Relativismo e consciência

Diác. Inácio Almeida, EP

Uma das manifestações mais evidentes do relativismo contemporâneo liga-se a uma nova compreensão do conceito de consciência, que tem acarretado profundas implicações tanto no campo gnosiológico quanto moral.

Segundo essa nova teoria, cada consciência é autônoma, infalível e independente. Ela funciona como uma espécie de tribunal de última instância, capaz de ditar por si mesma as regras de toda conduta moral e social. Ratzinger considera esta interpretação do conceito de consciência como uma espécie de deificação da subjetividade, pois o critério da verdade acaba sendo ditado pelo próprio ego interior: “Consciência, na modernidade, tornou-se a divinização da subjetividade, enquanto que na tradição cristã é exatamente contrário. A consciência é a convicção de que o homem é transparente e pode sentir em si mesmo a voz da própria razão, a razão que dá fundamento do mundo”.1

Com efeito, a tradição cristã compreende a consciência como a capacidade que o homem tem de abrir-se à verdade objetiva e universal e que constitui não somente um direito, mas também um dever de buscar aquilo que é verdadeiro. 2 Dessa forma, a consciência deve ser entendida como unidade de conhecimento e verdade, sem ser confundida com a autoconsciência, pois viver conforme a consciência não significa encerrar-se na própria convicção.

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1) Dialogo fra Ratzinger e Galli della Loggia su storia, politica e religione. In: Tosatti, Marco. Il dizionario di papa Ratzinger: Guida al pontificato. Milano, Baldini Castoldi Dalai, p. 34 (tradução nossa): “Coscienza, nella modernità, diventa la divinizzazione della soggettività, mentre nella tradizione cristiana è proprio il contrario, è la convinzione che l’uomo è trasparente e può sentire in se stesso la voce della ragione stessa, della ragione fondante del mondo”.

2) Cf. Idem. El elogio de la conciencia: la Verdad interroga al corazón. Madrid: Palabra, 2010, p. 45.

A universalidade da lei natural

Pe. Leopoldo Werner, EP
A lei natural é universal e igual para todos os homens, pois possuem a mesma natureza racional criada por Deus. Está inscrita no íntimo do seu coração e tem seu papel no desenrolar dos acontecimentos históricos e no aperfeiçoamento de todas as potências da alma e do corpo que refletem, por sua vez, em todas as atividades e instituições humanas.

Na verdade, o caráter de universalidade e obrigatoriedade moral estimula e impele o crescimento da pessoa. Para se aperfeiçoar na sua ordem específica, a pessoa deve praticar o bem e evitar o mal, deve vigiar pela transmissão e conservação da vida, aperfeiçoar e desenvolver as riquezas do mundo sensível, promover a vida social, procurar o verdadeiro, praticar o bem, contemplar a beleza (JOÃO PAULO II, 2002: 5).
É uma lei universal que não admite privilégios nem distinções de raças, sexo, idade ou fortuna. Ela não precisa ser promulgada para ser conhecida pelos homens, por isso não pode ser objeto de uma ignorância invencível. Esta universalidade se impõe a todos os homens de todas as épocas. Ela respeita, no entanto, a individualidade, unicidade e a irrepetibilidade de cada ser humano. Ela abraça pela raiz todos os atos livres, e é uma bússola que norteia os atos humanos rumo ao fim último.
Essa mesma universalidade, em vez de ser um entrave para o desenvolvimento do gênero humano, pede que todos procurem a perfeição em
Referênciassuas atividades e realizem um progresso no conhecimento da verdade e das ciências em todos os campos.

JOÃO PAULO II. Discurso aos participantes na Assembléia Geral da Academia Pontifícia para a Vida. 27/2/2002 In: AAS 94 (2002).

