Se tudo é verdade, o que é a verdade?

tibidabo

Diác. José Victorino de Andrade, EP

O homem hodierno julgar-se-ia menos moderno se não criticasse os antigos. Para ele, as verdades passaram a possuir uma validade. As descobertas do passado foram ultrapassadas pelo presente, e sofrerão reparos no futuro. Tudo é transitório. Apenas a opinião alheia se enche de brios, pouco disposta a dialogar, ou pelo menos, a reconhecer uma verdade exterior.

Consequentemente, muitos autores contemporâneos, ao pretenderem apoderar-se da verdade, sentam-se em sua cátedra embevecida de pretensões infalíveis, cujos escritos destilam os seus próprios dogmas, muito distantes, por vezes, do mundo real. E quanto mais escandalosos, provavelmente, mais publicitados e comentados.

As fátuas inverdades emanadas vão ao encontro de homens ávidos de mudanças que transformem a sua existência, consequência do vazio deixado pelo rechaço à metafísica e aos seus interlocutores. Ao enveredarem por novas vias que criam uma ruptura com as antigas, aderem facilmente a novos projectos que lhes tragam uma libertação dos velhos preconceitos éticos.

Numa cultura hedonista, na qual as a igreja foi substituída pelo shopping, a beleza da virtude pela estética corporal, o jejum e a penitência pela dieta e o suor no ginásio, uma religião de dogmas e prescrições morais só poderia surgir ao pensamento contemporâneo como algo ultrapassado, impositivo, que asfixia a própria pretensão de verdade.

Assim, nega-se a verdade na sua transcendência absoluta, da qual dimanam todas as demais, e corre-se o sério risco de “panteistizá-la”. Todos com a verdade, e a verdade com todos. Se tudo é verdade, terá sentido o próprio termo? Como convidar o homem a sair de si, e dos seus preconceitos recentemente criados, a esmo, conforme o cardápio apresentado por verdades relativizadas, engolidas sem mastigar, que o empanturram de critérios pouco judiciosos, assimilados com a mesma rapidez com que muda o canal da TV?

A resposta não é uma verdade abstracta, mas uma pessoa concreta: Jesus Cristo, a “Palavra eterna que se exprime na criação e comunica na história da salvação” (Verbum Domini n. 11). Para o cristão, a Verdade absoluta, Deus, encarnou e fez-se homem (Cf. Jo 1, 14), possui um rosto — “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9) — e um nome, não havendo debaixo do céu salvação em nenhum outro (Cf. At. 4, 12). Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida (Cf. Jo 14, 6). Esta é a grande novidade do cristianismo, um Deus pessoal, não distante, que entra na História.

Como renunciar Àquele que possui palavras de vida eterna (cf. Jo 6, 68), e trocá-las por palavras humanas, levadas e esquecidas pelo tempo, ou superadas por uma nova erudição ou pensamento falível? Em Jesus, “a Palavra não se exprime primariamente num discurso, em conceitos ou regras; mas vemo-nos colocados diante da própria pessoa de Jesus. A sua história, única e singular, é a palavra definitiva que Deus diz à humanidade” (VD n.11). Esta, excede toda e qualquer capacidade intelectual humana que “com as suas próprias capacidades racionais e imaginação, jamais teria podido conceber” (Loc. Cit.).

Como chegarmos à conclusão de que não nos enganamos? São João é nossa testemunha: “‘Nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai, como Filho único cheio de graça e de verdade’ (Jo 1, 14b). A fé apostólica testemunha que a Palavra eterna Se fez Um de nós” (VD n. 11). Apenas a Revelação poderia trazer uma verdade plena que orientasse os homens em sua peregrinação terrena e os levasse a um seguro conhecimento, tanto quanto possível à sua natureza limitada.

Descobrimos assim que a verdade não é abstracta, variável, limitada, mas que é o próprio Deus encarnado, que entrando na história concreta dos homens, com Palavras de vida eterna, orienta-os na sua peregrinação terrena, convidando-os a conformar a sua vida à luz da Revelação.

Imutabilidade intrínseca e extrínseca da Lei Natural

reloPe. Leopoldo Werner, EP

Imutabilidade intrínseca

A lei natural, em si mesma, é imutável, pois seus primeiros princípios são inerentes à consciência humana e não desaparecem por meio das vicissitudes da História, como ensina o Catecismo da Igreja Católica:

A lei natural é imutável e permanente através das variações da história; ela subsiste sob o fluxo das ideias e dos costumes e constitui a base para seu progresso. As regras que a exprimem permanecem substancialmente válidas. Mesmo que alguém negue até os seus princípios, não é possível destruí-la nem arrancá-la do coração do homem. Sempre torna a ressurgir na vida dos indivíduos e das sociedades (CEC, 2001: 518).

Dito com outras palavras, em todos os lugares e em todas as épocas o homem será impelido pela sua consciência a fazer o bem e evitar o mal, isto é, a respeitar a vida do próximo, sua liberdade, não mentir nem difamar, etc. Pois todas estas obrigações, como veremos mais adiante, emanam da lei natural.

No caso da lei positiva isto não acontece, pois um mesmo ato pode ser legal para um povo e ilegal para outro. Ponhamos um exemplo extraído das leis de trânsito: para um motorista inglês, circular pelo lado esquerdo da calçada é o modo correto de fazê-lo. Se alguém o imitasse no nosso País, incorreria em flagrante ilegalidade, além de se expor a um grave acidente.

Imutabilidade extrínseca

Como ao homem não é dado renunciar à sua condição de criatura humana, e como a lei natural está inserida dentro de seu coração, não é lícito abrogá-la, nem mesmo transgredi-la sem ferir os fundamentos da sua própria dignidade, e não pode dispensá-la, pois constitui um patrimônio inalienável, já que com ela permanece, desde a concepção até a sua morte natural. Esta é uma lei da sua natureza, da sua dignidade, e da sua superioridade como ente racional dotado de liberdade para aperfeiçoar seu ser em direção ao fim absoluto, que é o próprio Deus, Criador de todas as coisas.

