Quando a lei se corrompe

 Pe. José Victorino de Andrade, EP

A mentalidade contemporânea ao desprezar a natureza humana e a lei revelada, nega a existência de uma verdade absoluta e relativiza a moral, insistindo numa legislação desprovida de valores eternos que gera consequências funestas para a pessoa, a família e a sociedade. No seu discurso aos membros da Comissão Teológica Internacional em 5 de Outubro de 2007, Bento XVI consciencializou os presentes sobre esta matéria de modo magistral:

Hoje, em não poucos pensadores parece predominar uma concepção positivista do direito. Segundo eles, a humanidade ou a sociedade, ou de fato a maioria dos cidadãos, torna-se a fonte derradeira da lei civil. […] Na raiz desta tendência está o relativismo ético, no qual alguns vêem uma das principais condições da democracia, porque o relativismo garantiria a tolerância e o respeito recíproco das pessoas. Mas se fosse assim, a maioria de um momento tornar-se-ia a última fonte do direito. A história demonstra com grande clareza que as maiorias podem errar. […] Quando estão em jogo as exigências fundamentais da dignidade da pessoa humana, da sua vida, da instituição familiar, da equidade do ordenamento social, isto é, os direitos fundamentais do homem, nenhuma lei feita pelos homens pode subverter a norma escrita pelo Criador no coração humano, sem que a própria sociedade seja dramaticamente golpeada naquilo que constitui a sua base irrenunciável.[1]

Importa-nos dissertar sobre alguns aspectos dos elementos que validam a lei, os quais são enumerados por São Tomás de Aquino ao citar Santo Isidoro. [2] Assim sendo, é requisito necessário que a lei positiva humana seja honesta, justa e possível:

1. Deve ser honesta, isto é, não pode ser contrária a outra lei superior, natural ou positiva;

2. Deve ser justa em relação ao fim, que deve ser o bem da comunidade; em relação ao autor, que deve ser o superior legítimo e em relação à forma, de modo que a divisão dos deveres seja proporcionada às condições de cada um;

3. Deve ser possível na medida em que não pode ser demasiadamente difícil ou gravosa.

Sem estes elementos pode redundar ao homem a impossibilidade ou a não obrigatoriedade do cumprimento da lei e a sua objeção de consciência quando agride a moral, ou mesmo os sãos valores da ética. A discriminação em relação às minorias ou a todo um povo, a agressão de valores exponenciais como a vida, a perseguição à Fé e à Religião, constituem uma grave transgressão das competências legais de um Estado e da instância legisladora humana. Infelizmente, a História está coalhada de exemplos de Estados que extravasaram suas competências invadindo um campo que não lhes pertence e entrando em conflito com a lei emanada pelo próprio Deus, e de regimes que nos trazem à memória um profundo desrespeito pela liberdade e dignidade humana.

O Papa João Paulo II, na sua Evangelium Vitæ, relembrava a atualidade da encíclica Pacem in Terris de João XXIII, ao citá-la abundantemente e elucidar a respeito da validade das leis:

Se a autoridade não reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser como também as suas disposições estão privadas de qualquer valor jurídico. […] A autoridade é exigência da ordem moral e promana de Deus. Por isso, se os governantes legislarem ou prescreverem algo contra essa ordem e, portanto, contra a vontade de Deus, essas leis e essas prescrições não podem obrigar a consciência dos cidadãos. Neste caso, a própria autoridade deixa de existir, degenerando em abuso do poder. O mesmo ensinamento aparece claramente em São Tomás de Aquino, que escreve: ‘A lei humana tem valor de lei enquanto está de acordo com a reta razão, derivando, portanto, da lei eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor, mas é um ato de violência’. E ainda: ‘Toda a lei constituída pelos homens tem força de lei só na medida em que deriva da lei natural. Se, ao contrário, em alguma coisa está em contraste com a lei natural, então não é lei, mas sim corrupção da lei’ (n. 71-72).[3]

É preciso ter em conta que a lei eterna e natural é anterior a qualquer lei positiva criada pelo homem e pela sua inviolabilidade, universalidade e imutabilidade necessitam reconhecimento e respeito. Os próprios direitos humanos perdem o seu sentido mais profundo se se ignora que eles pertencem à natureza humana e são inerentes à pessoa por força do ato criador do qual ela se origina.[4]


