Algumas variações filosóficas da lei natural na modernidade

tibidabo Pe. Jorge Filipe Teixeira Lopes, EP

Nos séculos XVII e XVIII desenvolvem-se os dois veios centrais do pensamento jusnaturalista moderno: racionalismo e empirismo. Se eles são aparentemente opostos, há contudo um ponto que une as duas tendências: é a individualidade originária do ser humano, quer dizer, o homem no seu estado de natureza é solitário e livre.*

Thomas Hobbes
Para Hobbes, o homem tem uma natureza má e a vida humana é “solitária, miserável, repugnante, brutal e breve”.1 Torna-se então necessário a existência de um soberano que disponha impreterivelmente dos seus súbditos, sem limite de autoridade à excepção da sua vida. Desse modo, lei natural e lei civil não diferem e a primeira reduzir-se-á somente ao célebre axioma hobbesiano de que os contractos devem ser guardados. Cumpre obedecer cegamente à autoridade em vista do bem comum. Em Hobbes a sociedade é um grande homem artificial, uma estrutura humana erigida para proteger e fortalecer o homem natural. Considerado o “Pai” dos estados totalitários modernos, o seu Leviatã, de 1668, é um dos apogeus emblemáticos da modernidade no que tange à centralização antropológica.2

David Hume
David Hume glorificava-se de haver destruído a ideia de lei natural, o que, para Maritain, é perfeitamente natural; tendo reduzido a natureza à pura constatação dos factos, a lei natural perde a sua razão de ser. Não há natureza humana para ele, mas simplesmente paixões, inclinações e percepções.3

John Locke
Locke considera a sociedade como o produto utilitarista dos interesses individuais, sendo a lei natural simplesmente qualquer coisa como um mandamento do senso comum, com a única função de estabelecer os direitos inalienáveis de cada indivíduo.4 Puritano, Locke pretende que os homens livres são virtuosos — e não selvagens como em Hobbes — e obedecem à razão, quer dizer, a uma lei natural instituída por Deus. Segundo Bertrand Russell, a doutrina dos direitos do homem é uma derivação do puritanismo, e Locke um dos seus mais proeminentes idealizadores.5

Jean-Jacques Rousseau
Para Rousseau a lei natural existe, mas é de si, inacessível; de qualquer forma, o homem tem um direito natural que a razão acaba por destruir. Como? A natureza humana emerge de um estado humano pré-civilizacional, situação plena de liberdades e direitos. Sendo o homem naturalmente bom, este estado seria susceptível de se produzir eternamente, pelo que ele se priva de inúmeras vantagens ao decidir viver em sociedade; isto porque no convívio com os outros indivíduos, cada um vê-se forçado a seguir princípios novos — a voz do dever, da responsabilidade — deixando de poder olhar somente para si. A partir daí, ele necessitará de consultar a razão antes das suas inclinações naturais.6 Por isso, ao sair do estado natural para viver comunitariamente, o homem delimita, pelas leis, os seus direitos e liberdade naturais. Enfim, Rousseau explora a ideia do estado de natureza como nenhum outro filósofo.

Emmanuel Kant
Com Kant surge uma nova concepção de lei natural que não supõe mais a natureza ontológica mas que é deduzida da pura razão prática. A lei natural do homem vai confundir-se com a sua liberdade, e a moral com a vontade individual. “A autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres que lhe são conformes”,7 afirma. Isso significa que toda a obediência a um poder distinto do homem é indigna do homem. Só é moral a obediência à sua própria lei e serão os preceitos morais do imperativo categórico, o único ponto de conformação da ordem jurídica.
Fundada no conceito de que o homem é um ser livre e que por si mesmo se submete a leis incondicionais, a moral não precisa da ideia de um ser superior ao homem para que ele conheça o seu dever, nem precisa de um incentivo para o cumprir, a não ser a própria lei.8
A influência kantiana é inaudita para a história da filosofia do direito ocidental. Foi sob o seu impulso que nasceu toda a escola positivista, para a qual o conhecimento científico limita-se aos factos e às suas leis constantes. Delimitando dessa forma o conhecimento do homem na sua essência, Kant abriu terreno para as mais variadas especulações no campo do imperativo categórico, pelo que não é abusivo concluir que a DUDH representa um momento kantiano por excelência.9
Em Kant o problema moral deixa de existir como valor objectivo uma vez que passa a pertencer exclusivamente ao âmbito da vontade. Conclui-se então que a ideologia dos direitos humanos, baseando-se no pensamento kantiano, exclui qualquer noção de uma moral universal enraizada na natureza do homem, uma vez que esta simplesmente não existe. Então, o bem e o mal são determinados pela opinião pública, a qual deve procurar agir de tal forma que os seus actos possam ser tidos como princípios universais, segundo a expressão do imperativo categórico kantiano. É o reavivar do velho adágio vox populi vox Dei, mas com um novo e dramático componente: é que a vox Dei pode derivar do dia para a noite conforme a subtileza e maleabilidade do jogo de opiniões.

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* O homem no estado de natureza é, no fundo, uma macaqueação da situação humana no Paraíso antes do pecado original.
1 HOBBES, Thomas. Leviathan. [Em linha]. <Disponível em: http://books.google.pt/books?id=-Q4nPYeps6MC&printsec=frontcover&dq=hobbes+ leviathan &lr=&as_brr=1#PPA86,M1 [Consulta: 16 Jun., 2009]. Tradução nossa.
2 Cf. LOPES ALVES, Op. Cit., p. 125-126.
3 Cf. MARITAIN, La loi naturelle ou la loi non écrite, Op. Cit., p. 93.
4 Cf. Ibid. p. 92-94.
5 Cf. RUSSELL, Op. Cit., p. 164-165. Locke é o apóstolo da Revolução Inglesa de 1688 e os direitos do homem e a teoria do laissez-faire originadas no puritanismo tiveram, como é sabido, o seu impulso na Revolução Americana. A influência de Locke na Declaração Americana e nos factores revolucionários que davam coesão aos novos estados é confirmada por André Kaspi, para quem a filosofia lockeana inspirou os insurrectos da Revolução Americana. (Cfr. KASPI, André. La Constitution des États-Unis. Em: Revista Historia. Paris. No. 456 (Dic., 1984); p. 4-12).
6 Cf. ROUSSEAU, Jean Jacques. Du contrat social. Aubier: Montaigne, 1943. p. 114-115. Tradução nossa.
7 KANT, Emmanuel. Critique of the Practical Reason. [Em linha]. <Disponível em: http://books. google.pt/books?id=N549zroUaaUC&pg=PP1&dq=Critique+of+Practical+Reason&lr=&asbrr=1# PPA27,M1> [Consulta: 15 Jun., 2009] Tradução nossa.
8 Cf. KANT. Religion within the boundary of pure religion. Edinburg: Thomas Clark, 1838. p. 1. Tradução nossa.
9 Cf. LOPES ALVES, Op. Cit., p. 28.

Uma longa e persistente indagação

Mons. João Scognamigliopescador Clá Dias, EP

Perguntar por que alguma coisa é, ou existe, é uma questão instigante para o pensamento humano desde o tempo em que os gregos, caminhando pelas sendas nevadas das montanhas da Hélade, sentados diante de colunas dóricas tendo ao fundo um belo bosque, ou navegando em frágeis barquinhos por entre as ilhas do Egeu sob o luminoso sol de outono, ruminavam sobre a essência das coisas.

Por sua própria natureza, o homem é um animal metafísico.[1] Nos últimos 25 ou 26 séculos, uma longa plêiade de pensadores tentou penetrar o mais recôndito fundamento do ser.

Platão, Aristóteles e São Tomás foram aqueles que mais perto chegaram da pura experiência filosófica, conforme mostra Gilson ao longo de sua famosa obra sobre a “unidade da experiência filosófica”. Eles entenderam que só em torno da metafísica do ser se pode fazer filosofia.

Se os pensadores se desviam desses trilhos, e tentam descrever o todo da humanidade por outras vias, o ceticismo cresce, a dúvida triunfa, o subjetivismo se estabelece. Negligenciando-se o ser, perde-se o princípio unificador da filosofia. É a situação na qual nos encontramos hoje.

Por isso, do lado da cultura moderna, o primeiro olhar não encontra ambiente favorável. A ele se vê negada qualquer objetividade e capacidade de captar a realidade das coisas.

O processo que nos trouxe até essa situação tem profundas raízes históricas e ideológicas. Sua gênese remonta às teses de Guilherme de Ockham, no século XIV, e mais ainda à doutrina do cogito, de Descartes. O turvo rio do pensamento ocidental, brotado dessas fontes, redundou em um oceano de incertezas e subjetividade, todo hostil ao ser e, consequentemente, contra o primeiro olhar.

O passo radical e decisivo para o obscurecimento do ser foi dado por Kant, com sua revolução copernicana do pensamento. Ele mesmo qualificou assim sua gnoseologia, no prefácio para a segunda edição da Crítica da razão pura. Semelhantemente ao sucedido na astronomia com a teoria de Nicolau Copérnico, a mente humana (o sol) não mais gravita em torno do objeto (a terra), mas, ao contrário, são “os objetos” que “devem se regular segundo nosso conhecimento … no que diz respeito à intuição dos objetos”, afirma Kant. Era preciso revirar os conceitos adquiridos pela filosofia perene.