A lei natural é imutável e permanente através das variações da história. Subsiste sob o fluxo das ideias e dos costumes e está na base do respectivo progresso. As regras que a traduzem permanecem substancialmente válidas. Mesmo que se lhe neguem até os princípios, não é possível destruí-la nem tirá-la do coração do homem (CEC 2001: 1958).

Convém, entretanto, fazer-se uma importante precisão sobre a imutabilidade extrínseca da lei natural tomando por base a doutrina de São Tomás. Ensina o Doutor Angélico que ela não pode mudar “a modo de subtração, a saber, de modo que deixe de ser lei natural algo que antes fora segundo a lei natural” (AQUINO: 2005, Vol. IV: 569). Mas nada proíbe que mude por algo que se lhe acrescente, como de fato tem acontecido ao longo da História.

Qual a realidade do ser?

Mons. João S. Clá Dias, EPpensadores

Os filósofos gregos que se dedicaram a resolver esse árduo problema — indagando a respeito da origem das coisas, no que consistem, qual o princípio primeiro de tudo — elaboraram várias teorias.

Sem pretender dar uma lista exaustiva das soluções propostas, lembramos, por exemplo, Thales de Mileto, cuja conclusão era de que esse princípio era a água, que impregna todas as coisas. Os filósofos posteriores rejeitaram sua explicação, argumentando que a água é um elemento extremamente mutante.

Abordando o problema da mutação do mundo material, Platão procurou solucioná-lo dizendo que as coisas participam de ideias imutáveis, um pouco como a sombra depende de um objeto real. As essências, os universais, são imutáveis e existem no mundo das ideias. Essas ideias são a verdadeira realidade, e independem das coisas.

Seu discípulo Aristóteles, um fino observador das coisas, discordou do mestre, atribuindo importância ao mundo material. Ele resolveu o problema da permanência e mudança introduzindo noções de potência e ato, as quais aparecem como matéria e forma. As coisas da natureza estão em ato, são reais, mas têm potência para sofrer mudanças.

A partir de Aristóteles, a filosofia passou a ter por objeto estudar o ser enquanto ser, e não este ou aquele ser determinado. Estava iniciada toda uma metafísica do ser, cujo desenvolvimento último é devido de modo particular à genialidade de São Tomás de Aquino.

Além de aperfeiçoar as noções de potência e ato, São Tomás mostra que essência e existência guardam, entre si, a proporção de passivo e ativo, analogicamente à matéria e à forma, que são como potência e ato. São duas realidades da mesma coisa.A existência é realmente distinta da essência, pois o ato de ser se distingue de sua potência, que o recebe e o limita.

Em termos mais simples, a essência se atualiza, ou seja, passa de potência a ato, o que significa ainda, adquire existência, em cada ser particular e concreto. Não importa que um cavalo seja grande ou pequeno, forte ou fraco, negro, alazão ou rajado, nem importa que tenha nascido com algum defeito. Em todos a mesma essência “cavalo”, ou a “cavalaridade”, se atualiza, se torna real. A essência não é algo de meramente abstrato, mas também não existe por si só. Ela existe de fato, mas somente no ser real.

A essência é, pois, potência; pode existir ou não. De seu turno, o ato de seresse.A essência, por si mesma, não pode passar de potência a ato, ou seja, vir a ter existência. É preciso haver um ato criativo e, portanto, um Criador, um Ser no qual essência e existência sejam inseparáveis. Em Deus, o Ato de Ser e a Essência se identificam: Ele é Ato Puro, Eterno e Necessário, capaz de subsistir independentemente de qualquer potência.

Já as criaturas são seres contingentes, e poderiam não existir; seu ser chegou ao ato, à existência, depois de estar em potência.

As criaturas participam do ato de ser em graus diversos, segundo suas respectivas essências: quanto mais perfeitas são, maior é o ato de ser do qual participam. Desse modo, um pedregulho participa do ato de ser de um modo menos intenso que uma rosa. E uma formiga, de um modo menos intenso que um leão. O homem, por sua vez, participa desse ato menos intensamente que os anjos. Assim, a fonte última de toda perfeição individual é o esse.

Esta é, pois, uma das principais doutrinas metafísicas de São Tomás: a distinção real entre essentia e esse. Sem ela o ensinamento tomista sobre essência e existência torna-se incompreensível.

São Tomás e o hilemorfismo

Ms. Antônio Chaves Sobrinho (IFAT)tomas

São Tomás aceita e desenvolve a doutrina aristotélica da matéria e da forma, do ato e da potência. Aperfeiçoa e aprofunda esses conceitos, tirando deles ensinamentos que se perpetuaram na Escolástica até nossos dias. Mais ainda, ele sublima a doutrina hilemórfica e chega a alturas não sonhadas por Aristóteles. Através da multiplicidade das formas chega àquelas que são puras e se identificam com as substancias angélicas. Fala de formas independentes da matéria que são inteligências, substâncias espirituais puras, quididades simples e perfeitas. Ele afirma:

[…] o relacionamento da matéria e da forma é tal que a forma dá ser à matéria e, deste modo, é impossível que haja matéria sem alguma forma; no entanto, não é impossível haver alguma forma sem matéria. Mas se se encontram algumas formas, que não podem ser senão na matéria, isto lhes advém na medida em que estão distanciadas do primeiro princípio que é o ato primeiro e puro. Donde, aquelas formas, que estão próximas ao máximo do primeiro princípio, serem formas substanciais por si, sem matéria. De fato, a forma, de acordo com a totalidade de seu gênero, não necessita da matéria, como foi dito. Tais formas são inteligência e, por isso, não é preciso que as essências ou quididades destas substâncias sejam algo de outro que a própria forma (AQUINO, n. 48).

A partir desses conceitos São Tomás explicita um ponto fundamental da filosofia escolástica que é o da essência e da existência. São princípios ontológicos distintos, mas inseparáveis, cuja composição explica a estrutura metafísica profunda do ser.

