Após a Ressurreição, o Senhor faz dos apóstolos continuadores da Sua missão

Pe. Juan Carlos Casté, EP

O Senhor, depois de ter rezado ao Pai, constituiu Doze apóstolos para enviá-los a pregar o Reino de Deus.[1] O número dos Doze recorda as doze tribos de Israel; de um lado expressa a edificação do novo Israel, nascido do “resto” do antigo, mas por outro lado, é intenção de Nosso Senhor romper com a casta sacerdotal limitada a uma tribo.

O próprio ato de eleição comporta já uma participação dos apóstolos à consagração e missão de Jesus, porque os escolhe para enviá-los a pregar, portanto, fá-los partícipes da Sua consagração e da Sua missão, realizando-se isto em diversos momentos e coincidindo com a instituição do sacramento da ordem, observável em diversas ocasiões nas quais recebem de Jesus a chamada, a potestade e a missão, completada no Pentecostes.

O magistério une a instituição da ordem à Eucaristia. João Paulo II, por exemplo, reafirmou a doutrina tridentina da união da ordem com a Eucaristia. Depois da Ressurreição, o Senhor faz dos apóstolos os continuadores da Sua missão e lhes dá o poder de perdoar os pecados.[2] Essa missão dos apóstolos deriva da consagração recebida. Não é própria, em duplo sentido: é uma iniciativa de Outro e a sua capacidade para desenvolvê-la é participada.

Nessa missão os apóstolos foram confirmados no dia de Pentecostes. Ao descer o Espírito Santo, realizou-se o cumprimento da promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo e se completa a instituição da ordem sagrada enquanto dá aos apóstolos a graça necessária para cumprir a Sua missão exercitando a potestas sacra. Os apóstolos receberam, deste modo, a qualificação que permanecerá nos detentores do sacerdócio ministerial: uma capacidade ontológica e um “impulso interior” — o dom de Pentecostes contém também aquilo que posteriormente se chamará “graça sacramental específica” da ordem.[3] Se a missio Ecclesiae é sempre reconduzível à missão invisível do Filho e do Espírito Santo, a missio apostólica deverá ter a sua origem não só em Cristo, como também no Espírito Santo.

O grupo dos Doze reunido no Cenáculo, como gérmen da Igreja, tinha já sido enviado pelo Senhor aos filhos de Israel, e depois a todas as gentes, a fim de que, participando da sua potestade, os convertessem em discípulos, os santificassem e os governassem, porém, foram confirmados nessa missão no Pentecostes. Foram impulsionados à missão e a predicar audazmente o Evangelho. Esse dom do Espírito Santo, o mesmo Espírito de Cristo, desceu sobre eles para que O comuniquem a todos os homens.

A posição dos Doze, ademais de serem embaixadores e ministros de Cristo, situa-os também à cabeça da comunidade cristã. Eles estão conscientes de estar investidos de autoridade, executando-a inclusive com veemência.[4] Escolhidos juntos, a sua união fraterna estará a serviço da comunidade. Sua autoridade não é de domínio, mas exercitada “para edificar e não para destruir”.[5]


[1] Mc 3, 13-19; Mt 10, 1-42.

[2] Cf. Jo 20, 21-23.

[3] Cf. Philipe Goyret Chiamati, Consacrati, Inviati Il Sacramento dell’Ordine. Libreria Editrice Vaticana, 2003.

[4] Cf. 1 Cor 4, 21; 5, 5.

[5] 2 Cor 13, 10.

A Ressurreição do Senhor

Mons. João S. Clá Dias, EPjesus2

Quia surrexit sicut dicit… Tal como havia anunciado aos seus (Mt 16, 21; 17,9; 17, 22; 20, 19; Jo 2, 19, 20 e 21; Mt 12, 40), Jesus ressuscitou. Esse supremo fato já havia sido previsto por David (Sl 15, 10) e por Isaías (Is 11, 10).

São Paulo ressaltará o valor desse grandioso acontecimento: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1 Cor 15, 14). Daí a importância capital da Páscoa da Ressurrei­ção, a magna festa da Cristandade, a mais antiga, e centro de todas as outras, solene, majestosa e pervadida de júbilo: “Haec est dies quam fecit Dominus. Exultemus et laetemur in ea” — esse é o dia que o Senhor fez, seja para nós dia de alegria e felicidade (Sl 117, 24).

