Perigos e Efeitos Funestos do Desânimo

desanimoObra póstuma do Padre J. Michel, S.J.; “Tratado do Desânimo nas vias da Piedade”, Coleção Popular de Formação Espiritual, vol XXIX, Editora Vozes, Petrópolis RJ, 1952

CAPÍTULO I e II

            O desânimo é a tentação mais perigosa que o inimigo da salvação dos homens possa pôr por obra. Nas outras tentações, ele só ataca uma virtude em particular e mostra se a descoberto; no desânimo, ataca as todas, e esconde-se.

             Nas outras tentações, vê-se facilmente a cilada: na Religião, não raro na própria razão, e numa educação cristã, achamos sentimentos que as condenam: a vista do mal que não podemos disfarçar, a consciência, os princípios de Religião que despertam, servem de apoio para nos sustentarmos. No desânimo não achamos socorro algum; sentimos que a razão não basta para praticar todo o bem que Deus pede; por outro lado, não esperamos achar junto a Deus a proteção de que havemos mister para resistirmos às paixões. Achamo nos, pois, sem coragem, prontos a tudo abandonar; e é até aí que o demônio quer conduzir a alma desanimada.

            Nas outras tentações, vemos claramente que seria mal aderirmos a elas por um sentimento refletido: no desânimo, disfarçado sob mil formas, acreditamos ter razões as mais sólidas para nos deixarmos guiar por esse sentimento, que não consideramos como uma tentação. Entretanto, esse sentimento faz considerar como impossível a prática constante das virtudes, e expõe a alma a se deixar vencer por todas as paixões. É, pois, importante evitar essa cilada.

            O efeito mais funesto do desânimo é que a alma que nele cai não o considera uma tentação. A esperança e a confiança em Deus é tão mandada quanto a Fé e as outras virtudes

            O que faz o grande mal de uma alma desanimada é que, iludida por um temor excessivo que lhe disfarça os verdadeiros princípios, abatida pela vista das dificuldades contra as quais não acha em si mesma recurso algum, ela não considera esse estado como uma tentação. Se o encarasse sob este ponto de vista, desconfiaria das razões que o alimentam: e, assim, sairia dele bem mais cedo e mais facilmente.

            Bem certo é, entretanto, que se trata de uma tentação bem definida; porquanto todo sentimento que é oposto à lei de Deus, ou em si mesmo ou pelas conseqüências que pode ter, evidentemente é uma tentação. É assim que julgamos de todas as que podemos experimentar. Se nos vem um pensamento contra a Fé, um sentimento contra a Caridade, ou contra alguma outra virtude, consideramo lo como uma tentação, desviamo nos dele, e aplicamo-nos a produzir atos opostos a esse pensamento, a esse sentimento, que nos põe em perigo de ofender a Deus.

            Ora, a Esperança e a confiança em Deus é tão mandada quanto a Fé e as outras virtudes. O sentimento que vai contra a Esperança é, pois, tão proibido quanto o que vai contra a Fé, e contra qualquer outra virtude: é, pois, uma tentação bem caracterizada. A lei prescreve nos fazer amiúdes Atos de Fé, de Esperança e de Caridade: proíbe-nos, por isso mesmo, todo ato, todo sentimento refletido contrário a essas virtudes tão preciosas e tão salutares. Deve-se, pois, considerar o desânimo como uma tentação, e mesmo como uma tentação das mais perigosas, visto que expõe a alma cristã a abandonar toda obra de piedade.

            Para tornardes sensível a vós mesmos esse perigo, examinai a conduta ordinária dos homens. A esperança de ser bem sucedido, de se proporcionar um bem, de evitar um mal, numa palavra, de satisfazer algum desejo ou alguma paixão, é que os faz agir, é que os sustenta nas penas que eles têm de suportar, é que os anima nos obstáculos que eles têm a vencer.

            Tirai lhes toda esperança, e logo eles cairão na inação. Só um homem no delírio pode dar se movimentos por um objeto que ele desespera de poder adquirir. O mesmo efeito o desânimo produz na prática das virtudes; funda se no mesmo princípio, a falta dos meios para chegar ao fim que nos propomos.