A polémica com o progredir da história e a solução paulina

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Existe um debate em torno da existência ou não de um progresso linear na História. Alguns defendem uma evolução cíclica, outros, porém, consideram haver uma progressão, um trajeto rumo a um auge, tais como Hegel, Fichte, Schelling, ou Spencer.[1] Mistura-se muitas vezes esta ideia com um conceito de evolucionismo adaptado de Darwin e aplicado à sociologia e mesmo à História.

Alguns visaram uma alternativa, como Marx e Engels no materialismo histórico. Segundo eles, “a História não é um progresso linear e contínuo, uma seqüência de causas e efeitos, mas um processo de transformações sociais determinadas pelas contradições entre os meios de produção (a forma da propriedade) e as forças produtivas (o trabalho, seus instrumentos, as técnicas)”.[2] Spengler, na sua obra sobre A Decadência do Ocidente, apresenta as civilizações “como ciclos cerrados, onde a experiência humana surge, desenvolve-se, atinge o apogeu, entra em crepúsculo, definha e morre”.[3]

Nos nossos dias, estas perspectivas acabaram por fenecer e reconhecem-se pressupostos axiológicos geradores das civilizações, impossíveis de isolar, entre os quais se encontram as fontes espirituais[4]. Ratzinger, na sua obra Introdução ao Cristianismo, defendia que na perspectiva cristã “existe uma única história completa do mundo, a qual mantém um rumo geral e vai “adiante” com seus altos e baixos, nos progressos e regressos que a assinalem”[5]. E afirma: “O cristão tem certeza de que a história avança; ora, avanço, progresso exige o definitivo da direção – eis o que distingue o cristão do movimento em círculo, que não leva a meta nenhuma”[6].

Em 2006, já como Pontífice, ao comentar a passagem: “todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele” (Col 1, 16), Bento XVI salientou que, com estas palavras, São Paulo “indica uma verdade muito importante: a história tem uma meta, tem uma direção. A história caminha para a humanidade unida em Cristo, vai assim para o homem perfeito, para o humanismo perfeito. Com outras palavras São Paulo nos diz: sim, há um progresso na história. Há – se quisermos – uma evolução da história”[7].


[1] A este respeito ver o 12º capítulo de ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. Lisboa: Presença, 2002. Vol. 11.

[2] CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000. p. 537.

[3] REALE, Miguel. Filosofia do fireito. 19a. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 232.

[4] Loc. Cit.

[5] RATZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo. São Paulo: Herder, 1970. p. 154.

[6] Ibíd., p. 124.

[7] “[…] indica una verità molto importante: la storia ha una meta, ha una direzione. La storia va verso l’umanità unita in Cristo, va così verso l’uomo perfetto, verso l’umanesimo perfetto. Con altre parole san Paolo ci dice: sì, c’è progresso nella storia. C’è – se vogliamo – una evoluzione della storia”. (BENEDETTO XVI. Udienza generale: Mercoledì, 4/1/2006. In: Insegnamenti, II, 1 (2006). p. 11. Tradução minha).

O primeiro olhar da inteligência

Mons. João S. Clá Dias, EP

O famoso neotomista francês, Pe. Réginald Garrigou-Lagrange, OP, deixou-nos ricas páginas a respeito do primeiro olhar da inteligência sobre as coisas e sobre a vida,[1] considerando-o primeiramente através de um prisma meramente natural e, em seguida, enquanto banhado pela graça.

Tomando como ponto de partida a afirmação de Nosso Senhor — si oculus tuus fuerit simplex, totum corpus tuum lucidum erit (Mt 6, 2) —, Garrigou-Lagrange comenta que esse é um estudo de universal interesse, chamando a atenção não apenas de estudiosos, mas também de pessoas mais simples, desde que tenham alma elevada e grandes aspirações.

Nunca será demais realçar a riqueza virtual desse primeiro olhar e a necessidade, para o jovem ou o adulto de qualquer idade, de retornar a ele. Esse é o meio adequado do ser humano voltar-se para aquele mundo de verdades sobrenaturais e metafísicas as quais talvez tenha deixado obscurecer em seu espírito, seja porque colocou seu coração demasiadamente nos bens terrenos, seja porque sucumbiu à pressão do ambiente. Em geral, por ambas as razões.

