Sermão do Primeiro Domingo do Advento (1655) – PADRE ANTÓNIO VIEIRA

pe-antonio-vieiraTudo passa, e nada passa. Tudo passa para a vida, e nada para a conta. A verdade e desengano de que tudo passa (que é o nosso primeiro ponto) posto que seja por uma parte tão evidente, e que parece não há mister prova., é por outra tão dificultoso, que nenhuma evidência basta para o persuadir. Lede os filósofos, lede os profetas, lede os apóstolos, lede os santos padres, e vereis como todos empregaram a pena, e não uma senão muitas vezes, e com todas as forças da eloqüência, na declaração deste desengano, posto por si mesmo tão claro.

Sabiamente falou quem disse que a perfeição não consiste nos verbos, senão nos advérbios: não em que as nossas obras sejam honestas e boas, senão em que sejam bem feitas. E para que esta condicional tão importante se estendesse também às coisas naturais e indiferentes, inventou o apóstolo S. Paulo um notável advérbio. E qual foi? Tanquam non, como senão: Ut qui habent uxores, tanquam non habentes sint: et qui flent, tanquam non flentes: et qui gaudent, tanquam nan gaudentes: et qui emunt, tanquam non possidentes: et qui utuntur hoc mundo, tanquam non utantur. Sois casado? (diz o apóstolo) pois empregai todo o vosso cuidado em Deus, como se o não fôreis. Tendes ocasiões de tristezas? pois chorai, como se não choráreis. Não são de tristeza, senão de gosto? pois alegrai-vos, como se não vos alegráreis. Comprastes o que havíeis mister, ou desejáveis? pois possuí-o, como se não possuíreis. Finalmente usais de alguma outra coisa deste mundo? pois usai dela, como se não usáreis. De sorte que quanto há, ou pode haver neste mundo, por mais que nos toque no amor, na utilidade, no gosto, a tudo quer S. Paulo que acrescentemos um, como se não, tanquam non. Como se não houvera tal coisa, como se não fora nossa, como se não nos pertencera. E por quê? Vede a razão:Præterit enim figura hujus mundi (3) . Porque nenhuma coisa deste mundo pára, ou permanece; todas passam. E como todas passam e são como se não foram, assim é bem que nós usemos delas, como se não usáramos: Tanquam non utantur. Por isso a essas mesmas coisas não lhes chamou o oráculo do terceiro céu coisas, senão aparências, e ao mundo não lhe chamou mundo, senão figura do mundo:Præterit enim figura hujus mundi.

Considerai-me o mundo desde seus princípios, e vêlo-eís sempre, como nova figura no teatro, aparecendo e desaparecendo juntamente, porque sempre está passando. A primeira cena deste teatro foi o paraíso terreal, no qual apareceu o mundo vestido de imortalidade, e cercado de delícias; mas quanto durou esta aparência? Estendeu Eva o braço à fruta vedada, e no brevíssimo espaço em que o bocado fatal passou pela garganta do homem, passou também com ele o mundo do estado da inocência ao da culpa, da imortalidade à morte, da pátria ao desterro, das flores aos espinhos, do descanso aos trabalhos, e da felicidade suma ao sumo da infelicidade e miséria. Oh miserável mundo, que se pararas assim, e te contentaras com comer o teu pão com o suor do teu rosto, foras menos miserável! Mas não serias mundo, se de uma miséria grande não passasses sempre, e por tua natural inclinação, a outra maior. Os homens naquela primeira infância do mundo todos vestiam de peles, todos eram de uma cor, todos falavam a mesma língua, todos guardavam a mesma lei. Mas não foi muita o tempo em que se conservaram na harmonia desta natural irmandade. Logo variaram e mudaram as peles com tanta diferença de trajos, que cada dia, dos pés à cabeça, aparecem com nova figura. Logo variaram e mudaram as línguas com tanta dissonância e confusão, como a da torre de Babel. Logo variaram e mudaram as cores com a diversidade das terras e climas, e com a mistura do sangue, posto que todo vermelho. Logo variaram e mudaram as leis, não com as de Platão, Sólon, ou Licurgo, mas com a do mais imperioso e violento legislador, que é o próprio alvedrio. Tudo mudaram, ou tudo se mudou, porque tudo passa.

