A procura do Absoluto

pescadorMons. João Clá Dias, EP

Dentre as diversas formas do conhecimento analógico de Deus, a via eminentiae procura atribuir às coisas visíveis graus de perfeição superiores aos que possuem, como forma de elevar a alma a Deus na consideração admirativa do Universo.

Entende-se a importância primordial de uma correta impostação de espírito na consideração da criação, no sentido de favorecer os bons frutos da catequese e da formação cristã, pois ao se tomar uma pessoa, educada na escola da “procura do absoluto”,[1] para ela, acreditar nos conteúdos da Fé, torna-se algo quase conatural. Saber que aquele Deus, por ela tão almejado, revelou-Se misericordiosamente, produz-lhe um grande gáudio interior, levando-o a exclamar com Jeremias: “Bastava descobrir as tuas palavras e eu já as devorava, tuas palavras para mim são prazer e alegria do coração” (Jr 15, 16).

Quando São Tomás se pergunta — seguindo seu método clássico inspirado nas disputationes medievais — pela origem da desigualdade das coisas, defronta-se com algumas objeções, dentre as quais chamamos a atenção sobre a primeira, sobretudo pela resposta a ela dada pelo santo doutor. Com efeito, se Deus é o ótimo por essência, não pode ter criado senão coisas ótimas, as quais deveriam ser todas necessariamente iguais. Pois, a partir do momento que uma fosse melhor que a outra, a inferior deixaria de ser ótima. (cf S Th I, q. 47, a. 2)

Responde São Tomás com seu clássico estilo:

A un agente óptimo le corresponde producir todo su efecto de forma óptima. Sin embargo, no en el sentido de que cada una de las partes del todo que hace sea absolutamente óptima, sino que es óptima en cuanto proporcionada al todo. […] Así, de cada una de las criaturas se dice en el Gen 1, 4, Vio Dios que la luz era buena. Lo mismo se dice de las demás cosas. Pero de todas en conjunto dice (v.31): Vio Dios todo lo que había hecho y era muy bueno.

As perfeições de Deus, refletidas nas várias criaturas em diversos graus e modos, têm sua representação mais admirável no conjunto da Criação, a qual forma como que um imenso e magnífico mosaico que reproduz a Beleza incriada. O Universo é melhor do que cada uma das partes, por refletir com maior perfeição a grandeza e majestade de Deus.

Seguindo o divino exemplo, a alma que trilha as vias da “procura do absoluto” não deve se deter apenas na consideração de cada uma das obras de Deus isoladamente, mas é chamada a admirar a ordem do Universo no seu conjunto.

Entretanto, há uma obra na Criação que o fiel deve considerar com um amor que toca quase na adoração: é a Igreja Católica, Apostólica e Romana. Nela, se reflete de modo ainda mais perfeito a beleza infinita de Deus, pois ela é “toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível” (Ef 5, 27). O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira assim falava da Santa Igreja, como obra-prima de Deus:

Deus Se reflete, ainda, em uma obra-prima mais alta e mais perfeita do que o Cosmos. É o Corpo Místico de Cristo, a sociedade sobrenatural que veneramos com o nome da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Constitui Ela mesma, todo um universo de aspectos harmônicos e variegados, que cantam e refletem, cada qual a seu modo, a formosura santa e inefável de Deus e do Verbo Encarnado.

Na contemplação, de um lado, do Universo e, de outro lado, da Santa Igreja Católica, podemos elevar-nos à consideração da beleza santa, infinita e incriada de Deus.[2]

in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 10, Jan-Mar 2010. p. 20-22.


[1] Tendo visto como pela busca do pulchrum se tende à perfeição, com magnanimidade e senso de hierarquia, compreende-se melhor essa contemplação das criaturas rumo ao que é mais elevado, que, por herança do Prof. Corrêa de Oliveira, na instituição dos Arautos se designa por “procura do Absoluto”, e em linguagem escolástica é chamada conhecimento analógico de Deus.

[2] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. O Escapulário, a profissão e a consagração interior, in Mensageiro do Carmelo. São Paulo, 1959, ano 47, ed. especial, pp. 58-65.

As duas vindas de Nosso Senhor

jesus3Mons. João S. Clá Dias, EP

O círculo e o losango são as mais perfeitas figuras geométricas segundo o conceito de São Tomás de Aquino, pois representam o movimento do efeito que retorna à sua causa. Cristo é a mais alta realização dessa simbologia porque, além de ser o princípio de todo o criado, é também o fim último. Daí encontrarmos, tanto no término do ano litúrgico, como em sua abertura, os Evangelhos que transcrevem as revelações de Jesus sobre sua última vinda.

