A presença dos religiosos nos movimentos eclesiais

José Manuel Jiménez Aleixandre

Cat            A natureza dos chamados “movimentos eclesiais” tem algumas características comuns a todos eles[1], consideradas por muitos autores como sendo, em parte semelhantes, em parte diferentes, a tantas outras formas carismáticas suscitadas pelo Espírito Santo na Igreja, ao longo dos séculos, pois, quanto à origem carismática dos mesmos, há acordo entre os autores.

Podemos dividir as características dos atuais “movimentos eclesiais” em: comuns aos movimentos de outras épocas, às quais podemos chamar características históricas; novas, adequadas ao novo milênio no qual a Igreja entra, que denominaremos características atuais.

A análise das respostas dadas ao longo da História, pelo mesmo Espírito Santo, para dar forma jurídica eclesiológica aos carismas, pode servir de moldura para ajudar a compreender como considerar as características históricas.

Mas a novidade trazida pelos novos movimentos e por seus fundadores (que se manifesta nas características atuais, muitas delas nunca vistas na Igreja) causa muitas vezes perplexidade. Aliás, compreensível, uma vez que, como temos analisado[2], um carisma só é bem compreendido por quem o recebe: seja este recebido diretamente, no caso do fundador; seja através de terceiros, como é o caso dos discípulos.

A presença de religiosos[3] nos movimentos eclesiais[4] enquadra-se nessa questão e merece algumas considerações.

            A questão torna-se particularmente incisiva quando se considera que uma Igreja Particular (uma diocese, uma prelatura em território de missão, etc.) não tem sua origem numa graça carismática fundante, mas na própria estrutura da Igreja, Povo de Deus em caminho. De modo diferente, os Institutos Religiosos[5] sempre nascem de um carisma fundacional, concedido pelo Espírito Santo em geral a uma só pessoa, que o encarna; e o transmite aos seguidores sob forma não jurídica, mas por uma paternidade espiritual que se comunica de pessoa a pessoa. Por isso, um religioso tem a obrigação de conformar sua vida à do fundador.[6]

            Os movimentos eclesiais, seguindo a opinião geral dos autores e do Magistério pontifício recente[7], são, eles próprios, nascidos de um carisma fundacional; parece assim ter alguma coisa a ver com os Institutos de Consagrados, já que ambos não se originam da estrutura hierárquica, e possuem uma forma vitae dada pelo fundador.

            O religioso estaria, então, sujeito a dois carismas fundacionais: o do instituto, e o do movimento.

Jiménez Aleixandre, José. Como regular a presença dos religiosos nos movimentos. In: Lumen Veritatis, n.7, Abril a Junho 2009. p. 29-31.


[1] Este artigo é um capítulo traduzido da tese de Mestrado apresentada pelo autor no “Studium Generale Marcianum” do Patriarcado de Veneza, sob o título “Le recenti proposte di configurazione canonica dei nuovi movimenti ecclesiali”, Venezia 2009 pro manuscripto.

[2] Em outros capítulos da tese de mestrado, da qual se publica aqui um excerto.

[3] Para efeitos deste artículo, empregamos o termo religioso no seu sentido jurídico canónico, definido pelos câns. c. 573 § 2 e 607: membro de um Instituto Religioso. No seu sentido comum entre o povo de Deus, a palavra designa, na realidade, qualquer pessoa que dedica sua vida à Igreja pela prática dos Conselhos Evangélicos levando vida comunitária, seja numa forma “canonicamente religiosa”, seja adotando outra forma canônica “não religiosa”: Instituto Secular, Sociedade de Vida Apostólica, uma “Nova Forma” segundo o c. 605; e até algumas formas canonicamente “laicas” como as atuais associações de fiéis com vida comunitária e celibato, por exemplo, os “Memores Domini” ou os “focolares”. Poderiam ser fazer analogias entre os dois conceitos escondidos no mesmo termo, mas seria objeto de outro estudo particular.

[4] A distinção feita por ZADRA, em I movimenti ecclesiali e i loro statuti, vem a propósito desse assunto. Ele considera como movimentos laicais aqueles que são constituídos apenas por leigos e que, em geral, colaboram nas paróquias (como a Ação Católica). Denomina movimentos espirituais aqueles que não têm uma forma particular de vida ou de ação apostólica, mas possuem específicas práticas devocionais, particulares ou realizadas em torno de um grupo. Por outro lado, considera como movimentos eclesiais aqueles nos quais convergem pessoas de todas as categorias existentes na Igreja: celibatários ou casados, clérigos e leigos, religiosos e seculares.

[5] A expressão è empregado aqui no seu sentido canônico, se bem que, como è notório, o mesmo se pode dizer de tantos outros “institutos de perfeição”, ou como denominar-se queira, e seja qual for a forma jurídica adotada: instituto secular ou sociedade de vida apostólica, assumindo os conselhos evangélicos. Ver as observações da nota anterior.