Na liturgia, essa alegria é prolongada pela repetição da palavra “aleluia”, pelo branco dos paramentos e pelos cânticos de exultação. Com razão dizia Tertuliano: “Somai todas as solenidades dos gentios e não chegareis aos nossos cinqüenta dias de Páscoa” (De idolatria, c 14).

Na Ressurreição do Senhor, além de contemplarmos o triunfo de Jesus Cristo, celebramos também a nossa futura vitória, sendo aplicáveis a nós as belas palavras de São Paulo: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está o teu aguilhão?” (1 Cor 15, 55).

As sete palavras de Jesus

cruz-livroMons. João S. Clá Dias, EP

Afirma São Tomás que “o último na ação é o primeiro na intenção”. Pelos derradeiros atos e disposições de alma de quem transpõe os umbrais da eternidade, chegamos a compreender bem qual foi o rumo que norteou sua existência. No caso de Jesus, não só na morte de cruz, mas também, de forma especial, em suas últimas palavras, vemos o sentido mais profundo de sua Encarnação. Nelas encontramos uma rutilante síntese de sua vida: constante e elevada oração ao Pai, apostolado através da pregação, conduta exemplar, milagres e perdão. A cruz foi o divino pedestal eleito por Jesus para proclamar suas últimas súplicas e decretos. No alto do Calvário se esclareceram todos os seus gestos, atitudes e pregações. Maria também compreendeu ali, com profundidade, sua missão de mãe. Jesus é a Caridade. A perfeição dessa virtude, nós a encontramos nas “Sete Palavras”. As três primeiras têm em vista os outros (inimigos, amigos e familiares); as demais, a Si próprio.

1ª Palavra: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34) Pai — É o mais suave título de Deus. Nessa hora extrema, Jesus bem poderia invocá-Lo chamando-O Deus. Percebe-se, entretanto, claramente a intenção do Redentor: quis afastar, dos fautores daquele crime, a divina severidade do Juiz Supremo, interpondo a misericórdia de sua paternalidade. Chega-se a entrever a força de seu argumento: se o Filho, vítima do crime, perdoa, por que não o fazeis também Vós? É a primeira “palavra” que os divinos lábios d’Ele pronunciam na cruz, e nela já encontramos o perdão. Perdão pelos que Lhe infligiram diretamente seu martírio. Perdão que abarca também todos os outros culpados: os pecadores. Nesse momento, portanto, Jesus pediu ao Pai também por mim. Embora não houvesse fundamento para escusar o desvario e ingratidão do povo, a sanha dos algozes, a inveja e ódio dos príncipes e dos sacerdotes, etc., tão infinita foi a Caridade de Jesus que Ele argumenta com o Pai: “porque não sabem o que fazem”. A ausência absoluta de ressentimento faz descer do alto da cruz a luminosidade harmoniosa e até afetuosa do amor ao próximo como a si mesmo. Ouvindo essa súplica, chegamos a entender quanta isenção de ânimo havia em Jesus, na ocasião em que expulsou os vendilhões do Templo: era, de fato, o puro zelo pela casa de seu Pai.

2ª Palavra: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43) A cena não podia ser mais pungente. Jesus se encontra entre dois ladrões. Um deles faz jus à afirmação da Escritura: “Um abismo atrai outro abismo” (Sl 41, 8). Blasfema contra Jesus, dizendo: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo, e salva-nos a nós” (Lc 23, 39). Enquanto esse ladrão ofende, o outro louva Jesus e admoesta seu companheiro, dizendo: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício? Para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez mal algum” (Lc 23, 40-41). São palavras inspiradas, nas quais transparecem a santa correção fraterna, o reconhecimento da inocência de Cristo, a confissão arrependida dos crimes come-tidos. São virtudes que lhe preparam a alma para uma ousada súplica: “Senhor, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino!” (Lc 23, 42). Ao referir-se a Jesus enquanto “Senhor”, o bom ladrão professa sua condição de escravo e reconhece-O como Redentor. O “lembra-te de mim” é afirmativo, não tem nenhum sentido condicional, pois sua confiança é plena e inabalável. Compreende a superioridade da vida eterna sobre a terrena, por isso não pede aquilo que, para o mau ladrão, constitui um delírio: o afastamento da morte, a recuperação da saúde e da integridade. O bom ladrão confessa publicamente a Nosso Senhor Jesus Cristo, ao contrário até mesmo de São Pedro, que havia três vezes negado o Senhor. Tal gesto lhe fez merecer de Jesus este prêmio: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43). Jesus torna solene a primeira canonização da história: “Em verdade…” A promessa é categórica até quanto à data: hoje. São Cipriano e Santo Agostinho chegam a afirmar ter recebido o bom ladrão a palma do martírio, pelo fato de, por livre e espontânea vontade, haver confessado publicamente a Nosso Senhor Jesus Cristo.

