O Filho de Deus com a Sua encarnação uniu-se, de certo modo, a todo o homem

Diác. Francisco Berrizbeitia, EP

Trata-se aqui de um antigo ensinamento enraizado no Novo Testamento[1] e que o Concílio Vaticano II propõe: “O Filho de Deus com a encarnação uniu-se, de certo modo, a todo o Homem.” Isto nos esclarece que, por um lado, a união hipostática só a fez Cristo uma vez com a Encarnação na Sua humanidade em concreto e, portanto, essa hipóstase está completa nEle e não com a humanidade.

Podemos dizer também que graças a esse “certo modo” que se deu com a Encarnação, a união com toda a humanidade se fez no plano salvífico, pois constitui a base pela qual Cristo elevou o homem de sua miséria fazendo-o partícipe de Sua vida divina. Por isso, a Igreja ao proclamar na sua liturgia “O félix culpa[2], canta a alegria do Povo de Deus por, ao pecarem nossos primeiros pais, o Verbo fazer-se carne e resgatar o gênero humano com sua morte e ressurreição e nos conceder o dom do Espírito. Uma coisa está clara e é o mistério, a grandeza e a beleza a qual Cristo elevou o homem de sua prostração a participar de um convívio com a Trindade, a uma comunio com ela. Sem falar da promessa da Sua presença diária na Eucaristia. Jesus não se deixa vencer em graça e generosidade para com o homem.

A tradição dos primeiros padres da Igreja quis explicar-nos o contexto na figura do Bom Pastor e da ovelha perdida como símbolo de toda a humanidade pecadora. Assim o descreve Gregório de Nisa (contra Apoliarem XVI):[3]

Esta oveja somos nosotros, los hombres. Que nos hemos separado con el pecado de las cien ovejas razonables. El Salvador carga sobre las espaldas la oveja toda entera.  Porque no se ha perdido solo una parte, sino porque se había perdido toda entera, por eso toda entera ha sido acompañada. El pastor la lleva en sus espaldas, o sea en su divinidad. Por esta asunción llega a ser una sola cosa con Él.

É interessante constatar como esta idéia de Cristo estava enraizada profundamente na Igreja, de tal forma que as interpretações mais antigas na arte paleocristã, que se conhece de Cristo, pintam-no ou esculpem-no como o Bom Pastor, levando sobre os seus ombros a ovelha. Também na Liturgia está assinalado o quarto domingo depois da Páscoa, justamente como a festividade do Bom Pastor.

Santo Agostinho comenta o fato, também resgatado da tradição de que:

Cuando ora el cuerpo del Hijo no se separe de sí a su Cabeza, de tal manera que ésta sea un solo salvador de su cuerpo, nuestro Señor Jesucristo Hijo de Dios, que ora por nosotros, ora en nosotros y es invocado por nosotros.[4]

Esta constitui a misteriosa conexão que se estabeleceu na Encarnação de Cristo, como cabeça que salva o corpo e que, sendo cabeça, ficou indissoluvelmente unida ao corpo, de tal maneira que a plenitude deste último, causada pela cabeça, constitui a salvação do mesmo Cristo, já não pensável sem o corpo da sua Igreja. Portanto, temos dois movimentos: um da cabeça ao corpo e outro do corpo à cabeça. Nada do que ocorre na cabeça é alheio ao corpo e vice-versa.

Conclui-se com um pensamento do teólogo, hoje Papa Bento XVI, em 1968, sobre a GS 22:

Pela primeira vez num documento da Igreja temos uma versão completamente nova da teologia cristocêntrica. Sobre a base de Cristo, esta ousa apresentar a teologia como antropologia e se mostra radicalmente teológica pelo fato de ter incluído o homem no discurso de Deus por meio de Cristo, manifestando deste modo a profunda unidade da teologia.[5]


[1] Ver Jo 1, 12-14; Fl 2, 5-7; 4, 4-7; Ef 4, 20-23; Hb 2, 17; 1Jo 15, 19.

[2] O félix culpa, quae talem et tantum meruit habere redemptorem (Precónio da Vigília Pascal).

[3] LADARIA L.,  “Jesucristo, salvación de todos”, San Pablo-U.Comillas, Madrid 2007, p. 105.

[4] Idem, p. 106.

[5] GALLAGHER M., “Ludici per il corso TFC004”7, PUG, Roma 200, p. 10. (tradução nossa)