No plano da criatura, antes do ser, não há nem essência, nem existência, entidades que, por outro lado, são absolutamente incapazes de existir independentemente uma da outra. Nem a essência nem a existência existem isoladamente; somente o ser que elas compõem: são dois princípios correlativos que só têm realidade enquanto se completam (GARDEIL, 1967, p. 121).

A essência é aquilo que faz com que um ser seja ele mesmo e não outro. É o que define cada ente, diz o que é uma realidade, está no íntimo de cada ser e o caracteriza. Ela responde à pergunta: o que é isto ou aquilo (quid sit)?

A existência é a última atualização da essência, é o ato ou a perfeição essencial de cada ente. Ela responde à pergunta: isto ou aquilo é (an sit)? De fato, “a existência é sempre dada, como atualidade de uma essência determinada tanto que essência e existência, se são realmente distinguíveis, são necessariamente inseparáveis em um ser dado” (JOLIVET, 1972, p. 229). O esse ou existência desempenha a função de ato e a essência a de potência. Nessa análise que São Tomás faz do ser ele opera uma profunda transformação e elevação da ontologia de Aristóteles. A partir da existência como última perfeição dos entes ele chega ao “Ipsum esse subsistens.” O ser é, para ele, tanto em Deus quanto nas criaturas, existência por excelência. Estes dois princípios, que nas criaturas são distintos mas inseparáveis, no Criador se identificam em sua pura simplicidade. Nele, essência e existência são, pois, uma só coisa. Como se vê, o Doutor comum chega à mais alta concepção do ser, à sua noção e constituição essencial. O ser é ato que engloba todas as perfeições, pois o ato de ser é o fundamento da realidade de tudo quanto existe. O ser é ato em sentido pleno porque não inclui nenhuma limitação. Indo além dos universais, ele considera o ser sobretudo como transcendental. O Doutor Angélico voa do visível para o invisível, do finito para o infinito a fim de chegar à mais alta concepção do “esse” que tem sua fonte em Deus. Portanto, o ato de ser é o núcleo de sua metafísica, enquanto a composição essência-existência constitui, em sua filosofia, a estrutura fundamental dos entes criados (cf. SOBRINHO, 2007, p. 49-52).

A essência ou quididade é o objeto da primeira operação de nossos espíritos, é uma aptidão para existir, para o ser, em função do qual é medida e definida como uma autêntica essência. “Ens e essência se divisam como ‘aquilo’ que, primeiro, o intelecto concebe” (AQUINO, 2005, p. 7).

É, portanto, penetrando em sua essência que a inteligência se adequa aos seres e os conhece. Ela como que se torna um com eles e os ilumina como um farol. Etiene Gilson afirma que a corporeidade ou a matéria limita o ser, mas o que ele contém de espiritual tem por efeito amplificá-lo (cf. p. 293). E Maritan, discorrendo sobre o mistério do ser, afirma que ele é rico demais em inteligibilidade, puro demais para nossa inteligência, em se tratando das coisas espirituais. Ao mesmo tempo ele comporta certa resistência inteligível quando se trata do não ser ou da potência (cf. p. 15).

A existência ou ato de ser (actus essendi), é, portanto, o termo do pensamento, o objeto para o qual, primeiramente e por si, se orienta a inteligência. E é por isto que Santo Tomás afirma que é na segunda operação do espírito (juízo) que propriamente se realiza a apreensão do ser, porque é pelo juízo que a existência é apreendida, não mais, somente, como significada ou indicada ao espírito (o que é o caso do conceito), mas, como exercida, atual e “possivelmente por um sujeito. Assim, também, devemos dizer que é no juízo que se completa o conhecimento, enquanto está orientada (sic) para a apreensão do ser (JOLIVET, 1972, p. 197-198).

Como se vê, o conceito transcendental do ser, a essência e a existência ou ato de ser, sendo esta a última atualização daquela, são pontos fundamentais da ontologia tomista, que estavam vagamente esboçados ou sugeridos no hilemorfismo aristotélico e em sua teoria do ato e da potência. São Tomás via com os olhos da razão e entrevia com os da fé. Quem tem visão sobrenatural vai ao coração das coisas.

Em sua hierarquia ontológica ou graus de perfeição dos seres visíveis e invisíveis ele ultrapassa também Platão. As ideias deste, consideradas independentes e existentes por si mesmas, são concebidas por São Tomás na Mente Divina, tendo uma realidade lógica que passa a ser ontológica, se a vontade de Deus as concretiza. Esses possíveis são infinitos em Sua mente, alguns dos quais, concretizados, constituem o universo criado. Também as formas puras de São Tomás, correspondentes ao mundo angélico, vão além da pluralidade de motores imóveis sugerida por Aristóteles. Mais ainda, se o estagirita considera esses motores independentes do Ato Puro, que é o Motor Imóvel por excelência, o Doutor Angélico subordina todos os anjos a Deus. Estes guardam os homens, regem os astros e governam os demais seres criados por ordem de seu Criador. E cada ente, nessa hierarquia, desempenha a função de mestre, regente, modelo e guia em relação a seu inferior. Deste modo, toda a obra da criação realiza, na ordem do ser, uma “servitudo ex caritate”, atraída pelo divino amor.

O grande mestre da escolástica trata também da natureza humana, bem como da angélica, em sua substância. O homem é um composto hilemórfico de corpo e alma, matéria e espírito, constituindo, assim, um elemento de ligação entre o mundo material — minerais, vegetais e animais — e o mundo espiritual — os anjos. Estes dois elementos — matéria e espírito — estão de tal modo unidos, no ser humano, que formam uma só substância composta. A essência do homem abarca a forma e a matéria, ou seja, a alma e o corpo. Ele é um animal racional. Os anjos, pelo contrário, são substâncias simples ou formas puras.