As vidas naquele princípio costumavam ser de sete, de oito, de novecentos e quase de mil anos; e que brevemente se acabou este bom costume? Então o viver muitos séculos era natureza, hoje chegar, não a um século, mas perto dele, é milagre. Tardaram em passar até Noé, e também passaram. Com aquelas vidas não só cresciam os anos, senão também os corpos: e dos filhos de Deus, que eram os descendentes de Set, e das filhas dos homens, que eram as descendentes de Caim, nasceram os gigantes, de quem diz a Escritura: Erant gigantes super terram .Alguns ossos que ainda duram destes que o mesmo texto sagrado chama varões famosos, demonstraram pela simetria humana, que não podiam ser menos que de vinte, e mais côvados: e ainda na história das batalhas de Davi temos memória de outros quatro, posto que de muito menor estatura Mas, enfim, acabou a era dos gigantes; porque tudo nesta vida, e mais depressa o que é grande, acaba e passa.

Diminuídos os homens nos corpos e nas idades, quando tinham a morte mais perto da vista (quem tal crera! ) então cresceram mais na ambição e soberba. E sendo todos iguais e livres por natureza, houve alguns que entraram em pensamento de se fazer senhores dos outros por violência, e o conseguiram. O primeiro que se atreveu a pôr coroa na cabeça, foi Membroth, que também como o nome de Nino, ou Belo, deu princípio aos quatro impérios, ou monarquias do mundo. O primeiro foi o dos assírios e caldeus; e onde está o império caldaico? O segundo foi o dos persas; e onde está o império persiano? O terceiro foi o dos gregos; e onde está o império grego? O quarto, e maior de todos, foi o dos romanos; e onde está o império romano? Se alguma coisa permanece deste, é só o nome: todos passaram, porque tudo passa. Em três famosas visões representou Deus estes mesmos impérios a um rei, e a dois profetas. A primeira visão foi a Nabucodonosor na estátua de quatro metais; a segunda a Zacarias em quatro carroças de cavalos de diferentes cores; a terceira a Daniel em um conflito dos quatro ventos principais, que no meio do mar se davam batalha. Pois se todas estas visões eram de Deus e todas representavam os mesmos impérios, por que variou tanto a sabedoria divina as figuras, e sobre a primeira da estátua, tão clara e manifesta, acrescentou outras duas tão diversas em tudo? Porque a estátua, na dureza dos metais de que era composta, e no mesmo nome de estátua, parece que representava estabilidade e firmeza: e porque nenhum daqueles impérios havia de preservar firme e estável, mas todos se haviam de mudar sucessivamente, e ir passando de umas nações a outras; por isso os tornou a representar na variedade das carroças na inconstância das rodas, e na carreira e velocidade dos cavalos. Mas não parou aqui a energia da representação, como não encarecida ainda bastantemente. A estátua estava de pé, e as carroças podiam estar paradas. E porque aqueles impérios correndo mais precipitadamente que a rédea solta, não haviam de parar no mesmo passo, nem por um só momento, e sempre se haviam de ir mudando, e passando; por isso, finalmente, os representou Deus na causa mais inquieta, mudável, e instável, quais são os ventos, e muito mais quando embravecidos e furiosos: Et ecce quatuor venti cœli pugnabant in mari magno.

Sermões, col. Obras Imortais da Nossa Literatura,  Rio de Janeiro: Editora Três, 1974.

Não escolhemos viver, porque haveremos de escolher morrer?