A complexidade da vida nos dias atuais constitui outra grave dificuldade para o primeiro olhar. Com efeito, hoje as mentes são bombardeadas sem cessar pelas cacofonias da civilização do efêmero, do relativo, do contraditório, do meramente palpável. Já em meados do século XX se tornava avassalador o domínio do tecnicismo, mas este, graças ao avanço da eletrônica, vai agora alcançando um paroxismo. Enquanto a instituição da família cristã atravessa uma crise desagregadora sem precedentes, os lares são inundados por todo tipo de aparelhos fascinantes. Desde a mais tenra idade, meninos e meninas são cativados por jogos, blogs, you tubes, i-pods, play stations, face books, celulares, e — além do risco moral e psicológico que correm — perdem aquilo que de melhor tem a infância: os momentos serenos de contemplação das coisas, os “sonhos” com mundos maravilhosos, os períodos concedidos à imaginação criativa ancorada no bem e no belo. Não se trata de um problema circunscrito à infância: a possibilidade de recuperação do primeiro olhar padece sob o poder imperialista da técnica, e uma quantidade esmagadora de informações impossível de ser digerida.

Lembro-me com simpatia de um vietnamita que, nos anos 70, definia seu maior prazer na vida como estar sentado sozinho à porta de sua casa de campo, admirando a paisagem tingida pelas sucessivas cores do pôr-do-sol. Trata-se de uma atitude que se vai tornando rara. Hoje será mais provável encontrarmos cada um dos moradores dessa residência diante de uma tela de computador.

Nas épocas anteriores à civilização da técnica e ao domínio do relativismo e da superficialidade, as pessoas chegavam a alcançar uma robustez e segurança de espírito da qual é difícil fazer ideia. E o ponto de partida se encontrava numa infância na qual o senso do ser e dos seus transcendentais era desenvolvido natural e paulatinamente, servindo de farol para toda uma vida alicerçada no senso comum.

Mas ainda agora é possível, com muito esforço e boa orientação, restaurar esse senso, do qual dependem uma inteligência, uma vontade e uma sensibilidade bem constituídas.

Voltar àquele primeiro olhar límpido e inocente da criança nos seus primeiros contatos com o mundo é, do ponto de vista natural, a única maneira de atingir tal fim, impedindo que nossa inteligência soçobre no meio do caos moderno, e, pelo contrário, subjugue-o, discirna-o e contribua para mudar o rumo das coisas.

De igual ou maior importância é o dever de todo adulto de proteger, favorecer e guiar o desenvolvimento psicológico da criança na fidelidade ao primeiro olhar.

Com São Tomás, Garrigou-Lagrange afirma a similitude entre “o primeiro olhar intelectual de uma criança e, no outro extremo da existência, a contemplação simples do ancião que descobriu o verdadeiro sentido e o preço da vida”.[2]

Em resumo, a fidelidade ao primeiro olhar conduz à contemplação. Nem o burburinho das atividades, o convívio às vezes conflituoso, a turbulência intelectual, nem os tropeços, impedirão alcançar esse píncaro. O olhar límpido e fortalecido não sucumbe às desilusões, aos dramas e aos obstáculos, mas vive na paz constante.


[1]              Garrigou-Lagrange, Réginald. El Sentido Común, la Filosofia del ser y las fórmulas dogmáticas. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1944. p. 329-350.

[2]              Ibidem, p. 329.

A obrigação de guardar o segredo

Pe. Caio Newton Fonseca, EP

Por direito natural, de si, há obrigação de guardar, de não revelar qualquer espécie de segredos. Porém, esta obrigatoriedade admite graus.

