Corrimãos da escada da vida

caminhoMons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

A teologia moral de Santo Agostinho, tanto como a ética de Aristóteles, foram as fontes das doutrinas escolásticas sobre a razão moral. Em De Libero Arbitrio, o bispo de Hipona afirmara que a moralidade exige da vontade humana sua conformidade com as prescrições da lei imutável e eterna, impressa na nossa mente. Tal lei, chamada de summa ratio (“razão suprema”), deve ser sempre obedecida. Por seus padrões é que são julgados os bons e os maus.1

Concorde com a tese agostiniana,2 São Tomás procura definir meticulosamente a lei eterna acentuando de início que ela “não é senão a razão da sabedoria divina, na medida em que ela dirige todos os atos e movimentos”.3 Essa lei — que se identifica com a Providência Divina — é, portanto, o princípio ordenador de todo o universo criado: “Toda a comunidade do universo é governada pela razão divina. E assim a própria razão do governo das coisas em Deus, como príncipe do universo, tem razão de lei”.4 Assim, a suprema lei é o próprio Deus, sendo eterna como Ele é eterno; é a Sabedoria de Deus “que move todas as coisas para seu devido fim”.5 E todas as coisas são avaliadas segundo a lei eterna, seguindo-se daí que dela todas participam de algum modo, e suas propensões para seus atos e fins próprios vêm da impressão em si dessa lei.

Nas questões 90 a 108 da Suma Teológica, parte I-II, São Tomás se estende genialmente sobre o significado e o alcance da lei eterna e sobre as outras leis que dela derivam: a lei natural, a lei divina e a lei humana.

Começando pela lei natural, ele a define como “a participação da lei eterna na criatura racional”, sendo proporcionada pela “luz do intelecto posta em nós por Deus, através da qual conhecemos o que devemos fazer e o que devemos evitar”,6 por ser uma norma imperativa para dirigir os atos livres do homem.

Noutro lugar, São Tomás descreve a lei natural como os primeiros princípios da atividade moral humana, evidentes de si, não demonstráveis.7

Ninguém pode, com sinceridade e no uso normal de suas faculdades mentais,8  negar a existência dessa lei natural, segundo a qual há obras boas e outras más por sua própria natureza. São Tomás afirma que todos os homens conhecem pelo menos os princípios comuns da lei natural.9 Diz ele ainda que, “quanto aos princípios comuns da razão quer especulativa, quer prática, a verdade ou retidão é a mesma em todos, e igualmente conhecida”.10 Quer dizer, não há quem não conheça a distinção entre bem e mal, e nossa obrigação de optar pelo primeiro e rejeitar o segundo se apresenta à inteligência com força de lei.

Também a lei humana positiva tem a obrigação de se conformar com a Sabedoria de Deus. É a ela que o Aquinate se refere quando afirma que, como “o fim último da vida humana é a felicidade ou bem-aventurança […] é necessário que a lei vise maximamente à ordem que é para a bem-aventurança”.11 A lei temporal não pode colidir com a lei eterna, mas deve secundá-la.

A lei divina — consolidada nos Dez Mandamentos — mostra ao homem o caminho a seguir para praticar o bem e atingir seu fim. São Tomás se pergunta se, havendo já a lei natural e as leis humanas, é preciso também haver uma lei divina positiva. Ele inicia sua resposta lembrando que a bem-aventurança eterna, para a qual o homem foi criado, “excede a proporção da potência natural humana”. Assim faz-se necessário que, “acima da lei natural e humana, fosse dirigido também a seu fim pela lei divinamente dada”.12

Todas essas leis são como que corrimãos numa longa e difícil trajetória, numa escada colocada sobre um abismo. Pode ser que esses corrimãos pareçam limitações absurdas à liberdade. Na realidade, são anteparos que Deus nos concedeu para proteger a verdadeira liberdade e para nos auxiliar na ascensão até Ele.

Como estão equivocadas certas correntes de educação que procuram instilar na criança e no jovem a ideia de que os princípios morais são frios e cruéis! O certo, afirmam elas, seria optar por uma moral “amiga”, relativa, dependente apenas das circunstâncias, dos casos particulares, e esquecer tais princípios.

É supérfluo realçar a nocividade de tal doutrina para o tesouro acumulado a partir do primeiro olhar sobre o ser. E que resultados funestos trazem para a sociedade como um todo. Basta olharmos para o que vai se passando à nossa volta…

1 De Libero Arbitrio, I, 1.6.15.48-49; 51: “Illa lex quae summa ratio nominatur cui semper obtemperandum est et per quam mali miseram, boni beatam vitam merentur […], potestne cuipiam intellegenti non incommutabilis aeternaque videri? An potest aliquando iniustum esse, ut mali miseri, boni autem beati sint? […] Ut igitur breviter aeternae legis notionem, quae impressa nobis est, quantum valeo, verbis explicem, ea est, qua iustum est, ut omnia sint ordinatissima”.