Fe Notre Dame ParisPe. José Victorino de Andrade, EP

A opção fundamental de um católico deve tender sempre a adoptar uma cultura de vida, uma vez que em Deus está a vida em abundância (Jo 10, 10), Jesus morreu para nos libertar do pecado e da morte (Rm 8, 2) e o próprio Jesus identificou-se como “Caminho, Verdade e Vida” (Jo 14, 6). Entretanto, não são apenas motivações de carácter bíblico ou teológico que levam a Igreja a ser a favor da vida. A Fé caminha juntamente com a razão, à semelhança de um pássaro que voa com as duas asas. Por isso, a Filosofia ajuda a tornar a Fé algo bem maior e mais nobre do que a falsa fé, mero sentimento ou obséquio irracional.

Nesta perspectiva, a fuga ao sofrimento, seja no suicídio ou na eutanásia, para um estado no qual se deixa de sofrer, pois se deixa de existir, pode ser analisada sobre duas dinâmicas ou prismas: individual e coletivo. Não é apenas do ponto de vista da sociedade que o homem deve conservar a vida, pois ainda que alguém fosse acidentalmente parar num local desértico, teria obrigações relativamente à sua própria pessoa, de procurar alimento, hidratação, descanso, cultivar o intelecto e a memória, pensar em modos de alerta e resgate, ainda que as possibilidades de salvamento fossem remotas. E não são tão raros os históricos casos de resgatados em semelhantes condições.

Por isso, o suicídio:

— Do ponto de vista individual:

1. Atenta contra os direitos humanos – decálogo da razão humana e fruto do amadurecimento das raízes cristãs Ocidentais –, em que o respeito pela vida, deve também englobar a própria vida;

2. Vai contra os instintos do homem. Enquanto participação da própria natureza animal, ele procura em todas as circunstâncias preservar a vida, sendo capaz até de feitos extraordinários para conservá-la. Ou seja, faz parte do nosso ser, conservar o ser. E isso pode encontrar-se em qualquer animal: torna-se agressivo, defende-se, esconde-se, etc. para não morrer às mãos do caçador ou do predador;

3. A opção pela morte é uma recusa a aceitar que a vida é feita de dificuldades, e sofrimentos, alguns deles até grandes, mas que não se resolvem ou justificam com a aniquilação do próprio ser;

4. É também o abandono a algo que é fundamental na vida de todos: a esperança, e já diz o velho adágio, essa deve ser sempre “a última a morrer”;

5. Devemos estimar-nos e amarmos a nós mesmos, e o suicídio ou a eutanásia é um abandono da justa auto-estima que devemos devotar à nossa pessoa;

6. Em último lugar, poder-se-ia colocar a derrota, ou mesmo a deserção, no momento em que simplesmente se abandona a grande batalha da vida, preferindo a morte, trocando-se o positivo pelo negativo, a coragem pela covardia. Este exemplo já era dado por Platão, na sua Apologia de Sócrates.

*

— Do ponto de vista coletivo, uma vez que vivemos em sociedade:

1. O mau exemplo perante os demais membros da sociedade, de alguém que desistiu de viver;

2. Causa um sofrimento enorme nos outros, sobretudo amigos e familiares. É um egoísmo pensar apenas em si e não no sofrimento causado, quando alguém põe termo à sua existência, abruptamente;

3. Abandona-se a sociedade e a participação nela, seja como membros de uma família, trabalhadores, colaboradores, a amizade, as ideias, a original personalidade estética e intelectual, quantas coisas vão antecipadamente para “debaixo da terra”.

4. Causa prejuízos aos que permanecem, a todos os níveis, não só financeiros, o que seria secundário, mas também morais, pessoais, entre muitos outros.

5. Acarreta consigo aquela peculiar sensação de culpa, o peso de consciência, seja daqueles que não lograram evitar o trágico desfecho, mas sobretudo os cúmplices, que com a morte precoce colaboraram formal ou materialmente.

É semelhante ao corredor que evitou os obstáculos, saindo da pista, pois acharia que seria mais fácil chegar à meta… Enquanto isso, outros permanecem na corrida, pulando os obstáculos, por vezes caindo e voltando a levantar-se, mas a caminho da meta. Que impressão ficará nos espectadores que estão na bancada. Com quem ficarão edificados, com os que saíram da pista, ou com aqueles que, mesmo caindo, se voltam a levantar, e não desistem… Quem receberá a medalha? São Paulo (Fl 3, 14) usa uma metáfora semelhante, para justificar o prêmio, daqueles que se esforçaram por alcançar a meta. Ele mesmo considerou ter chegado ao fim da corrida (2 Tm 4, 7), merecendo a coroa de glória (2 Tm 4, 8).