A Imaculada Conceição: “Piedosa crença” que se tornou dogma

imaculadaMons. João Clá Dias, EP

Os mais antigos Padres da Igreja, amiúde se expressam em termos que traduzem sua crença na absoluta imunidade do pecado, mesmo o original, concedida à Virgem Maria. Assim, por exemplo, São Justino, Santo Irineu, Tertuliano, Firmio, São Cirilo de Jerusalém, Santo Epifânio, Teódoro de Ancira, Sedulio e outros comparam Maria Santíssima com Eva antes do pecado. Santo Efrém, insigne devoto da Virgem, A exalta como tendo sido “sempre, de corpo e de espírito, íntegra e imaculada”. Para Santo Hipólito Ela é um “tabernáculo isento de toda corrupção“. Orígenes A aclama “imaculada entre imaculadas, nunca afetada pela peçonha da serpente“. Por Santo Ambrósio é Ela declarada “vaso celeste, incorrupta, virgem imune por graça de toda mancha de pecado”. Santo Agostinho afirma, disputando contra Pelágio, que todos os justos conheceram o pecado, “menos a Santa Virgem Maria, a qual, pela honra do Senhor, não quero que entre nunca em questão quando se trate de pecados”.
Cedo começou a Igreja – com primazia da Oriental – a comemorar em suas funções litúrgicas a imaculada conceição de Maria. Passaglia, no seu De Inmaculato Deiparae Conceptu, crê que a princípios do Século V já se celebrava a festa da Conceição de Maria (com o nome de Conceição de Sant’Ana) no Patriarcado de Jerusalém. O documento fidedigno mais antigo é o cânon de dita festa, composto por Santo André de Creta, monge do mosteiro de São Sabas, próximo a Jerusalém, o qual escreveu seus hinos litúrgicos na segunda metade do século VII.
Tampouco faltam autorizadíssimos testemunhos dos Padres da Igreja, reunidos em Concílio, para provar que já no século VII era comum e recebida por tradição a piedosa crença, isto é, a devoção dos fiéis ao grande privilégio de Maria (Concílio de Latrão, em 649, e Concílio Constantinopolitano III, em 680).
Em Espanha, que se gloria de ter recebido com a fé o conhecimento deste mistério, comemora-se sua festa desde o século VII. Duzentos anos depois, esta solenidade aparece inscrita nos calendários da Irlanda, sob o título de “Conceição de Maria”.
Também no século IX era já celebrada em Nápoles e Sicílias, segundo consta do calendário gravado em mármore e editado por Mazzocchi em 1744.
Em tempos do Imperador Basílio II (976-1025), a festa da “Conceição de Sant’Ana” passou a figurar no calendário oficial da Igreja e do Estado, no Império Bizantino.
No século XI parece que a comemoração da Imaculada estava estabelecida na Inglaterra, e, pela mesma época, foi recebida em França. Por uma escritura de doação de Hugo de Summo, consta que era festejada na Lombardia (Itália) em 1047. Certo é também que em fins do século XI, ou princípios do XII, celebrava-se em todo o antigo Reino de Navarra.

Séculos XII-XIII: Oposições
No mesmo século XII começou a ser combatido, no Ocidente, este grande privilégio de Maria Santíssima.
Tal oposição haveria ainda de ser mais acentuada e mais precisa na centúria seguinte, no período clássico da escolástica. Entre os que puseram em dúvida a Imaculada Conceição, pela pouca exatidão de idéias à matéria encontram-se doutos e virtuosos varões, como, por exemplo, São Bernardo, São Boaventura, Santo Alberto Magno e o angélico São Tomás de Aquino.

Século XIV: Escoto e a reação a favor do dogma
O combate a esta augusta prerrogativa da Virgem não fez senão acrisolar o ânimo de seus partidários. Assim, o século XIV se inicia com uma grande reação a favor da Imaculada, na qual se destacou, como um de seus mais ardorosos defensores, o beato espanhol Raimundo Lulio.
Outro dos primeiros e mais denodados campeões da Imaculada Conceição foi o venerável João Duns Escoto (seu país natal é incerto: Escócia, Inglaterra ou Irlanda; morreu em 1308), glória da Ordem dos Menores Franciscanos, o qual, depois de bem fixar os verdadeiros termos da questão, estabeleceu com admirável clareza os sólidos fundamentos para desvanecer as dificuldades que os contrários opunham à singular prerrogativa mariana.
Sobre o impulso dado por Escoto à causa da Imaculada Conceição, existe uma tocante legenda. Teria ele vindo de Oxford a Paris, precisamente para fazer triunfar o imaculatismo. Na Universidade da Sorbonne, em 1308, sustentou uma pública e solene disputa em favor do privilégio da Virgem.
No dia dessa grande ato, Escoto, quando chegou ao local da discussão, prosternou-se diante de uma imagem de Nossa Senhora que se encontrava em sua passagem, e lhe dirigiu esta prece: “Dignare me laudare te, Virgo sacrata: da mihi virtutem contra hostes tuos”. A Virgem, para mostrar seu contentamento com esta atitude inclinou a cabeça – postura que, a partir de então, Ela teria conservado…
Depois de Escoto, a solução teológica das dificuldades levantadas contra a Imaculada Conceição se tornou casa dia mais clara e perfeita, com o que seus defensores se multiplicaram prodigiosamente. Em seu favor escreveram inúmeros filhos de São Francisco, entre os quais se podem contar os franceses Aureolo (m. em 1320) e Mayron (m. em 1325), o escocês Bassolis e o espanhol Guillermo Rubión. Acredita-se que esses ardorosos propagandistas do santo mistério estejam na origem de sua celebração em Portugal, nos primórdios do século XIV.
O documento mais antigo da instituição da festa da Imaculada nesse país é um decreto do Bispo de Coimbra, D. Raimundo Evrard, datado de 17 de Outubro de 1320. A par dos doutores franciscanos, cumpre ainda mencionar, entre os defensores da Imaculada Conceição nos séculos XIV-XV, o carmelita João Bacon (m. em 1340), o agostiniano Tomás de Estrasburgo, Dionísio, o Cartuxo (m. em 1471), Gerson (m. em 1429), Nicolau de Cusa (m. em 1464) e outros muitos esclarecidos teólogos pertencentes a diversas escolas e nações.

