As desigualdades são injustas?

Pe. Luís Francisco, EP

Barrenechea apresenta o ponto chave da objeção às desigualdades, oriundas da vontade divina:

Não só a distinção entre os seres, mas também sua diferença e desigualdade procede de Deus. A dificuldade de atribuir a Deus a causa da multiplicidade – e portanto da desigualdade – é agravada agora por um prejuízo que vê na desigualdade uma certa forma de injustiça. (BARRENECHEA, Madrid, 2001, p. 434)

Sto. Tomás coloca em relevo que a diversidade formal das essências foram queridas por Deus para representá-lo adequadamente.  E, por sua vez, essa diversidade formal traz  consigo uma gradação de perfeição entre os seres que compõem o Universo. Portanto, as desigualdades essenciais foram expressamente criadas por Deus, sendo fundamentalmente boas (Cfr. BARRENECHEA, Madrid, 2001, p. 435). Conclui-se não existir injustiça na diversidade dos graus de perfeição  (AQUINO, Suma Contra os Gentios, L. II, q. 44, Caxias do Sul, 1990, Vol. I, p. 241), e até, muito pelo contrário, há um verdadeiro enriquecimento da semelhança de Deus na criação, o fazer-se ela por muitas criaturas.

É curioso notar que essa ideia de que a desigualdade é necessariamente injusta existia já nos primeiros séculos da História da Igreja. Depara-mo-nos aqui com uma tendência, sempre presente no homem desde o início de sua existência na Terra, de se colocar no centro e de interpretar todo o acontecer humano, sem tomar em consideração que Deus – e não o homem! – é que ocupa verdadeiramente o papel central, em função do qual devem ser amorosamente considerados, tanto os fatos, como os próprios desígnios divinos.  É por este motivo que a mesma ideia, hoje tão difundida, de que a desigualdade é contrária à bondade e constitui uma injustiça, moveu no Séc. III um Orígenes a se desviar e a cair em heresia. Assim, a vinculação das desigualdades a prêmios ou castigos em face de atitudes morais, e como dizia Orígenes, por exemplo, que a criação material se deveu a pecados de homens que não corresponderam e foram infiéis, bem poderia ser a afirmação dos igualitários atuais, que vêm na desigualdade um atentado às regras da justiça. Ora, segundo Sto. Tomás, nenhuma realidade nascida do poder divino deve sua existência ao castigo, pois toda realidade em si é manifestação da essência de Deus, e portanto não pode ser injusta. A isso se aplicam, tanto as desigualdades de nascimento, quanto de capacidades, quanto até mesmo de dons e virtudes sobrenaturais (Cfr. op. Cit., pp. 238 a 241).

Esse erro involucra uma crítica à divina Sabedoria que criou com vistas à sua maior glória seres desigualmente perfeitos, a fim de constituírem um todo ordenado e perfeito. Dessa falsa doutrina decorre a tendência a um trato vulgar, que procura, senão ignorar, ao menos disfarçar ao máximo todas as diversidades harmônicas e proporcionais que constituem a maravilhosa melodia de adoração e louvor, constantemente a Deus entoada, pelas criaturas. Em outras palavras, querer nivelar é querer destruir o magnífico espelho das divinas perfeições… é odiar a Deus! A perfeição da Ordem que faz com que as criaturas se harmonizem formando conjuntos e que estes, por sua vez se disponham ordenadamente constituindo um todo, desigual e hierarquizado, nada mais é do que um imenso vitral a refletir em sua maior perfeição os infinitos atributos divinos1.

Aduz Sto. Tomás, ao refutar a ideia de que a desigualdade dos graus de perfeição é uma injustiça:

Parece que Orígenes não ponderou que quando concedemos algo, não por débito, mas por liberdade, não é contrário à justiça darmos sem igualdade […]. Deus… produziu as coisas no ser não devido a mérito algum, mas por pura liberalidade. Donde a diversidade das criaturas não pressupor a diversidade dos méritos. (AQUINO, Suma Contra os Gentios, L. II, q. 44, Caxias do Sul, 1990, Vol. I, p. 241)

Ademais, Orígenes coloca-se numa atitude que desconsidera a liberdade de Deus na Obra da Criação e associa o poder divino a uma “pretensão igualitária”. “O igualitarismo moral tem seu campo em determinadas facetas da vida humana, mas não na atividade divina, prévia a todo mérito”, ressalta Barrenechea. Este autor acentua um aspecto que não fará senão ampliar as desigualdades, sem prejuízo de uma igualdade fundamental:

A postura tomista recolhe, ademais, uma inspiração básica do cristianismo, segundo a qual Deus outorga o ser  e a comunicação sobrenatural de sua vida de modo gratuito, o que não impede que seus dons sejam ulteriormente o ponto de partida das ações meritórias ou demeritórias dos seres livres. (BARRENECHEA,  Madrid, 2001, p. 435)


1 Cfr. AQUINO, Santo Tomás. Suma Teológica, P. I, Q. 47, São Paulo: Loyola, 2005, pp. 76 a 83.

A essência de nossa vida cristã

Mons. João S. Clá Dias, EPDom Miguel de Mañara fundador Santa Caridad Sevilla

Em nosso egoísmo, somos levados a nos considerar o centro de nossas atenções e preocupações, mas a essência de nossa vida cristã é social: “Amai-vos, uns aos outros” (Jo 13, 34; 15, 12; 15, 17); ou: “Quem ama ao próximo, cumpriu a lei” (Rom, 13, 8). Jesus pesa nossos atos em função de nossa misericórdia com o próximo, ou seja, Ele usa, para nos julgar, de um critério social.

Deus distribui seus bens de forma desigual aos homens, para que uns possam dispensar e outros receber. Isso se passa não só no campo material como também, e sobretudo, no campo cultural e espiritual. Pela misericórdia e justiça unidas, seremos nós julgados diante de todos os anjos e homens.

Preparemo-nos, pois, neste Advento, para receber Jesus que vem na plenitude de sua misericórdia, e roguemos Àquela que O traz a este mundo sua poderosa intercessão para o nosso segundo encontro com Ele, quando vier de improviso, na plenitude de sua justiça.

Arautos do Evangelho, n. 47