A Filosofia Jusnaturalista de São Tomás

tomasPe. Jorge Filipe Teixeira Lopes, EP

Tendo como fundo de quadro a concepção filosófica que antecedeu os tempos modernos, poder-se-á entender melhor o fundamento daquilo a que se poderia chamar de uma antropologia medieval, a qual tinha como premissa maior a noção bíblica do homem enquanto ser criado à imagem e semelhança de Deus. Ademais, cumpre entender que a concepção tomista de lei e direito natural não é senão a mesma que durante séculos foi sustentada pela Igreja e pelos Padres da Igreja; e que antes disso já na antiguidade os Estóicos, Cícero, e até os poetas gregos como Sófocles, defendiam a sua existência denominando-a como lei não escrita[1]. S. Tomás de Aquino teve o privilégio de condensar o pensamento e consolidá-lo nas questões da Suma Teológica que dizem respeito à lei.

1.2.1 A lei natural como decorrência da lei divina.  O doutor angélico fundamenta as suas teses sobre lei e direitos naturais pressupondo três categorias de leis: lei eterna, lei natural e lei humana. No que diz respeito à lei natural, para o aquinate ela não é senão a participação da lei eterna na criatura racional, ou seja, a lei eterna que é a ordem divina, promulgada no homem por meio da razão natural. Deus ao criar o homem e todo o universo colocou uma ordem em cada natureza, através do que cada ser age de acordo com o fim da sua natureza e, portanto qualquer homem ao nascer está sujeito à lei e deve agir conforme ela[2]. Assim se exprime também S. Agostinho quando afirma que: “A razão é que d’Ele (Deus) receberam a categoria de naturezas, e tornam-se defeituosas na medida em que se afastam da sua ideia-arquétipo, pela qual foram produzidas”[3]. Segundo Étienne Gilson, no pensamento medieval a ideia de lei natural está subjacente à razão divina e à lei eterna, pois esta se confunde com a vontade ou a razão de Deus. O princípio analógico de que a lei natural está para a lei eterna assim como o ser está para o Ser, vale indistintamente para toda a ordem de criaturas. Deus “[…]“concriou” a lei natural aos seres que ele chamava à existência e como o facto de existirem se dá por uma participação analógica com o ser divino, assim também analogicamente participam da Sua lei eterna, pois a regra da sua actividade está inscrita na própria essência e estrutura do seu ser”[4]. Esse é um ponto sobre o qual todos os Padres da Igreja e todos os filósofos estão de acordo, aparte os detalhes técnicos do problema.

1.2.2. Natureza, razão e lei natural.  Maritain começa por salientar que para se ter uma noção clara dos pontos de divergência entre a concepção de lei natural tomista e as modernas, é necessário analisar três pontos: quais são, para S. Tomás, as noções de natureza, de razão e de lei natural, em contraposição às concepções modernas[5].

Para o doutor angélico, a palavra natureza designa a essência humana, o que quer dizer que não se refere somente à percepção sensorial, num sentido empírico da observação, mas a uma certa essência inteligível destacada da experiência. A natureza humana tem uma capacidade própria da sua natureza de conhecer o mundo que a rodeia, transcendendo-o, entretanto, pela sua inteligibilidade e abstracção. Por outro lado, as exigências da natureza têm uma força de lei em razão da lei eterna, pois é a razão divina a única criadora da lei natural e reguladora dessa lei na razão humana, donde se poder compreender o carácter sagrado dessa mesma lei.

Como segundo ponto, para S. Tomás a razão é uma razão exclusivamente humana; o homem é um animal racional, um indivíduo sem nenhuma mescla de uma razão abstracta superior. Assim, e sob esse aspecto, os preceitos da lei natural, ao contrário dos vários modos da razão humana de conceituar ou racionalizar – dedução, demonstração ou silogismo – são lhe conhecidos através de uma inclinação ou conaturalidade. E por lhe serem assim conhecidos, a razão humana não intervém na sua idealização, pois ela, a lei natural, tem por sua única razão de existência a razão divina[6].