Como observa Abelardo Lobato, “o homem toma o lugar que antes era ocupado pelo ser e havia sido reservado na história para Deus ou a physis”.[2] Com o homem colocado assim no centro do processo cognoscitivo, a experiência subjetiva toma o poder e praticamente empurra de lado o conhecimento metafísico, fazendo cessar o longo primado da ontologia. A metafísica, a moral e a religião são transformadas por Kant em meras servidoras da antropologia. É destronado o ser, e até Deus, e em seu lugar é elevado o “eu pensante”.

A partir de então, a percepção do mundo palpável que nos rodeia vai depender não mais da realidade, mas do desejo humano.[3] Daí poder-se falar apropriadamente do esquecimento do ser como um dos maiores desastres da história do pensamento ocidental — para usar expressão de Heidegger, embora aplicando-a a uma quadra histórica diferente e rejeitando o sentido obscuro e hostil à metafísica que ele lhe dava.

Às filosofias alheias à realidade do mundo cabe bem a crítica do italiano vivaz e observador: “La filosofia è quella cosa con la quale e senza la quale il mondo va tale e quale”.

Fato é que, apesar de todos os equívocos e erros falaciosos ao longo da história, os homens nunca abandonaram a indagação sobre o âmago do ser. De fato, conforme observou Gilson, em todas as doutrinas metafísicas, verifica-se esta nota constante: “Por mais divergentes que possam ser, elas concordam na necessidade de descobrir a primeira causa de tudo o que é” .[4]

Aquele que foi descrito como o mais sábio dos santos, e o mais santo dos sábios — São Tomás de Aquino —, foi quem levou mais longe e mais alto essa inquirição metafísica, partindo do menor e mais humilde ser material, concreto, até deparar com o próprio Ser.

A partir das coisas — que são imediatamente dadas à intuição sensitiva —, passa-se, por meio da atuação da inteligência, ao conhecimento do ser ou sua essência imaterial, para em seguida alcançar, a partir desse ser material, a essência e existência dos seres espirituais, da alma humana, em primeiro lugar, e finalmente a Existência em si, o Esse per se subsistens, fundamento último — Causa primeira eficiente e Causa final suprema — de todo ser.[5]

A filosofia de São Tomás está toda fundada e articulada sobre o ser. Todo o pensamento “razoável” do Ocidente, a partir do fim do século XIII, é devedor à grande obra realizada por quem merecidamente recebeu o título de Doutor Comum — da filosofia e da teologia também. Obra comparável, em grandeza, ousadia, harmonia e pulcritude, à arquitetura gótica que lhe foi contemporânea.

In: Lumen Veritatis, nº12, jun./set. 2010.


[1] GILSON, Étienne. The Unity of Philosophical Experience. New York: Charles Scribner’s Sons, 1937. p. 307.

[2] LOBATO, Abelardo. El hombre en cuerpo y alma. Tratado I: El cuerpo humano. In: El Pensamiento de Tomás de Aquino para el hombre de Hoy. vol. 1. Valencia: Edicep, 1994. p. 78.

[3] A filosofia de Max Scheler, que ambicionava aprofundar a antropologia kantiana, “não só deixava de lado o ser”, mas “não tinha uma adequada concepção da função da inteligência na compreensão do real”, e “diluía o espírito do homem em uma nebulosa com o espírito absoluto, cuja característica era a impotência e a debilidade” (LOBATO, Abelardo. Ibidem, p. 79).

[4] GILSON, Étienne. Op. Cit. p. 306.

[5] DERISI, Octavio Nicolás. Tratado de Teología Natural. Buenos Aires: Educa, [s.d.]. p. 134.

O conceito autêntico da Paz

Diác. Leonardo Barraza Aranda, EPliriocruz

O que é a ordem? Com base na doutrina tomista podemos dizer que a ordem é a reta disposição das coisas segundo sua natureza e finalidade. Assim, um corpo humano, vai estar em ordem, quando os membros que o compõem estão dispostos de tal maneira que cumprem com o objetivo para o qual existem. Logo, tranqüilidade e ordem são duas condições fundamentais para a existência da paz. Mas deixemos ao próprio Santo Agostinho (1964, p.169) em sua obra “A Cidade de Deus ” que exponha a sua doutrina:

A paz do corpo é a ordenada complexão de suas partes; a da alma irracional, a ordenada calma de suas apetências. A paz da alma racional é a ordenada harmonia entre o conhecimento e a ação, a paz do corpo e da alma, a vida bem ordenada e a saúde do animal. A paz entre o homem mortal e Deus é a obediência ordenada pela fé sob a lei eterna. A paz dos homens entre si, sua ordenada concórdia. A paz de casa é a ordenada concórdia ente os que mandam e os que obedecem nela; a paz da cidade a ordenada concórdia entre governantes e governados. A paz da cidade celeste é a ordenadíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, ao mesmo tempo,em Deus. A paz de todas as coisas, a tranqüilidade da ordem.

Em síntese, para o Santo Doutor, a paz em quanto belo dom de Deus “é o mais consolador, o mais desejável e o mais excelente de todos”. 34

“A paz na terra, anseio profundo de todos os homens de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus.” (JOÃO XXIII, 1962, n.1)

Com estas palavras, o Beato João XXIII, iniciou sua Encíclica Pacem in Terris dedicada ao tema da paz. Depois de expor a doutrina católica a respeito da ordem que Deus imprimiu na criação, passa a deplorar que dita ordem não prevaleça no relacionamento entre os seres humanos. Em outras palavras, a paz só se estabelecerá quando a humanidade respeitar a harmonia que Deus instituiu na criação e na alma do homem como um reflexo de suas infinitas perfeições.

Com efeito, João XXIII, (1962, n.4) afirma: “Contrasta clamorosamente com essa perfeita ordem universal a desordem que reina entre indivíduos e povos, como se as suas mútuas relações não pudessem ser reguladas senão pela força.” E seguindo sua linha de argumentos, o Santo Padre expõe a doutrina católica a propósito da existência no íntimo do ser humano de uma ordem, que a consciência deste se manifesta e obriga peremptoriamente a observar: “mostram a obra da lei gravada em seus corações, dando disto testemunho a sua consciência e seus pensamentos” (Rm 2, 15).

O reconhecimento da existência de uma lei moral que regule as relações entre os homens e o respeito por ela, é uma das claves apontadas por João XXIII para a sustentação da paz. Principio que os pontífices posteriores não deixaram de repetir.

Com efeito, o Papa Bento XVI (2007, n.3), em seu discurso para o Dia Mundial da Paz, relembrou esta doutrina:

O meu venerado predecessor João Paulo II, dirigindo-se à Assembléia Geral das Nações Unidas no dia 5 de Outubro de 1995, teve a ocasião de dizer que nós « não vivemos num mundo irracional ou sem sentido, mas […] existe uma lógica moral que ilumina a existência humana e torna possível o diálogo entre os homens e os povos ». A “gramática” transcendente, ou seja, o conjunto de regras da acção individual e do recíproco relacionamento entre as pessoas de acordo com a justiça e a solidariedade, está inscrita nas consciências, nas quais se reflecte o sábio projecto de Deus. Como recentemente quis reafirmar, « nós cremos que na origem está o Verbo eterno, a Razão e não a Irracionalidade ».A paz é, portanto, também uma tarefa que compromete cada indivíduo a uma resposta pessoal coerente com o plano divino. O critério que deve inspirar esta resposta não pode ser senão o respeito pela “gramática” escrita no coração do homem pelo seu divino Criador.

A procura pelo respeito desta “gramática” a qual aludem os recentes Pontífices, guarda uma relação íntima com a prática da virtude, em contraste com o pecado. O termo justiça significa nas Sagradas Escrituras a observância plena dos mandamentos da lei de Deus e a prática das virtudes, ou seja, a santidade da vida. Por isso, Nosso Senhor Jesus Cristo diz: ” Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça” (Mt 5, 6). A Paz e a justiça são inseparáveis.

Já os padres do Concilio Vaticano II na Constituição Pastoral Gaudium et

Spes (1965, n.78) haviam destacado esta importante verdade da doutrina católica:

A paz não é ausência de guerra; nem se reduz ao estabelecimento do equilíbrio entre as forças adversas, nem resulta duma dominação despótica. Com toda a exactidão e propriedade ela é chamada «obra da justiça» (Is. 32, 7). É um fruto da ordem que o divino Criador estabeleceu para a sociedade humana, e que deve ser realizada pelos homens, sempre anelantes por uma mais perfeita justiça.

E ao mesmo tempo reiteram que o cuidado da paz demanda um domínio para evitar o pecado:

Com efeito, o bem comum do género humano é regido, primária e fundamentalmente, pela lei eterna; mas, quanto às suas exigências concretas, está sujeito a constantes mudanças, com o decorrer do tempo. Por esta razão, a paz nunca se alcança duma vez para sempre, antes deve estar constantemente a ser edificada. Além disso, como a vontade humana é fraca e ferida pelo pecado, a busca da paz exige o constante domínio das paixões de cada um e a vigilância da autoridade legítima.