[1] Presso non pochi pensatori sembra oggi dominare una concezione positivista del diritto. Secondo costoro, l’umanità, o la società, o di fatto la maggioranza dei cittadini, diventa la fonte ultima della legge civile. […] Alla radice di questa tendenza vi è il relativismo etico, in cui alcuni vedono addirittura una delle condizioni principali della democrazia, perché il relativismo garantirebbe la tolleranza e il rispetto reciproco delle persone. Ma se fosse così, la maggioranza di un momento diventerebbe l’ultima fonte del diritto. La storia dimostra con grande chiarezza che le maggioranze possono sbagliare. […] Quando sono in gioco le esigenze fondamentali della dignità della persona umana, della sua vita, dell’istituzione familiare, dell’equità dell’ordinamento sociale, cioè i diritti fondamentali dell’uomo, nessuna legge fatta dagli uomini può sovvertire la norma scritta dal Creatore nel cuore dell’uomo, senza che la società stessa venga drammaticamente colpita in ciò che costituisce la sua base irrinunciabile”. (Insegnamenti, III, 2 (2007). p. 420-421. Tradução minha).

[2] Cf. S. Th. I-II, q. 6 a. 3.

[3] In: AAS 87 (1995) 5.

[4]Cf. BENEDETTO XVI. Ai membri della Commissione Teologica Internazionale, Giovedì 1º dicembre. In: Insegnamenti, I (2005). p. 914.

A ruptura da lei perante Deus

Diác. José de Andrade, EPluz

A inobservância da lei Divina e natural acarreta em si uma forma de penalidade munida de contornos próprios. Desta forma, a perturbação e o não cumprimento das prescrições definidas poderão conduzir ao pecado,1 que consiste precisamente numa transgressão à Lei de Deus, embora coincida com a violação da lei natural. Uma vez que Deus ordena desde toda a eternidade o que é conveniente e proporcionado à natureza racional,2 consistiria numa ruptura com esta ordem e, portanto, com Deus, se o homem viesse a recusar e menosprezar a lei natural enquanto participação da criatura racional na lei eterna. Consequentemente, romper com a Lei pode trazer uma sanção na vida futura, que consiste na perda eterna da felicidade.

De acordo com São Tomás de Aquino, Deus ama os homens chamando-os à visão de Deus, que supera o comum estado da natureza, outorgando-lhes não só a graça nesta terra, como a glória no Céu. Porém, aqueles que pecam fazendo mau uso de sua liberdade, e de seu livre arbítrio, perdem nesse mesmo instante a graça, e o Supremo Juiz reprova-os imputando-lhes a devida culpa que é causa de uma pena eterna, aplicada na vida futura.3 Verifica-se então uma dupla decorrência relativa à transgressão: em sua peregrinação terrena o pecador perde a posse de Deus – antecipação da felicidade eterna – consequência que se assemelha, de certo modo, a um prelúdio daquela mesma reprovação eterna que se dá após o juízo.

Entretanto, também o não cumprimento das leis humanas, quando providas das condições que as legitimam e validam, obrigam em consciência diante de Deus e a sua transgressão poderá constituir um verdadeiro pecado,4 cuja gravidade dependeria, sobretudo, do grau de rompimento com a lei divina a ela adjacente.

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1 Ver, por exemplo, um estudo relativamente recente de FUCEK, Ivan. Il Peccato Oggi. Roma: Università Gregoriana, 1996. Em geral no capítulo VI, La natura del peccato e dei peccati; em particular nas páginas 169 e 175.

2 Cf. ROYO MARÍN, Antonio. Teologia moral para seglares. 2. ed. Madrid: BAC, 2007. Vol. I. p. 129.

3 Cf. S. Th. q. 23, a. 3; 7.

4 ROYO MARÍN, Antonio. Op. Cit. p. 140.

A dimensão de justiça existente no mistério de salvação que é a Igreja

image1954_043_1Pe. Alex Barbosa de Brito, EP

A narração do Gênesis faz perceber, no ato mesmo da criação, Deus que ordena todos os seres à sua finalidade: os luzeiros a servir de sinal para marcar o tempo (Cf. Gn 1, 14-18); os animais e os vegetais, multiplicando-se segundo sua própria natureza (Cf. Gn 1, 24-25).