Séculos XV-XVI: acirradas disputas
Em meados do século XV, a Imaculada Conceição foi objeto de renhido combate durante o Concílio de Basiléia, resultando num decreto de definição sem valor dogmático, posto que este sínodo perdeu a legitimidade ao se desligar do Papa.
Entretanto, crescia cada dia mais o número das cidades, nações e colégios que celebravam oficialmente a festa da Imaculada. E com tal fervor, que nas cortes da Catalunha, reunidas em Barcelona entre 1454 e 1458, decretou-se pena de perpétuo desterro para quem combatesse o santo privilégio.
O autêntico Magistério da Igreja não tardou a dar satisfação aos defensores do dogma e da festa. Pela bula Cum proeexcelsa, de 27 de Fevereiro de 1477, o Papa Sixto IV aprovou a festa da Conceição de Maria, enriqueceu-a de indulgências semelhantes às festas do Santíssimo Sacramento e autorizou ofício e missa especial para essa solenidade.
Pelos fins do século XV, porém, a disputa em torno da Imaculada Conceição de tal maneira acirrou os ânimos dos contendores, que o mesmo Papa Sixto IV se viu obrigado a publicar, em data de 4 de setembro de 1483, a Constituição Grave Nimis, proibindo sob pena de excomunhão que os de uma parte chamassem hereges aos da outra.
Por essa época, festejavam a Imaculada célebres universidades, como as de Oxford, de Cambridge e a de Paris, a qual, em 1497, instituiu para todos os seus doutores o juramento e o voto de defender perpetuamente o mistério da Imaculada Conceição, excluindo de seus quadros quem não os fizesse. De modo semelhante procederam as universidades de Colônia (em 1499), de Magúncia (em 1501) e a de Valência (em 1530).
No Concílio de Trento (1545-1563) se ofereceu nova ocasião para denodado combate entre os dois partidos. Sem proferir uma definição dogmática da Imaculada Conceição, esta ssembléia confirmou de modo solene as decisões de Sixto IV. A 15 de Junho de 1546, na sessão V, em seguida aos cânones sobre o pecado original, acrescentaram-se estas significativas palavras: “O sagrado Concílio declara que não é sua intenção compreender neste decreto, que trata do pecado original, a Bem-aventurada e imaculada Virgem Maria, Mãe de Deus, mas que devem observar-se as constituições do Papa Sixto IV, de feliz memória, sob as penas que nelas se cominam e que este Concílio renova”.
Por esse tempo, começaram a reforçar as fileiras dos defensores da Imaculada Conceição os teólogos da recém-fundada Companhia de Jesus, entre os quais não se achou um só de opinião contrária. Aliás, pelos primeiros missionários jesuítas no Brasil temos notícia de que, já em 1554, celebrava-se o singular privilégio mariano em nosso País. Além da festa comemorada no dia 8 de Dezembro, capelas, ermidas e igrejas eram edificadas sob o título de Nossa Senhora da Conceição.
Entretanto, a piedosa crença ainda suscitava polêmicas, coibidas pela intervenção do Sumo Pontífice. Assim, em outubro de 1567, São Pio V, condenando uma proposição de Bayo que afirmava ter morrido Nossa Senhora em conseqüência do pecado herdado de Adão, proibiu novamente a disputa acerca do augusto privilégio da Virgem.

Séculos XVII e seguintes: consolidação da “piedosa crença”
No século XVII, o culto da Imaculada Conceição conquista Portugal inteiro, desde os reis e os teólogos até os mais humildes filhos do povo. A 9 de Dezembro de 1617, a Universidade de Coimbra, reunida em claustro pleno, resolve escrever ao Papa manifestando-lhe a sua crença na imaculabilidade de Maria.
Naquele mesmo ano, Paulo V, decretou que ninguém se atrevesse a ensinar publicamente que Maria Santíssima teve pecado original. Semelhante foi a atitude de Gregório XV, em 1622.
Por essa época, a Universidade de Granada se obrigou a defender a Imaculada Conceição com voto de sangue, quer dizer, comprometendo-se a dar a vida e derramar o sangue, se necessário fosse, na defesa deste mistério. Magnífico exemplo que foi imitado, sucessivamente, por grande número de cabidos, cidades, reinos e ordens militares.
A partir do século XVII também foram se multiplicando as corporações e sociedades, tanto religiosas como civis, e até mesmo estados, que adotaram por padroeira à Virgem no mistéiro de sua Imaculada Conceição.
Digna de particular referência é a iniciativa de D. João IV, Rei de Portugal, proclamando Nossa Senhora da Conceição padroeira de seus “Reinos e Senhorios”, ao mesmo tempo que jura defendê-La até à morte, segundo se lê na provisão régia de 25 de março de 1646. A partir deste momento, em homenagem à sua Imaculada Soberana, nunca mais os reis portugueses puseram a coroa na cabeça.
Em 1648, aquele mesmo Monarca mandou cunhar moedas de outro e prata. Foi com estas que se pagou o primeiro feudo a Nossa Senhora. Com o nome de Conceição, tais moedas tinham no anverso a legenda: JOANNES IIII, D. G. PORTUGALIAE ET ALBARBIAE REX, a Cruz de Cristo e as armas lusitanas. No reverso: a imagem da Senhora da Conceição sobre o globo e a meia lua, com a data de 1648 e, nos lados, o sol, o espelho, o horto, a casa de ouro, a fonte selada e a Arca da Aliança, símbolos bíblicos da Santíssima Virgem.
Outro decreto de D. João IV, assinado em 30 de junho de 1654, ordenava que “em todas as portas e entradas das cidades, vilas e lugares de seus Reinos”, fosse colocada uma lápide cuja inscrição exprimisse a fé do povo português na imaculada Conceição de Maria.
Igualmente a partir do século XVII imperadores, reis e as cortes dos reinos começaram a pedir com admirável constância, e com uma insistência de que há poucos exemplos na História, a declaração dogmática da Imaculada Conceição.
Pediram-na a Urbano VIII (m. em 1644) o Imperador Fernando II da Áustria; Segismundo, Rei da Polônia; Leopoldo, Arquiduque do Tirol; o eleitor de Magúncia; Ernesto de Baviera, eleitor de Colônia.
O mesmo Urbano VIII a pedidos do Duque de Mântua e de outros príncipes, criou a ordem militar dos Cavaleiros da Imaculada Conceição, aprovando ao mesmo tempo seus estatutos. Por devoção à Virgem Imaculada, quis ele ser o primeiro a celebrar o augusto Sacrifício na primeira igreja edificada em Roma sob o título da Imaculada, para uso dos menores capuchinhos de São Francisco.
Porém, o ato mais importante emanado da Santa Sé, no século XVII, em favor da Imaculada Conceição, foi a bula Sollicitude omnium Ecclesiarum, do Papa Alexandre VII, em 1661. Neste documento, escrito de sua própria mão, o Pontífice renova e ratifica as constituições em favor de Maria Imaculada, ao mesmo tempo que impõe gravíssimas penas a quem sustentar e ensinar opinião contrária aos ditos decretos e constituições. Esta bula memorável precede diretamente, sem outro decreto intermediário, a bula decisiva de Pio IX.
Em 1713, Felipe V de Espanha e as Cortes de Aragão e Castela pediram a solene definição a Clemente XI. E o mesmo Rei, com quase todos os Bispos espanhóis, as universidades e Ordens religiosas, a solicitaram a Clemente XII, em 1732.
No pontificado de Gregório XVI, e nos primeiros anos de Pio IX, elevaram-se à Sé Apostólica mais de 220 petições de Cardeais, Arcebispos e Bispos (sem contar as dos cabidos e ordens religiosas) para que se fizesse a definição dogmática.

