Lembra-te, homem, de que és pó

Mons. João S. Clá Dias, EPMuerte Catedral de Salamanca 004

Por meio do Ciclo Litúrgico, com sabedoria e didática, rememora a Igreja ao longo do ano os mais importantes episódios da existência terrena do Verbo Encarnado. As solenidades da Anunciação e do Natal, as comemorações do Tríduo Pascal e da Ascensão de Nosso Senhor aos Céus, entre outras, compõem um variado caleidoscópio, apresentando à piedade dos fiéis diferentes aspectos da infinita perfeição de nosso Redentor. As graças dispensadas pela Providência em cada um desses momentos históricos revivem, de certo modo, e se derramam sobre aqueles que devotamente participam dessas festividades.

Precedendo as solenidades mais importantes — o Nascimento do Salvador e sua Paixão, Morte e Ressurreição — a Igreja destina dois períodos de preparação: o Advento e a Quaresma, pois convém que, para celebrar tão elevados e sublimes mistérios, os fiéis purifiquem suas almas das misérias e apegos, tornando-as mais aptas a receber as dádivas celestes.

Na Quarta-Feira de Cinzas têm início os quarenta dias que antecedem a Semana Santa. As três leituras desse dia — uma passagem do Profeta Joel, um trecho de uma epístola de São Paulo e outro do Evangelho — nos falam da necessidade do jejum e da penitência como meios de melhor combater os vícios, pela mortificação do corpo, e propiciar a elevação da mente a Deus. Pois, segundo nos ensina o Papa São Leão Magno, “nós nos mortificamos para extinguir em nós a concupiscência. E o resultado da mortificação deve ser o abandono das ações desonestas e dos desejos injustos”.

Como mais adiante veremos, os textos litúrgicos em questão fazem referência, sobretudo, a um tipo de penitência que agrada especialmente a Deus e que é essencial para nossa vida espiritual. Trata-se de evitar os exageros do amor próprio, procurando não atrair as atenções dos outros sobre si mesmo, de maneira que a alma, limpa e ornada da virtude da humildade, ofereça ao Senhor um sacrifício de agradável perfume.

De forma cogente, a liturgia da Quarta-Feira de Cinzas recorda-nos também nossa condição de mortais: “Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris — Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó hás de voltar”, diz, de modo categórico, uma das duas fórmulas usadas pela Igreja para a imposição das cinzas.2 Após a cerimônia, a fronte dos fiéis fica marcada por um traço escuro cujo aspecto trágico e carente de beleza parece proclamar:  “De uma hora para outra, podemos ser levados pela morte, retornando ao pó!”.

A consideração da árdua passagem desta vida para a eternidade muitas vezes nos inquieta. Entretanto, tal pensamento é altamente benfazejo para compenetrar-nos da necessidade de evitar o pecado que, sem o arrependimento e o imerecido perdão, poderá fechar-nos, para sempre, as portas do Céu: “Lembra-te de teu fim, e jamais pecarás” (Eclo 7, 40).

À porta da Quaresma

Bento2Gaudium Press

Leia a seguir uma homilia de Bento XVI sobre a Quarta-feira de Cinzas editada pelos articulistas de Gaudium para a Festa deste ano.

“Ao receber daqui a pouco as cinzas sobre a cabeça, ouviremos mais uma vez um claro convite à conversão que pode expressar-se numa fórmula dupla: “Convertei-vos e acreditai no evangelho”, ou: “Recorda-te que és pó e em pó te hás-de tornar”.

Precisamente devido à riqueza dos símbolos e dos textos bíblicos, a Quarta-Feira de Cinzas é considerada a “porta” da Quaresma. De fato, a hodierna liturgia e os gestos que a distinguem formam um conjunto que antecipa de modo sintético a própria fisionomia de todo o período quaresmal. Na sua tradição, a Igreja não se limita a oferecer-nos a temática litúrgica e espiritual do itinerário quaresmal, mas indica-nos também os instrumentos ascéticos e práticos para o percorrer frutuosamente.