Analisando estes ensinamentos, podemos concluir que a paz não é possível sem um espírito e uma mentalidade que tenham como fundamento uma harmonia no interior do ser humano. Na verdade, a raiz mais profunda da discórdia e desentendimentos surgem no coração do homem. Só o amor autentico a um bem supremo, a saber, Deus, ao qual todos reconheçam e respeitem como legislador, pode conseguir o respeito mútuo e a fraternidade entre os homens e os povos. É por isso que os Pontífices Romanos são categóricos ao afirmar que nunca haverá verdadeira e duradoura paz na terra sem a prática das virtudes cristãs.

Que é o homem, e para que serve? (Eclo 18, 8)

Diác. José Victorino de Andrade, EP

O que é o ser humano? Esta é uma pergunta que ocupa o pensamento dos filósofos há séculos. Ela semprepensadores importou, pois toca diretamente em nós, a nossa origem, o nosso destino, em suma: o nosso ser e sua complexidade, questão desde sempre particularmente difícil. Sócrates pretendia conhecer o homem a partir de si mesmo, Platão e Aristóteles arriscaram algumas definições, de certa forma incompletas. Diógenes procurava-o ironicamente, de lamparina na mão, mesmo à luz do dia, mostrando-se ávido de um encontro que o esclarecesse verdadeiramente.[1] O livro do Eclesiástico transmite-nos esta demanda, mesmo entre o Povo Eleito: “Que é o homem, e para que serve?” (Eclo 18, 8).

Apesar da Antropologia Filosófica se ter firmado apenas no início do século passado, numerosos foram os aportes que os pensadores cristãos propuseram, desde a Patrística aos nossos dias, partindo a maior parte das vezes da Revelação. A linguagem filosófica, enquanto ferramenta para suas doutrinas, nunca esteve excluída. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino fizeram-no de modo muito especial. Mais tarde, outros filósofos como Descartes, Kant e Heiddegger esforçar-se-iam por dar uma visão que acabou por marcar, de certa forma, a pós-modernidade.

Entretanto, em nossos dias, a questão continua em aberto. Talvez pela insaciabilidade humana, característica que tem marcado o homem de todos os tempos, e com a presente crise metafísica, quanto mais ele pensa ter encontrado uma resposta, mais esta lhe parece levar a contradições, a novas perguntas, e a perder-se em um emaranhado de suposições. Conforme a Gaudium et Spes, “a natureza espiritual da pessoa humana encontra e deve encontrar a sua perfeição na Sabedoria, que suavemente atrai o espírito do homem à busca e ao amor da verdade e do bem, e graças à qual ele é levado por meio das coisas visíveis até as invisíveis” (n. 15).

Atenta e maternal, a Igreja continua a apontar para o absoluto do qual dimana o relativo, para um criador e um fim último, para o invisível que se fez visível, para uma felicidade possível, não plena, mas de peregrinos a caminho de uma “pátria melhor, isto é, a pátria celeste” (Hb 11, 16). Ensina-nos, enfim, que há uma Razão por detrás de tudo, ao contrário da irrisão e do acaso.[2]

Para caracterizar o homem com precisão, Mondin sugere uma análise da própria vida humana, a fim de se chegar com autenticidade a uma compreensão do seu ser, pois uma característica do homo vivens é “uma vida consciente de si mesma”. Entretanto, “seu verdadeiro significado pode ser colhido apenas descobrindo a finalidade para a qual é orientada”, portanto, a “finalidade última da vida humana”.[3] Ora, São Tomás de Aquino pensou o homem, neste âmbito, talvez como nenhum outro. Na Suma Teológica, não só situa o homem no vasto conjunto do Universo, como trata da relação de Deus com a criação: os Anjos enquanto criaturas puramente espirituais; o Mundo, criatura puramente corporal e, finalmente, o homem, ao mesmo tempo espiritual e corporal, criatura singular que reúne em si a totalidade do universo.[4]

Por que abordar este tema do ponto de vista do Aquinense? Não haveria em outras culturas e, sobretudo, em nosso tempo, autores de maior discernimento e precisão ao pensar o homem inserido no mundo em que vivemos? Afinal, não terá o homem evoluído? Será válida uma consideração com mais de 500 anos? Paulo VI, dirigindo-se ao Pe. Aniceto Fernandez — Mestre Geral da Ordem dos Dominicanos, em 1964 — parece responder-nos a estas questões:

Nos trabalhos de São Tomás de Aquino podem ser encontrados um compêndio das verdades universais e fundamentais, expressas de forma mais clara e persuasiva. Por esta razão, seu ensinamento constitui um tesouro de inestimável valor, não apenas para a Ordem Religiosa na qual ele é um grande luminar, mas para toda a Igreja, e para todas as mentes sedentas de verdade.

Não é sem razão que ele tem sido apelidado como «o homem de todos os tempos». O seu conhecimento filosófico, o qual reflete as essências das coisas realmente existentes na sua certa e imutável verdade, nem é medieval, nem próprio a alguma nação particular; transcende o tempo e o espaço, e não é menos válido para toda a humanidade em nosso tempo.[5]


[1] Reale parte deste episódio para interpretar a procura do filósofo: Diógenes não visava um homem comum e qualquer, até porque se locomovia nas ruas movimentadas de Atenas, mas sim aquele que vivesse conforme a “sua mais autêntica essência”, e em conformidade com “sua natureza mais genuina”. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2006. Vol. III. p. 24.

[2] Quanto a esta temática, o então Cardeal Ratzinger deixou-nos vários aportes em numerosas conferências. Ver, por exemplo, alguns de seus pronunciamentos, como as versões originais em alemão: Wer ist das eigentlich – Gott?, hgrs. Von H.J. Schulz, München 1969, S.240f. Também em Dogma und Verkündigung, 4. Aufl. Donauwörth, S. 152-156. Em português ver, por exemplo, Fé Verdade Tolerância: O Cristianismo e as grandes religiões do Mundo. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2009. p. 164-166. Também um compêndio de várias alocuções sobre este assunto no Prefácio da obra Criação e Evolução: Uma Jornada com o Papa Bento XVI em Castel Gandolfo. Lisboa: UCE, 2007.

[3] Para estas e outras considerações importantes do autor, recomendamos a leitura de MONDIN. Battista. O homem. Quem é ele?: Elementos de Antropologia Filosófica. 13. ed. São Paulo: Paulus, 2008. As citações presentes no texto estão nas páginas 60 e 61.

[4] Cf. TORREL, Jean-Pierre. Santo Tomás de Aquino: Mestre Espiritual. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2008. p. 304-305. Aconselhamos a leitura do capítulo que nestas páginas se inicia, intitulado: “O homem em discussão”.

[5] Indeed, in the works of Saint Thomas can be found a compendium of the universal and fundamental truths, expressed in the clearest and most persuasive form. Por this reason, his teaching constitutes a treasure of inestimable value, not only for the Religious Order of which he is the greatest luminary, but for the entire Church, and for all minds thirsting for truth. Not without reason has he been hailed as «the man of every hour». His philosophical knowledge, which reflects the essences of really existing things in their certain and unchanging truth, is neither medieval nor proper to any particular nation; it transcends time and space, and is no less valid for all humanity in our day. PAULO VI. Feast of Saint Thomas Aquinas, March 7, 1964. AAS 56 [1964] p. 303-304

Os transcendentais e a beleza

Paulo Martosdefault.jpg

In: Lumen Veritatis, nº 10 (p. 33-49)

Um dos importantes benefícios para a sociedade consiste em preservar e aperfeiçoar os valores, ou seja, as qualidades que tornam alguma coisa mais estimada ou menos.

Há uma hierarquia entre os valores, os quais podem ser religiosos, metafísicos, morais, culturais, econômicos, etc. Conforme afirma Garcia (1989, p. 60 e 64), um valor não depende da mera preferência, mas geralmente é o fruto de um arrazoado mais ou menos profundo e a consequência de um juízo estético. E acrescenta: “Os valores que mais motivam a conduta […] são a verdade, a beleza, o transcendente”.

Em filosofia se emprega o termo ‘axiologia’ — do grego ‘axia’, valor, e ‘logos’, tratado — para indicar o “estudo ou teoria de alguma espécie de valor, particularmente dos valores morais” (FERREIRA, 1986, p. 209).

Estudaremos neste trabalho um desses valores, o belo, baseando-nos especialmente em autores medievais. Como se sabe, na Idade Média houve grande desenvolvimento das doutrinas sobre o pulchrum, as quais se concretizaram em diversos campos, sobretudo no artístico.

1. Que é a beleza?

Para conceituar a beleza, é necessário dar alguns passos no campo da metafísica, a qual, segundo H. D. Gardeil (1967), designa a parte superior da filosofia, que pretende dar as razões e os princípios últimos das coisas.

1.1 Os transcendentais do ser

Em todas as coisas há qualidades que constituem seu próprio ser e estão além da matéria; por essa razão são chamadas transcendentais. A palavra ‘transcendental’ provém do verbo latino ‘transcendo’ (trans: passar; scando: subir), e significa literalmente “passar subindo” (cf. SARAIVA, 1983, p. 1216).