O segredo natural em coisa grave obriga de si sub gravi et ex iustitia. Por isso quem extorquiu de outrem um segredo, por via dolosa ou culposa, está obrigado a reparar todo o dano, seja com relação à fama lesada, seja com relação a eventuais danos patrimoniais, posto que estes danos fossem previstos pelo menos em confuso.

Assim, revelar ou divulgar um segredo natural é, por si, pecado grave.

O segredo prometido obriga como qualquer promessa. A gravidade e a obrigatoriedade se deduzem do ânimo com que foi feita a promessa e da extensão das obrigações que se quis assumir. Portanto, revelar um segredo meramente prometido, por si, ordinariamente não obriga senão sub levi. Porém, conforme o caso, pode chegar a ser grave.

O segredo confiado obriga, por justiça e por si, sub gravi, seja porque baseado num contrato ou num quase-contrato, seja porque ordinariamente é de notável interesse para o bem público que seja fielmente mantido. Portanto, obriga mais gravemente do que o segredo natural e o segredo prometido.

Como foi dito, a obrigação dos diversos segredos é diversa. Como regra geral, pode-se considerar que o segredo obriga segundo a quantidade do dano que se faz injustamente ou ao bem público ou ao bem privado, consequente à violação. (Cf. PRÜMMER-MÜNCH, op. cit., II, pp. 177-179; GUZZETTI, in Enciclopedia Cattolica, XI, col. 255).

Liberdade e graça no homem ferido pelo pecado

Pe. Antônio Guerra, EP

Quem pode entender o pecado?”[1] Santo Agostinho comentava a ausência da inteligibilidade que existe no pecado

“Os delitos, de fato, quem os compreende? Pai, perdoa-os porque não sabem o que fazem. Por isto, disse, o servo é aquele que conserva essa doçura, suavidade de caridade e amor pela unidade. Mas eu mesmo que a conservo, ainda te peço, pois os delitos quem os compreende?”. [2]

O pecado é algo não inteligível e como tal, contrário à natureza inteligente. Nele muitas vezes encontramos esta procura da suavidade do deleite, como diz o Hiponense. Entretanto, esta é contrária à verdadeira suavidade que se fala na Dignitatis Humanae, com a qual a providência divina faz com que o homem: “possa conhecer cada vez mais a verdade imutável[3]. Mas a falsa suavidade que se encontra na transgressão da Lei Eterna turba os olhos que são feitos para a Verdade. Deteriorada a inteligência pela vontade pecaminosa, o homem perde a consciência reta.

A verdadeira liberdade ― afirmada na Gaudim et Spes ― é: “um sinal altíssimo da imagem divina”[4] impresso no homem que é criado à imagem e semelhança de Deus. Da liberdade provém a dignidade, quando: “libertando-se da escravidão das paixões, tende para o fim pela livre escolha do bem”[5].

Porém, ferida a alma pelo pecado voluntariamente cometido, o homem somente consegue realizar tal libertação das paixões com a ajuda da divina graça. Não esqueçamos que na DH, o Concílio cita como fonte os textos de São Tomás, nos quais fica claro que: “devido à corrupção da natureza se inclina ao bem privado, enquanto não seja curado pela graça divina[6].

O mesmo repete a Gaudium et Spes: “A liberdade do homem, ferida pelo pecado, só com a ajuda da graça divina pode tornar plenamente efetiva esta orientação para Deus[7].


[1] Salmo 18, 13.

[2] Santo Agostinho, Super Salmos, 18.

[3] DH 3.

[4] Gaudium et spes, 17: AAS 58 (1966) 1037.

[5] Ibidem.

[6] Suma Teológica I-II q. 109 a. 3 co.: “propter corruptionem na­tu­rae sequitur bonum privatum, nisi sanetur per gratiam Dei”.

[7] Gaudium et spes, 17: AAS 58 (1966) 1037.