A expectativa do Natal

A Igreja não elaborou suas cerimônias através de um planejamento prévio. Organismo sobrenatural como é, nascido do sagrado costado do Redentor e vivificado pelo sopro do Espírito Santo, possui uma vitalidade própria com a qual se desenvolve, cresce e se torna bela, de maneira orgânica. Assim foi-se constituindo o ano litúrgico ao longo dos tempos, em suas mais diversas partes. Em concreto, o Advento surgiu entre os séculos IV e V como uma preparação para o Natal, sintetizando a grande espera dos bons judeus pelo aparecimento do Messias.

À expectativa de um grande acontecimento místico-religioso, corresponde uma atitude penitencial. Por isso os séculos antecedentes ao nascimento do Salvador foram marcados pela dor dos pecados pessoais e do de nossos primeiros pais. Mais marcante ainda se tornou o período anterior à vida pública do Messias: uma voz clamante no deserto convidava todos a pedirem perdão de seus pecados e a se converterem, para que assim fossem endireitados os caminhos do Senhor.

Esperança pervadida pelo desejo de santidade

Desejando criar condições ideais para participarmos das festividades do Nascimento do Salvador — sua primeira vinda —, a Liturgia selecionou textos sagrados relativos à sua segunda vinda: a nota dominante de uma é a misericórdia e a da outra, a justiça. Entretanto, esses dois encontros com Jesus formam um todo harmônico entre o princípio e o fim dos efeitos de uma mesma causa. Os Padres da Igreja comentam largamente o contraste entre uma e outra, mas, segundo eles, devemos ver na Encarnação do Verbo o início de nossa Redenção e na ressurreição dos mortos a sua plenitude.

Para estarmos à altura do grandioso acontecimento natalino, é indispensável colocarmo-nos diante da perspectiva dos últimos acontecimentos que antecederão o Juízo Final. Daí o fato de a Igreja durante muito tempo ter cantado na Missa a seqüência “Dies Irae”, a famosa melodia gregoriana.

Mais do que simplesmente recordar-nos o fato histórico do Natal, a Igreja quer fazer-nos participar das graças próprias à festividade, tal qual delas gozaram a Santíssima Virgem, São José, os Reis Magos, os Pastores, etc. Ora, uma grande esperança, pervadida pelo desejo de santidade e por uma vida penitencial, sustentava o povo eleito naquelas circunstâncias. E nós devemos imitar seu exemplo e seguir seus passos, em face não só do Natal como também da plenitude de nossa redenção: a gloriosa ressurreição dos filhos de Deus.

Primeira e segunda vindas de Jesus se unem diante de nossos horizontes neste período do Advento, fazendo-nos analisá-las quase numa visão eterna; talvez, melhor dizendo, de dentro dos próprios olhos de Deus, para Quem tudo é presente. Eis algumas razões pelas quais se entende a escolha do roxo para os paramentos litúrgicos, nessas quatro semanas.

Arautos do Evangelho, n. 47

Por amor, obediente até à morte

Mons. João S. Clá Dias, EPVitral-CrucifixiónPquia-ND-L'Epine_img_0086

Para São Tomás, a essência do oferecimento de Jesus, como vítima na Cruz, encontra seu verdadeiro valor espiritual não só na paciência com que suportou a Paixão, ou no auge da dor moral e física a que foi submetido. Ele chama a atenção para a obediência suprema da Divina Vítima, disposta a sofrer o auge de humilhação e dor, até à morte. Com efeito, abdicando de Sua vontade humana — “não seja feito como Eu quero, mas como Tu queres” (Mt 26, 39) — contradiz a soberba do homem pecador (cf. Rm 5, 19), conferindo assim méritos infinitos a Seus sofrimentos e morte (cf. Super Philip. cap. 2, lec. 2.).

É notória, como ressalta o próprio Doutor Angélico, a ligação íntima entre a obediência de Cristo e Sua ardente caridade. Sua obediência exímia “procedia da dileção que possuía pelo Pai e por nós” (Super Rom. cap. 1, lec. 5.). Ao mesmo tempo, por atingir o extremo de submissão e humilhação, mostrou-nos “a largura, o comprimento, a altura e a profundidade” de Seu amor “que ultrapassa todo o conhecimento” (Ef 3, 18-19).

Ao provar no artigo 2 da questão 22 que Cristo foi sacerdote e vítima ao mesmo tempo, São Tomás dá como principal argumento as palavras do Apóstolo: “Cristo nos amou e Se entregou a Deus por nós em oblação, como vítima agradável” (Ef 5, 2). Parece depreender-se daí que o amor de Jesus por nós foi a causa de Sua total entrega em holocausto (cf. Super Eph. cap. 3, lec. 5.).

Indulgências da Via Sacra

Via Sacra (2008) – Mons. João S. Clá Dias, EPCruz

Além dos méritos adquiridos pelo exercício da Via-Sacra, podemos também facilmente ser beneficiados pelas indulgências concedidas pela Igreja a quem cumprir determinadas condições.