Jan Aertsen (2003, p. 120) afirma: “A metafísica […] é a ciência do que é transcendente”. E o Dicionário Aurélio esclarece: os transcendentais são “qualidades que pertencem ao ser enquanto tal, convindo, em graus diversos, a todos os seres” (FERREIRA, 1986, p. 1699).

Em cada ser existem quatro propriedades: “Unum, bonum, verum, pulchrum” — ente indiviso, bom, verdadeiro e belo. São Tomás de Aquino acrescenta uma quinta propriedade: ‘aliquid’, aquilo que torna um ser diferente de outro (cf. MARTINS FILHO, 2003, p. 33).

Jacques Maritain (1882-1973), filósofo que foi embaixador da França junto à Santa Sé, considera o pulchrum como “o esplendor de todos os transcendentais reunidos”. E Francis J. Kovach afirma: A beleza é o “mais rico, mais nobre e mais compreensivo de todos os transcendentais, […] o único transcendental que inclui todos os demais” (apud AERTSEN, 2003, p. 325 e 326).

1.2 Método etimológico

Filósofos da Antiguidade pagã, em especial Platão, Aristóteles e também Cícero, escreveram sobre a beleza. Com o advento da era cristã, esse tema foi desenvolvido particularmente por Santo Agostinho. E na Idade Média, sobretudo nos séculos XI a XIII, alcançou um auge. As palavras beleza, decoro e formosura têm sentidos semelhantes, mas não idênticos. Para se compreender o significado de um vocábulo, um ótimo método consiste em recorrer a sua etimologia, segundo o costume medieval.

Edgar de Bruyne (1947), que foi professor na Universidade de Gand (Bélgica), transcreve diversas opiniões a respeito desses termos, as quais podem ser assim sintetizadas.

Beleza tem um sinônimo, pulcritude, proveniente do latim ‘pulcher’, síncope de ‘pulvere carens’, ou seja, “sem poeira, sujeira ou defeito”.

O termo ‘decoro’, de ‘decorus’, segundo um autor é composto de ‘decus oris’ (beleza do rosto). Outro prefere focalizar a beleza na alma ou no coração, e não na forma do rosto: ‘decorus’ se decompõe em ‘decus cordis’ (ornato do coração).

E ‘formosura’ se origina de ‘formosus’. Segundo Dom Bruno Forte (2006), arcebispo de Chieti (Itália), nessas questões tal é a importância da forma que o latim emprega também a palavra ‘formosus’ para designar aquilo que é belo.

Conforme o artista plástico Cláudio Pastro (Revista Passos, janeiro-fevereiro 2008, p. 41), “a palavra beleza tem origem no sânscrito: bet-El-za. Za: brilho; El: Deus, o que está acima; bet: casa. Beleza: a casa onde Deus brilha”.

1.3 Características da beleza

Santo Agostinho, em uma de suas epístolas (PL 33, 65), escreveu: “‘Omnis pulchritudo est partium congruentia cum quadam suavitato coloris’ — Toda beleza é a congruência das partes com certa suavidade de cor” (apud BRUYNE, 1947, p. 16).

A congruência das partes é a proporção ou harmonia e a suavidade de cor, a luminosidade. Conforme Guillaume d’Auvergne (1190-1245), que foi Arcebispo de Paris, a beleza visível se caracteriza, ora pela posição das partes no interior do todo, ora pela cor; ou mais ainda por esses dois elementos reunidos (cf. BRUYNE, 1947, p. 61).

Santo Alberto Magno (1206-1280) e seu discípulo Ulric de Strasbourg ensinam que a beleza é “o resplendor da forma substancial ou atual nas partes da matéria perfeitamente proporcionadas e determinadas” (apud BRUYNE, 1947, p. 84). A proporção caracteriza a “matéria” de uma substância estética; a luz é sua forma. Os dois princípios subsistem, porém fundidos, constituindo uma unidade harmoniosa.

Entre as características da beleza, o Doutor da Graça inclui a grandeza (cf. BRUYNE, 1947, p. 107), a qual evidentemente não se refere ao tamanho de um corpo. Assim se pode, por exemplo, afirmar: “Tal pessoa tem grandeza de alma”, ou seja, não é mesquinha, mas está voltada para horizontes grandiosos.

Complementando a ideia de Santo Agostinho e de Guillaume d’Auvergne, São Tomás de Aquino (Suma Teológica I, q. 39, a. 8, ad. a) afirma que a beleza possui três características: luminosidade, proporção ou harmonia entre as partes e integridade.

1.4 Beleza visível imagem da invisível

Ensina a Igreja (Catecismo da Igreja Católica, n. 190 a 301) que Deus criou todas as coisas a partir do nada; e as sustenta, pois do contrário desapareceriam. A finalidade da criação é glorificar o Onipotente, e todos os seres são vestígios, imagens ou semelhanças de Deus.

O Criador é a Perfeição, a própria Beleza, com B maiúsculo. E as criaturas são belas enquanto reflexos da Beleza divina.

Esse tema foi amplamente desenvolvido pelos vitorinos, escola de pensamento assim chamada em razão do nome da abadia São Vítor, situada em Paris e fundada no ano 1100. Seus principais representantes foram Hugo e Ricardo de São Vítor.

Hugo de São Vítor (1096-1141) — mestre de Ricardo — escreveu, entre outras obras, Eruditio didascalica (Instrução didática), composta de seis livros que tratam de pedagogia.

Por sua vez, Ricardo de São Vítor (1110-1173) redigiu uma obra sobre a Santíssima Trindade, que influenciou profundamente a espiritualidade medieval e moderna (cf. Le Petit Robert, 1995, p. 1762).

Segundo os vitorinos, “omnis visibilis pulchritudo invisibilis pulchritudinis imago est — toda beleza visível é imagem da beleza invisível” (BRUYNE, 1947, p. 90).

Explica Hugo que existem duas espécies de beleza: a simples (invisível) e a composta (sensível), regida pela proporção. A alma, cuja beleza é impalpável, se rejubila, se honra, se emociona com as belas formas sensíveis porque as ama na medida em que sua estrutura lhe é aparentada, familiar e querida. A beleza das coisas corporais e a dos espíritos derivam do mesmo Artista, isto é, Deus, que as pré-adapta uma à outra.

1.5 Teofania

A beleza da criatura é uma revelação da Beleza infinita e indivisível; ou seja, é em sentido próprio uma teofania, palavra proveniente do grego ‘theophania’, a qual significa “manifestação de Deus em algum lugar, acontecimento ou pessoa” (FERREIRA, 1986, p. 1664).

Explica Bruyne (1947): As coisas são belas na medida em que manifestam — de maneira sem dúvida perecedora, mutável e imperfeita — a perfeição divina. Assim como a palavra da Sagrada Escritura, a beleza da natureza nos revela Deus. Pelas imagens sensíveis de Sua invisível Beleza, o Criador nos recorda que devemos amá-Lo.

O conjunto da criação é uma autêntica teofania, como afirma Santo Agostinho em um de seus sermões:

Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar, interroga a beleza do ar que se dilata e se difunde, interroga a beleza do céu… interroga todas estas realidades. Todas elas te respondem: Olha-nos, somos belas. Sua beleza é um hino de louvor (confessio). Essas belezas sujeitas à mudança, quem as fez senão o Belo (Pulcher), não sujeito à mudança? (apud Catecismo da Igreja Católica, n. 32).

1.6 Beleza, Bem e Verdade

Os transcendentais belo, verdadeiro e bom não devem ser vistos como compartimentos separados, pois estão intimamente relacionados entre si. A beleza é considerada “splendor boni et veri” — o esplendor do bom e do verdadeiro (RETEGUI, 1999, p. 42).

Podemos fazer uma comparação com o arco gótico, o qual se compõe de duas linhas verticais paralelas que se erguem, se curvam elegantemente e se unem. Uma das linhas do arco se refere ao “verdadeiro”, a outra, ao “bom”, e o ponto de junção, ao “belo”.

Segundo Santo Alberto Magno, “o belo é uma síntese do verdadeiro e do bom” (apud BRUYNE, 1959, p. 154).

Tomás Gallus, também chamado Tomás de Verceil, o último dos vitorinos, escreveu uma obra sob o título A estética mística, na qual mostra, entre outras coisas, o profundo relacionamento entre a beleza e o bem: a vista e o ouvido colaboram especialmente para captar o belo; o olfato, o paladar e o tato para perceber o bem. Comentando esse livro, explica Bruyne que o Altíssimo é o Bem e a Beleza. Amando a Deus nós nos transformamos n’Ele: contemplando a Beleza, nos tornamos bons e nos tornamos belos amando o Bem (cf. BRUYNE, 1947, p. 124).

Carlos Magno, citado por Weiss (1969, p. 779), costumava dizer que a Religião é em geral mãe das artes, e a beleza naturalmente irmã do verdadeiro e do bom. Quem compreende e ama a beleza não cai facilmente em vícios vulgares.

O teólogo suíço Hans Urs von Balthasar, em sua obra Glória, escreveu que, num mundo sem beleza ou incapaz de percebê-la, o bem perde igualmente sua força de atração. Quando se perde a capacidade de afirmar a beleza, os argumentos em favor da verdade esgotam sua força de conclusão lógica (cf. FORTE, 2006, p. 77).