Como terceiro ponto, podemos notar que quando consideramos a lei natural do ponto de vista gnoseológico[7]- diferentemente do sentido ontológico ou do que a lei natural é e contém – parece fundamental que ela seja conhecida por inclinação, o que significa a bem dizer que ela pode ser conhecida e por consequência pode ser uma medida efectiva da razão prática humana. Ela, apesar de não ser escrita pelos homens, é-lhes conhecida em diferentes graus, e é da sua recusa que se originam os erros que por vezes se dão entre os homens. O princípio básico, evidente em si, e infalivelmente comum a todos os homens e que é intelectualmente percebido em virtude dos conceitos em jogo, é a noção de que é preciso fazer o bem e evitar o mal. É este o primeiro princípio da lei natural conhecido por todos os homens[8].

1.2.3. O conhecimento por conaturalidade.  A lei natural é o conjunto de coisas que o homem sabe que deve ou não fazer e que defluem necessariamente deste princípio, o qual não se regula teoricamente como um teorema de geometria. Quando S. Tomás diz que a razão humana descobre os regulamentos da lei natural sobre a conduta das inclinações da natureza humana, Maritain afirma que ele quer dizer que o modo segundo o qual a razão humana conhece a lei natural, não é o modo do conhecimento racional mas um modo próprio do conhecimento por inclinação: conhecimento por simpatia ou conaturalidade[9].

A conaturalidade é uma espécie de conhecimento, não totalmente claro como os que se obtêm por via dos conceitos ou do julgar conceptual, mas é um conhecimento não sistemático, vital, a modo de instinto, de simpatia, através do qual o intelecto forma os seus julgamentos e que, ao modo de uma melodia, produz uma vibração nas tendências profundas do sujeito, tornando-as conscientes e em concordância com as suas inclinações. Em S. Tomás, todas as coisas perante as quais o homem tem uma inclinação natural são tomadas pela razão como naturalmente boas, e é nesse naturalmente que se apoia o conhecimento por conaturalidade da lei natural[10].

A definição de conaturalidade explica o porque Maritain, ao abordar o terceiro ponto que diz respeito especificamente à lei natural, faz notar que a lei natural é essencialmente uma lei não escrita, se bem que acidentalmente os seus preceitos possam obviamente escrever-se como um código de conduta humano ou divino, como são os Mandamentos. De qualquer forma, ela não obriga mais do que um direito natural ou um código jurídico virtual[11]. Sob esse aspecto, a lei natural aplica-se no campo prático do seguinte modo: sendo o homem um animal político, a ideia de sociedade política natural tem a sua constituição na vontade que os homens têm de viver em comunidade, aliada pela razão e pela virtude. Nesse contexto, em razão das exigências da vida política, há um apelo ao ser humano para que se constitua conforme aquilo que a sua natureza lhe indica, pelo que a lei natural pode ser determinada e precisada numa lei positiva que cada circunstância social ou determinada época histórica suscitam. Fica claro que essa contingência e precisão a que é sujeita a lei natural não pode de forma alguma sujeitá-la a ponto de distorcer a razão do seu fundamento. Uma lei positiva que não lhe seja conforme nunca poderá ter o estatuto de lei[12].

TEIXEIRA LOPES, Jorge Filipe. Fundamentação dos direitos humanos na Lei Natural. Universidad Pontificia Bolivariana – Escuela de Teologia, Filosofia y Humanidades. Licenciatura Canónica em Filosofia. Medellin, 2009. p. 22-27.


[1] Ibid., p. 65. Veja-se a célebre citação de Cícero acerca da lei natural: “A razão recta, conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo senado; não há que encontrar para ela outro comentador nem intérprete; não é uma lei em Roma e outra em Atenas, – uma antes e outra depois, mas una, sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os tempos;” (Ver CÍCERO. De Republica. Livro III. XVII).

[2] AQUINO, São Tomás. Suma Teológica. I-II. Q. 91. a.2.  São Paulo: Loyola, 2005. p. 530-532.

