A incessante procura de Deus

22.004Mons. João S. Clá Dias, EP

Segundo São Tomás de Aquino, todos os seres criados por Deus poderiam ter sido superiores, com exceção de três: a humanidade de Cristo, por estar unida hipostaticamente à pessoa do Filho; a Virgem Santíssima, por ser Mãe de Deus; e a visão beatífica, por se tratar de visão do próprio Deus 1.

São Paulo afirma ser imperfeito nosso conhecimento nas atuais circunstâncias, mas “quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito será abolido” (1 Cor 13, 10). E torna ainda mais clara essa idéia utilizando-se desta comparação: “Quando eu era criança, falava como criança, sentia como criança, discorria como criança. Mas, quando me tornei homem, dei de mão às coisas que eram de criança. Nós agora vemos como que por um espelho, obscuramente, mas então veremos face a face” (1 Cor 13, 11-12).

Tão rico foi o universo teológico recebido por São Paulo diretamente do próprio Cristo Jesus que, às vezes, teses de preciosa substância ficam involucradas em meio de outros temas, ao longo de suas epístolas. Esta, em concreto, é uma delas. De fato, nosso conhecimento é imperfeito, pois, quer seja no campo natural da pura inteligência, ou no sobrenatural, mediante a virtude da fé, e inclusive no da profecia, tem uma nota comum: a elaboração subseqüente realizada com base nos conceitos criados e com o esforço da abstração.

Pelo contrário, ao vermos Deus face a face, a fé redundará em visão e, portanto, se evanescerá com todo o conhecimento abstrativo.

“Agora vemos como que por um espelho…” ou seja, por meio de um instrumento; conhecemos a Deus só “porque as coisas invisíveis dEle, depois da criação do mundo, compreendendo-se pelas coisas feitas, tornaram-se visíveis” (Rm 1, 20). E é a partir desse contato direto com as criaturas que elaboramos outros motivos e princípios através da própria fé, utilizando conceitos criados. Por isso é obscuro nosso conhecimento e, portanto, imperfeito. Porém, quando chegar o fim, teremos um conhecimento imediato, claro e total de Deus, se bem que não possamos conhecê-Lo totalmente.

Talvez entendamos ainda melhor essa questão se seguirmos o pensamento de São Tomás de Aquino 2. Segundo o Doutor Angélico, o desejo de felicidade do ser inteligente leva-o a buscar sua própria perfeição, exercitando suas mais elevadas faculdades. Isto se verifica até quanto aos próprios sentidos, e por isso podemos constatar que o olho se regozija ao ver, e o paladar, ao saborear. E em conseqüência constitui um tormento a inatividade forçada dos mesmos.

Ora, a felicidade do ser inteligente também se verifica no exercício de suas faculdades e tornar-se-á ele tanto mais feliz quanto mais nobres sejam essas faculdades e mais formoso e elevado o objeto sobre o qual se exerçam. Não há dúvida de que, naturalmente falando, nada há de mais excelente no homem do que sua inteligência e nada pode superar a suprema verdade que é o próprio Deus. É, portanto, na inesgotável e sempre renovada visão beatífica que o homem encontra a plenitude da felicidade, extensiva a todas as suas apetências legítimas, como, por exemplo, o desejo de governar: “e reinarão com Ele …” (Ap 20, 6); ou a necessidade dos bens: “Todos os bens me vieram juntamente com ela, e inumeráveis obras pelas suas mãos” (Sb 7, 11). “O que é presentemente para nós uma tribulação momentânea e ligeira, prepara-nos um peso eterno de glória para além de toda a medida” (2 Cor 4, 17).

O mesmo se pode dizer quanto à vontade, pois no Céu claramente veremos a Deus face a face como o compêndio de todo bem, tal qual nos ensina São Tomás: “A razão comum da bem-aventurança é o bem comum perfeito. Assim o significou [Boécio] quando disse que é ‘o estado perfeito da reunião de todos os bens’, não significando outra coisa por isso, senão que o bem-aventurado está no estado do bem perfeito” 3. E em seguida torna ainda mais claro o conceito: “A bem-aventurança perfeita […] possui a reunião de todos os bens, devido à união com a fonte universal de todo bem. Assim, não necessita de cada um dos bens particulares” 4.

Daí compreendermos o porquê de certos santos terem experimentado uma tal carga mística de amor que quase chegaram ao desfalecimento. Quiçá possamos ter melhor idéia de quão imensa e plena será a felicidade de nossa vontade no Céu, ao analisarmos a razão do movimento de nosso amor às criaturas, aqui na Terra. Sem nos darmos conta, portanto, quase sempre de maneira implícita, ao amarmos, estamos buscando um reflexo de Deus existente nestes ou naqueles objetos de nosso amor 5. Tendo isto diante dos olhos, podemos nos perguntar: qual não será nossa felicidade no Céu, ao depararmos com o próprio Deus, face a face?