3ª Palavra:“Junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cleófas, e Maria Madalena. Quando Jesus viu sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: ‘Mulher, eis aí teu filho’. Depois disse ao discípulo: ‘Eis aí tua mãe’.E dessa hora em diante o discípulo a levou para a sua casa” (Jo 19, 25-27). Com essas palavras, Jesus finaliza sua comunicação oficial com os homens antes da morte (as quatro outras serão de sua intimidade com Deus). Quem as ouve são Maria Madalena, representan-do a via da penitência; Maria, mulher de Cleófas, a dos que vão progredindo na vida espiritual; Maria Santíssima e São João, a da perfeição. Consideremos um breve comentário de Santo Ambrósio sobre este trecho: “São João escreveu o que os outros calaram: [pouco depois de] conceder o reino dos céus ao bom ladrão, Jesus, cravado na cruz, considerado vencedor da morte, chamou sua Mãe e tributou a Ela a reverência de seu amor filial. E, se perdoar o ladrão é um ato de piedade, muito mais é homenagear a Mãe com tanto carinho… Cristo, do alto da cruz, fazia seu testamento, distribuindo entre sua Mãe e seu discípulo os deveres de seu carinho” (in S. Tomás de Aquino, Catena Áurea). É arrebatador constatar como Jesus, numa atitude de grandioso afeto e nobreza, encerrou oficialmente seu relacionamento com a humanidade, na qual se encarnara para redimi-la. Do auge da dor, expressou o carinho de um Deus por sua Mãe Santíssima, e concedeu o prêmio para o discípulo que abandonara seus próprios pais para segui-Lo: o cêntuplo nesta terra (Mt 19, 29). É perfeita e exemplar a presteza com que São João assume a herança deixada pelo Divino Mestre: “E dessa hora em diante, o discípulo a levou para a sua casa” (Mt 19, 27). São João desce do Calvário protegendo, mas sobretudo protegido pela Rainha do céu e da terra. É o prêmio de quem procura adorar Jesus no extremo de seu martírio.

4ª Palavra: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27, 45) Jesus clama em alta voz. Seu brado fende não somente os ares daquele instante, mas os céus da história. Nossos ouvidos são duros, era indispensável falar com força. Jesus não profere uma queixa, nem faz uma acusação. Deseja, por amor a nós, fazer-nos entender a terrível atrocidade de seus tormentos. Assim mais facilmente adquiriremos clara noção de quanto pesam nossos pecados e de quanto devemos ser agradecidos pela Redenção. Como entender esse abandono? Não rompeu-se — e é impossível — a união natural e eterna entre as pessoas do Pai e do Filho. Nem sequer separaram-se as naturezas humana e divina. Jamais se interrompeu a união entre a graça e a vontade de Jesus. Tampouco perdeu sua alma a visão beatífica. Perdeu Jesus, isto sim, e temporariamente, a união de proteção à qual Ele faz menção no Evangelho: “Aquele que me enviou está comigo; ele não me deixou sozinho” (Jô 8, 29). O Pai bem poderia protege-Lo nessa hora (cfr. Mc 14, 36; Mt 26, 53; Lc 22, 43). O próprio Filho poderia proteger seu Corpo (Jo 10, 18; 18, 6), ou conferir-lhe o dom de incorruptibilidade e de impassibilidade, uma vez que sua alma estava na visão beatífica. Mas assim determinou a Santíssima Trindade: a debilidade da natureza humana em Jesus deveria prevalecer por um certo período, a fim de que se cumprisse o que estava escrito. Por isso Jesus não se dirige ao Pai como em geral procedia, mas usa da invocação “meu Deus”. A ordem do universo criado é coesa com a ordem moral. Ambas procedem de uma mesma e única causa. Se a primeira não se levanta para se vingar daqueles que dilaceram os princípios morais por meio de seus pecados, é porque Deus lhe retém o ímpeto natural. Se assim não fosse, os céus, os mares e os ventos se ergueriam contra toda e qualquer ofensa feita a Deus. Mas como frear a natureza diante do deicídio? Por isso, na hora daquele crime supremo, “cobriu-se toda a terra de trevas”… (Mt 27, 45).