[3] SANTO AGOSTINHO. O livre arbítrio. Braga: Faculdade de Filosofia da UCP, 1998. p. 42.

[4] GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 407-409.

[5] MARITAIN, Jacques. La loi naturelle ou loi non écrite. Fribourg: Éditions Universitaires, 1986. p. 83. O autor faz um quadro sinóptico bastante elucidativo das concepções tomista, racionalista e empirista de lei natural.

[6] Ibid., p. 83-84.

[7] Ibid., p. 20-35.  Maritain distingue os aspectos ontológicos e gnoseológicos no primeiro capítulo da sua obra. Sob o ponto de vista ontológico, o homem tem na sua natureza inteligente tudo o que pode proporcionar a sua realização enquanto ser humano e, portanto, tem fins que correspondem necessariamente à sua constituição essencial e que são os mesmos para todos. Nesse sentido, tem uma ordem, uma disposição interna que a razão deve descobrir e inclinar a vontade a agir de acordo com esses fins essenciais e necessários do ser humano. Sob o aspecto gnoseológico, pode-se conceber a lei natural não em si, mas como a medida dos actos humanos. Então, e por ser uma lei não escrita, ela vai crescendo no processo de conhecimento do homem, à medida que se desenvolve a sua consciência moral. A lei natural não é conhecida conceptualmente pela razão humana mas por uma inclinação para a qual tende a natureza humana. Como primeira regra, a natureza humana busca para si tudo o que lhe parece um bem e ao qual a natureza propende, o que denota que há uma série de regulamentos morais que antecedem a razão. Nesse sentido, é o princípio da própria lei natural sob o aspecto de que por ela o homem tem uma ideia daquilo que deve e daquilo que não deve fazer.

[8] Ibid., p. 27.

[9] Ibid., p. 28. São Tomás desenvolve bastante este tema na S. Th. II-II, Q. 45, a. 2. Para Abelardo Lobato, há um apetite natural que é manifestado na lex naturalis do homem como uma participação da lei eterna. “Tomás de Aquino colocou em relevo de muitos modos, tudo o que é conatural ao homem. A natureza compreende a totalidade, é determinada pela espécie, e tem um peso ontológico que se inclina para os bens convenientes a ela, com anterioridade aos dinamismos das potências. Na esfera do conhecer há que se admitir conhecimentos por conaturalidade e por instinto, que brotam espontaneamente do espírito do homem”. Por se tratar de um conhecimento instintivo prévio, o conhecimento por conaturalidade reveste-se de uma suma primazia na determinação dos actos humanos. Por isso, esse apetite natural tende para o bem de modo determinado e seguro. (Cfr. LOBATO, Abelardo. El hombre en cuerpo y alma. Valencia: Edicep, 1994. p. 212-213).

[10] Ibid., p. 28-30.