Segundo a filosofia perene, o aspecto do Absoluto percebido por meio da sensibilidade é o belo; o compreendido pela inteligência, o verdadeiro; e o desejado pela vontade, o bom.

Se o bom, o verdadeiro e o belo estão intimamente relacionados entre si, o mesmo sucede com o mau, o falso e o feio. Como observa Ulric de Strasbourg, “a fealdade e o mal — também o erro, acrescentamos — resultam da privação” (apud BRUYNE, 1959, p. 287), ou seja, não têm essência.

1.7 Não depende do gosto de cada pessoa

Muito se fala hoje em dia que a beleza é subjetiva. Tal assertiva não é nova, pois já David Hume (1711-1776), em sua História de seis ideias, escreveu: “A beleza não é nenhuma qualidade das coisas em si mesmas. Existe na mente de quem as contempla, e cada mente percebe uma beleza diferente” (apud VÁZQUEZ, 1999, p. 173).

Essas afirmações entram em choque com o ensinamento de Hugo de São Vítor: “A beleza é uma propriedade estritamente objetiva da maneira de ser das coisas. Ela se impõe por si mesma, antes da consideração de qualquer relação utilitária para o homem” (apud BRUYNE, 1947, p. 104).

Devido à limitação deste artigo, não apresentaremos os diversos argumentos para refutar a ideia da subjetividade da beleza, a qual, aliás, se aplica também aos outros dois transcendentais. Pois, se a beleza é subjetiva, por que não serão subjetivos a verdade e o bem? Vemos assim que subjetivismo e relativismo são doutrinas afins.

Recordemos apenas a consideração formulada pelos autores de uma obra publicada pela Universidade de Navarra (Espanha): Se a pulcritude de algo dependesse do gosto de cada um, não teria nenhum sentido falar de beleza e feiura (cf. ALVIRA et al., 2001, p. 193).

1.8 Definições de beleza

Tendo em vista os textos acima, podemos agora apresentar algumas definições de beleza.

Conforme Cícero, “a beleza é o brilho objetivo da forma indivisível, a superabundância da luz formal, a liberalidade sem limites da ideia, impregnando todas as harmonias e dando-lhes um sentido” (apud BRUYNE, 1947, p. 85).

Em sua obra Convite à estética, Adolfo Sánchez Vázquez (1999, p.186) apresenta várias definições de beleza, entre as quais destacamos as seguintes:

Ideia eterna, perfeita, imutável, da qual participam, temporal, imperfeita e diversamente, as coisas empíricas belas (Platão); resplendor de uma luz inteligível nas coisas sensíveis (Plotino); esplendor do Supremo Bem nas coisas sensíveis (Marsilio Ficino); esplendor da forma no sensível (Maritain); modo de estar presente a verdade como desvelamento do ser (Heidegger).

Alguns autores conceituam a beleza como sendo “o esplendor da forma nas partes proporcionadas da matéria” (COLLIN, 1950, p. 556).

Segundo os escolásticos, a beleza é a unidade na variedade (cf. LECLERCQ, 1947, p. 17).

A lei conforme a razão, gravada no coração humano

Diác. Leopoldo Werner, EPint-Basilica

Existem normas de caráter universal
Já na Antiguidade, Cícero escreveu de modo preciso e conciso:
A razão reta, conforme a natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo senado; não há que procurar para ela outro comentador nem intérprete; não é uma lei em Roma e outra em Atenas, uma antes e outra depois, mas una, sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os tempos; uno será sempre o seu imperador e mestre, que é Deus, seu inventor, sancionador e publicador; não podendo o homem desconhecê-la sem renegar-se a si mesmo, sem despojar-se do seu caráter humano e sem atrair sobre si a mais cruel expiação, embora tenha conseguido evitar todos os outros suplícios. (CÍCERO, 2009: 53).
Nesta definição de Cícero devemos reter as seguintes noções: há uma lei que é conforme com a razão, gravada no coração humano, imutável, que prescreve o bem e proíbe o mal. Esta lei vale para todos os povos e em todos os lugares. Não varia com o passar do tempo, nem pode ser derrogada ou anulada pela vontade do povo e pelo arbítrio da autoridade.
Há, portanto, uma lei que provém da própria natureza do homem, dirigindo-o para seu fim, que é o bem. Chega-se a ela pela razão natural. Esta lei chama-se lei natural, para distinguir-se da lei sobrenatural, que é atingível pela fé. E por esta chega-se ao conhecimento de Deus e das coisas divinas. Há ainda a lei positiva, que é promulgada pela autoridade competente e obriga em razão da sua promulgação.
Santo Agostinho, Bispo de Hipona, defende a existência de normas de caráter universal. Utiliza a expressão “lei eterna” para se referir à lei moral natural que se encontra gravada no coração de todos os homens. A lei eterna manda conservar a ordem natural e proíbe perturbá-la. As leis temporais, ou civis, devem fundar-se nas leis eternas, respeitando-as.

Emana da Lei Eterna
São Tomás de Aquino, conhecido também como o Doutor Angélico, advoga a existência de uma lei universal que regula o comportamento de todos os seres, incluindo o comportamento humano.
Entre as demais, a criatura racional está sujeita à providência divina de um modo mais excelente, enquanto a mesma se torna participante da providência, provendo a si mesma e aos outros. Portanto, nela mesma é participada a razão eterna, por meio da qual tem a inclinação natural ao devido ato e fim. E tal participação da lei eterna na criatura racional se chama lei natural. (AQUINO, 2005, Vol. IV: 531).
Enquanto ordenador da conduta humana, a Lei Natural está em harmonia com toda ordem do universo, baseada, em última instância, na Lei Eterna ou Divina — um reflexo da sabedoria divina que dispôs todas as coisas para um fim determinado, que é a sua própria glória. É por isso que São Tomás afirma:
Portanto, como a lei eterna é a razão de governo no governo supremo, é necessário que todas as razões de governo que estão nos governantes inferiores derivem da lei eterna. (AQUINO, 2005, Vol. IV: 551).
Uma lei inscrita no íntimo dos corações, imagem da Sabedoria de Deus, é o que o papa João Paulo II ministra a respeito da lei natural ensinada pela Igreja:
A Igreja referiu-se frequentemente à doutrina tomista da lei natural, assumindo-a no próprio ensinamento moral. Assim, o meu venerado predecessor Leão XIII sublinhou a essencial subordinação da razão e da lei humana à Sabedoria de Deus e à Sua lei. Depois de dizer que “a lei natural está inscrita e esculpida no coração de todos e de cada um dos homens, visto que esta não é mais do que a mesma razão humana enquanto nos ordena fazer o bem e intima a não pecar”. Leão XIII remete para a “razão mais elevada” do divino Legislador: “Mas esta prescrição da razão humana não poderia ter força de lei, se não fosse a voz e a intérprete de uma razão mais alta, à qual o nosso espírito e a nossa liberdade devem estar submetidos”. De fato, a força da lei reside na sua autoridade de impor deveres, conferir direitos e aplicar a sanção a certos comportamentos: “Ora, nada disso poderia existir no homem, se fosse ele mesmo a estipular, como legislador supremo, a norma das suas ações”.
E conclui: “Daí decorre que a lei natural é a mesma lei eterna, inscrita nos seres dotados de razão, que os inclina para o ato e o fim que lhes convém; ela é a própria razão eterna do Criador e governador do universo”. (JOÃO PAULO II, 1993: 44).
Se não houvesse essa luz infundida em nossa alma por Deus, quais seriam as relações dos homens entre si, ou mesmo a relação consigo mesmo? É urgente reacender essa luz nos homens para encontrar o farol que é o guia dos homens e a luz das nações. É o ensinamento de São Tomás de Aquino, assumido e relembrado pelo Papa João Paulo II:
[A lei natural] não é mais do que a luz da inteligência infundida por Deus em nós. Graças a ela, conhecemos o que se deve cumprir e o que se deve evitar. Esta luz e esta lei, Deus as concedeu na criação. (apud JOÃO PAULO II, 1993: 44).
Estas verdades parecem tão claras e evidentes que foram sempre aceitas como balizas para o pensamento humano. Leão XIII (1888) ensinou mais de uma vez essa doutrina tão própria a solidificar os fundamentos da sociedade humana em seu relacionamento mútuo. A razão humana é intérprete e voz de uma razão muito mais alta, que é a do próprio Deus, ao qual devem estar submetidos nosso entendimento e nossa vontade. A lei é reflexo de uma lei eterna que existe na mente da primeira Causa, o Criador e mantenedor do universo e de tudo que nele existe.
Tal é, acima de todas, a lei natural que está escrita e gravada no coração de cada homem, porque é a razão mesma do homem que lhe ordena a prática do bem e lhe interdiz o pecado. Mas esta prescrição da razão humana não poderia ter força de lei, se ela não fosse órgão e intérprete duma razão mais alta à qual o nosso espírito e a nossa liberdade devem obediência. Sendo, na verdade, a missão da lei impor deveres e atribuir direitos, a lei assenta completamente sobre a autoridade, isto é, sobre um poder verdadeiramente capaz de estabelecer esses deveres e definir esses direitos, capaz também de sancionar as suas ordens por castigos e recompensas; coisas todas que não poderiam evidentemente existir no homem, se ele desse a si próprio, como legislador supremo, a regra dos seus próprios atos. Disto se conclui, pois, que a lei natural outra coisa não é senão a lei eterna gravada nos seres dotados de razão, inclinando-os para o ato e o fim que lhes convenha; e este não é senão a razão eterna de Deus, Criador e Governador do mundo. (Leão XIII, 1888: 6).