O triunfo da Imaculada Conceição
Enfim, chegado era o tempo. Em 2 de fevereiro de 1849, Pio IX, desterrado em Gaeta, escreveu a todos os Patriarcas Primazes, Arcebispos e Bispos do orbe a Encíclica Ubi primum, questionando-lhes acerca da devoção de seu clero e de seus povos ao mistério da Imaculada Conceição, e seu desejo de vê-lo definido. De um total de 750 Cardeais, Bispos e vigários apostólicos que em seu seio contava então a Igreja, mais de 600 responderam ao Sumo Pontífice. Levando-se em conta as dioceses que estariam vacantes, os prelados enfermos e as respostas perdidas, pode-se dizer que todos atenderam à solicitação do Papa, manifestando unanimemente que a fé de seu povo era completamente favorável à Imaculada Conceição, e apenas cinco se diziam duvidosos quanto à oportunidade de uma declaração dogmática. Afirmara-se a crença universal da Igreja. Roma iria falar, a causa estava julgada.
Agora – são palavras de uma testemunha da bela festa de 8 de dezembro de 1854 – transportemo-nos ao augusto templo do Chefe dos Apóstolos (Basílica de São Pedro de Roma). Nas suas amplas naves se comprime e se confunde uma imensa multidão impaciente, porém recolhida. É hoje em Roma, como outrora em Éfeso: as celebrações de Maria são em toda a parte populares. Os romanos se aprestam a receber a definição da Imaculada Conceição, como os efesianos acolheram a da maternidade divina de Maria: com cânticos de júbilo e manifestações do mais vivo entusiasmo.
Eis no limiar da Basílica o Soberano Pontífice. Circundam-no 54 Cardeais, 42 Arcebispos e 98 Bispos dos quatro cantos do orbe cristão, duas vezes mais vasto que o antifo mundo romano. Os Anjos da Igrejas estão presentes como testemunhas de fé de seus povos na Imaculada Conceição. Subitamente, irrompem as vozes em tocantes e reiteradas aclamações. O cortejo dos Bispos atravessa lentamente o longo corredor do Altar da Confissão. Sobre a cátedra de São Pedro está sentado seu 258º sucessor.
Iniciam-se os santos mistérios. Logo o Evangelho é anunciado e cantado nas diversas línguas do Oriente e do Ocidente. Eis o solene momento marcado para o decreto pontifício. Um Cardeal carregado de anos e de méritos, aproxima-se do trono: é o decano do Sacro Colégio; feliz está ele, como outrora o velho Simeão, por ver o dia da glória de Maria … Em nome de toda a Igreja, dirige ele ao Vigário de Cristo uma derradeira postulação.
O Papa, os Bispos e toda a grande assembléia caem de joelhos; a invocação ao Espírito Santo se faz ouvir; o sublime hino é repetido por cinqüenta mil vozes ao mesmo tempo, subindo aos Céus como imenso concerto.
Cessado o cântico, ergue-se o Pontífice sobre a cátedra de São Pedro; sua face é iluminada por celeste raio, visível efusão do Espírito de Deus; e de uma voz profundamente emocionada, em meio às lágrimas de alegria, pronuncia ele as solenes palavras que colocam a Imaculada Conceição de Maria no número dos artigos de nossa fé:
“Declaramos – disse ele -, pronunciamos e definimos que a doutrina de que a Bem-aventurada Virgem Maria, no primeira instante de sua conceição, por singular graça e privilégio de Deus Onipotente, em atenção aos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de culpa original, essa doutrina foi revelada por Deus, e deve ser, portanto, firme e constantemente crida por todos os fiéis”.

O Cardeal decano, prostrado segunda vez aos pés do Pontífice, suplicou-lhe então que a publicase as cartas apostólicas contendo a definição. E como promotor da fé, acompanhado dos protonotários apostólicos, pediu também que se lavrasse um processo verbal desse grande ato. Ao mesmo tempo, o canhão do Castelo de Santo Angêlo e todos os sinos da Cidade Eterna anunciavam a glorificação da Virgem Imaculada.
À noite, Roma, cheia de ruidosas e alegres orquestrazs embandeirada, iluminada, coroada de inscrições e de emblemas, foi imitada por milhares de vilas e cidades em toda a superfície do globo.
O ano seguinte pode ser chamado o Ano da Imaculada Conceição: quase todos os dias foram assinalados por destas em honra da Santíssima Virgem.
Em 1904, São Pio X celebrou, juntamente com toda a Igreja Universal, com grande solenidade e regozijo, o cinqüentenário da definição do dogma da Imaculada Conceição.
O Papa Pio XII, por sua vez, em 1954 comemorou o primeiro centenário dessa gloriosa verdade de fé, decretanto o Ano Santo Mariano. Celebração esta coroada pela Encíclica Ad Coeli Reginam, na qual o mesmo Pontífice proclama a soberania da Santíssima Virgem, e estabelece a festa anual de Nossa Senhora Rainha.