A vida é um dom gratuito. Quem escolheu existir? Ninguém. É algo que foi dado (por Deus), transmitido (pelos pais). Se recebemos esse bem, sem pedir, porque haveremos de desfazer-nos dele? Não será uma revolta contra aqueles que deram a vida? Não escolhemos viver, porque haveremos de escolher morrer? A vida parece ser um grande dom para nós tomarmos conta, tratarmos bem, com todo o cuidado. Imagine que alguém recebesse uma empresa para gerir. Ele tem de prestar contas ao patrão. Não lhe compete destruir a empresa… pois não foi ele que a criou. Foi-lhe dada. Poderá incendiá-la, arrasá-la, destruí-la… mas não é dele. Quando estiver diante daquele a quem compete de fato, daquele que lhe deu, do senhor a quem pertence… receberá então “o justo salário”.

Uma palavra mais concreta quanto à eutanásia, e um facto. Este último, como dizem os italianos, “si non  è vero, è bene trovato”:

Os médicos fazem o juramento de hipócrates, no início da carreira, o que significa que faz parte da vocação deles promover a vida, e não a morte. A medicina chegou a tais avanços, que, hoje, é possível manter com dignidade o paciente até à morte natural, inclusive com ausência parcial ou total de dor. Ao autor da vida cabe, também ser o autor da morte. Não se aplica aos agentes de saúde abreviar a vida e conceder a morte, pois o trabalho deles é simplesmente diferente do carrasco. E uma vez que já superamos a pena de morte em grande número de nações, por quê darmos um fim aos doentes que, e ainda bem, já não damos nem sequer aos piores entre os criminosos? Não parece nem justo, nem mesmo racional.

Existe um especialista mundial em Ética, cujo nome é preferível omitir, por variadas razões, autor de numerosos e populares livros traduzidos em várias línguas do mundo, muito afamado na internet, que defende a eutanásia, com toda a logorreia. Certo dia, a mãe dele ficou muito doente, acamada e debilitada. Perguntaram-lhe porque ele não a encomendava a uma instituição que pudesse exercer a eutanásia, e abreviar-lhe a vida. Mas isso era para os outros. Ele amava a sua mãe, e a solução drástica ele só dava para quem não fosse mais útil na sociedade. A mãe dele ainda era objecto de algo, talvez o principal: o amor, capaz de vencer o utilitarismo…

Como as almas separadas do corpo conhecem?

Guy de Ridderalmas

Após a morte, a inteligência subsiste e passa a ter um modo de se exercer bastante diferente daqui na terra, pois que ela é chamada a contemplar em sua essência as realidades imateriais como Deus. Convém-lhe assim conhecer vendo o que de si é inteligível, da mesma maneira que as substâncias separadas. Deus infunde espécies na alma da mesma maneira que o faz com os anjos. A alma tem parte nelas, embora de modo menos elevado. Por meio destas espécies a alma conhece o que lhe convém de maneira direta e intuitiva. Este conhecimento ultrapassa em qualidade e em segurança tudo que existe na terra, tanto por causa da superioridade da luz divina, quanto por causa da ausência de possibilidade de erro oriunda dos fantasmas da imaginação.

À guisa de ilustração, imaginemos alguém que, em virtude de acidente, perde os olhos. Deixará imediatamente de enxergar. No entanto, a capacidade virtual de poder ver, nele subsiste. E subsiste na alma, não no corpo, obviamente. Se por algum prodígio da medicina, puder ser-lhe restaurada a vista, passará novamente a enxergar, pois a potência virtual da vista reencontrará o elemento corporal que lhe permite exercer-se, que são os olhos.

