A lei conforme a razão, gravada no coração humano

Diác. Leopoldo Werner, EPint-Basilica

Existem normas de caráter universal
Já na Antiguidade, Cícero escreveu de modo preciso e conciso:
A razão reta, conforme a natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo senado; não há que procurar para ela outro comentador nem intérprete; não é uma lei em Roma e outra em Atenas, uma antes e outra depois, mas una, sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os tempos; uno será sempre o seu imperador e mestre, que é Deus, seu inventor, sancionador e publicador; não podendo o homem desconhecê-la sem renegar-se a si mesmo, sem despojar-se do seu caráter humano e sem atrair sobre si a mais cruel expiação, embora tenha conseguido evitar todos os outros suplícios. (CÍCERO, 2009: 53).
Nesta definição de Cícero devemos reter as seguintes noções: há uma lei que é conforme com a razão, gravada no coração humano, imutável, que prescreve o bem e proíbe o mal. Esta lei vale para todos os povos e em todos os lugares. Não varia com o passar do tempo, nem pode ser derrogada ou anulada pela vontade do povo e pelo arbítrio da autoridade.
Há, portanto, uma lei que provém da própria natureza do homem, dirigindo-o para seu fim, que é o bem. Chega-se a ela pela razão natural. Esta lei chama-se lei natural, para distinguir-se da lei sobrenatural, que é atingível pela fé. E por esta chega-se ao conhecimento de Deus e das coisas divinas. Há ainda a lei positiva, que é promulgada pela autoridade competente e obriga em razão da sua promulgação.
Santo Agostinho, Bispo de Hipona, defende a existência de normas de caráter universal. Utiliza a expressão “lei eterna” para se referir à lei moral natural que se encontra gravada no coração de todos os homens. A lei eterna manda conservar a ordem natural e proíbe perturbá-la. As leis temporais, ou civis, devem fundar-se nas leis eternas, respeitando-as.

Emana da Lei Eterna
São Tomás de Aquino, conhecido também como o Doutor Angélico, advoga a existência de uma lei universal que regula o comportamento de todos os seres, incluindo o comportamento humano.
Entre as demais, a criatura racional está sujeita à providência divina de um modo mais excelente, enquanto a mesma se torna participante da providência, provendo a si mesma e aos outros. Portanto, nela mesma é participada a razão eterna, por meio da qual tem a inclinação natural ao devido ato e fim. E tal participação da lei eterna na criatura racional se chama lei natural. (AQUINO, 2005, Vol. IV: 531).
Enquanto ordenador da conduta humana, a Lei Natural está em harmonia com toda ordem do universo, baseada, em última instância, na Lei Eterna ou Divina — um reflexo da sabedoria divina que dispôs todas as coisas para um fim determinado, que é a sua própria glória. É por isso que São Tomás afirma:
Portanto, como a lei eterna é a razão de governo no governo supremo, é necessário que todas as razões de governo que estão nos governantes inferiores derivem da lei eterna. (AQUINO, 2005, Vol. IV: 551).
Uma lei inscrita no íntimo dos corações, imagem da Sabedoria de Deus, é o que o papa João Paulo II ministra a respeito da lei natural ensinada pela Igreja:
A Igreja referiu-se frequentemente à doutrina tomista da lei natural, assumindo-a no próprio ensinamento moral. Assim, o meu venerado predecessor Leão XIII sublinhou a essencial subordinação da razão e da lei humana à Sabedoria de Deus e à Sua lei. Depois de dizer que “a lei natural está inscrita e esculpida no coração de todos e de cada um dos homens, visto que esta não é mais do que a mesma razão humana enquanto nos ordena fazer o bem e intima a não pecar”. Leão XIII remete para a “razão mais elevada” do divino Legislador: “Mas esta prescrição da razão humana não poderia ter força de lei, se não fosse a voz e a intérprete de uma razão mais alta, à qual o nosso espírito e a nossa liberdade devem estar submetidos”. De fato, a força da lei reside na sua autoridade de impor deveres, conferir direitos e aplicar a sanção a certos comportamentos: “Ora, nada disso poderia existir no homem, se fosse ele mesmo a estipular, como legislador supremo, a norma das suas ações”.
E conclui: “Daí decorre que a lei natural é a mesma lei eterna, inscrita nos seres dotados de razão, que os inclina para o ato e o fim que lhes convém; ela é a própria razão eterna do Criador e governador do universo”. (JOÃO PAULO II, 1993: 44).
Se não houvesse essa luz infundida em nossa alma por Deus, quais seriam as relações dos homens entre si, ou mesmo a relação consigo mesmo? É urgente reacender essa luz nos homens para encontrar o farol que é o guia dos homens e a luz das nações. É o ensinamento de São Tomás de Aquino, assumido e relembrado pelo Papa João Paulo II:
[A lei natural] não é mais do que a luz da inteligência infundida por Deus em nós. Graças a ela, conhecemos o que se deve cumprir e o que se deve evitar. Esta luz e esta lei, Deus as concedeu na criação. (apud JOÃO PAULO II, 1993: 44).
Estas verdades parecem tão claras e evidentes que foram sempre aceitas como balizas para o pensamento humano. Leão XIII (1888) ensinou mais de uma vez essa doutrina tão própria a solidificar os fundamentos da sociedade humana em seu relacionamento mútuo. A razão humana é intérprete e voz de uma razão muito mais alta, que é a do próprio Deus, ao qual devem estar submetidos nosso entendimento e nossa vontade. A lei é reflexo de uma lei eterna que existe na mente da primeira Causa, o Criador e mantenedor do universo e de tudo que nele existe.
Tal é, acima de todas, a lei natural que está escrita e gravada no coração de cada homem, porque é a razão mesma do homem que lhe ordena a prática do bem e lhe interdiz o pecado. Mas esta prescrição da razão humana não poderia ter força de lei, se ela não fosse órgão e intérprete duma razão mais alta à qual o nosso espírito e a nossa liberdade devem obediência. Sendo, na verdade, a missão da lei impor deveres e atribuir direitos, a lei assenta completamente sobre a autoridade, isto é, sobre um poder verdadeiramente capaz de estabelecer esses deveres e definir esses direitos, capaz também de sancionar as suas ordens por castigos e recompensas; coisas todas que não poderiam evidentemente existir no homem, se ele desse a si próprio, como legislador supremo, a regra dos seus próprios atos. Disto se conclui, pois, que a lei natural outra coisa não é senão a lei eterna gravada nos seres dotados de razão, inclinando-os para o ato e o fim que lhes convenha; e este não é senão a razão eterna de Deus, Criador e Governador do mundo. (Leão XIII, 1888: 6).

