A vida contemplativa de São Tomás

Diác. Inácio de Araújo Almeida, EP

Ao tratar sobre a vida contemplativa de São Tomás, Maritain afirmou que “se a sua santidade foi a santidade da inteligência, é porque nele a vida de inteligência era inteiramente sustentada e iluminada pelo fogo da contemplação infusa e pelos dons do Espírito Santo”.1 Esse autor francês também nos recorda que o Angélico “rezava continuamente, chorava, jejuava, desejava. Cada um dos seus silogismos é como um coagular-se da sua oração e das suas lágrimas. E a graça da lúcida serenidade que a sua palavra nos causa, provém indubitavelmente do fato de que também o menor dos seus textos permanece invisivelmente impregnado do seu desejo e da força pura do mais ardente amor. A obra-prima da intelectualidade pura e rigorosa transborda de um coração possuído de caridade”.2

São Tomás tinha bem presente que a vida acadêmica distanciada de sua finalidade sobrenatural pode trazer desastrosas consequências. Na Suma Teológica explica que o estudo é, em si mesmo, ordenado à aquisição da ciência, mas quando se almeja a ciência “sem a caridade, esta incha e produz dissensões”.3 De modo contrário, quando a ciência é acompanhada pela caridade, edifica e gera a concórdia. Em seu primeiro período de docência em Paris, alguns dos professores seculares levantaram a objeção de que o ensino universitário seria incompatível com a vida religiosa. São Tomás logo procurou refutar essa teoria, e é certamente por esse motivo que na Suma Teológica se argumenta que o estudo é próprio ao estado religioso por três razões: a primeira delas, por favorecer diretamente a contemplação, iluminando o entendimento. A segunda, porque aparta os obstáculos à contemplação, ou seja, os erros que são frequentes por parte daqueles que desconhecem as Escrituras. Em terceiro lugar, porque o estudo nos afasta da concupiscência da carne e, além do mais, é útil para adquirir a virtude da obediência.4

Quando o Angélico escrevia, tinha como intenção primordial o louvor a Deus e o bem das almas. Ele trabalhava incansavelmente a fim de que Cristo fosse cada vez mais conhecido e amado. Por essa razão, Innos Biffi, comentando as obras de São Tomás, dizia que a Suma Teológica era “acima de tudo uma iniciativa de amor; não uma arrogante pretensão de exaurir a insondabilidade de Deus, mas, sim, o reconhecimento de sua transcendência, que, entretanto, é pela graça que realmente é comunicada ao homem. Para amar se deseja saber, e nada é mais digno de ser amado que Deus. E é este amor e esta paixão que sentimos circular nos infinitos e surpreendentes trechos das partes, das questões e dos intermináveis artigos da Suma Teológica de São Tomás, que foi um dos mais altos místicos da cristandade”. 5

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1) Maritain, Jacques. Le docteur angélique. Fribourg: Éditions Universitaires; Paris: Saint Paul, 1983, p. 51.

2) Loc. cit.

3) Summa Theologiae, II-II, q. 188, a. 5, ad 2.

4) Summa Theologiae, II-II, q. 188, a. 5, co.

5) Biffi, Inos. Cattedrali della teologia, Le pietre e le idee. L’Osservatore Romano, 1 maio 2010.

A vida contemplativa

Diac. Inácio Almeida, EP

Ao analisarmos as imensas obras levadas a cabo por São Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Alberto Magno e outros grandes santos, concluímos que esses homens, apesar de suas atividades quase incessantes, mantiveram-se na mais constante união com Deus, pois foi pela contemplação das coisas divinas que eles hauriram sua amplíssima capacidade de ação.

Para São Tomás[1], aqueles que são chamados às obras da vida ativa, erram se julgam que este dever os dispensa da vida contemplativa. Tal dever é um acréscimo desta vida e não lhe diminui a intensidade. Desta forma, “as duas vidas, longe de se excluírem, reclamam-se, supõem-se, misturam-se, completam-se mutuamente; e, se por alguma circunstância, tivermos que preferir uma à outra, é sem dúvida a vida contemplativa que se deve escolher, pois é a mais perfeita e a mais necessária” (CHAUTARD, 1962, p. 54).

Em geral, o homem moderno tem uma errônea concepção do que seja propriamente a vida contemplativa, e desconhece a importância da contemplação como elemento propulsor da ação, pois os verdadeiros místicos ou contemplativos

“são homens de senso prático e de ação, não (só) de raciocínio e teoria. Têm o espírito da organização, o dom do comando, e revelam-se muito bem dotados para os negócios. As obras que fundam, oferecem condições de vida e duração; em conceber e dirigir as suas empresas dão prova de prudência e arrojo, e dessa justa apreciação das possibilidades que caracteriza o bom senso. E, de feito, o bom senso parece ser a sua qualidade principal: um bom senso que não é perturbado por exaltação alguma doentia ou imaginação desordenada, e a que anda junto o mais raro poder de penetração” (MONTMORAND citado por TANQUEREY (1955, p. 62).

Chautard (1962) nos adverte que: “a ação, para ser fecunda, carece da contemplação; quando esta atinge certo grau de intensidade, difunde sobre a primeira algum tanto do seu excedente e, por meio dela, a alma vai haurir diretamente no coração de Deus as graças que a ação se encarrega de distribuir”.

O mesmo autor também afirma que na alma dos santos, a ação e a contemplação se unem formando uma perfeita harmonia. Por esta razão se pode afirmar que São Tomás foi ao mesmo tempo um contemplativo, bem como um dos homens mais ativos de seu século. A vida contemplativa vivifica as ocupações exteriores; só ela é capaz de comunicar simultaneamente o caráter sobrenatural e a real utilidade das coisas. A união das duas vidas, contemplativa e ativa, constitui o verdadeiro apostolado.

“O apostolado supõe almas capazes de estuar de entusiasmo por uma idéia, de se consagrar ao triunfo de um princípio. Sobrenaturalize-se a realização desse ideal pelo espírito interior […], e logo teremos a vida mais perfeita em si mesma, a vida por excelência, visto como os teólogos a preferem à simples contemplação: Praefertur simplici contemplationi” (CHAUTARD, p. 56).

É desta ação brotada na contemplação que fez com que São Tomás de Aquino e outros grandes santos fossem ao mesmo tempo ardentes contemplativos e apóstolos valorosos. Podemos até dar tréguas a nossos trabalhos exteriores; mas, pelo contrário, nunca devemos diminuir nossa aplicação às coisas espirituais.

Pois de acordo com Chautard(1962, p. 57):

“Bom é contemplar a verdade; porém, melhor ainda é comunicá-la aos outros. Refletir a luz é algo mais que recebê-la. Iluminar vale mais que luzir debaixo do alqueire. Pela contemplação, a alma alimenta-se; pelo apostolado, dá-se (Sicut majus est illuminare quam lucere solum, ita majus est contemplata aliis tradere, quam solum contemplare).[2]


[1] Recorda-se aqui a afirmação de São Tomás: “Quem é chamado da vida contemplativa para a ativa, não sofre uma subtração, mas deve fazer antes uma adição” (Cum aliquis a contemplativa vita ad activam vocatur, non fit per modum substractionis, sed per modum additionis, Suma Teológica, 2, 2.ae, q. 182, a. 1).

[2] “Pois, assim como é mais o iluminar do que somente luzir, assim, é mais transmitir aos outros o fruto da contemplação do que somente contemplar”. (Suma Teológica, IIa IIae, q. 188, a. 6)