Santo Ambrósio nos explica:

 

Com efeito, a palavra de Deus correu por toda a criação na constituição do mundo e, no futuro, pela prescrição da lei, para que todas [as criaturas] viessem a ter uma sucessão conforme sua própria espécie e semelhança; assim, leão gera leão, tigre gera tigre, boi gera boi, cisne gera cisne, águia gera águia. Definitivamente, o preceito se enraizou para sempre na natureza, e por isso a terra não deixa de prestar obediência a sua função.[1]

E para o homem, imagem e semelhança do Criador, além da norma inscrita na sua própria consciência, Deus, “criando” um dos princípios de legalidade — nulla poena sine lege —, deu-lhes preceito: “de ligno autem scientiae boni et mali ne comedas”, e justa pena: “in quocumque enim die comederis ex eo, morte morieris” (Gn 2, 17).

Essa breve reflexão da antropologia cristã faz recordar o que diz Ghirlanda ao comentar o homem como um ser em relação: “O estar em relação com o outro é uma necessidade estrutural do sujeito (ubi homo ibi societas)”, e das várias possibilidades de atuação, “o sujeito, em sua liberdade, encontra-se diante da responsabilidade das escolhas morais que deve fazer entre as várias possibilidades que se lhe oferecem”.[2]

Portanto, conclui o autor, “uma vez que as raízes do fenômeno do direito” se encontram na sociabilidade do homem (ubi societas ibi ius), também se pode dizer “ubi homo ibi ius”, pois “ao sócio se requer um empenho de verdade e de lealdade. A lei positiva compreende em si a eliminação do erro, mediante a coordenação estável e regular das ações”.[3]

A necessidade do Direito facilmente se observa mesmo nas sociedades primitivas, ainda que na concepção dos respectivos ordenamentos jurídicos pudessem estar, nestes ou naqueles aspectos, distantes dos planos do Criador.

Para São Tomás de Aquino, há uma só lei, a lei eterna: a parte revelada é a lei divina; a outra, que fica esculpida na consciência dos seres racionais, é o direito natural. Abaixo delas, a lei positiva, que é aquela convertida em norma posta pelos homens e que não pode contrariar nem a lei natural, nem a lei divina, ou seja, a lei positiva é mera transcrição, para entendimento dos homens, da lei eterna. Por isso o Doutor Angélico sustentava a possibilidade da resistência à lei iníqua, isto é, quando a lei positiva contrariar a lei natural, não deve ser obedecida.[4] 

A Igreja como Sociedade e como Povo de Deus

Se o homem em sociedade necessita de um direito para melhor atingir o seu fim, se o Povo Eleito recebeu, em pedra, os preceitos que Deus lhes escreveu no coração, o que dizer da Igreja de Cristo?[5]

A Igreja é chamada pelo Apóstolo o Corpo místico do Deus encarnado, em comparação com o corpo natural do homem (Cf. Ef 1, 23). Ele a cabeça, Ela o corpo; Ele o motor e o influxo, Ela a realizadora do bem; Ele o princípio da perfeição, Ela, embora perfeita na doutrina, caminha para a perfeição dos membros; Ele o governo e a autoridade, Ela protegida e ordenada; Ele o inigualável Fundador, Ela a magnífica fundação. Ele o escolhido das nações, Ela a sociedade dos homens eleitos, o Povo de Deus; Ele Deus e homem, Ela humana e divina, analogia perfeita do mistério da Encarnação.

Considerada como Povo de Deus é uma sociedade, cujos membros, unidos não mais pelos vínculos de parentesco ou nacionalidade, gozam da liberdade e dignidade de filhos de Deus, têm um fim comum, que é o Reino dos Céus, e como lei o mandamento novo, de amar uns aos outros como o próprio Cristo nos amou (Cf. LG 9).

E embora sejam de natureza essencialmente espiritual os vínculos sociais do Povo de Deus, ou seja, uma comunhão de afeto, entre irmãos (Cf.LG 9), “deve ser também entendida como uma realidade orgânica, que requer uma forma jurídica”, ao mesmo tempo que é animada pela caridade.[6]

Por isso é que o direito que deve regular e estruturar as relações desta sociedade, é um direito sui generis, o direito eclesiástico — a dimensão de justiça existente no mistério de salvação que é a Igreja —, o qual, por muitas vezes se expressar em cânones, é também chamado de Direito Canônico.