[11] Ibid., p. 85. Há um aspecto aparentemente difícil de compreender e que diz respeito à dificuldade em reconhecer a universalidade e, sobretudo, a cognoscibilidade da lei natural. Se ela é cognoscível por todos os homens, como se explica que o infanticídio era expediente comummente utilizado na Ásia na época da dinastia Ming, segundo os relatos de Marco Polo, assim como era também entre os Gregos e Romanos? Ou que no Egipto Antigo, a profissão de ladrão tivesse sido reconhecida pelo Estado? Ou que, em certos reinos orientais, houvesse o costume de, a determinada altura da vida do suserano, este ser cegado? Se é verdade que à lei natural carecem as objectividades normativas, pois não se pode extrair dela um regulamento específico para cada situação concreta, para S. Tomás a lei e o direito naturais são inter-dependentes da lei moral, ou seja, ela está enraizada na natureza humana, sob o aspecto moral, reflectindo tendências humanas universais. De qualquer forma, a aplicação do ponto de vista prático, será tanto mais diferente quanto diferentes forem os aspectos culturais de cada povo. É preciso em primeiro lugar distinguir duas coisas: primeiro, que há preceitos primeiros e segundos da lei natural, sendo os primeiros mais evidentes que os segundos; segundo, que há aspectos etnológicos e históricos que proporcionam uma maior ou menor capacidade de um povo seguir a lei moral natural. Sobre estes pontos ver (MARITAIN, La loi naturelle ou loi non écrite. Op. Cit., p. 7-9). De qualquer forma, é de se notar que quanto mais bárbaro um povo, mais afastado dos primeiros princípios de fazer o bem e agir de acordo com a razão – vejam-se os povos em cujos rituais alucinantes se buscava a divindade através da perda da razão, e relacione-se isso com a poligamia, sacrifícios humanos, canibalismo, etc. Num indivíduo acontece algo de semelhante no que diz respeito à perda do senso moral: qualquer criança sabe perfeitamente que a mentira é má; entretanto, na primeira mentira, as barreiras morais, psicológicas e até operacionais que a natureza tem na sua rectidão primeira, caem. Mentindo uma segunda vez, fá-lo-á mais desembaraçadamente e, no final, o problema não será vencer os obstáculos da mentira, mas sim vencer os obstáculos para não mentir. Sob esse aspecto, os povos ficam também atolados nos seus erros, à força de tanto os praticar, podendo-se entender a expressão da Escritura quando afirma que o pecador torna-se escravo do seu pecado. Os vícios de um povo toldam a límpida visão das coisas que a lei moral, naturalmente, proporciona, pelo que Maritain entende como uma concepção tomista que o conhecimento da lei natural pelo homem cresce na medida em que este progride na sua experiência moral.

[12] Ibid., p. 86.

A ruptura da lei perante Deus

Diác. José de Andrade, EPluz

A inobservância da lei Divina e natural acarreta em si uma forma de penalidade munida de contornos próprios. Desta forma, a perturbação e o não cumprimento das prescrições definidas poderão conduzir ao pecado,1 que consiste precisamente numa transgressão à Lei de Deus, embora coincida com a violação da lei natural. Uma vez que Deus ordena desde toda a eternidade o que é conveniente e proporcionado à natureza racional,2 consistiria numa ruptura com esta ordem e, portanto, com Deus, se o homem viesse a recusar e menosprezar a lei natural enquanto participação da criatura racional na lei eterna. Consequentemente, romper com a Lei pode trazer uma sanção na vida futura, que consiste na perda eterna da felicidade.

De acordo com São Tomás de Aquino, Deus ama os homens chamando-os à visão de Deus, que supera o comum estado da natureza, outorgando-lhes não só a graça nesta terra, como a glória no Céu. Porém, aqueles que pecam fazendo mau uso de sua liberdade, e de seu livre arbítrio, perdem nesse mesmo instante a graça, e o Supremo Juiz reprova-os imputando-lhes a devida culpa que é causa de uma pena eterna, aplicada na vida futura.3 Verifica-se então uma dupla decorrência relativa à transgressão: em sua peregrinação terrena o pecador perde a posse de Deus – antecipação da felicidade eterna – consequência que se assemelha, de certo modo, a um prelúdio daquela mesma reprovação eterna que se dá após o juízo.

Entretanto, também o não cumprimento das leis humanas, quando providas das condições que as legitimam e validam, obrigam em consciência diante de Deus e a sua transgressão poderá constituir um verdadeiro pecado,4 cuja gravidade dependeria, sobretudo, do grau de rompimento com a lei divina a ela adjacente.

______________

1 Ver, por exemplo, um estudo relativamente recente de FUCEK, Ivan. Il Peccato Oggi. Roma: Università Gregoriana, 1996. Em geral no capítulo VI, La natura del peccato e dei peccati; em particular nas páginas 169 e 175.