Base moral para a construção da sociedade
O Catecismo da Igreja Católica ensina que:
A lei natural exprime o sentido moral original, que permite ao homem discernir, pela razão, o que é o bem e o mal, a verdade e a mentira. A lei “divina e natural” mostra ao homem o caminho a seguir para praticar o bem e atingir seu fim. (CIC, 2001: 516).
É por isso que o papa João Paulo II insistiu sobre a necessidade da recuperação da doutrina da Lei Natural, como a fonte de certeza moral para toda a humanidade. Por isso, ele afirma que a lei natural:
Pertence ao grande patrimônio da sabedoria humana, que a Revelação, com sua luz, tem contribuído para purificar e desenvolver ulteriormente. A lei natural, acessível por isso mesma a toda criatura racional, indica as normas primeiras e essenciais que regulam a vida moral. (JOÃO PAULO II, 2004: 5).
A lei natural é o fundamento sólido do edifício das regras morais e a base moral para construção da sociedade. É o que ensina o Catecismo da Igreja Católica a este respeito:
Obra excelente do Criador, a lei natural fornece os fundamentos sólidos sobre os quais pode o homem construir o edifício das regras morais que orientarão suas opções. Ela assenta igualmente a base moral indispensável para a construção da comunidade dos homens. Proporciona, enfim, a base necessária à lei civil que se relaciona com ela, seja por uma reflexão que tira as conclusões de seus princípios, seja por adições de natureza positiva e jurídica. (CIC, 2001: 518).
A natureza da pessoa humana fica assim atendida quando atinge seu fim; seus deveres e seus direitos são reconhecidos plenamente. E ela se sente dignificada na sua pessoa, como um ente racional, dotada de todas as prerrogativas que lhe garantem uma estabilidade de vida que condiz com a sua condição humana. A este respeito, corroboram as palavras de João Paulo II ao discorrer sobre tema tão importante:
Pode-se agora compreender o verdadeiro significado da lei natural: ela refere-se à natureza própria e original do homem, à “natureza da pessoa humana”, que é a pessoa mesma na unidade de alma e corpo, na unidade das suas inclinações tanto de ordem espiritual como biológica, e de todas as outras características específicas, necessárias para a obtenção do seu fim. “A lei moral natural exprime e prescreve as finalidades, os direitos e os deveres que se fundamentam sobre a natureza corporal e espiritual da pessoa humana. Portanto, não pode ser concebida como uma tendência normativa meramente biológica, mas deve ser definida como a ordem racional segundo a qual o homem é chamado pelo Criador a dirigir e regular a sua vida e os seus atos e, particularmente, a usar e dispor do próprio corpo.” (JOÃO PAULO II, 1993: 50)

Tende a unir todos os homens
É necessário, pois, contribuirmos para solidificação de princípios estáveis, imutáveis, de conduta de todos os seres humanos entre si, para haver a fecunda e duradoura prosperidade e a paz entre os homens, tanto no nível de suas próprias comunidades como também da convivência fraterna universal:
Convido-vos a promover iniciativas oportunas com a finalidade de contribuir para uma renovação construtiva da doutrina da lei moral natural, buscando também convergências com representantes das diversas confissões, religiões e culturas. (JOÃO PAULO II, 2004: 5)
A lei natural se estende além das fronteiras da própria personalidade humana e tende, pela sua unidade e universalidade, a unir todos os povos em busca de um bem comum, que é a felicidade e a prosperidade de todas as nações. Esta lei é a certeza da amizade entre as nações e um pacto de aliança entre os indivíduos que procuram um alicerce firme para uma convivência pacífica, duradoura e próspera. Por isso, a lei natural deve ser o fundamento para as relações pacíficas entre as diversas nações.
Embora o gênero humano, por disposição de ordem natural estabelecida por Deus, esteja dividido em grupos sociais, nações ou Estados, independentes uns dos outros, no que respeita ao modo de organizar e dirigir a sua vida interna, acha-se, contudo, ligado por recíprocos vínculos morais e jurídicos, numa grande comunidade, organizada para o bem de todos os povos e regulada por leis especiais que tutelam a sua unidade e promovem a sua prosperidade.
Ora, não há quem não perceba que a autonomia absoluta do Estado põe-se em aberto contraste com esta lei imanente e natural, ou melhor, nega-a radicalmente, deixando à mercê da vontade dos governantes a estabilidade das relações internacionais e tirando a possibilidade de uma verdadeira união e fecunda colaboração no que respeita ao interesse geral. Porque, veneráveis irmãos, para a existência de contatos harmônicos e duradouros e de relações frutuosas, é indispensável que os povos reconheçam e observem aqueles princípios de direito natural internacional, que regulam o seu normal funcionamento e desenvolvimento. Tais princípios exigem o respeito dos relativos direitos à independência, à vida e à possibilidade de um desenvolvimento progressivo no caminho da civilização; exigem, além disso, a fidelidade aos pactos estipulados e ratificados segundo as normas do direito das gentes. (PIO XII, 1939: 54)
A lei natural, inserida na sua natureza, atende aos anseios mais internos do coração humano e delineia claramente as relações com seus semelhantes, tornando o convívio humano digno de ser vivido em todos os níveis da sociedade humana, e lança uma base firme para um diálogo fecundo com todos os homens de boa vontade. Sobre isso, no seu discurso aos membros da Comissão Teológica Internacional, assim se expressou o papa Bento XVI a respeito da Lei Natural:
Com esta doutrina, alcançam-se duas finalidades essenciais: por um lado, compreende-se que o conteúdo ético da fé cristã não constitui um delineamento ditado à consciência do homem a partir de fora, mas uma norma que encontra o seu fundamento na própria natureza humana; por outro, partindo da lei natural por si mesma acessível a todas as criaturas racionais, lança-se com ela a base para entrar em diálogo com todos os homens de boa vontade e, de modo mais geral, com a sociedade civil e secular. (BENTO XVI, 2007a)
A mesma idéia é repetida com outras palavras pelo Papa:
A lei natural, escrita por Deus na consciência humana, é um denominador comum a todos os homens e a todos os povos; é um guia universal que todos podem conhecer e em cuja base todos se podem compreender. (BENTO XVI, 2008: 1)
Antes de prosseguirmos com nosso estudo, é interessante ver como os conceitos de ordem, paz e harmonia são conexos com o tema do direito natural que estamos desenvolvendo. Vejamos o que o iminente pensador católico Plinio Corrêa de Oliveira escreveu sobre este interessante assunto.
Em artigo publicado no Catolicismo, o catedrático brasileiro começa por mostrar quanto a ordem, a paz e a harmonia são noções que têm relação direta com a pessoa humana bem formada, são valores que devem ser procurados numa sociedade bem constituída. A partir desses conceitos universais, pode-se ter uma ideia da perfeição de uma organização social baseada na lei natural, reflexo de sua natureza e fim.
A ordem, a paz, a harmonia, são características essenciais de toda a alma bem formada, de toda a sociedade humana bem constituída. Em certo sentido, são valores que se confundem com a própria noção de perfeição.
Todo o ser tem um fim próprio, e uma natureza adequada à obtenção deste fim. Assim, uma peça de relógio tem fim próprio, e, por sua forma e composição, é adequada à realização deste fim. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1951: 1)

Para que uma sociedade esteja em ordem, é necessário que seus componentes ajam de acordo com a natureza mais profunda do seu ser e o fim da mesma sociedade, que é a vida em comum, harmonizados todos em ordem à felicidade geral. Neste sentido, o autor continua:

A ordem é a disposição das coisas, segundo sua natureza. Assim, um relógio está em ordem quando todas as suas peças estão ordenadas segundo a natureza e o fim que lhes é próprio. Diz-se que há ordem no universo sideral porque todos os corpos celestes estão ordenados segundo sua natureza e fim.
Existe harmonia quando as relações entre dois seres são conformes à natureza e o fim de cada qual. A harmonia é o operar das coisas umas em relação às outras, segundo a ordem. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1951: 1)

Dessa harmonia em torno de um objetivo comum, segundo a ordem posta por Deus na natureza humana, gera a tranquilidade social e paz entre os indivíduos e as comunidades. Comunidades essas que projetam e se expandem, desde as mais próximas de cada um até os mais vastos agrupamentos nacionais e internacionais.