Há uma objeção feita por aqueles que, munidos de argumentos de ordem pastoral, afirmam que “a Igreja não precisa de um direito”. O único mandato do divino Redentor foi de que os discípulos, pelo mundo inteiro, anunciassem a Boa Nova; portanto, o direito não teria origem em Cristo, senão nos homens. O próprio Código de 1983 não reconhece a caducidade das leis, derrogando-as em aras à salvação das almas, como lei suprema?

Deve-se temer muito que, sob o pretexto de pastoral, se exclua o direito. Há um sério risco de requintado autoritarismo por parte dos que, desprezando o direito universal da Igreja, fazem-no substituir pelo arbítrio de suas vontades, fantasias e caprichos. Veja-se o que nos ensinam os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos.

Foi Cristo quem escolheu os Doze (Lc 6, 12-19), mas quando se tratou de nomear um substituto para o Iscariotes, coube aos Apóstolos estabelecer as regras para a sucessão, “dederunt sortes eis, et cecidit sors super Matthiam”, que foi logo incorporado ao número dos Apóstolos. (At 1, 21-26).

Isto também se aplica ao Sacramento da Eucaristia, deixando-nos o mesmo Cristo poucos detalhes a respeito do rito, talvez porque não fosse destinado a ser o quadro da celebração.[7] Santo Agostinho nos ensina que o Senhor assim o fez — dando-nos o Sacramento depois da ceia —, “para valorizar sobremaneira a profundidade deste mistério” e para com ele “marcar os corações e a mente dos discípulos”; contudo, “deixou a regulamentação aos Apóstolos que deviam organizar a Igreja”.[8]

Recorda João Paulo II, na Constituição Apostólica Sacrae Disciplinae Leges, por meio da qual foi pronulgado o Código de 1983, que “no decorrer dos tempos, a Igreja Católica costumou reformar e renovar as leis da disciplina canônica, a fim de, na fidelidade constante a seu Divino Fundador, adaptá-las à missão salvífica que lhe é confiada”, e que o objetivo do Código não é “substituir, na vida da Igreja ou dos fiéis, a fé, a graça e os carismas, nem muito menos a caridade. Pelo contrário, sua finalidade é, antes, criar na sociedade eclesial uma ordem que, dando primazia ao amor, à graça e aos carismas, facilite ao mesmo tempo seu desenvolvimento orgânico na vida, seja da sociedade eclesial, seja de cada um de seus membros”.

Ainda que caibam principalmente aos Bispos a guarda e vigilância das leis da Igreja, nos ensina o Papa São Celestino I que “a nenhum dos sacerdotes é lícito ignorar os cânones”,[9] e o IV Concílio de Toledo (633) prescreve que “os sacerdotes conheçam as escrituras sagradas e os cânones”, e que “a ignorância, mãe de todos os erros, deve ser evitada, principalmente nos sacerdotes de Deus”.[10]

 


[1] AMBRÓSIO. Examerão – Os seis dias da criação. Sexto dia. 3, 9. Coleção Patrística, Tradução Célia Mariana Franchi Fernandes da Silva. São Paulo: Paulus, 1996. Vol. 26. p. 230.

[2] GHIRLANDA, Gianfranco. O Direito na Igreja: Mistério de Comunhão. Tradução Pe. Carlos da Silva. São Paulo: Santuário, 2003. p. 17.

[3] GHIRLANDA, Gianfranco, op. cit. p. 18.

[4] Cf. S Th I-II q. 94, a. 2. O mesmo conceito se encontra em II Sent., 42, 1, 4 ad 3.

[5] (Salmo 57,1) Cf. AGOSTINHO, Santo. Comentário aos salmos. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2008. p. 136.

[6] Cf. Ghirlanda, op. cit. p. 43-44.

[7] Cf. JUNGMANN, J. A. Missarium Sollemnia. Tradução de Monica Ottermann. São Paulo: Paulus, 2009. p. 25.

[8] Apud S Th III, q. 80, a. 8, 1. Suma Teológica. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2003. Vol. 9.

[9] Papa Celestino em Carta aos Bispos constituídos na Apulia e Calábria, 21 de julho de 429. Apud HORTAL, Jesus. Prefácio ao Código de Direito Canônico. São Paulo: Loyola, 2004. p. 15.

[10] IV Concílio de Toledo, 633. Apud. HORTAL, Jesus. Prefácio, op. cit. p. 15.