Dessa visão de Deus face a face e desse amor recíproco entre mim e Ele, redundará um eterno e indescritível gozo, pois quando tomo posse de um objeto sempre muito desejado por mim, torno-me feliz. Enquanto ele não me pertence, eu me consumo por obtê-lo. Ao recebê-lo por minha propriedade definitivamente, nele repouso e dele desfruto. Nisso consiste a felicidade. Quanto melhor for o objeto e maior sua duração, proporcionalmente mais intenso será o meu gozo daí resultante.

O ser humano, na essência de seu espírito, especificamente é inteligência e amor. No Céu, o desejo de conhecer se satisfaz de forma plena na visão da Verdade, Bondade e Beleza, ou seja, do próprio Deus. E a ânsia de amar e ser amado se aplaca inteiramente, pois não só amaremos a Deus, mas seremos cientes e experientes de todo o amor que Ele nos tem. E, ademais, eternamente vendo aspectos novos do Ser Absoluto e Infinito, acrescidos pelo insuperável convívio de Jesus em Sua santíssima humanidade, da Virgem Maria, nossa Mãe, dos anjos e dos santos.

Esse é o Céu, “o fim último e a realização de todas as aspirações mais profundas do homem, o estado de felicidade suprema e definitiva” .6

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1) AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, I, q. 25, a. 6, ad. 4.

2) Idem, Suma contra os Gentios, l. 1, c. 100.

3) Idem, Suma Teológica, I-II, q. 3, a. 2, ad. 2.

4) Idem, ibidem, I-II, q. 3, a. 3, ad. 2.

5) Idem, ibidem, I q. 44, a. 4 ad. 3.

6) CIC, § 1024.

A ETERNA BEM-AVENTURANÇA

bem-aventurancaChn. Louis Bremond, “Le Ciel, ses joies et ses splendeurs”, P. Lethielleux, Lib.‑Éditeur, Paris,

 

 

 1925, pp. 2‑4‑5‑10‑13‑18‑20.

A bem‑aventurança requer não somente a visão mas a posse do fim e o gozo que tem como conseqüência o repouso do amante no objeto amado

“O coração do homem foi ferido, desde sua origem, por um golpe que partiu do Infinito. Ninguém poderá curar essa ferida senão Aquele que a fez”. (Mgr d’Hulst, Mélanges philosophiques, p. 288)

Por isso Davi exclamava: “Quando vossa glória manifestar‑se a mim, Senhor, aí serei satisfeito”. (Ps. XV, 15)

“Deus é o fim de seu ato criador, diz São Tomás, por ser Ele o princípio. Porque Sua qualidade de fim não significa outra coisa senão o ser até o fim o princípio da criatura comunicando‑lhe, também até o fim, Sua própria bondade”. (P.I, q.12, a.1 Cf. Somme philosophique, I. III. c.17)

“O fim último do homem satisfaz de tal maneira seus desejos naturais, que ele deixa de procurar qualquer outra coisa a partir do momento em que o possua, porque, se ainda resta no homem algum movimento para outro objeto, este movimento é uma prova de que não possui ainda a finalidade na qual deve encontrar o repouso”. ( Somme philosophique, livre III, ch 48)

O pensamento de São Tomás ainda se desenvolve mais na Suma Teológica:

“A bem‑aventurança requer não somente a visão que é o conhecimento perfeito do fim último e inteligível, mas ainda, a posse que se relaciona à presença deste fim e o gozo que tem como conseqüência o repouso do amante no objeto amado”. (Somme Théologique, I‑II, q.4. a.3)

E Suarez diz que “a perfeição total da bem‑aventurança” está nessa percepção da essência divina”, que “é a principal e mais perfeita operação da alma” (Suarez, De Beat., disp. 7)


Como surpreender‑nos que Santo Agostinho diga que a bem‑aventurança é “a plenitude superabundante de tudo aquilo que é desejável”, “a reunião de todos os bens”, como diz Boécio, e, como acrescenta São Tomás: “o bem perfeito que dá a todos os nossos desejos sua plena e inteira satisfação”? (S.Aug., De Civitate Dei, lib. XIX, cap I; Boèce, de Consolatione philosophiae, lib. III, pros. 2; S. Thomas, I‑II, q.2, a. 8)

Tudo isso fazia São Gregório Magno exclamar:

“Qual é o espírito capaz de conceber a sublimidade das alegrias celestes? Assistir aos coros dos Anjos, glorificar ao Criador na companhia dos Santos, contemplar diretamente a face de Deus, ver a luz infinita, estar ao abrigo da morte, rejubilar‑se para todo o sempre com o dom da incorruptibilidade!

A alma queima de ardor por estes bens apenas ao conhecê‑los e desejaria já estar no lugar onde anseia desfrutar de uma felicidade eterna”. (Hom. XXXVII sur l’Évangile)