Base moral para a construção da sociedade
O Catecismo da Igreja Católica ensina que:
A lei natural exprime o sentido moral original, que permite ao homem discernir, pela razão, o que é o bem e o mal, a verdade e a mentira. A lei “divina e natural” mostra ao homem o caminho a seguir para praticar o bem e atingir seu fim. (CIC, 2001: 516).
É por isso que o papa João Paulo II insistiu sobre a necessidade da recuperação da doutrina da Lei Natural, como a fonte de certeza moral para toda a humanidade. Por isso, ele afirma que a lei natural:
Pertence ao grande patrimônio da sabedoria humana, que a Revelação, com sua luz, tem contribuído para purificar e desenvolver ulteriormente. A lei natural, acessível por isso mesma a toda criatura racional, indica as normas primeiras e essenciais que regulam a vida moral. (JOÃO PAULO II, 2004: 5).
A lei natural é o fundamento sólido do edifício das regras morais e a base moral para construção da sociedade. É o que ensina o Catecismo da Igreja Católica a este respeito:
Obra excelente do Criador, a lei natural fornece os fundamentos sólidos sobre os quais pode o homem construir o edifício das regras morais que orientarão suas opções. Ela assenta igualmente a base moral indispensável para a construção da comunidade dos homens. Proporciona, enfim, a base necessária à lei civil que se relaciona com ela, seja por uma reflexão que tira as conclusões de seus princípios, seja por adições de natureza positiva e jurídica. (CIC, 2001: 518).
A natureza da pessoa humana fica assim atendida quando atinge seu fim; seus deveres e seus direitos são reconhecidos plenamente. E ela se sente dignificada na sua pessoa, como um ente racional, dotada de todas as prerrogativas que lhe garantem uma estabilidade de vida que condiz com a sua condição humana. A este respeito, corroboram as palavras de João Paulo II ao discorrer sobre tema tão importante:
Pode-se agora compreender o verdadeiro significado da lei natural: ela refere-se à natureza própria e original do homem, à “natureza da pessoa humana”, que é a pessoa mesma na unidade de alma e corpo, na unidade das suas inclinações tanto de ordem espiritual como biológica, e de todas as outras características específicas, necessárias para a obtenção do seu fim. “A lei moral natural exprime e prescreve as finalidades, os direitos e os deveres que se fundamentam sobre a natureza corporal e espiritual da pessoa humana. Portanto, não pode ser concebida como uma tendência normativa meramente biológica, mas deve ser definida como a ordem racional segundo a qual o homem é chamado pelo Criador a dirigir e regular a sua vida e os seus atos e, particularmente, a usar e dispor do próprio corpo.” (JOÃO PAULO II, 1993: 50)

Tende a unir todos os homens
É necessário, pois, contribuirmos para solidificação de princípios estáveis, imutáveis, de conduta de todos os seres humanos entre si, para haver a fecunda e duradoura prosperidade e a paz entre os homens, tanto no nível de suas próprias comunidades como também da convivência fraterna universal:
Convido-vos a promover iniciativas oportunas com a finalidade de contribuir para uma renovação construtiva da doutrina da lei moral natural, buscando também convergências com representantes das diversas confissões, religiões e culturas. (JOÃO PAULO II, 2004: 5)
A lei natural se estende além das fronteiras da própria personalidade humana e tende, pela sua unidade e universalidade, a unir todos os povos em busca de um bem comum, que é a felicidade e a prosperidade de todas as nações. Esta lei é a certeza da amizade entre as nações e um pacto de aliança entre os indivíduos que procuram um alicerce firme para uma convivência pacífica, duradoura e próspera. Por isso, a lei natural deve ser o fundamento para as relações pacíficas entre as diversas nações.
Embora o gênero humano, por disposição de ordem natural estabelecida por Deus, esteja dividido em grupos sociais, nações ou Estados, independentes uns dos outros, no que respeita ao modo de organizar e dirigir a sua vida interna, acha-se, contudo, ligado por recíprocos vínculos morais e jurídicos, numa grande comunidade, organizada para o bem de todos os povos e regulada por leis especiais que tutelam a sua unidade e promovem a sua prosperidade.
Ora, não há quem não perceba que a autonomia absoluta do Estado põe-se em aberto contraste com esta lei imanente e natural, ou melhor, nega-a radicalmente, deixando à mercê da vontade dos governantes a estabilidade das relações internacionais e tirando a possibilidade de uma verdadeira união e fecunda colaboração no que respeita ao interesse geral. Porque, veneráveis irmãos, para a existência de contatos harmônicos e duradouros e de relações frutuosas, é indispensável que os povos reconheçam e observem aqueles princípios de direito natural internacional, que regulam o seu normal funcionamento e desenvolvimento. Tais princípios exigem o respeito dos relativos direitos à independência, à vida e à possibilidade de um desenvolvimento progressivo no caminho da civilização; exigem, além disso, a fidelidade aos pactos estipulados e ratificados segundo as normas do direito das gentes. (PIO XII, 1939: 54)
A lei natural, inserida na sua natureza, atende aos anseios mais internos do coração humano e delineia claramente as relações com seus semelhantes, tornando o convívio humano digno de ser vivido em todos os níveis da sociedade humana, e lança uma base firme para um diálogo fecundo com todos os homens de boa vontade. Sobre isso, no seu discurso aos membros da Comissão Teológica Internacional, assim se expressou o papa Bento XVI a respeito da Lei Natural:
Com esta doutrina, alcançam-se duas finalidades essenciais: por um lado, compreende-se que o conteúdo ético da fé cristã não constitui um delineamento ditado à consciência do homem a partir de fora, mas uma norma que encontra o seu fundamento na própria natureza humana; por outro, partindo da lei natural por si mesma acessível a todas as criaturas racionais, lança-se com ela a base para entrar em diálogo com todos os homens de boa vontade e, de modo mais geral, com a sociedade civil e secular. (BENTO XVI, 2007a)
A mesma idéia é repetida com outras palavras pelo Papa:
A lei natural, escrita por Deus na consciência humana, é um denominador comum a todos os homens e a todos os povos; é um guia universal que todos podem conhecer e em cuja base todos se podem compreender. (BENTO XVI, 2008: 1)
Antes de prosseguirmos com nosso estudo, é interessante ver como os conceitos de ordem, paz e harmonia são conexos com o tema do direito natural que estamos desenvolvendo. Vejamos o que o iminente pensador católico Plinio Corrêa de Oliveira escreveu sobre este interessante assunto.
Em artigo publicado no Catolicismo, o catedrático brasileiro começa por mostrar quanto a ordem, a paz e a harmonia são noções que têm relação direta com a pessoa humana bem formada, são valores que devem ser procurados numa sociedade bem constituída. A partir desses conceitos universais, pode-se ter uma ideia da perfeição de uma organização social baseada na lei natural, reflexo de sua natureza e fim.
A ordem, a paz, a harmonia, são características essenciais de toda a alma bem formada, de toda a sociedade humana bem constituída. Em certo sentido, são valores que se confundem com a própria noção de perfeição.
Todo o ser tem um fim próprio, e uma natureza adequada à obtenção deste fim. Assim, uma peça de relógio tem fim próprio, e, por sua forma e composição, é adequada à realização deste fim. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1951: 1)