            A alma cristã que não espera vencer se na prática de alguma virtude, nada ou quase nada empreende para se fortificar. Os esforços insuficientes que ela faz aumentam lhe a fraqueza; e, mais do que meio vencida pelo seu desânimo, ela se deixa facilmente arrastar à paixão que a domina. A vista da sua fraqueza lança a primeiramente na irresolução, na perturbação. Neste estado, todo ocupada da dificuldade que sente em combater, ela já não vê os princípios que devem guiá la. O temor de não ser bem sucedida impede a de enxergar os meios que deve adotar para vencer, e que Deus lhe apresenta: ela se entrega, pois, ao inimigo sem defesa. É como uma criança a quem a vista de um gigante que avança contra ela faz tremer, e que não pensa em que uma pedra basta para derrubá lo, se ela se servir dessa pedra em nome do Senhor. Essa alma, assim, desanimada, tem um socorro poderoso na bondade do Pai mais terno; e que é só reclamar esse socorro, para sair vitoriosa do combate.

 

 

O Homem deve temer a Deus??!!!

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O Temor de Deus é um dos sete dons do Espírito Santo, disposições permanentes que tornam o homem dócil para seguir as inspirações divinas. (cf. CIC 1831) São Paulo enumera também, entre os frutos do mesmo Espírito, o amor. (Gal 5, 22) Logo, tendo o amor e o temor de Deus a mesma origem, não pode haver entre eles qualquer incompatibilidade pois, nem o amor pode excluir o temor, nem o temor excluir o amor, tornando-se fundamental e mesmo uma exigência para todos que desejem trilhar os caminhos de Deus com todo o coração e com toda a alma” (cf. Dt 10, 12) não se compreendendo um santo sem amor de Deus, nem o temor necessário a fim de se completar a obra da santificação. (cf. 2Cor 7, 1)

 

Na linguagem bíblica o “temor” de Deus não é sinónimo de terror tratando-se de algo inteiramente diferente que encontra eco nas palavras de Bento XVI: “O Temor de Deus é o sentido de responsabilidade que devemos ter, pela história que somos, contribuindo deste modo para a justa edificação do mundo e para a vitória do bem e da paz.” (Adapt. Castel Gandolfo, 15/08/06) Graças a ele “não temos receio do mundo nem de todos os problemas, não temos medo dos homens, porque Deus é mais forte.” (Audiência Geral 11 de Maio de 2005)

 

            Analisando o papel do amor e do temor de Deus na história da Igreja, verificamos um equilíbrio entre ambos que verdadeiramente estimulou os fiéis e que levou Santo Hilário, Bispo do século IV, a dizer: “Todo o nosso temor está no amor”. Esta piedade, profundamente equilibrada, reflectiu-se na oratória sagrada, na arte e na literatura religiosa. Entretanto, o jansenismo veio trazer uma visão do temor que o acentuou até ao exagero e ao delírio. Os que a ele aderiam passavam a ser dominados por angústias e escrúpulos. Receosos da severidade do Divino Juiz, aproximavam-se cada vez menos do sacramento da reconciliação e da comunhão por se acharem indignos. Reagindo contra este exagero, santos, teólogos, pregadores e escritores insistiram à porfia no papel do amor. Inútil é dizer quantos tesouros de graça, de sabedoria teológica e pastoral, de beleza artística, foram assim engendrados na Santa Igreja, pelo que esta tinha de mais representativo e melhor.

Consideremos a realidade dos dias de hoje: De que lado está o exagero? Do lado do amor ou do lado do temor? Talvez o homem contemporâneo não “peque” pelo excesso, nem do amor, nem do temor. Muito pelo contrário, muitos parecem não se incomodar muito com Deus, quer para O amar, quer para O temer.

 

Nesta carência de amor e de temor, o remédio parece estar em atrair os homens para ambos, pois o temor é o reconhecimento do mistério da transcendência divina estando na base da fé ao mesmo tempo que “ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver amor, nada sou.” (1Cor 13, 2)

 

Diác. José Victorino de Andrade, EP