[6] Mesmo sendo um aspecto colateral ao estudo, fazemos referência aqui ao estudo de CANALS. Para os discípulos, diz ele, “é um dever de consciência dos mais importantes harmonizar-se constantemente com o espírito do Fundador” (p. 17), o qual, segundo São Jerônimo é “um homem no qual habita o espírito de Deus” (nota 8). Além do mais, na nota 9, CANALS acrescenta uma citação de FURET (Cronicas maristas – I el fundador, Zaragoza, Luis Vives, 1979, 18-19): “Os religiosos que não têm o espírito do fundador, ou o perderam, devem ser considerados e considerar-se a si próprios como membros mortos: […] Para um religioso, o espírito de seu estado, o espírito do fundador não é algo assim como uma prática somente útil, é uma necessidade, é uma coisa indispensável: não há graça, nem virtude, nem paz, nem dita neste mundo, nem salvação e dita eterna após a morte, para quem não possua esse espírito” (grifo meu).

[7] São tão numerosos os pronunciamentos de João Paulo II e Bento XVI neste sentido, que resulta sem sentido citar apenas um ou outro deles.

As Sociedades de Vida Apostólica: Antecedentes históricos

fillippo-neriMons. João Clá Dias, EP

Se nos ativermos à definição do cân. 731 do atual CIC, encontraremos a origem dessas sociedades em São Felipe Néri, quando o Oratório, por ele fundado em Roma, foi aprovado pelo Papa Gregório XIII, em 15 de julho de 1575. Quanto às sociedades femininas, nos remontamos às Filhas da Caridade, fundadas por São Vicente de Paulo e Santa Luisa de Marillac.

Segundo Jean Bonfils (cf. Comentário exegético, v. II/2, p. 1885), umas e outras dão uma prioridade indiscutível ao apostolado, sob a forma de uma evangelização direta ou do serviço aos pobres.

A partir de São Felipe Néri podem-se distinguir duas grandes correntes: a que se costuma chamar de escola francesa de espiritualidade, com os Oratorianos de Bérulle, os Lazaristas de São Vicente de Paulo, os Eudistas e os Sulpicianos; e a que tem raízes na tradição missionária do Seminário, depois convertido em Sociedade de Missões Estrangeiras de Paris e fundado em 1660. Essas duas correntes estão marcadas muito essencialmente por seu caráter presbiteral e missionário.

As sociedades femininas não tiveram o mesmo êxito. Isso pode ter sido motivado pelo fato de que

[…] tenham experimentado a necessidade de assegurar-se um incremento de apoio espiritual numa estrutura de vida religiosa com votos […]; e também porque […] a vida religiosa, substituída hoje pela noção de vida consagrada, foi considerada erroneamente como um estado de vida superior a tudo o que espiritualmente suficiente e eficaz podia oferecer o marco canônico de uma SVA (JEAN BONFILS, p. 1885).

No direito antigo eram elas designadas sociedades de homens ou de mulheres que vivem em comunidade sem votos. No cân. 673 e seguintes, do Código de 1917, encontramos regulamentadas essas sociedades, nas quais seus membros imitam o modo de viver dos religiosos de vida comunitária, e segundo as constituições aprovadas, mas sem estar ligados pelos três votos públicos costumeiros. Não se trata de ordens religiosas propriamente ditas, nem seus sócios se designam, no sentido próprio, com o nome de religiosos. Podem ser clericais ou laicais.

Na opinião de Carlos Corral Salvador (1997, p. 699), a denominação adotada era ambígua e não suficientemente clara, referia-se à organização interna, mas não ao objetivo primordial, que é a atividade apostólica e missionária. Quando as primeiras dentre essas sociedades foram constituídas, ainda não existiam os institutos seculares, e os membros de muitas delas não queriam enquadrar-se na situação de institutos religiosos porque neles não poderiam realizar sua finalidade específica.

O Código de 1983, depois de várias dificuldades e muitas discussões, as denominou “Sociedades de Vida Apostólica”. Essa escolha nos é explicada por Salvador (1997, p. 699-700), com base em texto de Communicationes:

Assim não se faz referência nem aos vínculos ou votos, mediante os quais possam assumir os conselhos evangélicos e tender, por meio deles, a uma perfeição espiritual da caridade, nem à vida de comunidade, que poderiam ter, como meio de realização de sua finalidade e da tendência à perfeição da caridade dos membros (Communicationes 13 [1981] 382ss).

A distinção entre as sociedades de vida apostólica e institutos de vida consagrada pode, então, ser expressa na feliz e sintética fórmula de Feliciani (2003, p. 121):

Tais sociedades [de vida apostólica] não são institutos de vida consagrada, mas são a estes assemelhados enquanto seus membros perseguem, sem votos religiosos, um determinado fim apostólico e, mantendo vida fraterna em comunidade segundo as próprias regras, tendem à perfeição da caridade mediante a observância das constituições da sociedade a que pertencem (cân. 731).

 

DIAS, João Scognamiglio Clá. Considerações sobre a gênese e o desenvolvimento do movimento dos Arautos do Evangelho e seu enquadramento jurídico, 2008. Tese de Mestrado em Direito Canônico — Pontifício Instituto de Direito Canônico do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. p. 93-94.