(CLÁ DIAS, JOÃO. Pequeno Ofício da Imaculada Conceição Comentado. Artpress. São Paulo, 1997, pp. 494 à 502)

Oração numa atmosfera de harmonia e concórdia

IMG_2148Mons. João S. Clá Dias, EP

Como outras tantas festas litúrgicas, Pentecostes nos faz recordar um dos grandes mistérios da fundação da Igreja por Jesus. Encontrava-se ela em estado ainda quase embrionário — alegoricamente, poder-se-ia compará-la a uma menina de tenra idade — reunida em torno da Mãe de Cristo. Ali no Cenáculo, conforme nos descrevem os Atos dos Apóstolos na primeira leitura, passaram-se fenômenos místicos de excelsa magnitude, acompanhados de manifestações sensíveis de ordem natural: ruído como de um vento impetuoso, línguas de fogo, os discípulos exprimindo-se em línguas diversas sem tê-las antes aprendido. A alta significação simbólica do conjunto desses acontecimentos, como de cada um em particular, constituiu matéria para inúmeros e substanciosos comentários de exegetas e teólogos de grande valor.

Enquanto figura exponencial, destaca-se Maria Santíssima, predestinada desde toda a eternidade a ser Mãe de Deus. Dir-se-ia que havia atingido a plenitude máxima de todas as graças e dons, entretanto, em Pentecostes, mais e mais Lhe seria concedido. Assim como fora eleita para o insuperável dom da maternidade divina, cabia-Lhe agora o tornar-se Mãe do Corpo Místico de Cristo e, tal qual se deu na Encarnação do Verbo, desceu sobre Ela o Espírito Santo, por meio de uma nova e riquíssima efusão de graças, a fim de adorná-La com virtudes e dons próprios e proclamá-La “Mãe da Igreja”.

Em seguida estão os Apóstolos; constituem eles a primeira escola de arautos do Evangelho. Observavam as condições essenciais para estarem aptos à alta missão que lhes destinara o Divino Mestre, conforme nos relata a Escritura: “Todos estes perseveraram unanimemente em oração, com algumas mulheres e com Maria, Mãe de Jesus, e com os seus irmãos” (At 1, 14). Essa perseverança na oração se realizou de forma continuada e no silêncio, na solidão e clausura do Cenáculo. A atmosfera era de máxima concórdia, harmonia e união entre todos, de verdadeira caridade fraterna. São Lucas em seu relato faz questão de realçar a presença de Maria, certamente para tornar patente o quanto Ela mesma se alegrava em ser uma fiel participante da Comunidade. Uma nota marcante é a submissão e obediência ao Vigário de Cristo tal qual transparece nos versículos subseqüentes, ao relatarem o primeiro ato de governo e jurisdição de São Pedro (At 1, 15-22).

Em síntese, a verdadeira eficácia do apostolado está aí evidenciada, sob o manto da Santíssima Virgem, na união efetiva e afetiva de todos com a Pedra sobre a qual Cristo edificou sua Igreja.

Benefícios da Ascenção

AscençãoMons. João S. Clá Dias, EP

Fomos beneficiados por incontáveis dons com a Ascensão. Segundo São Leão Magno, passamos a conhecer melhor Jesus a partir do momento em que Ele retornou às glórias do Pai. Nossa fé, “mais esclarecida, aprendeu a elevar-se pelo pensamento, sem necessidade do contato com a substância corporal de Cristo, na qual Ele é menor que o Pai, dado que, embora permanecendo a mesma substância do corpo glorificado, a fé dos fiéis é convidada a tocar, não com a mão terrena, mas com o entendimento espiritual, o Unigênito, igual Àquele que O engendrou. É este o motivo pelo qual o Senhor, após a Ressurreição, disse a Madalena — que representava a pessoa da Igreja —, ao aproximar-se para tocá-Lo: ‘Não me toques, pois ainda não subi ao meu Pai’ (Jo 20, 17). Quer dizer, não quero que procures minha presença corporal nem que me reconheças com os sentidos carnais; chamo-te para coisas mais elevadas, destino-te a bens superiores. Quando subir a meu Pai, Me tocarás de forma mais real e verdadeira, tocando no que não apalpas e crendo no que não vês” (1).

Fortalecimento da fé

Demonstra-nos São Tomás de Aquino que, privando-nos de sua presença corporal, ao penetrar na glória eterna, Jesus Cristo tornou-se ainda mais útil para nossa vida espiritual.

Primeiro, “para aumento da fé, que é sobre o que não se vê. Por isso, o próprio Senhor diz no Evangelho de João que o Espírito Santo, ao vir, ‘argüirá o mundo a respeito da justiça’, ou seja, da justiça ‘dos que crêem’, como diz Santo Agostinho: ‘A própria comparação dos fiéis com os infiéis é uma censura’. Por isso, acrescenta: ‘Porque Eu vou para o Pai e não Me vereis mais, pois são bem-aventurados os que não vêem e crêem. Será nossa a justiça, de que o mundo será argüido, porque credes em Mim, a Quem não vedes’” (2).

A esse propósito, São Gregório Magno externa sua convicção: “Com sua facilidade em crer, Maria Madalena nos aproveita menos do que Tomé duvidando por muito tempo, porque este, em meio a suas dúvidas, exigiu tocar as cicatrizes dessas chagas, e com isso nos tirou todo pretexto para vacilação” (3).