4.1 Parece que a inteligência humana conhecerá sempre por imagens

Uma dificuldade surge, entretanto a este respeito.

É próprio da inteligência humana conhecer as realidades espirituais a partir de suas imagens sensíveis. Não é esta inteligência, entretanto da mesma natureza que a inteligência dos anjos, os quais não estando unidos naturalmente a um corpo, conhecem diretamente a essência das coisas por meio das formas inteligíveis infusas no momento em que são criados. Ora, Deus move cada natureza segundo seu próprio modo de ser. Assim sendo, parece que a inteligência humana conhecerá sempre com base em imagens.

Contudo, quando se fala da visão do Criador, ao menos no que concerne esta visão direta e face a face que chamamos de visão beatífica, é preciso render-se à evidência de que nenhuma imagem sensível pode permitir ao homem conhecer sua inteligibilidade. Deus se torna inteligível, sem o concurso de qualquer ser intermediário criado. Trata-se de um modo novo de conhecer onde parece que o intelecto não tem lugar.

4.2 Funções e influências da alma separada

Quais as funções que a alma neste estado de separação pode, portanto, exercer e que influências pode sofrer?

4.2.1 Funções que pode exercer.

A alma continua viva. A Igreja já condenou a hipótese da inconsciência da alma após a morte ([1]).

Na outra vida, antes da ressurreição a vida da alma é parecida com a do Anjo, embora com diferenças. O anjo, por exemplo, se move “instantaneamente”; o homem, não. O homem não pode seguir o vôo de seu pensamento, nem de sua vontade, como o faz o espírito angélico. Algo disso, no entanto pode fazer. Por concessão de Deus também.

4.2.2 Atividades sensitivas

Atividades que requeiram as potências sensitivas externas (corpo), não as pode ter a alma separada do corpo. Com a morte, a alma só conserva em raiz, virtualmente ([2]) as potências sensitivas, pois que operam a partir de seu corpo (sentidos). Por exemplo, não poderá mais conhecer uma árvore concreta já vista em sua peregrinação terrena ou ainda a conhecer depois. Só pode ter noção da idéia universal de árvore (aplicável, portanto, a todas as árvores do mundo). 

4.2.3 Atividades espirituais

Outro aspecto entretanto é no tocante à atividade espiritual, ou funcionamento psicológico, que veremos a seguir.

 

5. Funções intelectivas da alma separada

 5.1. Conhecimentos já havidos ou acrescidos

a) A alma separada do corpo conserva todos os conhecimentos intelectuais adquiridos anteriormente durante sua vida neste mundo ([3])

b) Vê-se e conhece-se a si mesma de modo perfeito ([4]). Conhecimento com alegria superabundante para as almas justas.

c) Conhece perfeitamente as demais almas separadas, o que lhe era vedado enquanto unida a seu corpo. Tudo por conhecimento natural ([5]).

Conhece também aos anjos, no entanto, não por conhecê-los por alguma espécie inteligível abstrata, pois que eles são superiores (mais “simples”). O conhecimento que a alma tem dos anjos lhe advém, sim, do conhecimento de semelhanças impressas na alma por Deus, acessíveis às almas separadas ([6]).

d) Em virtude das espécies inteligíveis infundidas naturalmente por Deus, têm as almas separadas um conhecimento natural, embora imperfeito e geral, de todas as coisas naturais. Isto traz um aumento enorme do que se poderia chamar das ciências naturais da alma separada ([7]).

e) Em virtude destas mesmas espécies naturais infundidas por Deus, pode a alma separada conhecer um enorme número de coisas. Não todas, mas aquelas com as quais tiver determinado relacionamento, por algum modo, seja por ter delas conhecimento anterior (ciência), por afeto (amigo, parente), seja por inclinação natural (semelhança de vocação) etc. Tudo, por determinação divina ([8]).

f) O conjunto todo destes conhecimentos proporciona à alma separada, além das idéias infundidas por Deus uma altíssima idéia de Deus enquanto Autor da ordem natural, pois grande número de perfeições divinas reflete-se na própria substância das almas separadas, além das demais coisas que conhece naturalmente por infusão divina.

