Fundamento bíblico do primado petrino

Pe. Eduardo Caballero Baza, EP

São Pedro ocupa posição preeminente no Novo Testamento, onde é mencionado 114 vezes nos Evangelhos e 57 vezes nos Atos dos Apóstolos.

Fala em nome de todos os Apóstolos (Lc 12, 41, Mt 19, 27, Mc 10, 28, Lc 18, 28), responde por eles (Jo 6, 68, Mt 16, 16, Mc 8, 29) e age por todos (Mt 14, 28, Mc  8, 32, Mt 16, 22, Lc 22, 8, Jo 18, 10). Outras vezes  os evangelistas referem- se aos Apóstolos dizendo  “Pedro e os seus” (Mc 1, 36, Lc 8, 45; 9, 32, Mc 16, 7,  At 2, 14. 37). Jesus o elege depois de fazer um  grande milagre (Lc 5, 1-11); serve-Se de sua barca  para pregar às multidões (Lc 5, 3); hospeda-Se em  sua casa (Mc 1, 29); associa-o a Si no pagamento do tributo (Mt 17, 23-26); escolhe-o, com Tiago e João,  para assistir à ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,  37), à transfiguração (Mc 9, 2) e à agonia no  Getsêmani (Mc 14, 33); é o primeiro a quem aparece  ressuscitado (Lc 24, 34). É o único dos Doze que o  anjo nomeia para ser-lhe comunicada a mensagem  da Páscoa (Mc 16, 7). São João espera a chegada  de São Pedro, para deixá-lo entrar primeiro no  Sepulcro de Jesus (Jo 20, 2-8).

Depois da Ascensão e de Pentecostes, vemos São  Pedro exercendo a autoridade máxima na Igreja.  Completa o Colégio Apostólico com a eleição de São  Matias (At 1, 5ss); fala em nome dos Apóstolos  no dia de Pentecostes (At 2, 14ss); defende perante  as autoridades judaicas o direito dos Apóstolos, de  pregar a Fé em Cristo (At 4, 8-12); condena Ananias  e Safira (At 5, 1-11); é inspirado a abrir as portas da   Igreja também aos pagãos, com a conversão do  centurião Cornélio (At 10, 47); preside o Concílio de  Jerusalém (At 15, 6ss); toda a Igreja orava por sua  libertação, quando foi encarcerado por ordem de  Herodes (At 12, 5).

Por outro lado, São Paulo assinala de modo preeminente a importância de São Pedro como  cabeça da Igreja. Depois de sua estada na Arábia,  dirige-se a Jerusalém para vê-lo (Gal 1, 18);  reconhece nele uma das colunas da Igreja (Gal 2, 9);  coloca-o como o primeiro entre as testemunhas das aparições de Cristo ressuscitado (Cor 15, 5); e mesmo quando lhe resiste “em face” em Antioquia,  age como quem reconhece sua autoridade e, portanto, confirma de algum modo seu primado (Gal  2, 11-14).

Sucessão e Sacramentalidade do Munus Apostólicum

jesus-e-apostolos1Pe. Juan Carlos Casté, EP

A instituição do Colégio Apostólico

O Senhor, depois de ter rezado ao Pai, constituiu Doze apóstolos para enviá-los a pregar o Reino de Deus.[i] O número dos Doze recorda as doze tribos de Israel; de um lado expressa a edificação do novo Israel, nascido do “resto” do antigo, mas por outro lado, é intenção de Nosso Senhor romper com a casta sacerdotal limitada a uma tribo.

O próprio ato de eleição comporta já uma participação dos apóstolos à consagração e missão de Jesus, porque os escolhe para enviá-los a pregar, portanto, fá-los partícipes da Sua consagração e da Sua missão, realizando-se isto em diversos momentos e coincidindo com a instituição do sacramento da ordem, observável em diversas ocasiões nas quais recebem de Jesus a chamada, a potestade e a missão, completada no Pentecostes.

O magistério une a instituição da ordem à Eucaristia. João Paulo II, por exemplo, reafirmou a doutrina tridentina da união da ordem com a Eucaristia. Depois da Ressurreição, o Senhor faz dos apóstolos os continuadores da Sua missão e lhes dá o poder de perdoar os pecados.[ii] Essa missão dos apóstolos deriva da consagração recebida. Não é própria, em duplo sentido: é uma iniciativa de Outro e a sua capacidade para desenvolvê-la é participada.

Nessa missão os apóstolos foram confirmados no dia de Pentecostes. Ao descer o Espírito Santo, realizou-se o cumprimento da promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo e se completa a instituição da ordem sagrada enquanto dá aos apóstolos a graça necessária para cumprir a Sua missão exercitando a potestas sacra. Os apóstolos receberam, deste modo, a qualificação que permanecerá nos detentores do sacerdócio ministerial: uma capacidade ontológica e um “impulso interior” — o dom de Pentecostes contém também aquilo que posteriormente se chamará “graça sacramental específica” da ordem.[iii] Se a missio Ecclesiae é sempre reconduzível à missão invisível do Filho e do Espírito Santo, a missio apostólica deverá ter a sua origem não só em Cristo, como também no Espírito Santo.