Para que uma sociedade esteja em ordem, é necessário que seus componentes ajam de acordo com a natureza mais profunda do seu ser e o fim da mesma sociedade, que é a vida em comum, harmonizados todos em ordem à felicidade geral. Neste sentido, o autor continua:

A ordem é a disposição das coisas, segundo sua natureza. Assim, um relógio está em ordem quando todas as suas peças estão ordenadas segundo a natureza e o fim que lhes é próprio. Diz-se que há ordem no universo sideral porque todos os corpos celestes estão ordenados segundo sua natureza e fim.
Existe harmonia quando as relações entre dois seres são conformes à natureza e o fim de cada qual. A harmonia é o operar das coisas umas em relação às outras, segundo a ordem. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1951: 1)

Dessa harmonia em torno de um objetivo comum, segundo a ordem posta por Deus na natureza humana, gera a tranquilidade social e paz entre os indivíduos e as comunidades. Comunidades essas que projetam e se expandem, desde as mais próximas de cada um até os mais vastos agrupamentos nacionais e internacionais.

A ordem engendra a tranquilidade. A tranquilidade da ordem é a paz. Não é qualquer tranquilidade que merece ser chamada paz mas apenas a que resulta da ordem. A paz de consciência é a tranquilidade da consciência reta: não pode confundir-se com o letargo da consciência embotada. O bem estar orgânico produz uma sensação de paz que não pode ser confundida com a inércia do estado de coma. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1951: 1)

A lei natural deve ser compreendida na sua natureza e fim. Pois dessa compreensão é que se entenderá a profundidade e sabedoria de Deus que não deixou o homem a mercê dos vagalhões de suas paixões, mas lhe deu os meios necessários para atingir seu fim e alcançar a perfeição e a paz.
E, logo a seguir, no mesmo estudo, mostra como a posse da verdade religiosa é a condição essencial da ordem, da harmonia, da paz e da perfeição:
Quando um ser está inteiramente disposto segundo sua natureza, está em estado de perfeição. Assim, uma pessoa com grande capacidade de estudo, grande desejo de estudar, posta em uma Universidade em que haja todos os meios para fazer os estudos que deseja, está posta, do ponto de vista dos estudos, em condições perfeitas.
Quando as atividades de um ser são inteiramente conformes à sua natureza, e tendem inteiramente para seu fim, estas atividades são, de algum modo, perfeitas. Assim, a trajetória dos astros é perfeita, porque corresponde inteiramente à natureza e ao fim de cada qual.
Quando as condições em que um ser se encontra são perfeitas, suas operações o são também, e ele tenderá necessariamente para o seu fim, com o máximo da constância, do vigor e do acerto. Assim, se um homem está em condições perfeitas para andar, isto é, sabe, quer e pode andar, andará de modo irrepreensível.
O verdadeiro conhecimento do que seja a perfeição do homem e das sociedades depende de uma noção exata sobre a natureza e fim do homem.
O acerto, a fecundidade, o esplendor das ações humanas, quer individuais, quer sociais, também está na dependência do conhecimento de nossa natureza e fim.
Em outros termos, a posse da verdade religiosa é a condição essencial da ordem, da harmonia, da paz e da perfeição. (CORREA DE OLIVEIRA, 1951: 1)

A promoção da cultura católica e a Consecratio Mundi

Mons. João Clá Dias, EPprocissao

O novo tipo de humanismo que nega a Deus e a religião,1 engendrado pelo secularismo atual, afeta uma boa parcela do mundo contemporâneo, bem como suas mais diversas atividades. Torna-se indispensável, por essa razão, que a influência da Igreja volte a permear o âmago da sociedade e da cultura. Eis a tarefa designada pelos Papas como a “Consecratio Mundi”, ou seja, influenciar as realidades temporais com o espírito cristão, uma verdadeira sacralização do mundo. São muito expressivas as palavras de Pio XII a esse respeito: “As relações entre a Igreja e o mundo exigem a intervenção dos apóstolos leigos”. Essa “é, no essencial, obra dos próprios leigos, de homens que estão intimamente entremeados à vida econômica e social, que participam do governo e das assembleias legislativas”. 2
Em numerosas ocasiões, o Servo de Deus João Paulo II destacou a importância da evangelização nos meios culturais. Através da Exortação Apostólica Christifidelis laici aquele saudoso Papa abordou de modo particular a sua urgência pastoral:

Perante o progresso de uma cultura que aparece divorciada não só da fé cristã mas até dos próprios valores humanos, bem como perante uma certa cultura científica e tecnológica incapaz de dar resposta à premente procura de verdade e de bem que arde no coração dos homens, a Igreja tem plena consciência da urgência pastoral de se dar à cultura uma atenção toda especial.