Os apetites humanos

Mons. João S. Clá Dias, EP

Todas as coisas apetecem o bem, diz São Tomás, até mesmo as que carecem de conhecimento.[1] O Aquinate assim define essa natural propensão dos seres:

“Por isso, já que todas as coisas estão ordenadas e dirigidas por Deus ao bem, e em cada uma delas há um princípio pelo qual elas tendem ao fim, como dirigindo-se ao fim, deve-se dizer que todas as coisas naturais apetecem o bem por natureza”.[2]

Esse primeiro tipo de inclinação — chamado apetite natural — é uma tendência sempre atual, que relaciona uma forma a seu bem ou à sua perfeição. Por exemplo, um corpo pesado inclina-se de maneira constante para baixo. O homem, como criatura que é, compartilha o apetite natural com todos os outros seres. São Tomás afirma ainda:

“A ordem dos preceitos da lei natural é conforme à ordem das inclinações naturais. Pois a primeira inclinação que existe no homem, de acordo com a natureza que ele tem de comum com todas as substâncias, é para o bem, no sentido de que toda substância procura a conservação do seu ser, segundo sua natureza”.[3]

Conforme Frei Abelardo Lobato, O.P., “o apetite natural se manifesta de modo magnífico na lex naturalis do homem, uma esplêndida participação da lei eterna”.[4] E acrescenta:

“Tomás de Aquino colocou em relevo de muitos modos tudo o que é conatural ao homem. A natureza compreende a totalidade, é determinada pela espécie, e tem um peso ontológico que se inclina para os bens convenientes a ela, com anterioridade aos dinamismos das potências. Na esfera do conhecer há que se admitir conhecimentos por conaturalidade e por instinto, que brotam espontaneamente do espírito do homem”.[5]

Note-se que tal conhecimento por conaturalidade, por se tratar de um conhecimento instintivo prévio, reveste-se da maior importância na determinação dos atos humanos. Lobato afirma que esse apetite natural “tende para o bem de modo determinado e bem seguro”.[6]

Além do apetite natural, os animais dispõem ainda do apetite sensitivo, ao qual, no caso do homem, acrescenta-se o apetite racional. Estes dois apetites supõem o conhecimento sensível e o intelectual.

Segundo Lobato, este é um dos pontos fundamentais da antropologia tomista — os três tipos de apetites do homem — que constituem justamente a primeira base, o primeiro substrato da tendência e movimento do ser humano para o bem.

Sendo passivas, as potências apetitivas se distinguem pelos princípios motores que as determinam. O fato de o objeto desejado ser apreendido pelo sentido ou pela inteligência não constitui uma circunstância puramente acidental: a afetividade sensível orienta-se para os bens particulares, considerados como tais; o apetite racional — a vontade — sempre visará a esses bens particulares sob a razão universal de bem. Assim como a atividade da razão tende à verdade, a da vontade tende para o bem.

Depois de lembrar a “persistência e determinação” dos apetites naturais, Lobato diz que isso só é compreensível se for referido ao próprio Autor da natureza,

“que deu a cada ser uma tendência para os bens que lhe convêm. Daí procede o ímpeto de conservar, manter e acrescentar o próprio ser. No homem, o apetite natural está na base de todas as suas inclinações. Enquanto é homo viator, é homem de desejos”.[7]

O apetite sensitivo procede da forma e do conhecimento sensível, sendo comum aos homens e aos animais irracionais. A atividade sensitiva humana conta com duas potências distintas, pelas quais tende ao bem, quando este se apresenta simplesmente como tal (bonum simpliciter), ou se dispõe ao esforço para obtê-lo, quando é preciso vencer dificuldades e obstáculos (bonum arduum). No primeiro caso temos o apetite concupiscível; no segundo, o irascível. O mal sensível também é objeto das potências sensitivas, causa repugnância à concuspicência e provoca no irascível a disposição para a luta, a fim de evitá-lo.