“Convertei-vos a mim de todo o vosso coração com jejuns, com lágrimas, com gemidos”. (Joel 2,12). Os sofrimentos, as calamidades que afligiam naquele tempo a terra de Judá estimulam o autor sagrado a encorajar o povo eleito à conversão, isto é, a voltar com confiança filial ao Senhor dilacerando o seu coração e não as vestes. De fato, recorda o profeta, ele “é clemente e compassivo, paciente e rico em misericórdia e se compadece da desgraça” (2, 13). O convite que Joel dirige aos seus ouvintes também é válido para nós.

Não hesitemos em reencontrar a amizade de Deus perdida com o pecado; encontrando o Senhor experimentamos a alegria do seu perdão. E assim, quase respondendo às palavras do profeta, fizemos nossa a invocação do refrão do Salmo 50: “Perdoai-nos Senhor, porque pecamos”. Proclamando, o grande Salmo penitencial, apelamo-nos à misericórdia divina; pedimos ao Senhor que o poder do seu amor nos volte a dar a alegria de sermos salvos. Com este espírito, iniciamos o tempo favorável da Quaresma, como nos recordou São Paulo: “Aquele que não havia conhecido o pecado, diz ele, Deus o fez pecado por nós, para que nos tornássemos, nele, justiça de Deus” (2 Cor 5, 21), para nos deixarmos reconciliar com Deus em Cristo Jesus. O Apóstolo apresenta-se como embaixador de Cristo e mostra claramente como precisamente através d’Ele, seja oferecida ao pecador, isto é a cada um de nós, a possibilidade de uma reconciliação autêntica.

Só Cristo pode transformar qualquer situação de pecado em novidade de graça. Eis por que assume um forte impacto espiritual a exortação que Paulo dirige aos cristãos de Corinto: “Em nome de Cristo suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus”; e ainda: “Este é o tempo favorável, é este o dia da salvação” (5, 20; 6, 2). Enquanto Joel falava do futuro dia do Senhor como de um dia de terrível juízo, São Paulo, referindo-se às palavras do profeta Isaías, fala de “momento favorável”, de “dia da salvação”. O futuro dia do Senhor tornou-se o “hoje”. O dia terrível transformou-se na Cruz e na Ressurreição de Cristo, no dia da salvação. E este dia é agora, como nos diz o Canto ao Evangelho: “Hoje não endureçais os vossos corações, mas ouvi a voz do Senhor”. O apelo à conversão, à penitência ressoa hoje com toda a sua força, para que o seu eco nos acompanhe em cada momento da vida.

A liturgia da Quarta-Feira de Cinzas indica assim na conversão do coração a Deus a dimensão fundamental do tempo quaresmal. Esta é a chamada muito sugestiva que nos vem do tradicional rito da imposição das cinzas, que daqui a pouco renovaremos. Rito que assume um dúplice significado: o primeiro relativo à mudança interior, à conversão e à penitência, enquanto o segundo recorda a precariedade da condição humana, como é fácil compreender das duas fórmulas diversas que acompanham o gesto.

Amados irmãos e irmãs, temos quarenta dias para aprofundar esta extraordinária experiência ascética e espiritual. No Evangelho (cf. Mt 6, 1-6.16-18), Jesus indica quais são os instrumentos úteis para realizar a autêntica renovação interior e comunitária: as obras de caridade (a esmola), a oração e a penitência (o jejum). São as três práticas fundamentais queridas também à tradição hebraica, porque contribuem para purificar o homem aos olhos de Deus.

Estes gestos exteriores, que devem ser realizados para agradar a Deus e não para obter a aprovação e o consenso dos homens, são por Ele aceites se expressam a determinação do coração a servi-l’O, com simplicidade e generosidade. Recorda-nos isto também um dos Prefácios quaresmais onde, em relação ao jejum, lemos esta singular expressão: “ieiunio… mentem elevas: com o jejum elevas o espírito” (Prefácio IV).

O jejum, ao qual a Igreja nos convida neste tempo forte, certamente não nasce de motivações de ordem física ou estética, mas brota da exigência que o homem tem de uma purificação interior que o desintoxique da poluição do pecado e do mal; que o eduque para aquelas renúncias saudáveis que libertam o crente da escravidão do próprio eu; que o torne mais atento e disponível à escuta de Deus e ao serviço dos irmãos. Por esta razão o jejum e as outras práticas quaresmais são consideradas pela tradição cristã “armas” espirituais para combater o mal, as paixões negativas e os vícios.