Por isso, a Igreja pede aos fiéis leigos que estejam presentes, em nome da coragem e da criatividade intelectual, nos lugares privilegiados da cultura, como são o mundo da escola e da universidade, os ambientes da investigação científica e técnica, os lugares da criação artística e da reflexão humanística. Tal presença tem como finalidade não só o reconhecimento e a eventual purificação dos elementos da cultura existente, criticamente avaliados, mas também a sua elevação, graças ao contributo das originais riquezas do Evangelho e da fé cristã (n. 44).

Com efeito, a “Consecratio Mundi” possui importância capital em ordem à salvação das almas e ao combate aos erros do secularismo. Uma evangelização eficaz não se pode limitar à sua mínima expressão, fazendo com que as pessoas peçam os Sacramentos e se arrependam de seus pecados à hora da morte, o que de si já seria uma conquista de inestimável valor.

Urge que os fiéis conformem suas existências às promessas do batismo. Mais que isso, é necessário que a vida, inclusive na sociedade temporal, seja uma preparação, um “noviciado” para a vida eterna.3 Para tanto, faz-se indispensável que a sociedade esteja impregnada do espírito cristão, de forma a facilitar a prática da virtude, pois, é esse o fim da vida em sociedade. 

A vontade de Deus com respeito ao mundo é que os homens, em boa harmonia, edifiquem a ordem temporal e a aperfeiçoem constantemente. Todas as realidades que constituem a ordem temporal — os bens da vida e da família, a cultura, os bens econômicos, as artes e profissões, as instituições políticas, as relações internacionais e outras semelhantes, bem como a sua evolução e progresso — não só são meios para o fim último do homem, mas possuem valor próprio, que lhes vem de Deus, quer consideradas em si mesmas, quer como partes da ordem temporal total: «E viu Deus todas as coisas que fizera, e eram todas muito boas» (Gn 1, 31). Esta bondade natural das coisas adquire uma dignidade especial pela sua relação com a pessoa humana, para cujo serviço foram criadas. Finalmente, aprouve a Deus reunir todas as coisas em Cristo, quer as naturais quer as sobrenaturais, «de modo que em todas Ele tenha o primado» (Col 1, 18) (AA, n.7).

in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 10, Jan-Mar 2010. p. 13-14.

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1 “A Igreja ensina que a vida terrena deve ser comparada a um noviciado. O noviço deve adquirir os conhecimentos e as virtudes que o tornem apto para a vida religiosa. O homem deve adquirir na vida terrena os conhecimentos e as virtudes que o tornem apto para o Céu” (CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Ministerialidade da ordem temporal em relação à Igreja. Artigo não publicado, 1950 (Arquivo pessoal do Autor).

2 A este respeito, ver tanto a Gaudium et Spes n. 7, quanto a Fides et Ratio n. 46.

3 Discurso aos participantes do II Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos, Documentos pontifícios, 2 ed. no. 127. Petrópolis: Vozes, 1960. p. 18.

A dimensão de justiça existente no mistério de salvação que é a Igreja

image1954_043_1Pe. Alex Barbosa de Brito, EP

A narração do Gênesis faz perceber, no ato mesmo da criação, Deus que ordena todos os seres à sua finalidade: os luzeiros a servir de sinal para marcar o tempo (Cf. Gn 1, 14-18); os animais e os vegetais, multiplicando-se segundo sua própria natureza (Cf. Gn 1, 24-25).

Santo Ambrósio nos explica:

 

Com efeito, a palavra de Deus correu por toda a criação na constituição do mundo e, no futuro, pela prescrição da lei, para que todas [as criaturas] viessem a ter uma sucessão conforme sua própria espécie e semelhança; assim, leão gera leão, tigre gera tigre, boi gera boi, cisne gera cisne, águia gera águia. Definitivamente, o preceito se enraizou para sempre na natureza, e por isso a terra não deixa de prestar obediência a sua função.[1]

E para o homem, imagem e semelhança do Criador, além da norma inscrita na sua própria consciência, Deus, “criando” um dos princípios de legalidade — nulla poena sine lege —, deu-lhes preceito: “de ligno autem scientiae boni et mali ne comedas”, e justa pena: “in quocumque enim die comederis ex eo, morte morieris” (Gn 2, 17).

Essa breve reflexão da antropologia cristã faz recordar o que diz Ghirlanda ao comentar o homem como um ser em relação: “O estar em relação com o outro é uma necessidade estrutural do sujeito (ubi homo ibi societas)”, e das várias possibilidades de atuação, “o sujeito, em sua liberdade, encontra-se diante da responsabilidade das escolhas morais que deve fazer entre as várias possibilidades que se lhe oferecem”.[2]

Portanto, conclui o autor, “uma vez que as raízes do fenômeno do direito” se encontram na sociabilidade do homem (ubi societas ibi ius), também se pode dizer “ubi homo ibi ius”, pois “ao sócio se requer um empenho de verdade e de lealdade. A lei positiva compreende em si a eliminação do erro, mediante a coordenação estável e regular das ações”.[3]

A necessidade do Direito facilmente se observa mesmo nas sociedades primitivas, ainda que na concepção dos respectivos ordenamentos jurídicos pudessem estar, nestes ou naqueles aspectos, distantes dos planos do Criador.

Para São Tomás de Aquino, há uma só lei, a lei eterna: a parte revelada é a lei divina; a outra, que fica esculpida na consciência dos seres racionais, é o direito natural. Abaixo delas, a lei positiva, que é aquela convertida em norma posta pelos homens e que não pode contrariar nem a lei natural, nem a lei divina, ou seja, a lei positiva é mera transcrição, para entendimento dos homens, da lei eterna. Por isso o Doutor Angélico sustentava a possibilidade da resistência à lei iníqua, isto é, quando a lei positiva contrariar a lei natural, não deve ser obedecida.[4] 

A Igreja como Sociedade e como Povo de Deus

Se o homem em sociedade necessita de um direito para melhor atingir o seu fim, se o Povo Eleito recebeu, em pedra, os preceitos que Deus lhes escreveu no coração, o que dizer da Igreja de Cristo?[5]

A Igreja é chamada pelo Apóstolo o Corpo místico do Deus encarnado, em comparação com o corpo natural do homem (Cf. Ef 1, 23). Ele a cabeça, Ela o corpo; Ele o motor e o influxo, Ela a realizadora do bem; Ele o princípio da perfeição, Ela, embora perfeita na doutrina, caminha para a perfeição dos membros; Ele o governo e a autoridade, Ela protegida e ordenada; Ele o inigualável Fundador, Ela a magnífica fundação. Ele o escolhido das nações, Ela a sociedade dos homens eleitos, o Povo de Deus; Ele Deus e homem, Ela humana e divina, analogia perfeita do mistério da Encarnação.