“Portanto, a essência da substância composta e da substância simples diferem nisto que a essência da substância composta não é apenas a forma, mas abarca a forma e a matéria; no entanto, a essência da substância simples é apenas forma”. (AQUINO, n. 49)

Entretanto “tais substâncias, embora sejam apenas formas sem matéria, não há nelas uma simplicidade completa nem são ato puro, mas têm uma mistura de potência” (Idem, 52). Mesmo não sendo ato puro, a substância simples é forma e ser, pois “tem o ser a partir do ente primeiro que é apenas ser; e este é a causa primeira que é Deus.” (Idem, n. 55).

Tendo matéria em sua composição, cada homem não pode esgotar as perfeições de sua espécie. Daí a necessidade da pluralidade de indivíduos. O anjo, contrariamente, esgota as perfeições de sua espécie e, por isso, esta não comporta multiplicidade. Cada anjo é uma espécie diferente. Conforme a Introdução à Suma Teológica de Marie-Joseph Nicolas:

“A natureza humana só se realiza numa pluralidade, em si ilimitada, de indivíduos. Cada natureza angélica, ao contrário, é única. Toda multiplicidade no mundo dos puros espíritos é uma multiplicidade entre essências diversas, e a singularidade se identifica com a especificidade” (p. 49).

Estes são alguns reflexos do hilemorfismo aristotélico que, incidindo sobre a mente cristalina de São Tomás de Aquino, como uma luz ultrapassando um belo vitral, saem do outro lado purificados, sublimados e multicoloridos.

Início de tudo o que virá depois

Mons. João Clá Dias, EP

Quando a criancinha, em seu berço, “pesquisa” com intensidade seu primeiro chocalho, ou observa longa e profundamente o rosto de sua mãe, ou tem a curiosidade despertada pelo acender e apagar da lâmpada, está realizando a descoberta do ser. Este é o objeto da intuição, o primeiro a ser apreendido pela inteligência através dos sentidos, e dele deflui todo pensamento metafísico.

viewEm várias passagens de sua obra, São Tomás se manifesta neste sentido. Tomemos, por exemplo, a seguinte sentença em De Veritate: “Aquilo que o intelecto apreende primeiramente como o mais conhecido e no qual resolve todas as suas concepções é o ser [ens]”.1 Na Suma Teológica, ele reafirma tal princípio: “Há uma certa ordem naquilo que está ao alcance da apreensão humana. O que o intelecto apreende em primeiro lugar é o ser [ens], cuja compreensão está inclusa em todas as suas apreensões”.2

A doutrina da apreensão do ser — o ente (ens) — em primeiro lugar pela inteligência constitui a pedra angular da filosofia tomista: “O que primeiro o intelecto concebe é o ente, pois algo é cognoscível na medida em que se encontra em ato”.3

O “ente” é algo cognoscível enquanto é em ato. São Tomás toca continuamente nessa tecla. O ser, objeto próprio do intelecto, é “o primeiro inteligível, assim como o som é o primeiro audível”.4

Chesterton observa que essa filosofia tem como ponto de referência a realidade, quer dizer, ela corresponde ao senso comum. O Doutor Angélico “está absolutamente certo de que a diferença entre giz e queijo, ou entre porco e pelicano, não é uma mera ilusão, ou ofuscamento de nossa confusa mente, cegada por uma única luz; mas é mais ou menos aquilo que nós sentimos que seja”.5

Contrapondo-se ao robusto pensamento de São Tomás, vêm se sucedendo nos últimos séculos as divagações de correntes filosóficas que tiraram os olhos do ser para se concentrarem em um subjetivismo radical, incapazes de entender a realidade das coisas e obscurecendo a própria noção da existência de Deus. O imanentismo cartesiano é o caminho reto para o ateísmo ou o agnosticismo, e a filosofia após Descartes seguiu festiva por ali. Os passos seguintes levam à negação da moralidade objetiva.

A única solução sensata é voltar os olhos de novo para o ser. Pois é precisamente ele, em toda a sua inabarcável variedade e rica unicidade, que é entendido primordialmente pela inteligência através da experiência sensível.

A criança que está deitando seus primeiros olhares em torno de si vai formar conceitos no contato com o ser. Quaisquer que sejam tais conceitos — mamãe, frio, gostoso —, eles serão uma especificação ou um exemplo daquilo que é.

Até mesmo para conhecer sua própria alma o homem tem necessidade de primeiramente conhecer o ser material. Com efeito, não se pode dizer que conhecemos em primeiro lugar nosso espírito. Até mesmo para definir a espiritualidade somos obrigados a recorrer à matéria, falando de imaterialidade. Pela mesma razão, usamos de analogia com o espaço material para atribuirmos profundidade e elevação à alma.

O conceito de ser é, assim, anterior a todo outro conceito. É a primeira proposição que a mente humana forma no início de sua vida de experiência: “Alguma coisa existe”. Apreendido o ser através da luz natural da inteligência, a noção de ser está subjacente a tudo o que se possa conceber.

O ser assim apreendido em primeiro lugar é algum ser particular, e qualquer que seja o nome que se lhe dê significará minimamente alguma coisa que é.

O inter-relacionamento entre os diversos sentidos, cada um captando a realidade do ser segundo seu modo próprio, é a base para que a inteligência a apreenda como real inteligível e verdadeiro, como mostra Garrigou-Lagrange: “Enquanto a vista alcança o real colorido, como colorido, a inteligência o alcança como real inteligível. Do mesmo modo, assim como o ouvido alcança o real como sonoro, e o paladar o percebe como mais ou menos saboroso”.6

Havendo afirmado que o ser (ente) é o primeiro que cai na apreensão do intelecto, São Tomás completa seu pensamento com esta definição: “O primeiro princípio indemonstrável é: não é possível afirmar e negar ao mesmo tempo, fundado na noção de ser e não ser. E neste princípio se fundam todos os outros, como diz [Aristóteles] no livro 4 da Metafísica”.7

Fica assim introduzido um primeiro aspecto do ser que o intelecto conhece: sua oposição ao não-ser, ou seja, o princípio de não-contradição.

