Vida interior e vida ativa mutuamente se reclamam

Dom J. B. Chautard

A ALMA DE TODO

APOSTOLADO

Cap.IV 2ª parte

 

hermannComo o amor de Deus se revela pelos atos da vida interior, assim o amor do próximo se manifesta pelas operações da vida exterior. Portanto, não podendo o amor de Deus separar‑se do amor do próximo, resulta daí que essas duas formas de vida não podem também, de maneira alguma, subsistir uma sem a outra.[1] 20

De igual sorte, diz Suárez, não pode existir estado correta e normalmente ordenado para chegar à perfeição, sem que participe em certa medida da ação e da contemplação.[2]

O ilustre jesuíta limita‑se a comentar o ensinamento de São Tomás. Aqueles que são chamados às obras da vida ativa, diz o Doutor Angélico, erram se julgam que este dever os dispensa da vida contemplativa. Tal dever é um acréscimo desta vida e não lhe diminui a intensidade. Destarte, as duas vidas, longe de se excluir, reclamam‑se, supõem‑se, misturam‑se, completam‑se mutuamente; e, se de qualquer das duas se deve fazer um quinhão mais considerável, é por sem dúvida da vida contemplativa, a mais perfeita e a mais necessária.[3]

A ação, para ser fecunda, carece da contemplação; quando esta atinge certo grau de intensidade, difunde sobre a primeira algum tanto do seu excedente e, por meio dela, a alma vai haurir diretamente no coração de Deus as graças que a ação se encarrega de distribuir.

Por isso é que, fundindo‑se, na alma de um santo, a ação e a contemplação, em harmonia perfeita, ambas dão à vida dele unidade maravilhosa. Tal, por exemplo, São Bernardo, o homem mais contemplativo e ao mesmo tempo mais ativo do seu século, e de quem faz esta admirável pintura um dos seus contemporâneos: a contemplação e a ação harmonizavam‑se nele a ponto tal que este santo a um tempo parecia inteiramente dedicado às obras exteriores e inteiramente absorvido na presença e no amor do seu Deus.[4]

Comentando este texto da Sagrada Escritura: Pone me ut signaculum super cor tuum, ut signaculum super brachium tuum,[5] o Pe. Saint Jure descreve admiravelmente as mútuas relações entre as duas vidas. Vamos resumir as suas reflexões:

O coração significa a vida interior, contemplativa. O braço, a vida exterior, ativa.

O texto sagrado fala do coração e do braço para mostrar que as duas vidas se podem aliar e harmonizar perfeitamente na mesma.

O coração é indicado em primeiro lugar, porque é um órgão sobremaneira mais nobre e necessário que o braço. Da mesma forma, a contemplação é muito mais excelente e mais perfeita e merece muito mais estima que a ação.

Dia e noite, o coração palpita. Um só instante que este órgão essencial parasse, logo a morte sobreviria. O braço, parte apenas integrante do corpo humano, esse somente se move por intervalos. Do mesmo modo, devemos algumas vezes dar tréguas a nossos trabalhos exteriores; mas, ao invés, nunca devemos afrouxar na nossa aplicação às coisas espirituais.

O coração dá vida e força ao braço por meio do sangue que lhe envia e, sem este, o braço se dessecaria. Da mesma forma, a vida contemplativa, vida de união a Deus, graças às luzes e à perpétua assistência que a alma recebe desta intimidade, vivifica as ocupações exteriores; só ela é capaz de lhes comunicar simultaneamente o caráter sobrenatural e a real utilidade. Sem ela, tudo fica enlanguescido, estéril, cheio de imperfeições.

O homem, ai! amiúde separa o que Deus uniu; por isso é que tão rara é essa união perfeita. Demais, para ser realizada, exige ela um conjunto de precauções de freqüente negligenciadas. Nada empreender que exceda as próprias forças. Ver em tudo, habitual mas simplesmente, a vontade de Deus. Não nos metermos em obras senão quando Deus quer, e na medida exata em que lhe apraz ver‑nos consagrados a elas, e somente com o desejo de exercer a caridade. Logo no princípio, oferecer‑lhe nosso trabalho e, no decurso de nossos labores, reanimar amiúde, por meio de pensamentos santos, por meio de ardentes orações jaculatórias, nossa resolução de não trabalhar senão por Ele e para Ele. Em suma, seja qual for a atenção que devamos prestar a nossos trabalhos, conservar‑nos sempre em paz, perfeitamente senhores de nós mesmos. Quanto ao bom êxito, deixá‑lo unicamente nas mãos de Deus e aspirarmos a ver‑nos livres de todos os cuidados apenas para nos reencontrarmos a sós com Jesus Cristo. Tais são os sapientíssimos conselhos dos mestres da vida espiritual para chegarmos a essa união.