2 Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 1: “Sed contra est quod Augustinus dicit quod lex aeterna est summa ratio, cui semper obtemperandum est”.

3 S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Nihil aliud est quam ratio divinae sapientiae, secundum quod est directiva omnium actuum et motionum”.

4 S. Th. I-II, q. 91, a. 1: “Tota communitas universi gubernatur ratione divina. Et ideo ipsa gubernationis rerum in Deo sicut in principe universitatis existens, legis habet rationem”.

5 S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Moventis omnia ad debitum finem”.

6 Collationes in decem praeceptis, Proœmium: “Lex naturae […] nihil aliud est nisi lumen intellectus insitum nobis a Deo, per quod cognoscimus quid agendum et quid vitandum”.

7 Cf. S. Th. I-II, q. 94, a. 2. “Sunt quaedam principia per se nota”.

8 “Alguma pessoa dotada de inteligência”, dizia Santo Agostinho (op. cit. 1.6.15.48).

9 Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 2.

10 S. Th. I-II, q. 94, a. 4. “Quantum ad communia principia rationis sive speculativae sive practicae, est eadem veritas seu rectitudo apud omnes, et aequaliter nota”.

11 S. Th. I-II, q. 90, a. 2. “Oportet quod lex maxime respiciat ordinem qui est in beatitudinem”.

12 S. Th. I-II, q. 91, a. 4. “Excedit proportionem naturalis facultatis humanae. Ut supra legem naturalem et humanam, dirigeretur etiam ad suum finem lege divinitus data”.

Uma ética original e originária

Diác. José de Andrade, EPluz

A questão ética, hoje, assume contornos de uma importância que não deve ser descurada, pois jamais pode consistir em um negócio, um jogo de interesses ou algo passageiro, mas num compromisso fundamentado na ética original e originária, conforme explica de modo muito acurado o Pe. Carlos Arboleda Mora: “Original porque própria ao cristianismo e originária pois é raiz de toda a ação social no mundo”.[1]

O Papa Bento XVI, na Caritas in Veritate, chamou a atenção para os perigos de uma ética vagamente interpretada, sobretudo quando ela se presta a “designar conteúdos muito diversos, chegando-se a fazer passar à sua sombra decisões e opções contrárias à justiça e ao verdadeiro bem do homem”, imperando, deste modo, a necessidade de uma ética “amiga da pessoa” (n. 45).

Na verdade, certa corrente da ética contemporânea levanta uma questão há muito predicada pelo Cristianismo: No relacionamento humano, o homem nunca poderá consistir um meio para outro homem, algo que se usa, mas deve ser considerado como um fim.[2] Não se refere ao fim último, que é o próprio Deus, que deve animar e continuamente purificar esse relacionamento, enquanto raiz e princípio, mas um fim enquanto uma atitude verdadeiramente altruísta, de procura do bem comum, proporcionando felicidade, sendo que ela “está mais em dar do que em receber” (At 20, 35).

Ora, a Igreja teve desde sempre algo forte e credível a apresentar ao mundo e que se funda no mandamento novo trazido por Nosso Senhor Jesus Cristo (Cf. Jo 13, 34-35) iluminando e firmando as regras de ouro éticas de todos os tempos. Os autores mais insuspeitos reconhecem-no. Por exemplo, J. B. Bury, entre as várias críticas acirradas ao Catolicismo, atribui entretanto aos cristãos a extensão da caridade a todos, uma vez que Sócrates, ao formular “a regra de vida ‘fazei ao outros’, provavelmente não queria incluir entre os ‘outros’ escravos ou selvagens”.[3] Ou mesmo Voltaire, ao reconhecer que os “Povos que não professavam esta religião romana imitaram, mas apenas de forma imperfeita, caridade tão generosa”.[4]

Uma vez que as raízes cristãs do Ocidente são um fato histórico inegável e incontornável, a moralização dos povos está na base de uma construção civilizacional que veio a sofrer uma forte ruptura quando quis dissociar a moral da religião e fundamentá-la na mera razão. Kant não é um nome estranho nesse sentido. Os fundamentos da sociedade Ocidental são sólidos, entretanto, sofreram abalos, na medida em que enfraqueceu a moralidade e a influência que a Igreja tinha nesse campo. Apesar disso, vão suportando o peso de uma mentalidade que se preocupa mais com o crescimento do edifício, do que com os fundamentos morais que o suportam. Ao pensarmos em certas sociedades, apelidadas simplesmente de primeiro mundo, devido à “qualidade de vida” mensurada por vários valores de referência de carácter universal, com máquinas, técnica, esperança média de vida… tudo isto é bom, mas está longe do excelente se não for acompanhado por uma forte estrutura moral. Corrêa de Oliveira chega mesmo a ponderar o perigo da ruína de um povo que viva com muita técnica e pouca moral. Conforme ele:

O alicerce de toda civilização é a moralidade. E quando uma civilização se edifica sobre os alicerces de uma moralidade frágil, quanto mais ela cresce, tanto mais se aproxima da ruína. É como uma torre que, assentando-se sobre alicerces insuficientes, ruirá desde que chegue a certa altura.[5]

Na verdade, o homem não se pode esquecer que por detrás de toda uma cultura atual, está um patrimônio, também ele moral, que progrediu à medida que acrescentou novas coisas às já existentes. O problema está em que muitas vezes certas premissas válidas, imutáveis e perenes são esquecidas ou deliberadamente postas de lado, em nome de uma cultura, dita moderna, sobrepondo-se o novo e despojando-se o existente. Porém, aquilo que tem o seu fundamento em Cristo goza da perenidade que apenas deve ter em vista as diferentes maneiras e riquezas de serem apresentadas às várias culturas.[6] A lei moral da Igreja possui as suas raízes em Nosso Senhor, e portanto, na lei eterna, além de estar também fundamentada na lei inscrita no coração dos homens, a natural. Uma ética sem qualquer fundamentação teológica ou metafísica está sujeita às frágeis bases do compromisso social.[7]

Os Papas, e o colégio episcopal em união com eles, sobretudo nestes últimos dois séculos, têm proposto e aplicado os ensinamentos da moral nos seus múltiplos âmbitos, sempre em nome e com a autoridade a eles confiada por Jesus Cristo. Estes ensinamentos, inspirados pelo Espírito Santo, envolvem também questões relativas à vida social, ou mesmo à economia e à política, nunca deixando de exortar à verdade. O Magistério intervém assim para exortar as consciências e propor valores.[8]

Ora, entre tantos problemas que afligem a sociedade humana de nossos dias, ensina-nos o Papa Bento XVI na Caritas in Veritate que “o problema decisivo é a solidez moral da sociedade em geral” (n. 51). Esta é a chave de ouro para abrir a porta à solução de múltiplas questões, e está desde sempre nas mãos da Igreja. Entretanto, como em tantas fechaduras duplas, a porta abre-se mais facilmente com o concurso de uma outra chave. E o Estado a tem nas suas mãos, cabendo-lhe também uma palavra. As duas chaves, cada uma na sua fechadura, serão capazes de abrir as portas à construção do bem comum e da civilização do amor.


[1] ARBOLEDA MORA, Carlos. Experiencia y testimonio. Medellín: UPB, 2010, p. 22. (Tradução nossa).

[2] Ver estudos de ética não utilitarista ou consequencialista que defendem esta tese, como os apresentados por: CHALMETA, Gabriel. Ética Social: Familia, profesión y ciudadanía. 2. ed. Pamplona:o utilitaristas ou consequencialistasabrielocura do bem comum, proporcionar felicidade para ser feliz,  EUNSA, 2003. Sobretudo as páginas 30-31; 42 e o capítulo V em geral que aborda a questão da amizade. Também em RHONHEIMER, Martin. La Perspectiva de la Moral: Fundamentos de la Ética Filosófica. Madrid: Rialp, 2000, p. 109-115.

[3] Ver BURY, J. B. The Idea of Progress. Fairford: Echo Library, 2010, p. 5.

[4] Apud WOODS JR, Thomas. O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica. Lisboa: Atheleia, 2009, p. 185.

[5] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Século de Progresso ou de ruínas. In: Dr. Plinio. São Paulo: Retornarei, n. 34, jan. 2001, p. 9.

[6] O próprio Papa João XXII dizia no início do Concílio Vaticano II, a 11 de out. 1962: “Occorre che questa dottrina (= la dottrina cristiana nella sua integralità) certa e immutabile, che dev’essere fedelmente rispettata, sia approfondita e presentata in modo che risponda alle esigenze del nostro tempo. Altra cosa è infatti il deposito stesso della fede, vale a dire le verità contenute nella nostra venerabile dottrina, e altra cosa è la forma con cui quelle vengono enunciate, conservando ad esse tuttavia lo stesso senso e la stessa portata”: AAS 54 (1962), 792; cf L’Osservatore Romano, 12 ottobre 1962, p. 2.

[7] Este é o pensamento do Arcebispo Jean-Louis Bruguès, exposto em conferência de 1/11/2010 no Seminário São Tomás de Aquino (SP), abordando a Encíclica Veritatis Splendor, de João Paulo II. Também o nº 53 do documento é elucidativo a esse respeito.

[8] Podem-se encontrar estas ideias sobretudo no nº 4 da Veritatis Splendor do Papa João Paulo II (1993). Conforme o Arcebispo Jean-Louis Bruguès na conferência supracitada, “a própria Encíclica visa mostrar o direito do Magistério em intervir em certas questões particulares”.