De modo sucinto, Lobato define o apetite sensitivo como sendo

“o movimento do sujeito em direção aos bens concretos, que o conhecimento descobriu na esfera do sensível, nos entes reais, e os apetece aqui e agora como algo que lhe agrada, que lhe é útil, ou algum mal de que ele foge porque se lhe mostra nocivo”.[8]

Os atos do apetite sensitivo (concupiscíveis e irascíveis) são acompanhados de modificações corporais. Costuma-se denominá-los paixões, designando uma tendência ou um movimento de caráter ativo, ou uma afeição aparentemente passiva. Em si mesmas, as paixões não são boas nem más. No homem elas recebem uma influência da razão e da vontade. Na medida em que essa influência seja voluntária e livre, haverá bondade ou malícia moral.

Entre as principais paixões, as pertencentes ao concupiscível são a alegria, a tristeza, o amor e o ódio. Ao irascível pertencem a audácia, o temor, a esperança e semelhantes.[9]

O apetite irascível apela para faculdades mais intelectivas, diferentemente do apetite concupiscível; para desejar bastam sensações ou imagens; para se encolerizar é preciso tomar consciência das relações abstratas ao alcance apenas dos sentidos internos superiores, a cogitativa e a memória, e envolver mais a razão.

As tendências estáveis adquiridas por repetição de atos são chamadas hábitos. Estes podem ser maus (vícios), ou bons (virtudes).

Acima do apetite sensitivo, coloca-se o apetite racional, chamado também de vontade, sobre o qual falaremos mais adiante.


[1] De Veritate, q. 22, a. 1: “Dicendum quod omnia bonum appetunt, non solum habentia cognitionem sed etiam quae sunt cognitionis expertia”.

[2] De Veritate, q. 22, a. 1.

[3] S. Th. I-II, q. 94, a. 2. “Inest enim primo inclinatio homini ad bonum secundum naturam in qua communicat cum omnibus substantiis: prout scilicet quaelibet substantia appetit conservationem sui esse secundum suam naturam”.

[4] LOBATO, Abelardo. El hombre en cuerpo y alma. Tratado I: El cuerpo humano. In: El Pensamiento de Tomás de Aquino para el hombre de Hoy. Vol. 1. Valencia: Edicep, 1994. p. 212.

[5] Ibidem, p. 212-213.

[6] Ibidem, p. 213.

[7] Loc. cit.

[8] Loc. cit.

[9] Cf. S. Th. I-II, q. 23, a. 1.

A moral ideal convive com a razão e a lei inscrita no coração

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Com certa força, reivindica-se hoje a aprovação de certas leis cuja índole a Igreja desaprova, o que constitui cada vez mais um desafio. Na verdade, o pós-modernismo tem tendência a desprezar as raízes da sua própria civilização, recusar qualquer hierarquia e suas representações e distanciar-se do Absoluto. Com reflexos no âmbito moral, este posicionamento fez com alguns pensadores pugnem por uma ética que não obrigue o legislador a ser influenciado por uma moral que se apoia na lei natural, a fim de unir os homens e fazê-los viver como se Deus não existisse.[1]

Entretanto, Sergio Belardinelli repara que “o esforço moderno de construir uma sociedade justa, feita de homens capazes de reconhecerem-se reciprocamente como se Deus não existisse, tem-se revelado um desastre”.[2] E adverte que pensar um mundo sem Deus, poderá significar em descaracterização e comprometimento do próprio homem. Flavia Monceri vai mais longe e pensa mesmo chamar ao diálogo aqueles que, sendo contrários à Igreja, possuem a responsabilidade histórica por tomarem certas posições filosóficas que resultaram no secularismo e no relativismo e consequente deriva niquilista da sociedade ocidental.[3]

Não é qualquer moral amiga da pessoa humana, conforme ensina Bento XVI na Caritas in Veritate (n. 45). É necessária uma moral descomprometida com ideologias e divergências, que não se submeta a tendências relativistas e transitórias de tempo e de lugar, mas que possa invariavelmente considerar o homem como imagem de Deus (Gn 1, 27). Esta moral não prescinde da razão, mas convive continuamente com Ela, tonificando-se por um lado e purificando-a por outro, a fim de que não se sobreponham interesses pessoais, mas subsista “a dignidade inviolável da pessoa humana e também o valor transcendente das normas morais naturais” (Caritas in Veritate, n. 45).