5ª Palavra: “Tenho sede.” (Jo 19, 28) Assinala o evangelista que Jesus dissera tais palavras por saber “que tudo estava consumado, para se cumprir plenamente a Escritura”. Vendo um vaso cheio de vinagre que havia por ali, os soldados embeberam uma esponja, “e fixando-a numa vara de hissopo, chegaram-lhe à boca” (Jo 19, 28-29). Cumpria-se assim o versículo 22 do salmo 68: “Puseram fel no meu alimento; na minha sede deram-me vinagre para beber”. Qual a razão mais profunda desse episódio? É um verdadeiro mistério. Jesus derramara boa quantidade de seu preciosíssimo Sangue durante a flagelação. As chagas, em via de cicatrização, foram reabertas ao longo do caminho e ainda mais quando Lhe arrancaram as roupas para crucificá-Lo. O pouco sangue que Lhe restava escorria pelo sagrado lenho. Por isso, a sede tornou-se ardentíssima. Além desse sentido físico, a sede de Jesus significava algo mais: o Divino Redentor tinha sede da glória de Deus e da salvação das almas. E o que lhe oferecem? Um soldado lhe apresenta, na ponta de uma vara, uma esponja empapada de vinagre. Era a bebida dos condenados. Podemos de alguma maneira aliviar pelo menos esse tormento de Jesus? Sim! Antes de tudo, compadecendo-nos d’Ele com amor e verdadeira piedade, e apresentando-Lhe um coração arrependido e humilhado. Devemos querer ter parte nessa sede de Cristo, almejando acima de tudo à nossa própria santificação e salvação, com redobrado esforço, de modo a não pensar, desejar ou praticar algo que a Ele não nos conduza. Para Ele será uma água fresca e cristalina nossa fuga vigilante das ocasiões próximas de pecado. Compadeçamo-nos também dos que vivem no pecado ou nele caem, e trabalhemos por sua salvação. Em suma, apliquemo-nos com ânimo na tarefa de apressar o triunfo do Imaculado Coração de Maria. O Salvador clama a nós do alto da cruz que defendamos, mais ainda que o bom ladrão, a honra de Deus, procurando conduzir a opinião pública para a verdadeira Igreja. É nosso dever buscar entusiasmadamente a glória de Cristo, “que nos amou e por nós se entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor.” (Ef 5, 2).

6ª Palavra: “Tudo está consumado.” (Jo 19, 30) A Sagrada Paixão terminara e, com ela, a pregação. Todas as profecias haviam se cumprido, conforme interpreta Santo Agostinho: a concepção virginal (Is 7, 14); o nascimento em Belém (Mq 5, 1); a adoração dos Reis (Sl 71, 10); a pregação e os milagres (Is 61, 1; 35, 5-6); a gloriosa entrada em Jerusalém no dia de Ramos (Zc 9,9) e toda a Paixão (Isaías e Jeremias). Na Cruz foi vencida a guerra contra o demônio: “Agora é o juízo deste mundo; agora será lançado fora o príncipe deste mundo” (Jo 12, 31). No paraíso terrestre, o demônio adquirira de modo fraudulento a posse deste mundo, com o pecado de nossos primeiros pais. Jesus a recuperou como legítimo herdeiro. Consumado também estava o edifício da Igreja. Este iniciou-se com o batismo no Jordão, onde foi ouvida a voz do Pai indicando seu Filho muito amado, e se concluiu na cruz, na qual Jesus comprou todas as graças que serão distribuídas até o fim do mundo através dos sacramentos. Para que o preciosíssimo Sangue do Salvador ponha fim ao império do demônio em nossas almas, é preciso que crucifiquemos nossa carne com seus caprichos e delírios, combatendo também o res-peito humano e a soberba. Jesus nos abriu um caminho que, aliás, todos os santos trilharam.