Aumento da esperança

Em segundo lugar, “para reerguer a esperança”, pois, “pelo fato de Cristo ter elevado ao Céu sua natureza humana assumida, deu-nos a esperança de lá chegarmos, porque ‘onde quer que esteja o corpo, ali se reunirão as águias’, como diz Mateus. Por isso, diz também o livro de Miquéias: ‘Já subiu, diante deles, Aquele que abre o caminho’” (4).

Abrasamento da caridade

Uma terceira razão, ainda segundo São Tomás, torna a Ascensão mais benéfica a nós do que a própria presença física de Nosso Senhor, e esta se refere à caridade. Na seqüência dessa mesma questão da Suma, o Doutor Angélico, a fim de nos mostrar as vantagens para essa virtude, cita São Paulo: “Por isso, diz o Apóstolo: ‘Procurai o que está no alto, lá onde Se encontra Cristo, sentado à direita de Deus; aspirai às coisas de cima, não às da terra’, pois, como foi dito, ‘onde estiver o teu tesouro, ali também estará o teu coração’” (5). E, após discorrer sobre o amor enquanto propriedade do Espírito Santo e a respeito da grande necessidade que dele tinham os Apóstolos, termina com esta citação de Santo Agostinho: “Não podeis receber o Espírito enquanto persistirdes em conhecer a Cristo segundo a carne. Pois quando Cristo Se afastou corporalmente, não só o Espírito Santo, mas também o Pai e o Filho estavam espiritualmente em presença deles” (6).

1) Serm. 74 in Sermones escogidos, Ed. ASPAS, Madrid, p. 139. –

2) Suma Teológica III, q. 57, a.1 ad 3.

3) Homilía 29.

4) Suma Teológica, III, a. 1 ad 3.

5) Id., a. 1, ad 1.

6) In Io. Tr. 94: PL 35, 1864.

Eis o dia que o Senhor fez

Mons. João S. Clá Dias, EPResurreicao_NSJC_BasilicaPilar_001

Quia surrexit sicut dicit… Tal como havia anunciado aos seus (Mt 16, 21; 17,9; 17, 22; 20, 19; Jo 2, 19, 20 e 21; Mt 12, 40), Jesus ressuscitou. Esse supremo fato já havia sido previsto por David (Sl 15, 10) e por Isaías (Is 11, 10).

São Paulo ressaltará o valor desse grandioso acontecimento: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1 Cor 15, 14). Daí a importância capital da Páscoa da Ressurrei­ção, a magna festa da Cristandade, a mais antiga, e centro de todas as outras, solene, majestosa e pervadida de júbilo: “Haec est dies quam fecit Dominus. Exultemus et laetemur in ea” — esse é o dia que o Senhor fez, seja para nós dia de alegria e felicidade (Sl 117, 24).

Na liturgia, essa alegria é prolongada pela repetição da palavra “aleluia”, pelo branco dos paramentos e pelos cânticos de exultação. Com razão dizia Tertuliano: “Somai todas as solenidades dos gentios e não chegareis aos nossos cinquenta dias de Páscoa” (De idolatria, c 14).

Na Ressurreição do Senhor, além de contemplarmos o triunfo de Jesus Cristo, celebramos também a nossa futura vitória, sendo aplicáveis a nós as belas palavras de São Paulo: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está o teu aguilhão?” (1 Cor 15, 55).

A pedagógica beleza da solene celebração eucarística

Pe. José Victorino de Andrade, EPbento-xvi-_-celebr

A missa celebrada com decoro, compenetração e beleza, poderá proporcionar ao fiel um manancial de graças e levá-lo a uma fidelidade ao sacramento que se traduza numa vida íntegra. E para este efeito, o decoro do rito assume uma importância incontornável, conforme nos explica o Papa Bento XVI na sua Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis: “A relação entre mistério acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no valor teológico e litúrgico da beleza. De fato, a Liturgia, como, aliás, a Revelação cristã, tem uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade”; e apoiado neste fato, reafirma a necessidade do celebrante colocar uma especial atenção e empenho na “ação litúrgica para que brilhe segundo a sua própria natureza” (n. 35).

Para o Sumo Pontífice, a beleza do rito deve ser um reflexo da Beleza infinita, da qual as celebrações serão sempre uma pálida imagem, conforme ressaltou Bento XVI, nas Vésperas celebradas na Catedral de Notre Dame, por ocasião de sua visita à França, em 2008:

“A beleza dos ritos nunca será, certamente, suficientemente procurada, nem  cuidada nem elaborada, porque nada é demasiado belo para Deus, que é a Beleza infinita. Nossas liturgias na terra não poderão ser senão um pálido reflexo da liturgia celeste, que se celebra na Jerusalém do alto, ponto de chegada de nossa peregrinação sobre a terra. Possam, portanto, nossas celebrações, aproximar-se o mais possível dela, e fazer com que a antegozemos!” 1

Mons. João Scognamiglio Clá Dias reconhece, a partir desta insistência do Santo Padre, uma especial necessidade do pulchrum na liturgia, não como um elemento secundário, variando segundo as circunstâncias e as conveniências, mas que deve fazer-se presente por seu papel essencial, pois o sacerdote, praticando a ars celebrandi com perfeição, com mais facilidade eleva a assembléia à contemplação de Deus.2 Verifica-se assim, para o Pe. Matias Augé, C.M.F., a necessidade de cultivar uma peculiar espiritualidade mistagógica própria à celebração eucarística, que faça o crente transpor na sua vida aquilo que recebe e aprende com o ritual eucarístico, sobretudo, pelo “exemplo moralizador” de seu encontro com Cristo na celebração.3