Em nossos dias, partindo da Revelação, a Igreja continua a provocar aquelas opções humanas redutoras do ser a utilitarismos hedonistas, egoístas e materialistas. Ela observa, julga e interage, colabora e intervém, para garantir que as perenes referências éticas não desrespeitem os mais básicos direitos humanos. Cria espaços para denunciar sempre que são feridos os princípios mais elementares da liberdade e da legítima autonomia institucional, ou mesmo quando certas decisões, apoiadas por massas equivocadas, optam por posições contrárias à dignidade e existência do ser, ou corrompem a recta razão e aquela ordem cujas referências nos foram deixadas pela Sabedoria Eterna e Encarnada.


[1] Cf. LECALDANO, Eugenio (2008). Un’etica senza Dio. Roma: Laterza. Também HOTTOIS, Gilbert (2005). De la Renaissance à la Postmodernité: Une histoire de la philosophie moderne et contemporaine. 3. ed.  Bruxelles: De Boeck Supérieur.

[2] D’AGOSTINO, Francesco et all. Cinisello Balsamo (It): San Paolo Edizioni. p. 146

[3] Idem.

O homem deve voltar-se para uma realidade que o transcende

Mons. João S. Clá Dias, EP

Deixou Deus a lei natural vincada de forma indelével no coração do homem, para que ela sempre lhe lembrasse o bem a ser praticado e o mal a ser evitado. Esta lei, todavia, não possui a eficácia de outrora sobre o livre-arbítrio do homem que, quando o emprega mal, a pode desprezar. Consentindo em realizar atos diferentes dos indicados pela própria consciência inocente e reta, ele busca justificá-los com falsos argumentos, a fim de encontrar abertas diante de si as portas para realizar novas ações contrárias à Lei.

Ao abraçar essa via, a criatura racional paulatina e progressivamente obnubila seu senso moral até reduzir ao mínimo sua noção de bem e de mal, assim como a dos outros transcendentais do ser. Trata-se de um dos maiores infortúnios que pode suceder ao homem, pois como consequência, passará a ostentar um “coração de pedra” (Ez 11, 19), no qual quase não mais se notarão as amorosas marcas da Lei impressas pelo dedo de Deus.

Com efeito, é inegável ter havido no século XX um vertiginoso progresso em todos os campos do conhecimento humano, do qual não ficou excluído o da filosofia. Empenhado este ramo do saber na busca da verdade, acabou, em nossa época, por concentrar sua atenção sobre o homem, favorecendo de alguma forma o progresso da cultura.

No entanto, como assinalou o Papa João Paulo II na Encíclica Fides et Ratio, a razão, por se ter voltado demasiadamente para a investigação do homem, “parece ter-se esquecido de que este é sempre chamado a voltar-se também para uma realidade que o transcende” (n. 5).

Cabe à Igreja, depositária da Revelação de Jesus Cristo, recordar ao homem moderno a necessidade da reflexão sobre a verdade, tarefa que o Papa João Paulo II retomou na sua mencionada encíclica. Ao fazê-lo, o Pontífice apontou também alguns desvios do pensamento que caracterizam certas correntes contemporâneas:

“A razão, sob o peso de tanto saber, em vez de exprimir melhor a tensão para a verdade, curvou-se sobre si mesma, tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar e de ousar atingir a verdade […]. Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo. […] Ganharam relevo diversas doutrinas que tendem a desvalorizar até mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter alcançado. […] Neste horizonte, tudo fica reduzido a mera opinião” (Idem).