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1 “Illud autem quod primo intellectus concipit quasi notissimum et in quo omnes conceptiones resolvit est ens” (De Veritate, q. 1, a. 1).

2 “In his autem quae in apprehensione omnium cadunt, quidam ordo invenitur. Nam illud quod primo cadit in apprehensione, est ens, cuius intellectus includitur in omnibus quaecumque quis apprehendit” (S. Th. I-II, q. 94, a. 2).

3 “Primo autem in conceptione intellectus cadit ens: quia secundum hoc unumquodque cognoscibile esta, inquantum est actu” (S. Th. I, q. 5, a. 2).

4 “Unde ens est proprium obietum intellectus, et sic est primus intelligibile, sicut sonus est primum audibile” (S. Th. I, q. 5, a. 2).

5 CHESTERTON, G. K. St. Thomas Aquinas, the “Dumb Ox”. New York: Image, 1956. p. 40.

6 Garrigou-Lagrange, Réginald. El Sentido Común, la Filosofia del ser y las fórmulas dogmáticas. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1944. p. 330.

7 “Primum principium indemonstrabile est quod non est simul affirmare et negare, quod fundatur supra rationem entis et non entis, et super hoc principio omnia alia fundantur, ut dicitur in IV Metaphys” (S. Th. I-II, q. 94, a. 2).

Predomínio do frenesi e da instantaneidade

Mons. João S. Clá Dias, EPtibidabo

Em um de seus últimos documentos — “O rápido desenvolvimento”, sobre os meios de comunicação —, João Paulo II ressaltou um aspecto da pós-modernidade:

“As modernas tecnologias aumentam de maneira impressionante a velocidade, a quantidade e o alcance da comunicação, mas não favorecem de igual modo aquele intercâmbio frágil entre uma mente e outra, entre um coração e outro, que deve caracterizar qualquer forma de comunicação ao serviço da solidariedade e do amor” (n. 13).

Sem deixar de apontar a necessidade de os católicos aprimorarem sua participação nos chamados “grandes areópagos” dos meios de comunicação, é importante salientar que seria suicida uma posição ingênua e acrítica desses meios, como se só trouxessem vantagens, e não acarretassem, concomitantemente, perigos colaterais…

Em um mundo no qual predomina uma “cultura do instantâneo”, da permanente mudança, do descartável, do relativo, as transmissões ao vivo pela televisão e a rapidez de interação oferecida pela internet só podem agravar o quadro geral. Tal ambiente facilita a queda do edifício de certezas próprio da mente humana.

Não parecem atuais as respostas perenes, nem as regras que não caducam, nem normas éticas objetivas. Em nosso tempo todos os valores são arrastados na enxurrada da instantaneidade, no torvelinho de um devir que não deixa nada de pé.

Desaparecem as normas morais objetivas, ruem os princípios imutáveis da filosofia, e, mais ainda, os da teologia.

Tout passe, tout casse, tout lasse et tout se remplace… parece o único dogma a permanecer de pé.

Mais do que nunca é necessário voltar ao essencial, ao diretamente relacionado com o ser, ao robustecimento desse senso do ser do qual fizemos aqui objeto de análise.

Os ventos de 1968 (o ano dos movimentos contestatários, especialmente o da Sorbonne) deixaram, a esta altura, seus grandes desiludidos. Uma grande multidão se interroga sobre a validade do “tout passe…” e se volta à procura do perene, do estável, daquilo que tem o selo da credibilidade.

Os funerais de João Paulo II reuniram milhões de pesarosos fiéis em Roma (além de pessoas que, independentemente de suas convicções religiosas, foram à Cidade Eterna prestar uma homenagem ao finado Papa). Do mesmo modo, a escolha do Cardeal Ratzinger para ocupar o trono papal atraiu as atenções do mundo inteiro. As exéquias de um e a eleição do outro foram acompanhados à distância por milhões de pessoas que se utilizaram dos modernos meios de comunicação. Esse fenômeno não só evidenciou sinais de respeito e admiração pelo Papado, mas também foi uma exuberante e incontestável prova da atração por símbolos, ritos, cores e cerimonial, que alguns teóricos consideravam como “varridos” pelos ventos da História.

Princípios da lei natural

Pe. Leopoldo Werner, EPtomas-de-aquino

1 Primeiro princípio da lei natural: “Fazer o bem e evitar o mal”

Como vimos, este princípio governa, enquanto primeiro princípio, toda a vida moral; e pode ser formulado de maneira simples, de fácil compreensão: é necessário fazer o bem e evitar o mal. Assim argumenta São Tomás:

Assim como o ente é o primeiro que decai na apreensão de modo absoluto, assim o bem é o primeiro que cai na apreensão da razão prática, que se ordena à obra: todo agente, com efeito, age por causa de um fim, que tem a razão de bem. E assim o primeiro princípio na razão prática é o que se funda sobre a razão de bem que é “Bem é aquilo que todas as coisas desejam”. Este é, pois, o primeiro princípio da lei, que o bem deve ser feito e procurado, e o mal, evitado. E sobre isso se fundam todos os outros preceitos da lei da natureza, como, por exemplo, todas aquelas coisas que devem ser feitas ou evitadas pertencem aos preceitos da lei de natureza, que a razão prática naturalmente aprende serem bens humanos (AQUINO, 2005, Vol. IV: 562).

E continua o Doutor Angélico:

Donde, ao dizer Graciano que ‘o direito natural é o que se contém na Lei e no Evangelho’, imediatamente acrescentou: ‘pelo qual cada um é ordenado a fazer aos outros o que quer que seja feito a ele’ (AQUINO, 2005, Vol. IV: 568).

2 Outros princípios da lei natural

São basicamente quatro os princípios que informam a lei natural, a saber: conservação da existência; a reprodução; o conhecimento da verdade e necessidade da vida em sociedade. A partir desses princípios, um conjunto de normas deles deflui, deve ser codificado pelas leis positivas, sem contrariar a lei natural.