─ Todos estes conhecimentos dizem respeito tanto às almas dos justos, quanto à dos precitos. Nenhum deles transcende a ordem puramente natural (naquele estado), sendo algo que pede e exige psicologicamente o estado próprio da separação. Para as almas boas será motivo de regozijo; para as outras, ocasiões suplementares de tormentos e decepções.

5.2. Ciência adquirida permanece na alma separada?

Baseando-se em São Jerônimo: “Aprendamos na terra aquilo cujo conhecimento persevere em nós até o céu” ([9]), S. Tomás declara que a ciência, na medida em que está no intelecto (e ele demonstra que está principalmente nele), permanece na alma separada.

5.3. Dificuldade levantada por S. Tomás: se assim for, um homem não tão bom poderá saber mais do que um mais virtuoso. Responde ([10]): Pode ser, assim como poderá haver maus de estatura maiores que bons; mas, diz ele, isso quase não tem importância, em comparação com as outras prerrogativas que os mais virtuosos terão.

5.4. Almas separadas conhecem o que se passa na terra?

Podem as almas separadas do corpo conhecer o que se passa na terra?

São Tomás começa, a priori, negando esta hipótese. Cita S. Gregório: “Os mortos não sabem como está organizada a vida daqueles que, depois deles, vivem na carne; a vida do espírito é bem diferente da vida da carne. Assim como as coisas corpóreas e as incorpóreas diferem em gênero, também se distinguem pelo conhecimento ([11])”.

No tocante aos bem-aventurados, no entanto, S. Gregório realça ([12]) que “Não se deve pensar a mesma coisa a respeito da alma dos santos. Para aquelas, com efeito, que vêem por dentro a claridade de Deus todo-poderoso, não se deve absolutamente acreditar que reste fora alguma coisa que ignorem”.

Opinião também contestada por Santo Agostinho [“Minha mãe que tanto fez por mim na terra, depois não me apareceu nunca mais”], reproduzida por São Tomás ([13]).

São Tomás, no entanto, acaba concluindo  que “parece mais provável que as almas dos santos, que vêem Deus, conheçam tudo o que aqui acontece”.

Ele enuncia três observações que enriquecem o tema ([14]):

5.4.1 Falecidos podem preocupar-se com coisas do mundo?

Os mortos podem preocupar-se das coisas do mundo, ainda que as ignorem concretamente. Da mesma maneira que quando rezamos pela alma de um falecido, sem saber se está efetivamente no purgatório ou não;

5.4.2. Conhecimento por informações recebidas

Podem tomar conhecimento das coisas deste mundo por informações que lhes cheguem seja pelos anjos, seja pelos demônios ou ainda por divina revelação, especialmente por algum fato que lhes diga mais especialmente respeito (conhecidos, familiares);

5.4.3. Conhecimento por aparições

Por especial permissão divina podem auferir conhecimento por outras almas, diretamente ou por meio de anjos.

RIDDER, Guy de. O conhecimento da alma separada do corpo. Centro Universitário Italo Brasileiro – Curso de Pós-Graduação em Teologia Tomista. São Paulo, 2007. p.9-11.


[1] Cf DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, São Paulo: Paulinas/Loyola, 2007, p. 1238.

[2] Cf  AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,77,7 – 89,5; e Suplemento 70,I-2 em ROYO MARIN, O.P., Antonio. Teologia de la Salvación. Madri: BAC,  1965, p. 178

[3] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89-5-6

[4] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,88,I c; e I,89,2; SCG III,42-46; De anima, a.16 em ROYO MARIN, O.P., Antonio. Teologia de la Salvación. Madri: BAC,  1965, p. 180

[5] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,2

[6] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,1,3; 2,2;3

[7] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,3,c e 4

[8] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,4; 57,2

[9] Cf Epístolas, 53, al.103, em AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89, 5, 2

[10] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89,6,2

[11] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,8

[12] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89,8,3

[13] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89,8,3

[14] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,8,3