O grupo dos Doze reunido no Cenáculo, como gérmen da Igreja, tinha já sido enviado pelo Senhor aos filhos de Israel, e depois a todas as gentes, a fim de que, participando da sua potestade, os convertessem em discípulos, os santificassem e os governassem, porém, foram confirmados nessa missão no Pentecostes. Foram impulsionados à missão e a predicar audazmente o Evangelho. Esse dom do Espírito Santo, o mesmo Espírito de Cristo, desceu sobre eles para que O comuniquem a todos os homens.

A posição dos Doze, ademais de serem embaixadores e ministros de Cristo, situa-os também à cabeça da comunidade cristã. Eles estão conscientes de estar investidos de autoridade, executando-a inclusive com veemência.[iv] Escolhidos juntos, a sua união fraterna estará a serviço da comunidade. Sua autoridade não é de domínio, mas exercitada “para edificar e não para destruir”.[v]

A Sucessão Apostólica

Os apóstolos, ademais de serem fundamento da Igreja, foram também a origem da sagrada hierarquia. O ministério sacerdotal tem, então, como segundo fundamento — depois do cristológico, o sacerdócio de Cristo — a sucessão apostólica que é a continuidade no tempo do ministério apostólico, indispensável para a vida da Igreja. A sucessão apostólica é o aspecto da natureza e da vida da Igreja que revela a dependência atual da comunidade em relação a Cristo, através dos Seus enviados.

A missão divina, confiada por Cristo aos apóstolos, deverá durar até o fim dos tempos e por isso os apóstolos, nessa sociedade hierarquicamente estruturada, tiveram a preocupação de escolher sucessores.[vi] Se bem que a morte do último apóstolo acaba o apostolado dos Doze, o seu ministério não termina, continua através dos séculos na sucessão apostólica: os poderes e a missão dos Doze foram recebidos pelos seus sucessores, os bispos, e de um modo subordinado pelos presbíteros.

Da revelação neo-testamentária aprendemos que na vida dos apóstolos existiam já colaboradores que desempenhavam o encargo de completar e consolidar a obra já iniciada.[vii] Nesses colaboradores já se destilava, por assim dizer, os bispos sucessores dos apóstolos, sendo que esses “bispos” se distinguiam dos outros cristãos. Era a sucessão apostólica. Estes primeiros sucessores possuem o munus apostolicum “per successionem ab initio decurrente” e este é o critério que individualiza, inequivocamente, aqueles que possuem realmente as marcas da semente apostólica.

São Clemente, terceiro sucessor de Pedro, afirmava que “os Doze tiveram a preocupação de se constituírem sucessores para que a missão que lhes foi confiada continuasse depois da sua morte”.[viii] Assim sendo, os apóstolos, em obediência à vontade do Senhor, instituíram os ministérios que tinham a missão de continuar a obra iniciada por eles, e deram aos seus sucessores a ordem de confiar esse ministério a outros, a fim de continuar a sucessiva geração de cristãos.

Os ministérios desenrolam-se já no período apostólico e imediatamente pós apostólico. Apenas nos bispos, com a ajuda dos presbíteros e dos diáconos, se encontram, através da sucessão apostólica, a marcas autênticas da semente apostólica. Estes foram considerados os pastores que dirigiram a comunidade cristã em nome de Deus. Cumpre aqui acrescentar que apenas os bispos são os sucessores dos apóstolos.

A sucessão apostólica é, segundo a sua essência, a presença viva da palavra em forma pessoal de testemunho, de modo que o “Evangelho a transmitir” seja de verdade “para a Igreja o princípio de sua vida em todo o tempo”.[ix]

O ministério dos bispos se configura, assim, como a visibilidade do “episcopado” de Cristo, e aqui se encontra a base da veneração que a Igreja confere aos seus pastores, pois essa participação torna Cristo presente na Sua pessoa e no Seu atuar.

A sucessão apostólica é chamada fundamento do ministério, no sentido em que consiste principalmente no fato de ser próprio ao munus apostólicum ser transmitido, o múnus desses homens aos quais Jesus prometeu: “Eu estarei sempre convosco até o fim dos tempos”.[x] A sucessão apostólica também determina a modalidade dessa transmissão enquanto ao rito, e garante o reconhecimento aos homens, de quem são aqueles que receberam verdadeiramente a ordem. A missão recebida por Cristo do Pai é transmitida aos apóstolos, e, destes aos bispos e aos presbíteros. Como disse Bento XVI numa das suas catequeses:
Não podemos ter Jesus sem a realidade que ele criou e na qual se comunica. Entre o Filho de Deus feito homem e a Sua Igreja existe uma profunda, inseparável e misteriosa continuidade, em virtude da qual Cristo está presente hoje no Seu povo. Ele é sempre nosso contemporâneo, é sempre contemporâneo na Igreja construída sobre o fundamento dos apóstolos, está vivo na sucessão dos Apóstolos.[xi]