Assim, vemos que a lei Moral Natural contempla os seguintes princípios: a existência da família como sociedade natural, o direito à constituição de família pelo indivíduo, o respeito aos pais e aos mais velhos, o respeito ao próximo e a seus direitos; a existência do Estado, que é a mais perfeita das instituições naturais. O Estado tem a obrigação de zelar pela paz, promover a justiça, a moral e o bem comum; o direito à vida de pessoa humana; o direito à propriedade; o direito de professar fé religiosa. Tem também a função de defender e proteger seus cidadãos das agressões e violações de direitos individuais e coletivos; deve zelar para que as autoridades civis sejam respeitadas, haja ordem na sociedade e reine a paz.

O sublime reflexo de Deus nas criaturas

aurora

Felipe de Azevedo Ramos

Vemos que no mundo sensível é fato evidente a graduação das perfeições transcendentais numa maravilhosa hierarquia. É fácil compreender que todas as coisas são ontologicamente boas secundum magis et minus. A apreensão dos graus se torna ainda mais evidente quando se considera o pulchrum, escada segura de contemplação hierárquica das coisas, com a qual atinge, em seu vértice, a sua Suma Perfeição.

Tal Perfeição, absolutamente desproporcional ao homem, nos é revelada por meio desse sublime reflexo de Deus nas criaturas: a beleza.

Ao analisar a Criação e sua multifacetada variedade podemos nos perguntar por que Deus quis criar tal imensidade de seres. Pois sendo Ele infinitamente perfeito, bastaria-se a Si mesmo, sem a absoluta necessidade de criá-los. Porém, na Sua infinita bondade e misericórdia, assim o desejou.

Ora, Seu intuito, ao criar quantidade insondável de seres, foi para que estes não somente refletissem Sua perfeição infinita, mas também a reproduzisse em seus mais variados graus. Deste modo se explica o caráter hierárquico que Deus imprimiu ao Universo.

Contudo, não poderia Deus originar uma única criatura que por si só refletisse todas as suas perfeições tão bem como o conjunto dos seres criados? Parece que isso seria metafisicamente impossível. Pois Deus criou um Universo composto de muitas criaturas para que elas, de um lado pela sua pluralidade, de outro pela sua hierarquização, espelhassem convenientemente a Sua beleza e perfeição divina. Pois assim como um acorde sonoro é belo pela formação de uma unidade harmoniosa numa “terça”, mais belo ainda quando acrescentamos apenas uma nota num acorde de “quinta”, constituindo o que se chama “consonância perfeita”. Analogamente, a ordem da criação é ainda mais bela por sua rica pluralidade, quando coesa na unidade. Portanto, o homem, ao contemplar o mundo ao seu redor pode — aliando-se com a quarta via, ou seja, a partir da observação da gradualidade dos seres criados — inferir nestes, os esplêndidos reflexos da divina Pulchritudo.

Deste modo, o espírito hierárquico dos diversos graus aliados à ordem, às desigualdades harmônicas, ao pulchrum, em suma, leva-nos de proche en proche até a demonstração da existência de Deus, à Sua consideração e, por fim, à contemplação de Sua Suma Perfeição, causa de todas as perfeições.

Corrimãos da escada da vida

Mons. João S. Clá Dias, EP

A teologia moral de Santo Agostinho, tanto como a ética de Aristóteles, foram as fontes das doutrinasalianca escolásticas sobre a razão moral. Em De Libero Arbitrio, o bispo de Hipona afirmara que a moralidade exige da vontade humana sua conformidade com as prescrições da lei imutável e eterna, impressa na nossa mente. Tal lei, chamada de summa ratio (“razão suprema”), deve ser sempre obedecida. Por seus padrões é que são julgados os bons e os maus.[1]

Concorde com a tese agostiniana,[2] São Tomás procura definir meticulosamente a lei eterna acentuando de início que ela “não é senão a razão da sabedoria divina, na medida em que ela dirige todos os atos e movimentos”.[3] Essa lei — que se identifica com a Providência Divina — é, portanto, o princípio ordenador de todo o universo criado: “Toda a comunidade do universo é governada pela razão divina. E assim a própria razão do governo das coisas em Deus, como príncipe do universo, tem razão de lei”.[4] Assim, a suprema lei é o próprio Deus, sendo eterna como Ele é eterno; é a Sabedoria de Deus “que move todas as coisas para seu devido fim”.[5] E todas as coisas são avaliadas segundo a lei eterna, seguindo-se daí que dela todas participam de algum modo, e suas propensões para seus atos e fins próprios vêm da impressão em si dessa lei.

Nas questões 90 a 108 da Suma Teológica, parte I-II, São Tomás se estende genialmente sobre o significado e o alcance da lei eterna e sobre as outras leis que dela derivam: a lei natural, a lei divina e a lei humana.

Começando pela lei natural, ele a define como “a participação da lei eterna na criatura racional”, sendo proporcionada pela “luz do intelecto posta em nós por Deus, através da qual conhecemos o que devemos fazer e o que devemos evitar”,[6] por ser uma norma imperativa para dirigir os atos livres do homem.

Noutro lugar, São Tomás descreve a lei natural como os primeiros princípios da atividade moral humana, evidentes de si, não demonstráveis.[7]

Ninguém pode, com sinceridade e no uso normal de suas faculdades mentais,[8] negar a existência dessa lei natural, segundo a qual há obras boas e outras más por sua própria natureza. São Tomás afirma que todos os homens conhecem pelo menos os princípios comuns da lei natural.[9] Diz ele ainda que, “quanto aos princípios comuns da razão quer especulativa, quer prática, a verdade ou retidão é a mesma em todos, e igualmente conhecida”.[10] Quer dizer, não há quem não conheça a distinção entre bem e mal, e nossa obrigação de optar pelo primeiro e rejeitar o segundo se apresenta à inteligência com força de lei.