7ª Palavra: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.” (Lc 23, 46) Estabeleceu-se na Igreja, desde os primórdios, o costume de enco-mendar as almas dos fiéis defuntos, a fim de que a luz perpétua os ilumine. Jesus, porém, não tinha necessidade de encomendar sua alma ao Pai, pois ela havia sido criada no pleno gozo da visão beatífica. Desde o primeiro instante de sua existência, encontrava-se unida à natureza divina na pessoa do Verbo. Portanto, ao abandonar o corpo sagrado, sairia vitoriosa e triunfante. “Meu espírito”, e não alma, provavelmente aqui significaria a vida corporal de Jesus. Mas Jesus aguardava sua ressurreição para logo. Ao entregar ao Pai a vida que d’Ele recebera, sabia que ela Lhe seria restituída no tempo devido. Com reverência tomou o Pai Eterno em suas mãos a vida de seu Filho unigênito, e com infinito comprazimento a devol-véu, no ato da ressurreição, a um corpo imortal, impassível e glorioso. Abriu-se, assim, o caminho para a nossa ressurreição, ficando-nos a lição de que ela não pode ser atingida senão pelo calvário e pela cruz.

AVE CRUX, SPES ÚNICA.

O desafio da Evangelização nas grandes cidades

Pe. José Victorino de Andrade, EP

A vida na cidade é tentadora para aqueles que vão trocando as histórias em torno da matriarca e do patriarca pela caixinha mágica cujas novelas quebram tabus e mitificam a pseudo felicidade das grandes urbes. É a floresta de cimento que acolhe em suas ruas uma legítima aspiração de realização pessoal e dignidade de vida. Aí o relacionamento humano torna-se muitas vezes impessoal, distante, e assim se torna também o relacionamento com o sobrenatural. Não havendo lugar para um Deus Providência, próximo ao homem, Ele acaba por ocupar um pequeno e distante espaço de mantenedor da felicidade, da riqueza e da saúde, coisa que nós descobrimos que nem mesmo os grandes centros urbanos são totalmente eficazes em nos oferecer.

A religiosidade do homem nas grandes cidades é um dos maiores desafios em nossos dias e deve ser fruto de uma renovada e continuada reflexão. Quem oferecerá ao homem pós-moderno citadino a satisfação integral que ele tanto almeja? Os Shoppings, cujas galerias se enchem mais que as assembleias, quais novos templos onde as divindades do marketing regalam materialmente os mortais consumistas? As dependências ou vícios capazes de alienar o ser para novas e perturbadoras místicas? E se na vida prática da cidade, ao dobrar da esquina se encontra uma padaria, drogaria ou mercadinho, porque não procurar o espaço religioso mais próximo, ainda que de outro credo? A vida plural da cidade não oferece todas as facilidades? Deus junto à minha porta, ou mesmo na minha casa, dentro de mim, à minha medida…

Deus é grande demais para se submeter e limitar às minhas elaborações e à minha imaginação, é um Deus pessoal e não individual, um Deus que se fez homem, não um homem que faz deus… Viver nas grandes urbes não deve significar uma autonomia fria e distante de um Deus que se fez carne, quis ter um rosto e falou ao homem de todos os tempos e de todas as nações, do campo ou da cidade. Há muitos que O procuram e cabe a cada um de nós conduzi-los e favorecer aquele mesmo encontro que nos seduziu e conquistou. Ele está presente no centro e na periferia, onde dois ou mais estiverem reunidos em Seu Nome, naqueles cristãos lábios que o pronunciam e anunciam. É com alegria que o Evangelho deve ser anunciado, e o Papa Francisco deixou-o bem claro na sua última Exortação Apostólica. Afinal, um cristão triste, é sempre um triste cristão.

A missão não ficou tão distante como em outros tempos. Hoje, ela começa na sua casa, junto a seus vizinhos, em seu bairro, na sua cidade e dispõe de variados e eficazes meios, além do pessoal e da proximidade que são insubstituíveis e de grande importância, complementados com a internet, redes sociais, celular, entre muitos outros. É este estado permanente de missão que o plano pastoral da CNBB nos propõe para este grande Brasil, partindo de um encontro e uma experiência com Nosso Senhor Jesus Cristo e da alegria do anúncio da sua Palavra. 