Além de existir uma beleza intrínseca e peculiar relativamente à celebração litúrgica, esta vai mais além, reflete-se de modo extrínseco por sua essência e força simbólica, capaz de uma divina pedagogia, que tem seus desdobramentos na própria sociedade, conforme explica Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP:

“Além da beleza que lhe é própria, a liturgia realiza por seu simbolismo e essência, e do modo mais esplendoroso possível, essa sacralização das realidades temporais, em que se devem empenhar todos os fiéis. Na Celebração Eucarística, é o Céu que se liga à Terra, o espiritual ao temporal. É Cristo, ao mesmo tempo o arquétipo do gênero humano e o Filho de Deus, que se oferece ao Pai, para interceder por seus irmãos”.4

Esta sacralização das realidades temporais, ou seja, influência e transbordo das graças recebidas pela celebração eucarística – sobretudo no contexto de uma liturgia celebrada de modo digno e solene, com a compenetração de que desta forma se perpetua Cristo Sacerdote na terra –, é passível de trazer para a própria sociedade uma profunda e radical mudança. Ou seja, não é apenas no âmbito da comunidade dos crentes que a metanóia poderá ter lugar, mas também em torno dos que vivem com autenticidade e verossimilhança o sacramento recebido. Deste modo, o apelo a um sentido mais alto da nossa existência torna-se latente, e a história não é alheia a este fenômeno, conforme nos explica o Santo Padre na Sacramentum Caritatis:

“Enfim, para desenvolver uma espiritualidade eucarística profunda, capaz de incidir significativamente também no tecido social, é necessário que o povo cristão, ao dar graças por meio da Eucaristia, tenha consciência de o fazer em nome da criação inteira, aspirando assim à santificação do mundo e trabalhando intensamente para tal fim. A própria Eucaristia projeta uma luz intensa sobre a história humana e todo o universo. Nesta perspectiva sacramental, aprendemos dia após dia que cada acontecimento eclesial possui o caráter de sinal, pelo qual Deus Se comunica a Si mesmo e nos interpela” (n. 92. Grifo nosso).

Uma vez criada esta espiritualidade eucarística de que nos fala o Santo Padre, a liturgia eucarística passa a desempenhar um papel de grande importância no mundo de hoje, transmitindo as verdades da fé de modo mistagógico, simples e atraente, à semelhança de uma substanciosa catequese, e levando o homem a imitar aquilo que contemplou, guardou em seu coração e, portanto, amou. E o homem é tendente a reproduzir aquilo que admira, conforme explica Mons. João Clá Dias: “uma liturgia celebrada com a devida compenetração e manifestando toda a beleza que lhe é inerente há de ter uma ação benéfica sobre os fiéis, moldando a fundo sua mentalidade e levando-os a imitarem em alguma medida o ritual presenciado”.5

Esta rememoração poderá verificar-se, por exemplo, no seio de uma família, que vive diariamente uma espiritualidade que se nutriu com o pão da palavra e da eucaristia, transpondo-a e traduzindo-a em atos concretos, em relacionamento humano, e em laços de solidariedade, antes de mais com aqueles que lhes são mais próximos, começando na intimidade do lar:

“O pai ou a mãe que assiste a uma celebração esplendorosa, desdobrará instintivamente no dia-a-dia, no “ritual” da igreja doméstica, o cerimonial presenciado na Igreja. Dar a bênção aos filhos, ou rezar antes das refeições, por exemplo, são maneiras de praticar o espírito católico na vida da família”.6

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1 “La beauté des rites ne sera, certes, jamais assez recherchée, assez soignée, assez travaillée, puisque rien n’est trop beau pour Dieu, qui est la Beauté infinie. Nos liturgies de la terre ne pourront jamais être qu’un pâle reflet de la liturgie céleste, qui se célèbre dans la Jérusalem d’en haut, objet du terme de notre pèlerinage sur la terre. Puissent, pourtant, nos célébrations s’en approcher le plus possible et la faire pressentir!” (BENEDETTO XVI. Celebrazione dei vespri nella cattedrale di Notre-Dame Paris, 12 set. 2008. In: Insegnamenti IV, 2 (2008). p. 284. Tradução nossa).

2 Cf. CLÁ DIAS, João S. Beleza e Sublimidade: Clave teológica da Nova Evangelização. In: Lumen Veritatis. São Paulo: ACAE, n. 10, jan./mar. 2010. p. 28.

3 Cf. AUGÉ, Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 2005. p. 312-313.

4 CLÁ DIAS, João S. A gênese e o desenvolvimento do movimento dos Arautos do Evangelho e seu reconhecimento canônico. Tese de doutoramento em Direito Canônico – Angelicum. Roma, 2009. p. 274-275.

5 Ib. p. 278.

6 Loc. cit.

A homilia

bento-xviPe. Mário Sérgio, EP

Entre as formas de pregação, destaca-se a homilia, que é parte da própria liturgia e se reserva ao sacerdote ou diácono; nela se devem expor, ao longo do ano litúrgico, a partir do texto sagrado, os mistérios da fé e as normas da vida cristã.

A Sagrada Teologia que é traduzida pelo sacerdote de forma acessível aos fiéis deve-se apoiar na Sagrada Escritura que é a “alma”, de todo ministério profético, sobretudo da homilia1. Por esta razão, a Igreja determina que em todas as missas que se celebram com participação do povo, nos domingos e festas de preceito, deve-se fazer a homilia, que não se pode omitir, a não ser por causa grave2.

À suficiente participação do povo, recomenda-se vivamente que se faça a homilia também nas missas celebradas durante a semana, principalmente no tempo do advento e da quaresma ou por ocasião de alguma festa ou acontecimento de luto3, pois os jovens afastados da participação dos mistérios recuperam o senso católico no encontro com o sacerdote nestas ocasiões, muitas vezes retornando à participação das Missas dominicais.