A ordem engendra a tranquilidade. A tranquilidade da ordem é a paz. Não é qualquer tranquilidade que merece ser chamada paz mas apenas a que resulta da ordem. A paz de consciência é a tranquilidade da consciência reta: não pode confundir-se com o letargo da consciência embotada. O bem estar orgânico produz uma sensação de paz que não pode ser confundida com a inércia do estado de coma. (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1951: 1)

A lei natural deve ser compreendida na sua natureza e fim. Pois dessa compreensão é que se entenderá a profundidade e sabedoria de Deus que não deixou o homem a mercê dos vagalhões de suas paixões, mas lhe deu os meios necessários para atingir seu fim e alcançar a perfeição e a paz.
E, logo a seguir, no mesmo estudo, mostra como a posse da verdade religiosa é a condição essencial da ordem, da harmonia, da paz e da perfeição:
Quando um ser está inteiramente disposto segundo sua natureza, está em estado de perfeição. Assim, uma pessoa com grande capacidade de estudo, grande desejo de estudar, posta em uma Universidade em que haja todos os meios para fazer os estudos que deseja, está posta, do ponto de vista dos estudos, em condições perfeitas.
Quando as atividades de um ser são inteiramente conformes à sua natureza, e tendem inteiramente para seu fim, estas atividades são, de algum modo, perfeitas. Assim, a trajetória dos astros é perfeita, porque corresponde inteiramente à natureza e ao fim de cada qual.
Quando as condições em que um ser se encontra são perfeitas, suas operações o são também, e ele tenderá necessariamente para o seu fim, com o máximo da constância, do vigor e do acerto. Assim, se um homem está em condições perfeitas para andar, isto é, sabe, quer e pode andar, andará de modo irrepreensível.
O verdadeiro conhecimento do que seja a perfeição do homem e das sociedades depende de uma noção exata sobre a natureza e fim do homem.
O acerto, a fecundidade, o esplendor das ações humanas, quer individuais, quer sociais, também está na dependência do conhecimento de nossa natureza e fim.
Em outros termos, a posse da verdade religiosa é a condição essencial da ordem, da harmonia, da paz e da perfeição. (CORREA DE OLIVEIRA, 1951: 1)

O dever moral como raiz do direito

Diác. Jorge Filipe, EPnouvelle1

Em S. Tomás, o direito é uma ordenação ou exigência de perfeição do homem na convivência social. Essa ordenação dada, é eminente em maior ou menor grau segundo se trate de direitos naturais ou de direitos positivos, em maior ou menor dependência dos naturais[1]. Ao falar da lei natural ele descreve o seu efeito formal – o direito natural – como uma “inclinação natural ao acto e fim devidos”[2]. O aquinate faz corresponder a ordem das inclinações naturais à ordem dos preceitos da lei natural e dos consequentes deveres naturais. Essa ordenação ou inclinação constitutiva do direito dá-se em grau máximo na lei e direito naturais. Portanto, o acto justo, definidor da virtude da justiça é dar a cada um o que é seu, ou seja, aquilo que a sua perfeição exige ou necessita para o desenvolvimento da vida em sociedade, plasmados na lei natural em ordem à sociedade, e na lei humana de acordo com aquela[3].

Em termos de uma raiz metafísica dos direitos humanos, para Rodríguez o direito não é uma faculdade, nem uma realidade formalmente moral – honesta ou pecaminosa – mas uma ordenação que relaciona essencialmente o homem livre à sua perfeição sociopolítica, conforme a lei natural de convivência – no caso do direito natural – e as determinações da lei positiva – no caso do direito positivo. Nessa ordem de ideias, o direito natural é a potência ou faculdade volitiva do homem enquanto ordenada ou referida naturalmente àqueles bens que lhe são devidos ou seus, no seu comportamento sociopolítico, segundo os ditames de sindérese. Daí decorre o direito positivo que é a mesma faculdade volitiva do homem enquanto revestida de poder proveniente da autoridade – da potestas. Exercer correctamente a liberdade enquanto princípio e sujeito de acções e hábitos morais, é a autêntica vontade livre do homem[4]. Dentro dessa liberdade, o direito – ius subiectivum – constitui o fundamento da ordem da justiça, o justoiustum obiectivum -, concepção onde reside o fundamento último dos direitos humanos.

 


[1] Ibid.. p. 211. “Por isso é que o direito de um, uma vez que funda o correlativo dever do outro, está, por sua vez, fundado na exigência dada, obrigação ou necessidade mais ou menos natural de auto-aperfeiçoar-se com o exercício das suas funções, pelas quais é responsável perante Deus, autor da natureza individual e social do homem e das suas inclinações naturais”.

[2] AQUINO. S. Th. I-II. Q. 91. a.2. p. 531.

[3] RODRÍGUEZ, Estudios de antropología teológica, Op. Cit. p. 212-214. A razão pela qual há vários preceitos da lei natural é a mesma razão porque há vários bens e cada um desses bens deve ser desejado conforme o que o que a recta razão indicar. Agora, entre esses bens, há alguns a que o homem chega de forma imediata e outros que só são encontrados através de um processo lento de apreensão daquele bem, sendo que a inclinação natural é o prumo que indica a obrigação ou não de os buscar. Assim, conclui S. Tomás que como o bem tem natureza de fim e o mal do contrário, segue-se que tudo aquilo a que o homem se sente naturalmente inclinado, a razão apreende como uma coisa boa e que, portanto, deve ser procurado, sendo que o contrário o apreende como mau, devendo ser por isso evitado. Assim se entende que a ordem dos preceitos da lei natural seja correlata à ordem das inclinações naturais. (Cfr. AQUINO. S. Th. I-II. Q. 94. a.2. p. 562-563).

[4] Ibid., p. 217-218.

La forma y raíz de la amistad: el amor

Pe. Aumir Scomparinpensadores

El amigo, no solamente es elegido porque es el mejor, sino que también es el que está más unido a nosotros. Por lo tanto, es una realidad más propicia para el amor, y por lo mismo el amor a esa realidad es mejor[1].

Santo Tomás de Aquino refiriéndose al libro IX de la Ética nos dice: “la amistad que se tiene para el otro viene de la amistad que el hombre tiene para sí mismo”, a saber, el hombre se tiene para con el otro como para consigo mismo[2]. Más adelante afirma Santo Tomás que: “está el testimonio de la Escritura: ‘amarás a tu amigo como a ti mismo’ (Lev. 19, 18). Y como al amigo le amamos por caridad, por caridad debemos amarnos también a nosotros mismos’”[3].

Existe en el hombre una verdadera necesidad de la amistad. El hombre es un ser sociable. Este instinto está tan arraigado en él, que aunque se bastase a sí mismo y fuese independiente, necesitaría igualmente tener amigos que sean como otros él mismo, tanto para conocerse a sí mismo en el amigo como para satisfacer su necesidad de hacer el bien a los demás.

Por eso, Aristóteles nos dice que aunque una persona tenga todos los bienes en abundancia y se baste completamente a sí misma, tiene de todos modos necesidad de amar, y estas afecciones sólo son posibles con la amistad.

Así como cuando queremos ver nuestro propio semblante nos miramos en un espejo, así cuando queremos conocernos sinceramente, es preciso mirar a nuestro amigo, en el cual podemos vernos perfectamente, porque mi amigo, repito, es otro yo. Si es tan grato conocerse a sí mismo, y si no se puede con esto sin otro, que sea vuestro amigo, el hombre independiente tendrá cuando menos necesidad de la amistad para conocerse a sí mismo. Además, si es una cosa hermosa, como en efecto lo es, derramar en tomo suyo los bienes de la fortuna que se poseen, se puede preguntar: careciendo de amigo, ¿a quién podrá el hombre independiente hacer bien? ¿Con quién vivirá? Ciertamente no vivirá solo, porque vivir con otros seres semejantes a él es, a la vez, un placer y una necesidad. Si todas estas cosas son a la par bellas, agradables y necesarias, y si para tenerlas es indispensable la amistad, se sigue de aquí que el hombre independiente, por mucho que lo sea, tiene necesidad de la amistad[4].

Escribió San Dionisio que el amor es un poder unitivo, es por eso que la razón común de la amistad, entraña cierta unión, pues cada uno tiene en sí mismo una unidad superior a la unión. El amor con que uno se ama a sí mismo es forma y raíz de la amistad, así como la unidad es principio de unión. Aristóteles nos dice que lo amistoso para con otro proviene de lo amistoso para con uno mismo.

Para el Dr. Angélico, el objeto propio del amor es el bien. El amor surge de una cierta connaturalidad o complacencia del amante con el amado, porque es bueno para la persona lo que le es connatural y proporcionado:

Es preciso, pues, que aquello que es objeto del amor sea propiamente la causa del amor. Ahora bien, el objeto propio del amor es el bien, porque, como se ha dicho (q.26 a.1 y 2), el amor importa cierta connaturalidad o complacencia del amante con el amado, y para cada uno es bueno lo que le es connatural y proporcionado. Por consiguiente, se da por sentado que el bien es la causa propia del amor[5].

El Bien en su esencia es Dios, por tanto, hace parte de la naturaleza de la caridad la amistad del hombre con Dios y con todas las cosas de Dios, dentro de las cuales está el propio hombre. Por eso, el hombre debe por caridad amarse a sí mismo[6].

SCOMPARIN, Aumir. LA AMISTAD. Universidad Pontificia Bolivariana – Escuela de Teología, Filosofía y Humanidades. Licenciatura Canónica en Filosofía. Medellín, 2009. p. 44-46.