A procura do Absoluto

pescadorMons. João Clá Dias, EP

Dentre as diversas formas do conhecimento analógico de Deus, a via eminentiae procura atribuir às coisas visíveis graus de perfeição superiores aos que possuem, como forma de elevar a alma a Deus na consideração admirativa do Universo.

Entende-se a importância primordial de uma correta impostação de espírito na consideração da criação, no sentido de favorecer os bons frutos da catequese e da formação cristã, pois ao se tomar uma pessoa, educada na escola da “procura do absoluto”,[1] para ela, acreditar nos conteúdos da Fé, torna-se algo quase conatural. Saber que aquele Deus, por ela tão almejado, revelou-Se misericordiosamente, produz-lhe um grande gáudio interior, levando-o a exclamar com Jeremias: “Bastava descobrir as tuas palavras e eu já as devorava, tuas palavras para mim são prazer e alegria do coração” (Jr 15, 16).

Quando São Tomás se pergunta — seguindo seu método clássico inspirado nas disputationes medievais — pela origem da desigualdade das coisas, defronta-se com algumas objeções, dentre as quais chamamos a atenção sobre a primeira, sobretudo pela resposta a ela dada pelo santo doutor. Com efeito, se Deus é o ótimo por essência, não pode ter criado senão coisas ótimas, as quais deveriam ser todas necessariamente iguais. Pois, a partir do momento que uma fosse melhor que a outra, a inferior deixaria de ser ótima. (cf S Th I, q. 47, a. 2)

Responde São Tomás com seu clássico estilo:

A un agente óptimo le corresponde producir todo su efecto de forma óptima. Sin embargo, no en el sentido de que cada una de las partes del todo que hace sea absolutamente óptima, sino que es óptima en cuanto proporcionada al todo. […] Así, de cada una de las criaturas se dice en el Gen 1, 4, Vio Dios que la luz era buena. Lo mismo se dice de las demás cosas. Pero de todas en conjunto dice (v.31): Vio Dios todo lo que había hecho y era muy bueno.

As perfeições de Deus, refletidas nas várias criaturas em diversos graus e modos, têm sua representação mais admirável no conjunto da Criação, a qual forma como que um imenso e magnífico mosaico que reproduz a Beleza incriada. O Universo é melhor do que cada uma das partes, por refletir com maior perfeição a grandeza e majestade de Deus.

Seguindo o divino exemplo, a alma que trilha as vias da “procura do absoluto” não deve se deter apenas na consideração de cada uma das obras de Deus isoladamente, mas é chamada a admirar a ordem do Universo no seu conjunto.

Entretanto, há uma obra na Criação que o fiel deve considerar com um amor que toca quase na adoração: é a Igreja Católica, Apostólica e Romana. Nela, se reflete de modo ainda mais perfeito a beleza infinita de Deus, pois ela é “toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível” (Ef 5, 27). O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira assim falava da Santa Igreja, como obra-prima de Deus:

Deus Se reflete, ainda, em uma obra-prima mais alta e mais perfeita do que o Cosmos. É o Corpo Místico de Cristo, a sociedade sobrenatural que veneramos com o nome da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Constitui Ela mesma, todo um universo de aspectos harmônicos e variegados, que cantam e refletem, cada qual a seu modo, a formosura santa e inefável de Deus e do Verbo Encarnado.

Na contemplação, de um lado, do Universo e, de outro lado, da Santa Igreja Católica, podemos elevar-nos à consideração da beleza santa, infinita e incriada de Deus.[2]

in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 10, Jan-Mar 2010. p. 20-22.


[1] Tendo visto como pela busca do pulchrum se tende à perfeição, com magnanimidade e senso de hierarquia, compreende-se melhor essa contemplação das criaturas rumo ao que é mais elevado, que, por herança do Prof. Corrêa de Oliveira, na instituição dos Arautos se designa por “procura do Absoluto”, e em linguagem escolástica é chamada conhecimento analógico de Deus.

[2] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. O Escapulário, a profissão e a consagração interior, in Mensageiro do Carmelo. São Paulo, 1959, ano 47, ed. especial, pp. 58-65.