A este propósito, apraz-me ouvir de novo convosco um breve comentário de São João Crisóstomo. “Como no findar do Inverno escreve ele volta a estação do Verão e o navegante arrasta para o mar a nave, o soldado limpa as armas e treina o cavalo para a luta, o agricultor lima a foice, o viandante revigorado prepara-se para a longa viagem e o atleta depõe as vestes e prepara-se para as competições; assim também nós, no início deste jejum, quase no regresso de uma Primavera espiritual forjamos as armas como os soldados, limamos a foice como os agricultores, e como timoneiros reorganizamos a nave do nosso espírito para enfrentar as ondas das paixões. Como viandantes retomamos a viagem rumo ao céu e como atletas preparamo-nos para a luta com o despojamento de tudo” (Homilias ao povo antioqueno, 3).

Na mensagem para a Quaresma, convidei a viver estes quarenta dias de especial graça como um tempo “eucarístico”. Haurindo daquela fonte inexaurível de amor que é a Eucaristia, na qual Cristo renova o sacrifício redentor da Cruz, cada cristão pode perseverar no itinerário que hoje empreendemos solenemente. As obras de caridade (a esmola), a oração, o jejum juntamente com qualquer outro esforço sincero de conversão encontram o seu significado mais alto e valor na Eucaristia, centro e ápice da vida da Igreja e da história da salvação. “Este sacramento que recebemos, ó Pai assim rezamos no final da Santa Missa nos ampare no caminho quaresmal, santifique o nosso jejum e o torne eficaz para a cura do nosso espírito”.

Pedimos a Maria que nos acompanhe para que, no final da Quaresma, possamos contemplar o Senhor ressuscitado, interiormente renovados e reconciliados com Deus e com os irmãos. Amém!”

Adaptação da Homilia do Papa Bento XVI – Quarta-feira de Cinzas, 21 de Fevereiro de 2007 – Basílica de Santa Sabina no Aventino.

Comentário ao Evangelho de Quarta-Feira de Cinzas

Mons. João Clá Dias, EP

O CENTRO DEVE ESTAR SEMPRE OCUPADO POR DEUSliriocruz

 No jejum, na oração ou na prática de qualquer boa obra, não se pode erigir como fim último o benefício que daí possa nos advir, mas sim a glória d’Aquele que nos criou. Pois tudo quanto é nosso — exceção feita das imperfeições, misérias e pecados — pertence a Deus.

1 “Guardai-vos de fazer as boas obras diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles. Do contrário, não tereis direito à recompensa do vosso Pai que está nos Céus. Quando, pois, dás esmola, não faças tocar a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. Mas, quando dás esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita, para que a tua esmola fique em segredo, e teu Pai, que vê o que fazes em segredo, te pagará.

Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, a fim de serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, ora a teu Pai; e teu Pai, que vê o que se passa em segredo, te dará a recompensa.

16 Quando jejuardes, não vos mostreis tristes como os hipócritas, que desfiguram o rosto para mostrar aos homens que jejuam. Na verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. 17 Mas tu, quando jejuares, unge a tua cabeça e lava o teu rosto, 18 a fim de que não pareça aos homens que jejuas, mas sim a teu Pai, que está presente no oculto, e teu Pai, que vê no oculto, te dará a recompensa” (Mt 6, 1-6.16-18).

I – Tempo de penitência e reconciliação

Por meio do Ciclo Litúrgico, com sabedoria e didática, rememora a Igreja ao longo do ano os mais importantes episódios da existência terrena do Verbo Encarnado. As solenidades da Anunciação e do Natal, as comemorações do Tríduo Pascal e da Ascensão de Nosso Senhor aos Céus, entre outras, compõem um variado caleidoscópio, apresentando à piedade dos fiéis diferentes aspectos da infinita perfeição de nosso Redentor. As graças dispensadas pela Providência em cada um desses momentos históricos revivem, de certo modo, e se derramam sobre aqueles que devotamente participam dessas festividades.