Também a lei humana positiva tem a obrigação de se conformar com a Sabedoria de Deus. É a ela que o Aquinate se refere quando afirma que, como “o fim último da vida humana é a felicidade ou bem-aventurança […] é necessário que a lei vise maximamente à ordem que é para a bem-aventurança”.[11] A lei temporal não pode colidir com a lei eterna, mas deve secundá-la.

A lei divina — consolidada nos Dez Mandamentos — mostra ao homem o caminho a seguir para praticar o bem e atingir seu fim. São Tomás se pergunta se, havendo já a lei natural e as leis humanas, é preciso também haver uma lei divina positiva. Ele inicia sua resposta lembrando que a bem-aventurança eterna, para a qual o homem foi criado, “excede a proporção da potência natural humana”. Assim faz-se necessário que, “acima da lei natural e humana, fosse dirigido também a seu fim pela lei divinamente dada”.[12]

Todas essas leis são como que corrimãos numa longa e difícil trajetória, numa escada colocada sobre um abismo. Pode ser que esses corrimãos pareçam limitações absurdas à liberdade. Na realidade, são anteparos que Deus nos concedeu para proteger a verdadeira liberdade e para nos auxiliar na ascensão até Ele.

Como estão equivocadas certas correntes de educação que procuram instilar na criança e no jovem a ideia de que os princípios morais são frios e cruéis! O certo, afirmam elas, seria optar por uma moral “amiga”, relativa, dependente apenas das circunstâncias, dos casos particulares, e esquecer tais princípios.

É supérfluo realçar a nocividade de tal doutrina para o tesouro acumulado a partir do primeiro olhar sobre o ser. E que resultados funestos trazem para a sociedade como um todo. Basta olharmos para o que vai se passando à nossa volta…


[1] De Libero Arbitrio, I, 1.6.15.48-49; 51: “Illa lex quae summa ratio nominatur cui semper obtemperandum est et per quam mali miseram, boni beatam vitam merentur […], potestne cuipiam intellegenti non incommutabilis aeternaque videri? An potest aliquando iniustum esse, ut mali miseri, boni autem beati sint? […] Ut igitur breviter aeternae legis notionem, quae impressa nobis est, quantum valeo, verbis explicem, ea est, qua iustum est, ut omnia sint ordinatissima”.

[2] Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 1: “Sed contra est quod Augustinus dicit quod lex aeterna est summa ratio, cui semper obtemperandum est”.

[3] S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Nihil aliud est quam ratio divinae sapientiae, secundum quod est directiva omnium actuum et motionum”.

[4] S. Th. I-II, q. 91, a. 1: “Tota communitas universi gubernatur ratione divina. Et ideo ipsa gubernationis rerum in Deo sicut in principe universitatis existens, legis habet rationem”.

[5] S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Moventis omnia ad debitum finem”.

[6] Collationes in decem praeceptis, Proœmium: “Lex naturae […] nihil aliud est nisi lumen intellectus insitum nobis a Deo, per quod cognoscimus quid agendum et quid vitandum”.

[7] Cf. S. Th. I-II, q. 94, a. 2. “Sunt quaedam principia per se nota”.

[8] “Alguma pessoa dotada de inteligência”, dizia Santo Agostinho (op. cit. 1.6.15.48).

[9] Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 2.

[10] S. Th. I-II, q. 94, a. 4. “Quantum ad communia principia rationis sive speculativae sive practicae, est eadem veritas seu rectitudo apud omnes, et aequaliter nota”.

[11] S. Th. I-II, q. 90, a. 2. “Oportet quod lex maxime respiciat ordinem qui est in beatitudinem”.

[12] S. Th. I-II, q. 91, a. 4. “Excedit proportionem naturalis facultatis humanae. Ut supra legem naturalem et humanam, dirigeretur etiam ad suum finem lege divinitus data”.

Uma ética original e originária

Diác. José de Andrade, EPluz

A questão ética, hoje, assume contornos de uma importância que não deve ser descurada, pois jamais pode consistir em um negócio, um jogo de interesses ou algo passageiro, mas num compromisso fundamentado na ética original e originária, conforme explica de modo muito acurado o Pe. Carlos Arboleda Mora: “Original porque própria ao cristianismo e originária pois é raiz de toda a ação social no mundo”.[1]

O Papa Bento XVI, na Caritas in Veritate, chamou a atenção para os perigos de uma ética vagamente interpretada, sobretudo quando ela se presta a “designar conteúdos muito diversos, chegando-se a fazer passar à sua sombra decisões e opções contrárias à justiça e ao verdadeiro bem do homem”, imperando, deste modo, a necessidade de uma ética “amiga da pessoa” (n. 45).

Na verdade, certa corrente da ética contemporânea levanta uma questão há muito predicada pelo Cristianismo: No relacionamento humano, o homem nunca poderá consistir um meio para outro homem, algo que se usa, mas deve ser considerado como um fim.[2] Não se refere ao fim último, que é o próprio Deus, que deve animar e continuamente purificar esse relacionamento, enquanto raiz e princípio, mas um fim enquanto uma atitude verdadeiramente altruísta, de procura do bem comum, proporcionando felicidade, sendo que ela “está mais em dar do que em receber” (At 20, 35).