2 Cf. ROYO MARÍN, Antonio. Teologia moral para seglares. 2. ed. Madrid: BAC, 2007. Vol. I. p. 129.

3 Cf. S. Th. q. 23, a. 3; 7.

4 ROYO MARÍN, Antonio. Op. Cit. p. 140.

Corrimãos da escada da vida

Mons. João S. Clá Dias, EP

A teologia moral de Santo Agostinho, tanto como a ética de Aristóteles, foram as fontes das doutrinasalianca escolásticas sobre a razão moral. Em De Libero Arbitrio, o bispo de Hipona afirmara que a moralidade exige da vontade humana sua conformidade com as prescrições da lei imutável e eterna, impressa na nossa mente. Tal lei, chamada de summa ratio (“razão suprema”), deve ser sempre obedecida. Por seus padrões é que são julgados os bons e os maus.[1]

Concorde com a tese agostiniana,[2] São Tomás procura definir meticulosamente a lei eterna acentuando de início que ela “não é senão a razão da sabedoria divina, na medida em que ela dirige todos os atos e movimentos”.[3] Essa lei — que se identifica com a Providência Divina — é, portanto, o princípio ordenador de todo o universo criado: “Toda a comunidade do universo é governada pela razão divina. E assim a própria razão do governo das coisas em Deus, como príncipe do universo, tem razão de lei”.[4] Assim, a suprema lei é o próprio Deus, sendo eterna como Ele é eterno; é a Sabedoria de Deus “que move todas as coisas para seu devido fim”.[5] E todas as coisas são avaliadas segundo a lei eterna, seguindo-se daí que dela todas participam de algum modo, e suas propensões para seus atos e fins próprios vêm da impressão em si dessa lei.

Nas questões 90 a 108 da Suma Teológica, parte I-II, São Tomás se estende genialmente sobre o significado e o alcance da lei eterna e sobre as outras leis que dela derivam: a lei natural, a lei divina e a lei humana.

Começando pela lei natural, ele a define como “a participação da lei eterna na criatura racional”, sendo proporcionada pela “luz do intelecto posta em nós por Deus, através da qual conhecemos o que devemos fazer e o que devemos evitar”,[6] por ser uma norma imperativa para dirigir os atos livres do homem.

Noutro lugar, São Tomás descreve a lei natural como os primeiros princípios da atividade moral humana, evidentes de si, não demonstráveis.[7]

Ninguém pode, com sinceridade e no uso normal de suas faculdades mentais,[8] negar a existência dessa lei natural, segundo a qual há obras boas e outras más por sua própria natureza. São Tomás afirma que todos os homens conhecem pelo menos os princípios comuns da lei natural.[9] Diz ele ainda que, “quanto aos princípios comuns da razão quer especulativa, quer prática, a verdade ou retidão é a mesma em todos, e igualmente conhecida”.[10] Quer dizer, não há quem não conheça a distinção entre bem e mal, e nossa obrigação de optar pelo primeiro e rejeitar o segundo se apresenta à inteligência com força de lei.

Também a lei humana positiva tem a obrigação de se conformar com a Sabedoria de Deus. É a ela que o Aquinate se refere quando afirma que, como “o fim último da vida humana é a felicidade ou bem-aventurança […] é necessário que a lei vise maximamente à ordem que é para a bem-aventurança”.[11] A lei temporal não pode colidir com a lei eterna, mas deve secundá-la.

A lei divina — consolidada nos Dez Mandamentos — mostra ao homem o caminho a seguir para praticar o bem e atingir seu fim. São Tomás se pergunta se, havendo já a lei natural e as leis humanas, é preciso também haver uma lei divina positiva. Ele inicia sua resposta lembrando que a bem-aventurança eterna, para a qual o homem foi criado, “excede a proporção da potência natural humana”. Assim faz-se necessário que, “acima da lei natural e humana, fosse dirigido também a seu fim pela lei divinamente dada”.[12]

Todas essas leis são como que corrimãos numa longa e difícil trajetória, numa escada colocada sobre um abismo. Pode ser que esses corrimãos pareçam limitações absurdas à liberdade. Na realidade, são anteparos que Deus nos concedeu para proteger a verdadeira liberdade e para nos auxiliar na ascensão até Ele.