Considerada como Povo de Deus é uma sociedade, cujos membros, unidos não mais pelos vínculos de parentesco ou nacionalidade, gozam da liberdade e dignidade de filhos de Deus, têm um fim comum, que é o Reino dos Céus, e como lei o mandamento novo, de amar uns aos outros como o próprio Cristo nos amou (Cf. LG 9).

E embora sejam de natureza essencialmente espiritual os vínculos sociais do Povo de Deus, ou seja, uma comunhão de afeto, entre irmãos (Cf.LG 9), “deve ser também entendida como uma realidade orgânica, que requer uma forma jurídica”, ao mesmo tempo que é animada pela caridade.[6]

Por isso é que o direito que deve regular e estruturar as relações desta sociedade, é um direito sui generis, o direito eclesiástico — a dimensão de justiça existente no mistério de salvação que é a Igreja —, o qual, por muitas vezes se expressar em cânones, é também chamado de Direito Canônico.

Há uma objeção feita por aqueles que, munidos de argumentos de ordem pastoral, afirmam que “a Igreja não precisa de um direito”. O único mandato do divino Redentor foi de que os discípulos, pelo mundo inteiro, anunciassem a Boa Nova; portanto, o direito não teria origem em Cristo, senão nos homens. O próprio Código de 1983 não reconhece a caducidade das leis, derrogando-as em aras à salvação das almas, como lei suprema?

Deve-se temer muito que, sob o pretexto de pastoral, se exclua o direito. Há um sério risco de requintado autoritarismo por parte dos que, desprezando o direito universal da Igreja, fazem-no substituir pelo arbítrio de suas vontades, fantasias e caprichos. Veja-se o que nos ensinam os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos.

Foi Cristo quem escolheu os Doze (Lc 6, 12-19), mas quando se tratou de nomear um substituto para o Iscariotes, coube aos Apóstolos estabelecer as regras para a sucessão, “dederunt sortes eis, et cecidit sors super Matthiam”, que foi logo incorporado ao número dos Apóstolos. (At 1, 21-26).

Isto também se aplica ao Sacramento da Eucaristia, deixando-nos o mesmo Cristo poucos detalhes a respeito do rito, talvez porque não fosse destinado a ser o quadro da celebração.[7] Santo Agostinho nos ensina que o Senhor assim o fez — dando-nos o Sacramento depois da ceia —, “para valorizar sobremaneira a profundidade deste mistério” e para com ele “marcar os corações e a mente dos discípulos”; contudo, “deixou a regulamentação aos Apóstolos que deviam organizar a Igreja”.[8]

Recorda João Paulo II, na Constituição Apostólica Sacrae Disciplinae Leges, por meio da qual foi pronulgado o Código de 1983, que “no decorrer dos tempos, a Igreja Católica costumou reformar e renovar as leis da disciplina canônica, a fim de, na fidelidade constante a seu Divino Fundador, adaptá-las à missão salvífica que lhe é confiada”, e que o objetivo do Código não é “substituir, na vida da Igreja ou dos fiéis, a fé, a graça e os carismas, nem muito menos a caridade. Pelo contrário, sua finalidade é, antes, criar na sociedade eclesial uma ordem que, dando primazia ao amor, à graça e aos carismas, facilite ao mesmo tempo seu desenvolvimento orgânico na vida, seja da sociedade eclesial, seja de cada um de seus membros”.

Ainda que caibam principalmente aos Bispos a guarda e vigilância das leis da Igreja, nos ensina o Papa São Celestino I que “a nenhum dos sacerdotes é lícito ignorar os cânones”,[9] e o IV Concílio de Toledo (633) prescreve que “os sacerdotes conheçam as escrituras sagradas e os cânones”, e que “a ignorância, mãe de todos os erros, deve ser evitada, principalmente nos sacerdotes de Deus”.[10]

 


[1] AMBRÓSIO. Examerão – Os seis dias da criação. Sexto dia. 3, 9. Coleção Patrística, Tradução Célia Mariana Franchi Fernandes da Silva. São Paulo: Paulus, 1996. Vol. 26. p. 230.

[2] GHIRLANDA, Gianfranco. O Direito na Igreja: Mistério de Comunhão. Tradução Pe. Carlos da Silva. São Paulo: Santuário, 2003. p. 17.

[3] GHIRLANDA, Gianfranco, op. cit. p. 18.

[4] Cf. S Th I-II q. 94, a. 2. O mesmo conceito se encontra em II Sent., 42, 1, 4 ad 3.

[5] (Salmo 57,1) Cf. AGOSTINHO, Santo. Comentário aos salmos. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2008. p. 136.

[6] Cf. Ghirlanda, op. cit. p. 43-44.

[7] Cf. JUNGMANN, J. A. Missarium Sollemnia. Tradução de Monica Ottermann. São Paulo: Paulus, 2009. p. 25.

[8] Apud S Th III, q. 80, a. 8, 1. Suma Teológica. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2003. Vol. 9.

[9] Papa Celestino em Carta aos Bispos constituídos na Apulia e Calábria, 21 de julho de 429. Apud HORTAL, Jesus. Prefácio ao Código de Direito Canônico. São Paulo: Loyola, 2004. p. 15.

[10] IV Concílio de Toledo, 633. Apud. HORTAL, Jesus. Prefácio, op. cit. p. 15.

Evangelização: Iluminar toda a realidade humana

Pe. Luiz Henrique, EPpe-antonio-vieira

1.1.1 Características da Evangelização

A evangelização pode variar conforme as diversas circunstâncias do tempo, do lugar e da cultura, mas em síntese, podemos dizer com o Papa Paulo VI (1975) que a evangelização compreende o testemunho de vida, o anúncio explícito, a liturgia da Palavra, a catequese, a utilização dos meios de comunicação social, o contato pessoal, os sacramentos e a religiosidade popular.

1.1.1.1 Importância

Não podemos nos esquecer que o principal e o maior serviço que a Igreja oferece ao ser humano é comunicar-lhe a Boa Nova, convidando-o a participar da vida divina, iluminando, desta forma, toda a realidade humana.