Precedendo as solenidades mais importantes — o Nascimento do Salvador e sua Paixão, Morte e Ressurreição — a Igreja destina dois períodos de preparação: o Advento e a Quaresma, pois convém que, para celebrar tão elevados e sublimes mistérios, os fiéis purifiquem suas almas das misérias e apegos, tornando-as mais aptas a receber as dádivas celestes.

Na Quarta-Feira de Cinzas têm início os quarenta dias que antecedem a Semana Santa. As três leituras desse dia — uma passagem do Profeta Joel, um trecho de uma epístola de São Paulo e outro do Evangelho — nos falam da necessidade do jejum e da penitência como meios de melhor combater os vícios, pela mortificação do corpo, e propiciar a elevação da mente a Deus. Pois, segundo nos ensina o Papa São Leão Magno, “nós nos mortificamos para extinguir em nós a concupiscência. E o resultado da mortificação deve ser o abandono das ações desonestas e dos desejos injustos”.1

Como mais adiante veremos, os textos litúrgicos em questão fazem referência, sobretudo, a um tipo de penitência que agrada especialmente a Deus e que é essencial para nossa vida espiritual. Trata-se de evitar os exageros do amor próprio, procurando não atrair as atenções dos outros sobre si mesmo, de maneira que a alma, limpa e ornada da virtude da humildade, ofereça ao Senhor um sacrifício de agradável perfume.

“Lembra-te, homem, de que és pó”

De forma cogente, a liturgia da Quarta-Feira de Cinzas recorda-nos também nossa condição de mortais: “Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris — Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó hás de voltar”, diz, de modo categórico, uma das duas fórmulas usadas pela Igreja para a imposição das cinzas.2 Após a cerimônia, a fronte dos fiéis fica marcada por um traço escuro cujo aspecto trágico e carente de beleza parece proclamar:  “De uma hora para outra, podemos ser levados pela morte, retornando ao pó!”.

A consideração da árdua passagem desta vida para a eternidade muitas vezes nos inquieta. Entretanto, tal pensamento é altamente benfazejo para compenetrar-nos da necessidade de evitar o pecado que, sem o arrependimento e o imerecido perdão, poderá fechar-nos, para sempre, as portas do Céu: “Lembra-te de teu fim, e jamais pecarás” (Eclo 7, 40). A esse propósito, com propriedade, Dom Próspero Gueranger recomenda: “Se quisermos perseverar no bem, onde a graça de Deus nos restabeleceu, sejamos humildes, aceitemos a sentença, e não consideremos a vida senão como uma caminhada mais ou menos longa que termina no túmulo”.3

“Deixai-vos reconciliar com Deus”

Na própria primeira leitura de hoje, incentiva-nos São Paulo a vivermos na graça de Deus: “Em nome de Cristo, vos rogamos: reconciliai-vos com Deus!” (II Cor, 5, 20). E com toda razão, pois o pecado nos afasta de Deus, tornando necessária a  reconciliação. A Doutrina Católica nos ensina que nem mesmo os incomensuráveis méritos de Nossa Senhora somados aos dos Anjos e dos Bem-aventurados, e aos de todos aqueles que poderiam ter sido criados e não o foram, seriam suficientes para reparar a ofensa de um só pecado venial. Quanto mais em se tratando de uma falta grave!

Só mesmo o Adorabilíssimo Sangue de Deus teria mérito infinito para redimir as ofensas cometidas pelos homens, desde Adão e Eva, como, com a elevação de linguagem de sempre, mostra-nos São Paulo: “Aquele que não conheceu o pecado, Deus O fez pecado por nós, para que n’Ele nós nos tornássemos justiça de Deus” (II Cor 5, 21). A Encarnação da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, com sua Paixão e Morte na cruz, foi o meio escolhido para restituir à humanidade transviada a plena amizade com Deus. E, por serem insuperáveis as operações divinas, tal foi a superabundância de graça conquistada pelo sacrifício do Calvário que, mesmo a soma de todas as possíveis faltas dos homens jamais tornará insuficientes os méritos infinitos do Preciosíssimo Sangue de Cristo.4

Se Jesus não tivesse assumido sobre Si a dívida contraída por nossos primeiros pais, por meio da oblação de seu Corpo, impossível seria nossa reconciliação com Deus5 e teríamos para sempre fechadas as portas do Céu.