Ora, a Igreja teve desde sempre algo forte e credível a apresentar ao mundo e que se funda no mandamento novo trazido por Nosso Senhor Jesus Cristo (Cf. Jo 13, 34-35) iluminando e firmando as regras de ouro éticas de todos os tempos. Os autores mais insuspeitos reconhecem-no. Por exemplo, J. B. Bury, entre as várias críticas acirradas ao Catolicismo, atribui entretanto aos cristãos a extensão da caridade a todos, uma vez que Sócrates, ao formular “a regra de vida ‘fazei ao outros’, provavelmente não queria incluir entre os ‘outros’ escravos ou selvagens”.[3] Ou mesmo Voltaire, ao reconhecer que os “Povos que não professavam esta religião romana imitaram, mas apenas de forma imperfeita, caridade tão generosa”.[4]

Uma vez que as raízes cristãs do Ocidente são um fato histórico inegável e incontornável, a moralização dos povos está na base de uma construção civilizacional que veio a sofrer uma forte ruptura quando quis dissociar a moral da religião e fundamentá-la na mera razão. Kant não é um nome estranho nesse sentido. Os fundamentos da sociedade Ocidental são sólidos, entretanto, sofreram abalos, na medida em que enfraqueceu a moralidade e a influência que a Igreja tinha nesse campo. Apesar disso, vão suportando o peso de uma mentalidade que se preocupa mais com o crescimento do edifício, do que com os fundamentos morais que o suportam. Ao pensarmos em certas sociedades, apelidadas simplesmente de primeiro mundo, devido à “qualidade de vida” mensurada por vários valores de referência de carácter universal, com máquinas, técnica, esperança média de vida… tudo isto é bom, mas está longe do excelente se não for acompanhado por uma forte estrutura moral. Corrêa de Oliveira chega mesmo a ponderar o perigo da ruína de um povo que viva com muita técnica e pouca moral. Conforme ele:

O alicerce de toda civilização é a moralidade. E quando uma civilização se edifica sobre os alicerces de uma moralidade frágil, quanto mais ela cresce, tanto mais se aproxima da ruína. É como uma torre que, assentando-se sobre alicerces insuficientes, ruirá desde que chegue a certa altura.[5]

Na verdade, o homem não se pode esquecer que por detrás de toda uma cultura atual, está um patrimônio, também ele moral, que progrediu à medida que acrescentou novas coisas às já existentes. O problema está em que muitas vezes certas premissas válidas, imutáveis e perenes são esquecidas ou deliberadamente postas de lado, em nome de uma cultura, dita moderna, sobrepondo-se o novo e despojando-se o existente. Porém, aquilo que tem o seu fundamento em Cristo goza da perenidade que apenas deve ter em vista as diferentes maneiras e riquezas de serem apresentadas às várias culturas.[6] A lei moral da Igreja possui as suas raízes em Nosso Senhor, e portanto, na lei eterna, além de estar também fundamentada na lei inscrita no coração dos homens, a natural. Uma ética sem qualquer fundamentação teológica ou metafísica está sujeita às frágeis bases do compromisso social.[7]

Os Papas, e o colégio episcopal em união com eles, sobretudo nestes últimos dois séculos, têm proposto e aplicado os ensinamentos da moral nos seus múltiplos âmbitos, sempre em nome e com a autoridade a eles confiada por Jesus Cristo. Estes ensinamentos, inspirados pelo Espírito Santo, envolvem também questões relativas à vida social, ou mesmo à economia e à política, nunca deixando de exortar à verdade. O Magistério intervém assim para exortar as consciências e propor valores.[8]

Ora, entre tantos problemas que afligem a sociedade humana de nossos dias, ensina-nos o Papa Bento XVI na Caritas in Veritate que “o problema decisivo é a solidez moral da sociedade em geral” (n. 51). Esta é a chave de ouro para abrir a porta à solução de múltiplas questões, e está desde sempre nas mãos da Igreja. Entretanto, como em tantas fechaduras duplas, a porta abre-se mais facilmente com o concurso de uma outra chave. E o Estado a tem nas suas mãos, cabendo-lhe também uma palavra. As duas chaves, cada uma na sua fechadura, serão capazes de abrir as portas à construção do bem comum e da civilização do amor.


[1] ARBOLEDA MORA, Carlos. Experiencia y testimonio. Medellín: UPB, 2010, p. 22. (Tradução nossa).

[2] Ver estudos de ética não utilitarista ou consequencialista que defendem esta tese, como os apresentados por: CHALMETA, Gabriel. Ética Social: Familia, profesión y ciudadanía. 2. ed. Pamplona:o utilitaristas ou consequencialistasabrielocura do bem comum, proporcionar felicidade para ser feliz,  EUNSA, 2003. Sobretudo as páginas 30-31; 42 e o capítulo V em geral que aborda a questão da amizade. Também em RHONHEIMER, Martin. La Perspectiva de la Moral: Fundamentos de la Ética Filosófica. Madrid: Rialp, 2000, p. 109-115.

[3] Ver BURY, J. B. The Idea of Progress. Fairford: Echo Library, 2010, p. 5.

[4] Apud WOODS JR, Thomas. O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica. Lisboa: Atheleia, 2009, p. 185.

[5] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Século de Progresso ou de ruínas. In: Dr. Plinio. São Paulo: Retornarei, n. 34, jan. 2001, p. 9.

[6] O próprio Papa João XXII dizia no início do Concílio Vaticano II, a 11 de out. 1962: “Occorre che questa dottrina (= la dottrina cristiana nella sua integralità) certa e immutabile, che dev’essere fedelmente rispettata, sia approfondita e presentata in modo che risponda alle esigenze del nostro tempo. Altra cosa è infatti il deposito stesso della fede, vale a dire le verità contenute nella nostra venerabile dottrina, e altra cosa è la forma con cui quelle vengono enunciate, conservando ad esse tuttavia lo stesso senso e la stessa portata”: AAS 54 (1962), 792; cf L’Osservatore Romano, 12 ottobre 1962, p. 2.

[7] Este é o pensamento do Arcebispo Jean-Louis Bruguès, exposto em conferência de 1/11/2010 no Seminário São Tomás de Aquino (SP), abordando a Encíclica Veritatis Splendor, de João Paulo II. Também o nº 53 do documento é elucidativo a esse respeito.

[8] Podem-se encontrar estas ideias sobretudo no nº 4 da Veritatis Splendor do Papa João Paulo II (1993). Conforme o Arcebispo Jean-Louis Bruguès na conferência supracitada, “a própria Encíclica visa mostrar o direito do Magistério em intervir em certas questões particulares”.