Pela obtenção de indulgências nos é perdoada total ou parcialmente a pena devida pelos nossos pecados, ou seja, o Purgatório após a morte. As indulgências podem também ser aplicadas às almas de pessoas já falecidas.

Pode-se obter indulgência plenária rezando a Via-Sacra de acordo com o costume, que consiste em fazer as leituras, orações e meditações de cada Estação diante do respectivo quadro, ou cruz, colocados habitualmente ao longo das paredes das igrejas. Quando a Via–Sacra é rezada em conjunto e há dificuldade de todos se movimentarem ordenadamente, de uma Estação para outra, basta que o dirigente se desloque.

É necessário ainda, além da repulsa de todo o afeto a qualquer pecado, até venial, o cumprimento das três condições seguintes: confissão sacramental, comunhão eucarística e oração nas intenções do Sumo Pontífice (costuma-se rezar um Pai-Nosso, uma Ave-Maria e um Glória). Uma confissão pode valer para se obterem todas as indulgências plenárias durante o período de um mês.

Os aspectos espirituais da sociedade temporal favorecem a contemplação

tibidaboMons. João S. Clá Dias, EP

Encontra-se generalizada a ideia de que a sociedade temporal existe apenas para satisfazer as necessidades materiais do homem. Ora, este é composto de alma e corpo, no qual o espírito ocupa a primazia.[1] Por isso, a sociedade temporal deve também atender aos anseios espirituais da alma humana, embora o aspecto sobrenatural pertença ao âmbito exclusivo da Igreja. O homem é, por natureza, um ser contemplativo, pois está destinado a ver a Deus face a face na eternidade. Portanto, já nesta vida ele deve exercitar essa capacidade, reconhecendo os reflexos de Deus na obra da Criação e, mais ainda, nos outros homens, que são a imagem mais perfeita do Criador no universo visível.

O homem poderá desenvolver a capacidade contemplativa, com maior grau de perfeição, no convívio humano e na consideração dos bens mais elevados que são o resultado da vida social, quer sejam os ambientes, a arte, a cultura e a civilização. Estes são elementos caracteristicamente espirituais produzidos pela sociedade temporal, e que grande influência têm sobre a alma humana. Animando com o espírito cristão as realidades temporais, objeto da contemplação mais imediata do homem, a alma humana terá muito mais facilidade de se elevar até as verdades da Fé. Dessa forma, a intimidade com Deus não se restringe apenas a determinados momentos reservados às obrigações religiosas, mas se estende a todo o operar humano, tal como a respiração não se interrompe em nenhum momento da existência. Ela é natural, sem esforço, contínua e aprazível.

A doutrina do Concílio Vaticano II, expressa no Decreto Apostolicam Actuositatem, é igualmente clara ao ressaltar a importância da esfera temporal no plano salvífico de Deus:

 

A obra redentora de Cristo, que por natureza visa salvar os homens, compreende também a restauração de toda a ordem temporal. Daí que a missão da Igreja consiste não só em levar aos homens a mensagem e a graça de Cristo, mas também em penetrar e atuar com o espírito do Evangelho as realidades temporais. Por este motivo, os leigos, realizando esta missão da Igreja, exercem o seu apostolado tanto na Igreja como no mundo, tanto na ordem espiritual como na temporal. Estas ordens, embora distintas, estão de tal modo unidas no único desígnio divino que o próprio Deus pretende reintegrar, em Cristo, o universo inteiro, numa nova criatura, dum modo incoativo na terra, plenamente no último dia. O leigo, que é simultaneamente fiel e cidadão, deve sempre guiar-se, em ambas as ordens, por uma única consciência, a cristã. (AA, n. 5)

É importante salientar aqui como o Concílio Vaticano II, ainda nos dias em que o assunto não havia adquirido o devido destaque nos meios eclesiais, deu novo impulso ao papel dos leigos na Igreja. Nele se anteciparam os imensos desafios que o terceiro milênio reservava. Com efeito, um deles é a “Consecratio Mundi”. Quase se poderia dizer, caso a Igreja não fosse imortal, ser essa uma questão de vida ou morte. Se no século XXI a Igreja não conseguisse influenciar as realidades temporais com o espírito cristão, os erros e a mentalidade secularista desta época poderiam, em certa medida, dessacralizá-la.

Diante dessa perspectiva, compete aos leigos zelar para que os ambientes, a arte, os costumes, as leis e as instituições, de alto a baixo na escala social, estejam todos impregnados do espírito cristão de forma que a obra redentora de Cristo produza também seus efeitos na esfera temporal. Deverá ela refletir, a seu modo, a luz e o esplendor daquele que subiu aos céus para “levar tudo à plenitude” (Ef 4, 10).

 


[1] Cf. ARISTÓTELES. De Anima. L. II, lição IV. In: SÃO TOMÁS DE AQUINO. Comentario al libro del alma de Aristóteles. Buenos Aires: Fundación Arché, 1979, p. 170.