Como estão equivocadas certas correntes de educação que procuram instilar na criança e no jovem a ideia de que os princípios morais são frios e cruéis! O certo, afirmam elas, seria optar por uma moral “amiga”, relativa, dependente apenas das circunstâncias, dos casos particulares, e esquecer tais princípios.

É supérfluo realçar a nocividade de tal doutrina para o tesouro acumulado a partir do primeiro olhar sobre o ser. E que resultados funestos trazem para a sociedade como um todo. Basta olharmos para o que vai se passando à nossa volta…


[1] De Libero Arbitrio, I, 1.6.15.48-49; 51: “Illa lex quae summa ratio nominatur cui semper obtemperandum est et per quam mali miseram, boni beatam vitam merentur […], potestne cuipiam intellegenti non incommutabilis aeternaque videri? An potest aliquando iniustum esse, ut mali miseri, boni autem beati sint? […] Ut igitur breviter aeternae legis notionem, quae impressa nobis est, quantum valeo, verbis explicem, ea est, qua iustum est, ut omnia sint ordinatissima”.

[2] Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 1: “Sed contra est quod Augustinus dicit quod lex aeterna est summa ratio, cui semper obtemperandum est”.

[3] S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Nihil aliud est quam ratio divinae sapientiae, secundum quod est directiva omnium actuum et motionum”.

[4] S. Th. I-II, q. 91, a. 1: “Tota communitas universi gubernatur ratione divina. Et ideo ipsa gubernationis rerum in Deo sicut in principe universitatis existens, legis habet rationem”.

[5] S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Moventis omnia ad debitum finem”.

[6] Collationes in decem praeceptis, Proœmium: “Lex naturae […] nihil aliud est nisi lumen intellectus insitum nobis a Deo, per quod cognoscimus quid agendum et quid vitandum”.

[7] Cf. S. Th. I-II, q. 94, a. 2. “Sunt quaedam principia per se nota”.

[8] “Alguma pessoa dotada de inteligência”, dizia Santo Agostinho (op. cit. 1.6.15.48).

[9] Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 2.

[10] S. Th. I-II, q. 94, a. 4. “Quantum ad communia principia rationis sive speculativae sive practicae, est eadem veritas seu rectitudo apud omnes, et aequaliter nota”.

[11] S. Th. I-II, q. 90, a. 2. “Oportet quod lex maxime respiciat ordinem qui est in beatitudinem”.

[12] S. Th. I-II, q. 91, a. 4. “Excedit proportionem naturalis facultatis humanae. Ut supra legem naturalem et humanam, dirigeretur etiam ad suum finem lege divinitus data”.

A dimensão de justiça existente no mistério de salvação que é a Igreja

image1954_043_1Pe. Alex Barbosa de Brito, EP

A narração do Gênesis faz perceber, no ato mesmo da criação, Deus que ordena todos os seres à sua finalidade: os luzeiros a servir de sinal para marcar o tempo (Cf. Gn 1, 14-18); os animais e os vegetais, multiplicando-se segundo sua própria natureza (Cf. Gn 1, 24-25).

Santo Ambrósio nos explica:

 

Com efeito, a palavra de Deus correu por toda a criação na constituição do mundo e, no futuro, pela prescrição da lei, para que todas [as criaturas] viessem a ter uma sucessão conforme sua própria espécie e semelhança; assim, leão gera leão, tigre gera tigre, boi gera boi, cisne gera cisne, águia gera águia. Definitivamente, o preceito se enraizou para sempre na natureza, e por isso a terra não deixa de prestar obediência a sua função.[1]

E para o homem, imagem e semelhança do Criador, além da norma inscrita na sua própria consciência, Deus, “criando” um dos princípios de legalidade — nulla poena sine lege —, deu-lhes preceito: “de ligno autem scientiae boni et mali ne comedas”, e justa pena: “in quocumque enim die comederis ex eo, morte morieris” (Gn 2, 17).