II – Amor próprio, oração e jejum

Na passagem do Evangelho que hoje analisamos, vemos o Divino Mestre tomar como exemplo didático uma cena característica daqueles tempos. Sob uma perspectiva histórica, Ele censura uma atitude corrente, sobretudo entre os fariseus. Mas, sendo eterna a palavra de Deus, contém ela uma lição para os homens de todos os séculos.

O principal sorvedouro por onde se escoam os méritos

1 “Guardai-vos de fazer as boas obras diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles. Do contrário não tereis direito à recompensa do vosso Pai que está nos Céus”.

Difícil era fariseus serem alheios à hipocrisia. Levados por um supino orgulho, voltavam-se para si mesmos a ponto de se esquecer de Deus, fazendo suas boas obras com o intuito de angariar prestígio “diante dos homens”.

O defeito apontado por Nosso Senhor neste versículo era comum entre eles, e infelizmente não é raro também em nossos dias. Trasbordam das Sagradas Escrituras conselhos sobre esse pecado capital, raiz de muitos vícios, principalmente no livro do Eclesiastes: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Ecl 1, 2). É essa a preocupação do Divino Mestre.

A respeito dos atos humanos podemos afirmar que alguns são neutros, como por exemplo, cantar ou pintar. A substância e o mérito lhes advêm da intenção e da finalidade com as quais os executamos. Outros são bons de per se, por estarem ordenados pela razão a um objetivo honesto. Mas, segundo o Doutor Angélico, “pode acontecer que um ato em si mesmo virtuoso se torne, eventualmente, vicioso, devido a certas circunstâncias”.6

Ora, a vaidade macula muitas vezes nossos atos de virtude e nos rouba os méritos. Pois, como sublinha o Cardeal Gomá, ela é “um perniciosíssimo inimigo das boas obras: praticá-las com o escopo de ser visto e admirado pelos outros, é perder a recompensa que lhes corresponde quando são feitas com reta intenção”.7

Afirmam os mestres da vida espiritual ser a vaidade um vício tão arraigado no homem que, por assim dizer, somente o abandona meia hora depois de sua morte. Para vencê-lo, requer-se muita oração, paciência e esforço. Oração, porque por meio dela se obtêm as graças para combatê-lo. Paciência e esforço, porque devemos lutar contra ele dia e noite, impedindo-o de instalar-se em nossa alma, como recomenda São João Crisóstomo: “É necessário prestar muita atenção em sua entrada, do mesmo modo como alguém põe-se em guarda contra uma fera prestes a atacar quem não está vigilante”.8

Poderíamos, então, usar uma expressão forte, mas muito verdadeira: a vaidade é o principal sorvedouro por onde se escoam os méritos das nossas orações e boas obras. Ela é também um veneno para a alma, porque a deixa desprovida de forças para enfrentar as tentações e, portanto, exposta a toda espécie de fraquezas e capitulações.

Convém notar, de outro lado, que ao dizer-nos: “Guardai-vos de fazer as boas obras diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles”, não nos convida o Mestre a sempre nos ocultarmos para fazer o bem, pois praticar a justiça diante dos homens pode ser motivo de edificação para o próximo e de glória para o Criador, como sublinha o grande Bossuet: “Ele não nos proíbe de praticar a justiça cristã em todas as oportunidades, para edificação do próximo; pelo contrário, disse Ele: ‘Brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos Céus’. […] Edificai o próximo, por vossas ações externas, e tudo em vós, até mesmo um piscar de olhos, seja ordenado, mas tudo se faça com naturalidade e simplicidade, visando dar glória a Deus”.9

Dar esmola visando o aplauso

2 “Quando, pois, dás esmola, não faças tocar a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa”.