Evangelizar é a missão central da Igreja e de todos os crentes. De acordo com o decreto “Ad Gentes” de Paulo VI (1965a) sobre a atividade missionária da Igreja, toda a Igreja é missionária. A obra da evangelização é um dever fundamental do Povo de Deus.

Nessa linha, nada mais claro do que a afirmação de São Paulo na primeira carta aos Coríntios: “Anunciar o Evangelho não é glória para mim; é uma obrigação que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho!”[1] (BÍBLIA SAGRADA, 2001, p. 1473).

1.1.1.2 Tarefa de todos

De acordo com a 3ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (DOIG K., 1992), a missão evangelizadora é de todo o povo de Deus. Esta é uma vocação primordial, sua identidade mais profunda. É a sua felicidade. O povo de Deus com todos os seus membros, instituições e planos existe para evangelizar. Precisamos escutar, com renovado entusiasmo, o mandato do Senhor: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura”[2] (BÍBLIA SAGRADA, 2001, p. 1344).

Por isso, cada casa pode tornar-se escola do Evangelho. Em qualquer lugar o cristão deve fazer resplandecer a sua luz a fim de que quem lhe passe perto possa encontrar a fé. A Igreja deve despertar essa consciência e tornar capazes e críveis as testemunhas.

1.1.1.3 Evangelizar em profundidade

Na própria 3ª Conferência Episcopal Latino-Americana, citada a pouco, chegou-se à conclusão de que a evangelização deve orientar-se para a formação de uma fé pessoal, adulta, interiormente formada, operante e constantemente confrontada com os desafios da vida atual nesta fase de transição.

E isso importa evangelizar “não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade, e isto até às suas raízes – a cultura e as culturas do homem” (DOIG K., 1992, p. 203).

Tullio Faustino (BERETTA, 1995) acentua que são sujeitos da Evangelização – como Cristo quis – todos os homens de todos os tempos, de todos os lugares, de todas as condições… de qualquer raça e idade, de qualquer mentalidade e em qualquer situação.

1.1.2 Evangelização cristocêntrica

O Evangelho é uma notícia, e uma notícia boa. Mas não somente isto. De acordo com José Prado Flores (1993, p.7), o Evangelho é o anúncio alegre de algo que já sucedeu: “a salvação integral do homem e de todos os homens, realizada pela morte, ressurreição e glorificação de Cristo Jesus. A proclamação está baseada em um feliz anúncio: Jesus já nos salvou!”

Na 3ª Conferência Episcopal Latino-Americana, foi visto que é dever nosso anunciar claramente, sem deixar dúvidas ou equívocos, o mistério da encarnação: tanto a divindade de Jesus Cristo, tal como professa a fé da Igreja, quanto a realidade e a força de sua dimensão humana e histórica (DOIG K, 1992).

Ainda nesta conferência, ficou claro que, durante a Evangelização, nós “não podemos desfigurar, parcializar ou ideologizar a pessoa de Jesus Cristo, nem fazer dele um político, um líder, um revolucionário ou um simples profeta, nem reduzir ao campo meramente privado Aquele que é o Senhor da história”. (DOIG K, 1992, p.300).

Portanto, evangelizar significa comunicar a todos os povos o plano de salvação desejado pelo Pai, realizado pelo Filho, difundido e anunciado pelo Espírito Santo por meio da Igreja.

 


[1] 1 Cor 9,16.

[2] Mc 16,15.

O exemplo do Santo Cura de Ars

Cura d'ArsO Cura d’Ars era humilíssimo, mas consciente de ser, enquanto padre, um dom imenso para o seu povo: “Um bom pastor, um pastor segundo o coração de Deus, é o maior tesouro que o bom Deus pode conceder a uma paróquia e um dos dons mais preciosos da misericórdia divina”.

Falava do sacerdócio como se não conseguisse alcançar plenamente a grandeza do dom e da tarefa confiados a uma criatura humana: “Oh como é grande o padre! […] Se lhe fosse dado compreender-se a si mesmo, morreria. […] Deus obedece-lhe: ele pronuncia duas palavras e, à sua voz, Nosso Senhor desce do Céu e encerra- Se numa pequena hóstia”.

E, ao explicar aos seus fiéis a importância dos Sacramentos, dizia: “Sem o Sacramento da Ordem, não teríamos o Senhor. Quem O colocou ali naquele sacrário? O sacerdote. Quem acolheu a vossa alma no primeiro momento do ingresso na vida? O sacerdote. Quem a alimenta para lhe dar a força de realizar a sua peregrinação? O sacerdote. Quem há de prepará-la para comparecer diante de Deus, lavando- a pela última vez no Sangue de Jesus Cristo? O sacerdote, sempre o sacerdote. E se esta alma chega a morrer [pelo pecado], quem a ressuscitará, quem lhe restituirá a serenidade e a paz? Ainda o sacerdote. […] Depois de Deus, o sacerdote é tudo! […] Ele próprio não se entenderá bem a si mesmo, senão no Céu”.

Estas afirmações, nascidas do coração sacerdotal daquele santo pároco, podem parecer excessivas. Nelas, porém, revela-se a sublime consideração em que ele tinha o sacramento do sacerdócio. Parecia subjugado por uma sensação de responsabilidade sem fim: “Se compreendêssemos bem o que um padre é sobre a terra, morreríamos: não de susto, mas de amor. […] Sem o padre, a Morte e a Paixão de Nosso Senhor não teria servido para nada. É o padre que continua a obra da Redenção sobre a terra […]. Que aproveitaria termos uma casa cheia de ouro, se não houvesse ninguém para nos abrir a porta? O padre possui a chave dos tesouros celestes: é ele que abre a porta; é o ecônomo do bom Deus; o administrador dos seus bens […]. Deixai uma paróquia durante vinte anos sem padre, e lá adorar-se-ão as bestas. […] O padre não é padre para si mesmo, é-o para vós”.