Uma vez finalizada a era sub-apostólica, coloca-se a pergunta de como seria possível conferir a sacra potestas aos seus sucessores, já que não se pode recorrer de maneira direta à pessoa visível de Cristo. Esta deve ser…
[…] considerada como um dos dons hierárquicos (cf. Lumen gentium, 4) derramado sobre a Igreja pelo Seu Fundador divino e, desta forma, como um elemento constitutivo da Tradição sagrada que contém tudo aquilo que os Apóstolos legaram como instrumento de preservação e de promoção da santidade e da fé do Povo de Deus (cf. Dei Verbum, 8). A história demonstra amplamente que o exercício firme e sábio dessa autoridade apostólica, de modo particular nos momentos de crise, tem tornado a Igreja capaz de preservar a sua integridade, independência e fidelidade ao Evangelho, diante das ameaças que provêm tanto de dentro como de fora.[xii]

As funções desempenhadas pelos portadores da sucessão apostólica revelam que nos bispos, assistidos pelos presbíteros, está presente no meio dos crentes o Senhor Jesus.
Por meio do seu exímio ministério, prega a todas as gentes a Palavra de Deus, administra continuamente aos crentes o sacramento da fé, incorpora por celeste regeneração e graça à sua ação paternal (cf. 1 Cor 4, 15) novos membros ao Seu corpo, e, finalmente, com sabedoria e prudência, dirige e orienta o Povo do Novo Testamento na peregrinação para a eterna felicidade.[xiii]

No texto conciliar acentua-se o fato de que é o próprio Cristo que está presente no meio dos fiéis a predicar, incorporar e dirigir. Essa presença ativa de Cristo nos bispos exige um vínculo ontológico entre Cristo e os bispos. E isso leva a que eles sejam sacramento de Cristo no sentido em que eles possuem, desenvolvem a função de Cristo, mestre, sacerdote e pastor, em virtude da realidade interior que os assemelham a Cristo, com a intensidade de que é capaz uma criatura. Trata-se, então, de uma presença totalmente distinta daquela que existe em qualquer cristão.
O bispo é enviado, em nome de Cristo, como pastor para cuidar duma determinada porção do Povo de Deus. Por meio do Evangelho e da Eucaristia, deve fazê-la crescer como realidade de comunhão no Espírito Santo. Disso deriva para o bispo a representação e o governo da Igreja que lhe foi confiada — com o poder necessário para exercer o ministério pastoral recebido sacramentalmente (munus pastorale) — como participação da própria consagração e missão de Cristo.[xiv]

Dessa maneira, chegamos à sacramentalidade da ordem. Isso pede uma especial efusão das graças do Espírito Santo e se transmite com a imposição das mãos. Esse dom foi transmitido pelos apóstolos aos seus sucessores e assim sucessivamente. Essa transmissão deve se realizar por via sacramental. Com a consagração episcopal, confere-se a plenitude da ordem sacerdotal, a qual é chamada pela voz dos santos e dos Padres da Igreja: sumo sacerdócio. Essa consagração confere o múnus de santificar, ensinar e governar os fiéis.[xv]

É no concílio Vaticano II que pela primeira vez se afirma a sacramentalidade da ordenação episcopal enquanto plenitude do sacramento da Ordem.[xvi] Essa natureza sacramental quer dizer que o rito da imposição das mãos é um verdadeiro e próprio sacramento da Nova Lei.                                                                    


[i] Mc 3, 13-19; Mt 10, 1-42.

[ii] Cf. Jo 20, 21-23.

[iii] Cf. Philipe Goyret Chiamati, Consacrati, Inviati Il Sacramento dell’Ordine. Libreria Editrice Vaticana, 2003.

[iv] Cf. 1 Cor 4, 21; 5, 5.

[v] 2 Cor 13, 10.

[vi] Cf. Lumen Gentium 20, 1.

[vii] Cf. Lumen Gentium 20, 2.

[viii] Cf. 1 Clem 42, 4.

[ix] Lumen Gentium 20.

[x] Mt 28, 20.

[xi] BENTO XVI. Gli Apostoli e i Primi discepoli di Cristo. Libreria Editrice Vaticana, 2008 (Intr.).

[xii] JOÃO PAULO II. Aos Bispos da Região Eclesiástica da Pensilvânia e Nova Jérsei (EUA) em visita Ad Limina Apostolorum, 11 set. 2004.

[xiii] Lumen Gentium 21, 1.

[xiv] João Paulo II, Pastores Gregis, Exortação Pós Sinodal sobre o bispo, servidor do Evangelho de Jesus Cristo para a esperança do mundo.

[xv] Cf. Catecismo Igreja Católica, n. 4.

[xvi] Compêndio CIC, n. 326; Catecismo Igreja Católica, n. 1557-1558.