Essa breve reflexão da antropologia cristã faz recordar o que diz Ghirlanda ao comentar o homem como um ser em relação: “O estar em relação com o outro é uma necessidade estrutural do sujeito (ubi homo ibi societas)”, e das várias possibilidades de atuação, “o sujeito, em sua liberdade, encontra-se diante da responsabilidade das escolhas morais que deve fazer entre as várias possibilidades que se lhe oferecem”.[2]

Portanto, conclui o autor, “uma vez que as raízes do fenômeno do direito” se encontram na sociabilidade do homem (ubi societas ibi ius), também se pode dizer “ubi homo ibi ius”, pois “ao sócio se requer um empenho de verdade e de lealdade. A lei positiva compreende em si a eliminação do erro, mediante a coordenação estável e regular das ações”.[3]

A necessidade do Direito facilmente se observa mesmo nas sociedades primitivas, ainda que na concepção dos respectivos ordenamentos jurídicos pudessem estar, nestes ou naqueles aspectos, distantes dos planos do Criador.

Para São Tomás de Aquino, há uma só lei, a lei eterna: a parte revelada é a lei divina; a outra, que fica esculpida na consciência dos seres racionais, é o direito natural. Abaixo delas, a lei positiva, que é aquela convertida em norma posta pelos homens e que não pode contrariar nem a lei natural, nem a lei divina, ou seja, a lei positiva é mera transcrição, para entendimento dos homens, da lei eterna. Por isso o Doutor Angélico sustentava a possibilidade da resistência à lei iníqua, isto é, quando a lei positiva contrariar a lei natural, não deve ser obedecida.[4] 

A Igreja como Sociedade e como Povo de Deus

Se o homem em sociedade necessita de um direito para melhor atingir o seu fim, se o Povo Eleito recebeu, em pedra, os preceitos que Deus lhes escreveu no coração, o que dizer da Igreja de Cristo?[5]

A Igreja é chamada pelo Apóstolo o Corpo místico do Deus encarnado, em comparação com o corpo natural do homem (Cf. Ef 1, 23). Ele a cabeça, Ela o corpo; Ele o motor e o influxo, Ela a realizadora do bem; Ele o princípio da perfeição, Ela, embora perfeita na doutrina, caminha para a perfeição dos membros; Ele o governo e a autoridade, Ela protegida e ordenada; Ele o inigualável Fundador, Ela a magnífica fundação. Ele o escolhido das nações, Ela a sociedade dos homens eleitos, o Povo de Deus; Ele Deus e homem, Ela humana e divina, analogia perfeita do mistério da Encarnação.

Considerada como Povo de Deus é uma sociedade, cujos membros, unidos não mais pelos vínculos de parentesco ou nacionalidade, gozam da liberdade e dignidade de filhos de Deus, têm um fim comum, que é o Reino dos Céus, e como lei o mandamento novo, de amar uns aos outros como o próprio Cristo nos amou (Cf. LG 9).

E embora sejam de natureza essencialmente espiritual os vínculos sociais do Povo de Deus, ou seja, uma comunhão de afeto, entre irmãos (Cf.LG 9), “deve ser também entendida como uma realidade orgânica, que requer uma forma jurídica”, ao mesmo tempo que é animada pela caridade.[6]

Por isso é que o direito que deve regular e estruturar as relações desta sociedade, é um direito sui generis, o direito eclesiástico — a dimensão de justiça existente no mistério de salvação que é a Igreja —, o qual, por muitas vezes se expressar em cânones, é também chamado de Direito Canônico.

Há uma objeção feita por aqueles que, munidos de argumentos de ordem pastoral, afirmam que “a Igreja não precisa de um direito”. O único mandato do divino Redentor foi de que os discípulos, pelo mundo inteiro, anunciassem a Boa Nova; portanto, o direito não teria origem em Cristo, senão nos homens. O próprio Código de 1983 não reconhece a caducidade das leis, derrogando-as em aras à salvação das almas, como lei suprema?