[1] S. Th., 2ª 2ª q.27, a.7

[2] Ibid., 1ª 2ª q.99, a.1, ad.3

[3] Ibid., 2ª 2ª q.25, a.4

[4] ARISTÓTELES, La gran moral, p. 103. L. II, cap. 17.

[5] S. Th. 1ª 2ª q.27, a.1.

[6] Ibid., 2ª 2ª q.25, a.4.

Os aspectos espirituais da sociedade temporal favorecem a contemplação

tibidaboMons. João S. Clá Dias, EP

Encontra-se generalizada a ideia de que a sociedade temporal existe apenas para satisfazer as necessidades materiais do homem. Ora, este é composto de alma e corpo, no qual o espírito ocupa a primazia.[1] Por isso, a sociedade temporal deve também atender aos anseios espirituais da alma humana, embora o aspecto sobrenatural pertença ao âmbito exclusivo da Igreja. O homem é, por natureza, um ser contemplativo, pois está destinado a ver a Deus face a face na eternidade. Portanto, já nesta vida ele deve exercitar essa capacidade, reconhecendo os reflexos de Deus na obra da Criação e, mais ainda, nos outros homens, que são a imagem mais perfeita do Criador no universo visível.

O homem poderá desenvolver a capacidade contemplativa, com maior grau de perfeição, no convívio humano e na consideração dos bens mais elevados que são o resultado da vida social, quer sejam os ambientes, a arte, a cultura e a civilização. Estes são elementos caracteristicamente espirituais produzidos pela sociedade temporal, e que grande influência têm sobre a alma humana. Animando com o espírito cristão as realidades temporais, objeto da contemplação mais imediata do homem, a alma humana terá muito mais facilidade de se elevar até as verdades da Fé. Dessa forma, a intimidade com Deus não se restringe apenas a determinados momentos reservados às obrigações religiosas, mas se estende a todo o operar humano, tal como a respiração não se interrompe em nenhum momento da existência. Ela é natural, sem esforço, contínua e aprazível.

A doutrina do Concílio Vaticano II, expressa no Decreto Apostolicam Actuositatem, é igualmente clara ao ressaltar a importância da esfera temporal no plano salvífico de Deus:

 

A obra redentora de Cristo, que por natureza visa salvar os homens, compreende também a restauração de toda a ordem temporal. Daí que a missão da Igreja consiste não só em levar aos homens a mensagem e a graça de Cristo, mas também em penetrar e atuar com o espírito do Evangelho as realidades temporais. Por este motivo, os leigos, realizando esta missão da Igreja, exercem o seu apostolado tanto na Igreja como no mundo, tanto na ordem espiritual como na temporal. Estas ordens, embora distintas, estão de tal modo unidas no único desígnio divino que o próprio Deus pretende reintegrar, em Cristo, o universo inteiro, numa nova criatura, dum modo incoativo na terra, plenamente no último dia. O leigo, que é simultaneamente fiel e cidadão, deve sempre guiar-se, em ambas as ordens, por uma única consciência, a cristã. (AA, n. 5)

É importante salientar aqui como o Concílio Vaticano II, ainda nos dias em que o assunto não havia adquirido o devido destaque nos meios eclesiais, deu novo impulso ao papel dos leigos na Igreja. Nele se anteciparam os imensos desafios que o terceiro milênio reservava. Com efeito, um deles é a “Consecratio Mundi”. Quase se poderia dizer, caso a Igreja não fosse imortal, ser essa uma questão de vida ou morte. Se no século XXI a Igreja não conseguisse influenciar as realidades temporais com o espírito cristão, os erros e a mentalidade secularista desta época poderiam, em certa medida, dessacralizá-la.

Diante dessa perspectiva, compete aos leigos zelar para que os ambientes, a arte, os costumes, as leis e as instituições, de alto a baixo na escala social, estejam todos impregnados do espírito cristão de forma que a obra redentora de Cristo produza também seus efeitos na esfera temporal. Deverá ela refletir, a seu modo, a luz e o esplendor daquele que subiu aos céus para “levar tudo à plenitude” (Ef 4, 10).

 


[1] Cf. ARISTÓTELES. De Anima. L. II, lição IV. In: SÃO TOMÁS DE AQUINO. Comentario al libro del alma de Aristóteles. Buenos Aires: Fundación Arché, 1979, p. 170.

A cosmovisão cristã medieval

catedral-de-strasbourgVinícius Sabino Gomes

“Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados”.[1] Na Encíclica Immortale Dei, o Papa Leão XIII ensina que houve uma Civilização Cristã cuja concreta expressão histórica se deu na Cristandade Medieval, e demonstra de modo muito apropriado a influência que a Igreja exerceu sobre a Idade Média. Pois o espírito cristão penetrou no próprio âmago da sociedade de então, produzindo uma “cosmovisão cristã”.* Impelida pela ação evangelizadora da Igreja, a sociedade medieval foi tomando um tônus profundamente cristão.[2] Isso transpareceu em todas as suas camadas sociais, desde os mais ricos e poderosos até os mais pobres e humildes; todas as atividades humanas estavam pervadidas pelo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, de forma a resultar na Cristandade Medieval. “Todos os batizados constituem já sobre a Terra uma entidade viva, fraternal, harmonizada pelos mesmos princípios e unida no mesmo esforço. E essa entidade tem desde então um nome que a designa: chama-se a Cristandade”.[3]

Um dos maiores contributos dessa civilização para o mundo foram as Universidades, grandes centros de ensino superior, onde, à sombra da filosofia escolástica, e superintendidas por ela, progrediam todas as ciências. Ora, quando Étienne Gilson foi convidado para o desafio de definir o espírito da filosofia medieval, constatou um mesmo espírito criador das catedrais góticas e da filosofia de seu tempo, a escolástica:

O espírito da filosofia medieval, tal como entendemos aqui, é portanto o espírito cristão, que penetra a tradição grega, trabalhando-a por dentro e fazendo-a produzir uma visão do mundo, uma Weltanschauung* especificamente cristã. Foram necessários os templos gregos e as basílicas romanas para que houvesse catedrais [góticas]; no entanto, qualquer que seja a dívida dos nossos arquitetos medievais para com seus predecessores, eles se distinguem destes, e o espírito novo que lhes possibilitou criar talvez seja o mesmo que aquele em que se inspiraram, com eles, os filósofos [escolásticos] do seu tempo.[4]

É, portanto, a ideia de uma cosmovisão cristã que explica a unidade de espírito que caracterizou a civilização medieval, e daí a razão de existir uma íntima relação entre a escolástica e as catedrais góticas. Pois se a plena aceitação da concepção católica da vida gerou, não somente um autêntico e inconfundível estilo de vida, mas também uma filosofia e um estilo arquitetônico próprio, é compreensível que tenha havido uma relação entre ambos, o que, aliás, é tomado com naturalidade por inúmeros estudiosos, como se percebe neste trecho de Maria Gozzoli:

Os ensinamentos de uma filosofia ― a escolástica ― que enquadrava harmoniosamente todo o saber do tempo e afirmava a possibilidade de ascender a Deus não só pela fé, como pela razão. Chegava-se a Deus por um esforço do pensamento, complexo mas requintado, rigidamente formal mas rico de subtilezas. Esses mesmos conceitos que, em arquitetura, inspiraram as catedrais góticas, a sua ascensão para Deus, através de construções complexas mas requintadas, formalmente rigorosas, mas de igual modo ricas de pormenores. A enfática verticalidade de tais edificações revela plenamente as transformações do gosto, do pensamento filosófico, dos ideais estéticos, traduzidas, no plano arquitetônico, por uma renovação das técnicas mediante a introdução de uma série de elementos originais típicos do estilo gótico: a abóbada sustentada por uma cruzaria ogival, a utilização do arco quebrado em vez do arco de volta perfeita (ou de volta inteira, arco românico), o emprego do arcobotante e dos contrafortes.[5]

Deste modo, pode-se afirmar que o pensamento escolástico se vê perfeitamente expresso na arquitetura das catedrais góticas.

in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 10, Jan-Mar 2010. p. 86-87.


[1] LEÃO XIII. Encíclica Immortale Dei. 1 de Novembro de 1885. [Em linha]. <Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/ documents /hf_l-xiii_enc_01111885_immortale-dei_po.html> Acesso: 10 Out. 2008.

* Por cosmovisão cristã entende-se a visão do universo do homem medieval, que consistia na continuidade de uma mentalidade cristã, de uma sabedoria cristã e da fé cristã, que foi se configurando lenta mas vigorosamente com o desenvolvimento que a Igreja Católica teve, desde de seus primórdios no caos da era bárbara, até atingir o seu auge na Alta Idade Média.

[2] ROPS, Op. cit., p. 42.

[3] Ibidem, p. 43.

* Weltanschauung é uma palavra de origem alemã que significa literalmente visão do mundo ou cosmovisão. Ela é adotada regularmente em diversas línguas com este significado. Pode ser usada para descrever a maneira como uma pessoa vê o mundo, a imagem que ela faz da vida e dos homens.

[4] GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 2.

[5] GOZZOLI, Maria. Como reconhecer a arte gótica. Lisboa: 70, 1978. p. 8-9.