Já no meio-dia do século XX, o Concílio Vaticano II uma vez mais insistia na necessidade de que o mundo hodierno endireitasse suas vias se quisesse colher os frutos de um verdadeiro progresso cultural, pois este, furtando-se à solicitude retificadora da Igreja, acabaria por se desviar de sua própria finalidade que é a elevação do espírito humano:

“A boa nova de Cristo renova continuamente a vida e a cultura do homem decaído e combate e elimina os erros e males nascidos da permanente sedução e ameaça do pecado. Purifica sem cessar e eleva os costumes dos povos. Fecunda como que por dentro, com os tesouros do alto, as qualidades de espírito e os dotes de todos os povos e tempos; fortifica-os, aperfeiçoa-os e restaura-os em Cristo. Deste modo, a Igreja, realizando a própria missão, já com isso estimula e ajuda a cultura humana, e com a sua atividade, incluindo a liturgia, educa o homem à liberdade interior” (Gaudium et Spes, n. 58).

A verdade deve ser buscada na Igreja de Cristo

Pe. Antônio Guerra, EP

A Verdade que o homem procura por conaturalidade ― e também por obrigação moral ― não pode ser procurada em qualquer lugar, pois não a encontraria. A verdade deve ser procurada onde ela se encontra. Ela é única, insubstituível, e deve corresponder aos anseios mais profundos do ser humano. Depois da Encarnação do Verbo, a verdade deve ser buscada na Igreja fundada por Jesus Cristo Nosso Senhor. Ele que é a Verdade, deixou-nos a Igreja como sacramento de santificação, a qual, como mãe amorosa e paciente, ensina o homem a chegar até a Verdade íntegra e incomensurável, Jesus, filho de Maria.

Conhecida a Verdade em sua Igreja, o homem tem o direito e a obrigação de abraçá-la e segui-la. Entretanto, deve-se recordar as dificuldades decorrentes da natureza limitada do homem e dos desfiguramentos oriundos do pecado original. Já antes da queda de nossos primeiros pais, o homem não conseguiria chegar totalmente a esse conhecimento da verdade a não ser com a ajuda divina. São Tomás é muito claro ao tratar da hipótese de o homem ter sido criado em estado de pura natureza, sem a graça

O homem em estado de integridade ordenava o amor de si mesmo ao amor de Deus como seu fim, e outro tanto com o amor que tinha às demais coisas. E assim amava a Deus mais que a si mesmo e por cima de tudo. Mas no estado de natureza decaída o homem fraqueja neste terreno, porque o apetite da vontade racional, devido à corrupção da natureza, se inclina ao bem privado, enquanto não seja curado pela graça divina. Devemos, pois, concluir que o homem, em estado de integridade, não necessitava de um dom gratuito acrescido aos bens de sua natureza para amar a Deus sobre todas as coisas, ainda que necessitasse do impulso da moção divina. Mas no estado de corrupção necessita o homem, inclusive para lograr este amor, do auxílio da graça que cure sua natureza[1].

Nessa hipótese que o homem tivesse sido criado sem a graça ― a qual lhe tivesse sido concedida depois ― “em estado de natureza íntegra” não precisava da graça para amar a Deus mais do que a si mesmo, pois esse amor, já o vimos, é conatural ao homem.

Ele precisava, porém, do impulso da moção divina”[2] para chegar a amar ao Criador mais do que a si mesmo. Esse amor a Deus sobre todas as coisas o homem o praticava sem o auxílio da graça. Bastava a ele certo auxílio de Deus.

Porém, no estado de natureza corrompida pelo pecado original, o homem, para ter esse amor a Deus mais do que a si mesmo, precisa do auxílio da graça, que: “cure sua natureza[3]. Sem a divina graça o homem (batizado ou não) muito dificilmente (quiçá seja impossível) encontrará em si forças para procurar a Verdade e amar inteiramente o Bem.


[1] Suma Teológica I-II q. 109, a. 3 co.

[2] Suma Teológica I-II q. 109, a.3 co.

[3] Ibidem.