Não tendo recebido ainda a seiva regeneradora do Cristianismo, na humanidade daquela época imperava de tal modo o egoísmo, que o dar esmola era prática incomum. Quem o fazia, julgava-se merecedor do aplauso dos demais, por sua pretensa bondade. Daí ser costume dar esmola “com muita ostentação”.10

Mais ainda: “Parece que, para excitar a generosidade, estabeleceu-se o hábito de proclamar o nome dos doadores […] e chegava-se mesmo a honrá-los, oferecendo-lhes os primeiros lugares na sinagoga”.11

Ora, ensina Nosso Senhor, nesta passagem do Evangelho, que quem dá esmola para obter a aprovação dos outros pode considerar-se bem pago pelos elogios assim obtidos. Não lhe cabe esperar um prêmio sobrenatural, pois, conforme acentua o padre Tuya, “Deus recompensa em justiça sobrenatural somente aquilo que se faz sobrenaturalmente por amor a Ele, assim como repugna-Lhe esse censurável procedimento que é a hipocrisia farisaica”.12

Quem, entretanto, dá esmola discretamente, apenas diante de Deus e por amor a Deus, este sim, d’Ele receberá a recompensa.

O prêmio, devemos esperá-lo apenas de Deus

3 “Mas, quando dás esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita, 4 para que a tua esmola fique em segredo, e teu Pai, que vê o que fazes em segredo, te pagará”.

No versículo anterior, Nosso Senhor recrimina aqueles que visam a vanglória na prática da esmola; neste, censura-nos o comprazimento vaidoso ao realizarmos as boas obras. Para combater esse defeito, precisamos esforçar-nos para não deter nossa atenção naquilo que fazemos de bom. “Se fosse possível — comenta Bossuet —, seria necessário esconder de vós mesmos o bem que fazeis; procurai ocultar a vossos olhos pelo menos o seu mérito; […] empenhai-vos na prática da boa obra a ponto de jamais vos preocupar com o que dela vos resultará: deixai tudo por conta de Deus, assim só Ele vos verá, vos ocultareis de vós mesmos”.13

Na mesma linha opina o Cardeal Gomá: “Se possível fosse, até nós deveríamos ignorar nossas esmolas. A recompensa, devemos esperá-la somente de Deus”.14

Complementando essas afirmações, esclarece Maldonado: “Não há culpa em ser visto pelos outros quando se faz o bem, mas sim em desejar ser visto. Também não há culpa em querer ser visto, desde que não seja para conseguir o elogio dos homens. ‘Brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos Céus’”.15

É vã a oração de quem visa as exterioridades

5 “Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, a fim de serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa”.

Naquela época, era dever de todo varão judeu rezar três vezes por dia: de manhã, coincidindo com o sacrifício matutino, ao meio-dia e na hora do sacrifício vespertino. As preces eram feitas geralmente de pé, com os braços erguidos para o Céu, como a simbolizar o dom que se esperava receber.16

As pessoas costumavam orar no interior das próprias casas. Os fariseus, porém, escolhiam para tal os lugares mais visíveis nas sinagogas ou nas praças públicas. Ali gesticulavam e repetiam de cor grande número de orações, de forma a impressionar quem por lá passava. Inútil dizer que eram vãs essas preces, pois eles já tinham obtido o que almejavam: o aplauso dos transeuntes.

Não caiamos, entretanto, no erro de pensar que Nosso Senhor condena toda oração feita em público. O Divino Mestre recrimina neste versículo apenas a preocupação com as exterioridades, tão frequente nos homens daquele tempo, e a atitude genérica das pessoas que rezam com ostentação ou procurando unicamente o louvor dos semelhantes.

Na nossa vida de piedade, devemos procurar ser discretos

6 “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, ora a teu Pai; e teu Pai, que vê o que se passa em segredo, te dará a recompensa”.

A essência da oração, ensina o Catecismo, é a “elevação da mente a Deus”.17 Assim, é possível a qualquer um permanecer em oração inclusive durante os atos comuns da vida, realizando-os com o espírito voltado para o Céu.

Portanto, para rezar não é preciso tomar a atitude espalhafatosa dos fariseus. Devemos, pelo contrário, ser discretos nas manifestações externas de nossa piedade particular, evitando gestos ou palavras que ponham em realce nossa própria pessoa.

Mas se, apesar disso, nossa devoção for notada pelos outros, não devemos nos perturbar, tranquilizemo-nos com este ensinamento de Santo Agostinho: “Não há pecado em ser visto pelos homens, mas sim em proceder com a finalidade de por eles ser visto”.18

O jejum transformado em um ato de caráter social

16 “Quando jejuardes, não vos mostreis tristes como os hipócritas, que desfiguram o rosto para mostrar aos homens que jejuam. Na verdade vos digo que já receberam a sua recompensa”.