Deve-se temer muito que, sob o pretexto de pastoral, se exclua o direito. Há um sério risco de requintado autoritarismo por parte dos que, desprezando o direito universal da Igreja, fazem-no substituir pelo arbítrio de suas vontades, fantasias e caprichos. Veja-se o que nos ensinam os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos.

Foi Cristo quem escolheu os Doze (Lc 6, 12-19), mas quando se tratou de nomear um substituto para o Iscariotes, coube aos Apóstolos estabelecer as regras para a sucessão, “dederunt sortes eis, et cecidit sors super Matthiam”, que foi logo incorporado ao número dos Apóstolos. (At 1, 21-26).

Isto também se aplica ao Sacramento da Eucaristia, deixando-nos o mesmo Cristo poucos detalhes a respeito do rito, talvez porque não fosse destinado a ser o quadro da celebração.[7] Santo Agostinho nos ensina que o Senhor assim o fez — dando-nos o Sacramento depois da ceia —, “para valorizar sobremaneira a profundidade deste mistério” e para com ele “marcar os corações e a mente dos discípulos”; contudo, “deixou a regulamentação aos Apóstolos que deviam organizar a Igreja”.[8]

Recorda João Paulo II, na Constituição Apostólica Sacrae Disciplinae Leges, por meio da qual foi pronulgado o Código de 1983, que “no decorrer dos tempos, a Igreja Católica costumou reformar e renovar as leis da disciplina canônica, a fim de, na fidelidade constante a seu Divino Fundador, adaptá-las à missão salvífica que lhe é confiada”, e que o objetivo do Código não é “substituir, na vida da Igreja ou dos fiéis, a fé, a graça e os carismas, nem muito menos a caridade. Pelo contrário, sua finalidade é, antes, criar na sociedade eclesial uma ordem que, dando primazia ao amor, à graça e aos carismas, facilite ao mesmo tempo seu desenvolvimento orgânico na vida, seja da sociedade eclesial, seja de cada um de seus membros”.

Ainda que caibam principalmente aos Bispos a guarda e vigilância das leis da Igreja, nos ensina o Papa São Celestino I que “a nenhum dos sacerdotes é lícito ignorar os cânones”,[9] e o IV Concílio de Toledo (633) prescreve que “os sacerdotes conheçam as escrituras sagradas e os cânones”, e que “a ignorância, mãe de todos os erros, deve ser evitada, principalmente nos sacerdotes de Deus”.[10]

 


[1] AMBRÓSIO. Examerão – Os seis dias da criação. Sexto dia. 3, 9. Coleção Patrística, Tradução Célia Mariana Franchi Fernandes da Silva. São Paulo: Paulus, 1996. Vol. 26. p. 230.

[2] GHIRLANDA, Gianfranco. O Direito na Igreja: Mistério de Comunhão. Tradução Pe. Carlos da Silva. São Paulo: Santuário, 2003. p. 17.

[3] GHIRLANDA, Gianfranco, op. cit. p. 18.

[4] Cf. S Th I-II q. 94, a. 2. O mesmo conceito se encontra em II Sent., 42, 1, 4 ad 3.

[5] (Salmo 57,1) Cf. AGOSTINHO, Santo. Comentário aos salmos. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2008. p. 136.

[6] Cf. Ghirlanda, op. cit. p. 43-44.

[7] Cf. JUNGMANN, J. A. Missarium Sollemnia. Tradução de Monica Ottermann. São Paulo: Paulus, 2009. p. 25.

[8] Apud S Th III, q. 80, a. 8, 1. Suma Teológica. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2003. Vol. 9.

[9] Papa Celestino em Carta aos Bispos constituídos na Apulia e Calábria, 21 de julho de 429. Apud HORTAL, Jesus. Prefácio ao Código de Direito Canônico. São Paulo: Loyola, 2004. p. 15.

[10] IV Concílio de Toledo, 633. Apud. HORTAL, Jesus. Prefácio, op. cit. p. 15.