Ressalta a Evangelii Nuntiandi, que na homilia, “a evangelização não seria completa se ela não tomasse em consideração a interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social, dos homens”4. Entretanto, convém que a doutrina cristã seja apresentada de modo apropriado à condição dos ouvintes e, em razão dos tempos, adaptada às necessidades.  O Código de Direito Canônico estimula aos párocos que “as pregações, que se denominam exercícios espirituais e santas missões, ou ainda outras formas adaptadas às necessidades”5.

Deve-se ressaltar que os párocos, devem mostrar-se solícitos a fim de que a palavra de Deus seja anunciada também aos fiéis que, por sua condição de vida, não podem usufruir suficientemente da ação pastoral comum e ordinária, ou que dela são totalmente privados, sobretudo, àqueles que mais afetados pelo secularização do mundo, os não-crentes, pois “paradoxalmente, neste mesmo mundo moderno não se pode negar a existência de verdadeiras pedras de junção cristãs, valores cristãos pelo menos sob a forma de um vazio ou de uma nostalgia. Não seria exagerar o falar-se de um potente e trágico apelo para ser evangelizado”6.

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1 DV 24

2 SC 52

3 PAULUS VI. Litt. Ap. Sacram Liturgiam, 25. 1964, III. AAS 56 (1964) 141.

4 EN 29

5 CIC 770; CD 28; CD 30.

6 EN 55,58

A escravidão a Nossa Senhora enquanto suprema liberdade

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Dr. José Mário da Costa

A forma suprema da liberdade consiste em aceitar a autoridade daqueles que nos ajudam a praticar a verdade e o bem, ou seja, a fazer aquilo que de fato queremos. Não há, portanto, forma mais cristalina e mais sublime de liberdade do que sermos escravos de Nossa Senhora. É o auge da dignidade humana, porque é fazer, em tudo, aquilo para onde as nossas melhores apetências caminham.

Qual é a conseqüência disso para nós, quando formos nos consagrar a Nossa Senhora? É levarmos um espírito amoroso de autoridade, isto é, compreendendo a função da autoridade, compreendendo a função da obediência e compreendendo que, fazendo-nos tão pequenos diante dEla, fazemos uma coisa sublime, uma coisa altamente dignificante. Não devemos nunca nos envergonharmos de obedecer, de seguir um outro, porque exatamente aí está a mais alta dignidade do homem.

Neste ponto de nossa argumentação, alguém poderia perguntar: “Esta doutrina da escravidão de amor a Virgem Maria é linda! Mas qual seria a sua utilidade prática? E que relação teria com a tese da nossa pesquisa?”

É São Luiz Maria Grignion de Montfort quem vai responder a estas duas perguntas. O capítulo V do seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem tem como título:  Esta devoção conduz à união com Nosso Senhor. (Grignion de Montfort, 1961, p. 145).

Em seguida, explica o santo: “Esta devoção é um caminho fácil, curto, perfeito e seguro para chegar à união com Nosso Senhor, e nisto consiste a perfeição cristã.” (idem, p. 145). Ele faz uma longa demonstração desta tese em seu Tratado. (ibidem, p. 146-163).

Portanto, conforme ensina São Luiz de Montfort, a perfeição cristã consiste na união com Nosso Senhor, e a escravidão de amor a Virgem Maria, ensinada por ele, é um caminho fácil, curto, perfeito e seguro para se chegar a esta união.

Em resumo, a doutrina do santo consiste na consagração de si mesmo a Jesus pelas mãos de Maria. “Assim será um fiel e amoroso escravo de Jesus e Maria quem, pelas mãos de Maria Santíssima, se entregar inteiramente ao serviço deste Rei dos reis, e que não reserva nada para si”. (ibidem, p. 131).

Em vista disso, uma grande difusão dessa forma de devoção à Santíssima Virgem seria um forte instrumento para conduzir os homens à vida eucarística, trazendo assim de volta ao redil de Cristo as ovelhas desgarradas.

O sacrum convivium de Jesus com os discípulos de Emaús

Mons. João S. Clá Dias, EPjesus-e-apostolos

A acolhida afetuosa, o grande respeito dos três interlocutores entre si, a elevação do tema tratado, o tônus da conversa e, sobretudo, a delicadeza e a didática de Jesus fazem do encontro de Jesus com os discípulos de Emaús um dos mais belos episódios do relacionamento humano.

É com vistas a nos ensinar quão benéficos são os efeitos da hospitalidade — qualidade de alma própria àquele que ordenadamente usa de seu instinto de sociabilidade — que a Liturgia de hoje nos propõe considerar a beleza da aparição de Jesus aos discípulos de Emaús. Nesta narração, ambos deixam entrever o quanto possuem um coração afetuoso, caritativo e generoso para com um desconhecido que os alcança pelo caminho. Eles não têm a menor fímbria de respeito humano em explicar ao forasteiro os principais aspectos da vida, paixão e morte de Jesus, como o próprio desaparecimento de seu Sagrado Corpo, sempre levados por uma sociabilidade virtuosa tão rara nos dias de hoje e tão indispensável para um convívio agradável.

Consideremos o grande respeito usado pelos três entre si nesse episódio, como também a elevação do tema por eles tratado e o tônus da conversa. Como seria altamente formativo o poder-se reconstituir tal qual se deu esse convívio dos dois com o Divino Mestre ressurrecto! De imediato, configurar-se-ia diante de nossos olhos o grande contraste com os encontros tão comuns e correntes na atualidade. Quanto teríamos a aprender desse sacrum convivium!