Por vezes, as ocupações hão de multiplicar‑se a ponto tal que exijam o dispêndio de todas as nossas energias, sem que, por outro lado, nos possamos desembaraçar do fardo, ou mesmo aligeirá‑lo. A conseqüência poderá ser a privação, por um tempo mais ou menos longo, do gozo da união a Deus, mas essa união somente sofrerá algum dano se nós assim o quisermos. Prolongando‑se este estado, é necessário por tal motivo gemer, sofrer e temer acima de tudo o habituarmo‑nos a ele.

O homem é fraco, inconstante. Se descuida a sua vida espiritual, depressa perde o gosto dela. Absorvido pelas ocupações materiais, acaba por comprazer‑se nelas. Pelo contrário, se o espírito interior manifesta a sua vitalidade latente por meio de suspiros e gemidos, esses lamentos contínuos, como provém de uma ferida que se não fecha mesmo no meio de uma atividade transbordante, constituem o mérito da contemplação sacrificada, ou melhor, a alma realiza essa admirável e fecunda união da vida interior e da vida ativa.

Oprimida por essa sede de vida interior que não logra apagar a seu bel‑prazer, a alma há de voltar com ardor, logo que possa, à vida de oração. Nosso Senhor sempre lhe há de reservar alguns instantes de entretenimento com Ele. Exige, porém, que a alma os não despreze e há de então compensar‑lhe com o fervor a brevidade desses felizes momentos.

Como as vias de Deus se assinalam pela sabedoria e pela bondade! Que maravilhosa direção não dá Ele às almas por meio da vida interior! Conservada no seio da ação e sem embargo generosamente oferecida, essa pena profunda de termos de consagrar tanto tempo às obras de Deus, e tão pouco ao Deus das obras, tem a sua compensação. Graças a ela, desvanecem‑se todos os perigos de dissipação, de amor próprio, de afeições naturais. Essa disposição da alma longe de prejudicar a liberdade do espírito e a atividade, dá‑lhes um caráter mais ponderado. É ela a forma prática do exercício da presença de Deus, porque a alma, na graça do momento presente encontra Jesus vivo, oferecendo‑se‑lhe oculto sob a obra a realizar. Jesus trabalha com ela e ampara‑a. Quantas pessoas, que desempenham cargos, hão de dever a essa pena salutar bem compreendida, a esse desejo sempre sacrificado e sempre vivo de ter mais momentos livres para estar junto do sacrário, e essas comunhões espirituais desde então quase incessantes, hão de dever, repetimos, a fecundidade de sua ação e ao mesmo tempo assim a salvaguarda da sua alma como seus progressos na virtude!

in: CHAUTARD, J. B. A ALMA DE TODO APOSTOLADO. São Paulo: Coleção, 1962.

[1] ) Sicut per contemplationem amandus est Deus, ita per actualem vitam diligendus est proximus, ac per hoc, sic non possumus sine utraque esse vita, sicut et sine utraque dilectione esse nequaquam possumus (S.Isid., Different., Lib. II, XXXIV, N. 135).

 

[2] ) Concedendum ergo est nullum esse posse vitae studium recte institutum ad perfectionem obtinendam, quod non aliquid de actione et de contemplatione participet (Suarez, I De Relig. Tract., 1, I, c. v, n. 5).

[3] ) Cum aliquis a contemplativa vita ad activam vocatur, non fit per modum substractionis, sed per modum additionis (D. Thom., 2, 2.ae, q. 182, a. 1).

[4] ) Interiori quadam, quam ubique ipse circumferebat solitudine fruebatur, totus quodammodo exterius laborabat, et totus interius Deo vacabat (God., Vita S. Bern. 1, I, c. v, et 1, III).

[5] ) Põe‑me como um selo sobre o teu coração, como um selo sobre o teu braço (Cant. 8, 6).