Santidade objetiva do ministério e santidade subjetiva do ministro

Tinha chegado a Ars, uma pequena aldeia com 230 habitantes, precavido pelo Bispo de que iria encontrar uma situação religiosamente precária: “Naquela paróquia, não há muito amor de Deus; infundi-lo-eis vós”. Por conseguinte, achava-se plenamente consciente de que devia ir para lá a fim de encarnar a presença de Cristo, testemunhando a Sua ternura salvífica: Meu Deus, “concedei-me a conversão da minha paróquia; aceito sofrer tudo aquilo que quiserdes por todo o tempo da minha vida!”: foi com esta oração que começou a sua missão. E, à conversão da sua paróquia, dedicou- se o Santo Cura com todas as suas energias, pondo no cume de cada uma das suas ideias a formação cristã do povo a ele confiado.

Amados irmãos no sacerdócio, peçamos ao Senhor Jesus a graça de podermos também nós assimilar o todo pastoral de São João Maria Vianney.

A primeira coisa que devemos aprender é a sua total identificação com o próprio ministério. Em Jesus, tendem a coincidir Pessoa e Missão: toda a Sua ação salvífica era e é expressão do Seu “Eu filial” que, desde toda a eternidade, está diante do Pai em atitude de amorosa submissão à Sua vontade. Com modesta, mas verdadeira analogia, também o sacerdote deve ansiar por esta identificação. Não se trata, certamente, de esquecer que a eficácia substancial do ministério permanece independentemente da santidade do ministro; mas também não se pode deixar de ter em conta a extraordinária frutificação gerada do encontro entre a santidade objetiva do ministério e a subjetiva do ministro.
O Papa Bento XVI venera o coração do Santo Cura d’Ars, São João Maria Vianney, na Capela do Coral da Basílica de São Pedro, antes da cerimônia de abertura do Ano Sacerdotal, em 2009

O Cura d’Ars principiou imediatamente este humilde e paciente trabalho de harmonização entre a sua vida de ministro e a santidade do ministério que lhe estava confiado, decidindo “habitar”, mesmo materialmente, na sua igreja paroquial: “Logo que chegou, escolheu a igreja por sua habitação. […] Entrava na igreja antes da aurora e não saía de lá senão à tardinha depois do Angelus. Quando precisavam dele, deviam procurá-lo lá” – lê-se na primeira biografia. […]

“Todas as boas obras reunidas não igualam o valor da Missa”

O Santo Cura ensinava os seus paroquianos, sobretudo, com o testemunho da vida. Pelo seu exemplo, os fiéis aprendiam a rezar, detendo-se de bom grado diante do sacrário para uma visita a Jesus-Eucaristia. “Para rezar bem – explicava-lhes o Cura -, não há necessidade de falar muito. Sabe-se que Jesus está ali, no Tabernáculo sagrado: abramos-Lhe o nosso coração, alegremo-nos pela Sua presença sagrada. Esta é a melhor oração”. E exortava: “Vinde à Comunhão, meus irmãos, vinde a Jesus. Vinde viver dEle para poderdes viver com Ele”. “É verdade que não sois dignos, mas tendes necessidade!”.

Esta educação dos fiéis para a presença eucarística e para a Comunhão adquiria uma eficácia muito particular, quando o viam celebrar o Santo Sacrifício da Missa. Quem ao mesmo assistia, afirmava que “não era possível encontrar uma figura que exprimisse melhor a adoração. […] Contemplava a Hóstia amorosamente”.

Dizia ele: “Todas as boas obras reunidas não igualam o valor do Sacrifício da Missa, porque aquelas são obras de homens, enquanto a Santa Missa é obra de Deus”. Estava convencido de que todo o fervor da vida de um padre dependia da Missa: “A causa do relaxamento do sacerdote é porque não presta atenção à Missa! Meu Deus, como é de lamentar um padre que celebra [a Missa] como se fizesse uma coisa ordinária!”. E, ao celebrar, tinha tomado o costume de oferecer sempre também o sacrifício da sua própria vida: “Como faz bem um padre oferecer-se em sacrifício a Deus todas as manhãs!”.

“Círculo virtuoso” entre o altar e o confessionário

Esta sintonia pessoal com o Sacrifício da Cruz levava-o – por um único movimento interior – do altar ao confessionário. Os sacerdotes não deveriam jamais resignar-se a ver os seus confessionários desertos, nem limitar-se a constatar o menosprezo dos fiéis por este Sacramento.

Na França, no tempo do Santo Cura d’Ars, a confissão não era mais fácil nem mais frequente do que nos nossos dias, pois a tormenta revolucionária tinha longamente sufocado a prática religiosa. Mas ele procurou de todos os modos, com a pregação e o conselho persuasivo, fazer os seus paroquianos redescobrirem o significado e a beleza da Penitência sacramental, apresentando-a como uma exigência íntima da Presença eucarística.

Pôde assim dar início a um círculo virtuoso. Com as longas permanências na igreja junto do sacrário, fez com que os fiéis começassem a imitálo, indo até lá visitar Jesus, e ao mesmo tempo estivessem seguros de que lá encontrariam o seu pároco, disponível para os ouvir e perdoar. Em seguida, a multidão crescente dos penitentes, provenientes de toda a França, haveria de o reter no confessionário até 16 horas por dia. Dizia-se então que Ars se tinha tornado “o grande hospital das almas”. […]

Assimilar em si o “novo estilo de vida” inaugurado por Jesus

No mundo atual, não menos do que nos tempos difíceis do Cura d’Ars, é preciso que os presbíteros, na sua vida e ação, se distingam por um vigoroso testemunho evangélico.

Observou, justamente, Paulo VI que “o homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres; ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas”. Para que não se forme um vazio existencial em nós e fique comprometida a eficácia do nosso ministério, é preciso não cessar de nos interrogarmos: “Somos verdadeiramente permeados pela Palavra de Deus? É verdade que esta é o alimento de que vivemos, mais do que o sejam o pão e as coisas deste mundo? Conhecemo-la verdadeiramente? Amamo-la? De tal modo nos ocupamos interiormente desta palavra, que a mesma dá realmente um timbre à nossa vida e forma o nosso pensamento?”.

Assim como Jesus chamou os Doze para estarem com Ele (cf. Mc 3, 14) e só depois é que os enviou a pregar, assim também nos nossos dias os sacerdotes são chamados a assimilar aquele “novo estilo de vida” que foi inaugurado pelo Senhor Jesus e assumido pelos Apóstolos.