O espírito oriental, em sua riqueza de expressividade, é propenso a atitudes dramáticas, por vezes bonitas, mas que, nas práticas religiosas, podem extrapolar os padrões normais. Assim acontecia com os fariseus que, ao jejuar, colocavam cinza na cabeça, não penteavam a barba e até pintavam o rosto para dar ideia de tristeza, ostentando uma fisionomia de tragédia.19 Tinham transformado o jejum em um ato de caráter social, uma encenação, para convencer os outros de sua pretendida virtude. E não receavam recorrer a todos os meios disponíveis para atingir esse objetivo.

Uma vez mais, Nosso Senhor os reprova por se servirem da aparência de justiça para impressionar os outros, e afirma terem sido já recompensados pelo seu jejum.

A propósito deste versículo, cabe uma aplicação a nós: ao fazermos algo difícil, nunca procuremos atrair a atenção dos demais, mendigando alguns elogios. Assim procediam muitos santos que, ao praticar severos jejuns, mortificações e austeridades assustadoras, apresentavam-se, por meio de uma santa dissimulação, com uma aparência exterior alegre e jovial.

Alegria e asseio ao praticar a virtude

17 “Mas tu, quando jejuares, unge a tua cabeça e lava o teu rosto, 18 a fim de que não pareça aos homens que jejuas, mas sim a teu Pai, que está presente no oculto, e teu Pai, que vê no oculto, te dará a recompensa”.

Além de tornar claro o quanto todas as nossas ações devem ser realizadas em função de Deus, Jesus ressalta aqui a fundamental importância da limpeza para a criatura humana. Devemos primar pelo asseio corporal como reflexo da pureza que desejamos para nosso espírito.  E aliando uma apresentação impecável às boas ações, ajudaremos a manifestar que a verdadeira felicidade se encontra na prática da virtude.

Quanto ao conselho de ungir a cabeça, explica São Jerônimo: “Trata-se aqui do costume que havia na Palestina, de se ungir a cabeça nos dias de festa”. E acrescenta que assim, “o Senhor nos ordena que nos manifestemos contentes e alegres quando jejuarmos”.20

III – A quaresma nos convida a crescer em humildade

O Evangelho da Quarta-Feira de Cinzas nos apresenta o espírito com que se deve viver a Quaresma: não fazer boas obras com vistas a obter a aprovação dos outros, não ceder ao orgulho nem à vaidade, mas procurar em tudo agradar somente a Deus.

No jejum, na oração ou na prática de qualquer boa obra, não se pode erigir como fim último o benefício que daí possa nos advir, mas sim a glória d’Aquele que nos criou. Pois tudo quanto é nosso — exceção feita das imperfeições, misérias e pecados — pertence a Deus. E também nossos méritos, pois é o próprio Jesus quem afirma: “Sem Mim, nada podeis fazer”! (Jo 15, 5).

Assim, se tivermos a graça de praticar um ato bom, devemos imediatamente reportá-lo ao Criador, restituindo-Lhe os méritos, pois estes Lhe pertencem, e não a nós. “Quem se gloria, glorie-se no Senhor” (I Cor 1, 31), adverte-nos o Apóstolo.

Pelo sacerdócio comum a todos os batizados,21 cada fiel é chamado, em determinadas circunstâncias, a atuar como mediador das graças que vêm de Deus para benefício dos outros, e dos louvores que deles se elevam ao trono do Altíssimo. Nessa ocasião, cuidemos de não nos apropriarmos de nada, pois tudo quanto possuí­mos de virtude, bondade ou beleza — tanto as faculdades da alma quanto as qualidades corporais e o desenvolvimento de nosso ser físico, intelectual e moral —, tudo isso provém de Deus.

Santa Teresa de Jesus assim define a humildade: “Deus é a suma verdade, e a humildade consiste em andar na verdade, pois de grande importância é não ver coisa boa em si mesmo, mas sim a miséria e o nada”.22

Reconheçamos os benefícios que Deus nos dá e por eles rendamos-Lhe graças, não nos colocando jamais como objeto desse louvor, julgando sermos nós a fonte de qualquer virtude ou qualidade.

