Diác. José Victorino de Andrade, EP
Em nossos dias, o conceito de justiça enquanto imparcialidade, política, independente de doutrinas religiosas e de uma filosofia comprometida com a metafísica, foi propugnada por pensadores recentes, como o filósofo político liberal John Rawls, que acrescenta a este pensamento a negação de uma verdade universal e a pretensão sobre a natureza e identidade essencial de pessoa.1 Não há dúvida que ao pretender isto, ele não se levanta diretamente contra a Igreja e seu papel, mas afasta sutilmente qualquer influência e reclama para a sociedade civil valores que têm fortes raízes evangélicas.
Bento XVI, em Caritas in Veritate, mostrará um outro rosto da justiça, na qual surgem valores como o de solidariedade e gratuidade, que não podem ser somente imputados ao Estado. E chama a atenção para uma tendência à qual é preciso dar uma resposta concreta:
Se, no passado, era possível pensar que havia necessidade primeiro de procurar a justiça e que a gratuidade intervinha depois como um complemento, hoje é preciso afirmar que, sem a gratuidade, não se consegue sequer realizar a justiça (n. 38).
Vemos a extrema dificuldade que a política tem hoje na construção desta gratuidade, sem os alicerces religiosos que dão fundamento à dádiva de si mesmo, à semelhança de Cristo, que deu a vida por todos, e da caridade cristã, que se baseia no mandamento novo trazido pelo Senhor. Não se trata de uma caridade estóica que dá sem se compadecer com o próximo, mantendo distância e não se deixando levar pelos sentimentos, mas de algo totalmente novo, uma novidade que nos pede uma transformação, uma conversão. Daqui parte verdadeiramente a justiça, a solidariedade, a gratuidade… de uma Palavra que nos fala e renova, santifica e impele. Aliás, o Papa Bento XVI em Deus Caritas Est considera exatamente que “nunca haverá uma situação onde não seja preciso a caridade de cada um dos indivíduos cristãos, porque o homem, além da justiça, tem e terá sempre necessidade do amor” (n. 29).
Também Mons. Giampaolo Crepaldi, atualmente Arcebispo de Trieste, quando Secretário do Pontifício Conselho Justiça e Paz, mostrava numa conferência como o Estado não pode simplesmente ignorar a Igreja, pois ele nunca será capaz de “produzir” o amor fraterno, mesmo sendo uma sociedade a mais perfeita e a mais justa.2 Ora, lembra Bento XVI logo no início de Caritas in Veritate que a caridade, via mestra da Igreja, é a síntese de toda a lei (cf. Mt 22, 36-40).
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1 RAWLS, John. Justicia como imparcialidad: política, no metafísica. In: ÉTICA DEL SIGLO XX: Doce textos fundamentales. Ed. Carlos Gómez. 2. ed. Madrid: Filosofia Alianza, 2005. p. 187-188.
2“[…] anche nella società più perfetta e più giusta ci sarà sempre bisogno dell’amore fraterno. La società, ed anche lo Stato, hanno bisogno di una risorsa che essi non sanno produrre”. CREPALDI, Giampaolo. Dottrina Sociale della Chiesa e Diritti Umani. 22ª Settimana Sociale dei cattolici trevigiani. Lunedì, 29 settembre 2008. p. 5.