do Sangue divino, preço, razão de ser e meio de toda a graça e de toda a vida espiritual.

A humanidade de seu Filho exige, pois, que Deus confunda esses falsos cristos, já paralisando as suas obras de orgulho, já permitindo que elas apenas provoquem uma miragem efêmera. Salvo em tudo o que opera sobre as almas ex opere operato, Deus deve ao Redentor o subtrair ao apóstolo, cheio de arrogância, as suas melhores bênçãos para reservá‑las ao ramo que humildemente reconhece que somente pode haurir a sua seiva no tronco divino. De outra sorte, se abençoasse com resultados profundos e duradouros uma atividade envenenada por esse vírus a que chamamos heresia das obras, Deus dava mostras de animar essa desordem e permitir seu contágio.

[1] ) Por Nosso Senhor Jesus Cristo. Por Ele, com Ele e nEle (Liturgia).

[2] ) Todas as coisas foram feitas por Ele, e nada do que foi feito, foi feito sem Ele (Jo., 1, 3).

[3] ) Eu vim para eles terem vida (Jo., 10). NEle estava a vida (Jo., 4). Eu sou a vida (Jo., 14, 6).