Os três conselhos evangélicos, necessários também para os presbíteros

Foi precisamente a adesão sem reservas a este “novo estilo de vida” que caracterizou o trabalho ministerial do Cura d’Ars. O Papa João XXIII, na carta encíclica Sacerdotii nostri primordia – publicada em 1959, centenário da morte de São João Maria Vianney -, apresentava a sua fisionomia ascética referindo-se de modo especial ao tema dos “três conselhos evangélicos”, considerados necessários também para os presbíteros: “Embora, para alcançar esta santidade de vida, não seja imposta ao sacerdote como própria do estado clerical a prática dos conselhos evangélicos, entretanto esta representa para ele, como para todos os discípulos do Senhor, o caminho regular da santificação cristã”.

O Cura d’Ars soube viver os “conselhos evangélicos” segundo modalidades apropriadas à sua condição de presbítero. Com efeito, a sua pobreza não foi a mesma de um religioso ou de um monge, mas a requerida a um padre: embora manejasse muito dinheiro (dado que os peregrinos mais abonados não deixavam de se interessar pelas suas obras sócio-caritativas), sabia que tudo era dado para a sua igreja, os seus pobres, os seus órfãos, as meninas da sua Providence, as suas famílias mais indigentes. Por isso, ele “era rico para dar aos outros e era muito pobre para si mesmo”. Explicava: “O meu segredo é simples: dar tudo e não guardar nada”. Quando se encontrava com as mãos vazias, dizia contente aos pobres que se lhe dirigiam: “Hoje sou pobre como vós, sou um dos vossos”. Deste modo pôde, ao fim da vida, afirmar com absoluta serenidade: “Não tenho mais nada. Agora o bom Deus pode chamarme quando quiser!”.

Também a sua castidade era aquela que se requeria a um padre para o seu ministério. Pode-se dizer que era a castidade conveniente a quem deve habitualmente tocar a Eucaristia e que habitualmente a fixa com todo o entusiasmo do coração e com o mesmo entusiasmo a dá aos seus fiéis.Dele se dizia que “a castidade brilhava no seu olhar”, e os fiéis apercebiam- se disso quando ele se voltava para o sacrário fixando-o com os olhos de um enamorado.

Também a obediência de São João Maria Vianney foi toda encarnada na dolorosa adesão às exigências diárias do seu ministério. É sabido como o atormentava o pensamento da sua própria inaptidão para o ministério paroquial e o desejo que tinha de fugir “para chorar a sua pobre vida, na solidão”. Somente a obediência e a paixão pelas almas conseguiam convencê-lo a continuar no seu lugar. A si próprio e aos seus fiéis explicava: “Não há duas maneiras boas de servir a Deus. Há apenas uma: servi-Lo como Ele quer ser servido”. A regra de ouro para levar uma vida obediente parecia-lhe ser esta: “Fazer só aquilo que pode ser oferecido ao bom Deus”.

Saber acolher os Movimentos Eclesiais e novas Comunidades

No contexto da espiritualidade alimentada pela prática dos conselhos evangélicos, aproveito para dirigir aos sacerdotes, neste Ano a eles dedicado, um convite particular para saberem acolher a nova primavera que, em nossos dias, o Espírito está a suscitar na Igreja, através nomeadamente dos Movimentos Eclesiais e das novas Comunidades. “O Espírito é multiforme nos seus dons. […] Ele sopra onde quer. E fá-lo de maneira inesperada, em lugares imprevistos e segundo formas precedentemente inimagináveis […]; mas demonstra-nos também que Ele age em vista do único Corpo e na unidade do único Corpo”.

A propósito disto, vale a indicação do decreto Presbyterorum ordinis: “Sabendo discernir se os espíritos vêm de Deus, [os presbíteros] perscrutem com o sentido da fé, reconheçam com alegria e promovam com diligência os multiformes carismas dos leigos, tanto os mais modestos como os mais altos”. Estes dons, que impelem não poucos para uma vida espiritual mais elevada, podem ser de proveito não só para os fiéis leigos, mas também para os próprios ministros. Com efeito, da comunhão entre ministros ordenados e carismas pode brotar “um válido impulso para um renovado compromisso da Igreja no anúncio e no testemunho do Evangelho da esperança e da caridade em todos os recantos do mundo”.

“Forma comunitária” do ministério ordenado

Queria ainda acrescentar, apoiado na exortação apostólica Pastores dabo vobis do Papa João Paulo II, que o ministério ordenado tem uma radical “forma comunitária” e pode ser cumprido apenas na comunhão dos presbíteros com o seu Bispo. É preciso que esta comunhão entre os sacerdotes e com o respectivo Bispo, baseada no Sacramento da Ordem e manifestada na concelebração eucarística, se traduza nas diversas formas concretas de uma fraternidade sacerdotal efetiva e afetiva. Só deste modo é que os sacerdotes poderão viver em plenitude o dom do celibato e serão capazes de fazer florir comunidades cristãs onde se renovem os prodígios da primeira pregação do Evangelho. […]

“Eu venci o mundo”

À Virgem Santíssima entrego este Ano Sacerdotal, pedindo-Lhe para suscitar no ânimo de cada presbítero um generoso relançamento daqueles ideais de total doação a Cristo e à Igreja que inspiraram o pensamento e a ação do Santo Cura d’Ars. Com a sua fervorosa vida de oração e o seu amor apaixonado a Jesus Crucificado, João Maria Vianney alimentou a sua cotidiana doação sem reservas a Deus e à Igreja. Possa o seu exemplo suscitar nos sacerdotes aquele testemunho de unidade com o Bispo, entre eles próprios e com os leigos, que é tão necessário hoje, como o foi sempre.

Não obstante o mal que existe no mundo, ressoa sempre atual a palavra de Cristo aos Seus Apóstolos, no Cenáculo: “No mundo sofrereis tribulações. Mas tende confiança: Eu venci o mundo” (Jo 16, 33). A Fé no Divino Mestre dá-nos a força para olhar confiadamente o futuro.

Amados sacerdotes, Cristo conta convosco. A exemplo do Santo Cura d’Ars, deixai-vos conquistar por Ele e sereis também vós, no mundo atual, mensageiros de esperança, de reconciliação, de paz.

(Papa Bento XVI – Excertos da Carta para a Convocação do Ano Sacerdotal, de 16/6/2009)

(Revista Arautos do Evangelho, Agosto/2009, n. 92, p. 6 à 9)