Neste início de Quaresma, procuremos, mais ainda do que a mortificação corporal, aceitar o convite que a Liturgia sabiamente nos faz, combatendo o amor próprio com todas as nossas forças. “Procurai o mérito, procurai a causa, procurai a justiça; e vede se encontrais outra coisa que não seja a graça de Deus”.23

Só estarão à direita de Nosso Senhor Jesus Cristo, no dia do Juízo Final, aqueles que tiverem vencido o orgulho e o egocentrismo, reconhecendo que “todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto” (Tg 1, 17). Pois o homem tem diante de si apenas dois caminhos: ou amar a Deus sobre todas as coisas, até o esquecimento de si; ou amar-se a si próprio sobre todas as coisas, até o esquecimento de Deus.24 Não existe um terceiro amor.

Saibamos, portanto, aproveitar este Tempo da Quaresma para crescermos na humildade e tomarmos consciência clara da nossa limitação, uma vez que “o homem não pode receber coisa alguma, se não lhe for dada do Céu” (Jo 3, 27).

Sirvam-nos de estímulo estas confortadoras palavras de um célebre guia espiritual, o padre Reginald Garrigou-Lagrange, OP: “Quanto mais nossa alma progredir na vida divina da graça, mais ela será uma imagem viva da Santíssima Trindade. No início de nossa existência, o egoísmo nos faz pensar especialmente em nós e a nos amarmos, atribuindo tudo a nós. Se, porém, formos dóceis às inspirações do Alto, chegará o dia em que pensaremos sobretudo, não em nós mesmos, mas em Deus, e em que, a propósito de todas as coisas, agradáveis ou penosas, O amaremos mais do que a nós e quereremos constantemente levar as almas para Ele”.25

in: Revista Arautos do Evangelho, n. 98.

1 SÃO LEÃO MAGNO. In sermone 6 de Quadragesima, 2.

2 Missale Romanum. 3.ed. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2002, p.198.

3 GUERANGER, Prosper. L’Année liturgique. Le temps de la Septuagésime. Tours: Maison Alfred Mame et fils, 1921, p.240.

4 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, III, q.48, a.2.

5 Cf. Idem, q.1, a.2, ad 2.

6 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q.147, a.1, ad.1.

7 GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.II, p.185.

8 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homiliae in Matthaeum. Hom. 19,1.

9 BOSSUET, Jácques-Bénigne. Œuvres Choisies de Bossuet. Versailles: Lebel, 1821, v.II, p.47-48.

10 TUYA, OP, Manuel de. Biblia comentada. Madrid: BAC, 1964, v.II, p.127. 

11 Idem, ibidem. 

12 Idem, p.126. 

13 BOSSUET, op. cit., p.48.

14 GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.186.

15 MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios – I Evangelio de San Mateo. Madrid: BAC, 1950, p.282.

16 Cf. TUYA, OP, op. cit., p.129. Muito interessante é a proposta que fazem os professores de Salamanca, de traduzir a palavra grega hestótes por “com pose” (em lugar de “de pé”), observando, acertadamente, que “com pose” estaria mais de acordo com o contexto desta passagem.

17 Catecismo da Igreja Católica, n.2559.

18 SANTO AGOSTINHO. De sermone Domini, 2, 3.

19 Cf. TUYA, OP, op. cit., p.151-152; GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.191.

20 SÃO JERONIMO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea.

21 Pelo Batismo, participamos “do sacerdócio de Cristo, de sua missão profética e régia” (Catecismo da Igreja Católica, n.1268).

22 Cf. SANTA TERESA DE JESUS. Las Moradas. Morada sexta, c.10, § 6-7.

23 SANTO AGOSTINHO. Sermo 185: PL 38,999. In: Liturgia das Horas I. Segunda Leitura do dia 24 de dezembro.

24 SANTO AGOSTINHO. De Civitate Dei, XIV, 28: “Dois amores geraram duas cidades: a terrena, o amor de si até ao desprezo de Deus; a celeste, o amor de Deus até ao desprezo de si”.

25 Garrigou-Lagrange, OP, Reginald. La Sainte Trinité et le don de soi. In: Vie Spirituelle n.265, maio, 1942.