A beleza da verdade e a verdade da beleza

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Gostos se discutem, sim! Não é cada um com a sua verdade, pois da mesma forma que não convém à verdade ser mutável, a beleza não deveria depender de preferências ou tendências subjetivas. Se ambas fossem passíveis de volatilidade ou diversidade, não teria sentido falar em verdade ou em beleza, pois estas teriam como medida os gostos e opiniões contraditórios de cada um… Submeter os critérios de verdade e de beleza a divergências de carácter pessoal ou cronológico é próprio a uma cultura relativista com repercussões no campo da ética e da estética. A beleza e a verdade são grandes demais para ficarem sujeitas ao individualismo e ao tempo.

Antes de haver o homem, as coisas já eram belas e verdadeiras, fruto daquela bondade criadora, luz de eterna formosura, que tudo tirou do nada. Da mesma forma que o diálogo está chamado a identificar a verdade que o precede, a beleza poderá ser encontrada na criação e partilha de elementos estéticos, em busca da perfeição e do absoluto. São discutíveis, portanto, não as coisas belas e as verdades, mas as idealizações e argumentações que levem os homens a identificá-las. A verdade e a beleza não podem ser regidos pela história e pelo tempo, pelos homens e pelas ideias dominantes, mas estes é que estão chamados a sujeitarem-se e a serem regidos por aquela verdade e beleza subsistentes.

A verdade da beleza e a beleza da verdade têm a sua referência em Cristo, ao mesmo tempo Verdade (Jo 14, 6) e beleza que salva.[1] Ambas se impõem por si e não são passíveis de esconder debaixo do alqueire (Mt 5, 15) e por isso devem conduzir ao testemunho. Quem contempla e se encontra com Cristo, fato constitutivo do ser cristão (Deus Caritas Est 1), não pode senão comunicar esta experiência. A flecha da beleza que nos atinge tem sua origem no mais belo entre os filhos dos homens (Sl 45, 3).[2] Dele provém e para ele atrai.


[1] Quanto à beleza, encontra-se um excelente texto sobre o pensamento de Bento XVI em RATZINGER, Joseph. A Caminho de Jesus Cristo. Coimbra: Tenacitas, 2006.

[2] Idem.

A Santa Missa, fonte da santidade sacerdotal

Mons. João S. Clá Dias, EP

“Se conhecêssemos o valor da Missa, morreríamos. Para celebrá-la dignamente, o sacerdote deveria ser santo. Quando estivermos no Céu, então veremos o que é a Missa, e como tantas vezes a celebramos sem a devida reverência, adoração, recolhimento”.[1]

No decreto Presbyterorum ordinis, o Concílio Vaticano II, em perfeita harmonia com a doutrina tomista, resume de forma admirável a centralidade da Eucaristia na vida espiritual do sacerdote, como seu principal meio de santificação. Logo no início, afirma que a Ordem dos presbíteros foi constituída por Deus “para oferecer o Sacrifício, perdoar os pecados e exercer oficialmente o ofício sacerdotal em nome de Cristo a favor dos homens”.[2]

Recorda, em seguida, que é por meio do ministério ordenado que o sacrifício espiritual dos fiéis se consuma em união com o sacrifício de Cristo, oferecido na Eucaristia de modo incruento e sacramental. E afirma que “para isto tende e nisto se consuma o ministério dos presbíteros. Com efeito, o seu ministério, que começa pela pregação evangélica, tira do sacrifício de Cristo a sua força e a sua virtude”.[3] O que equivale a dizer que o sacerdote vive para a Celebração Eucarística e é dela que deve haurir a força para progredir na prática da virtude.

Prosseguindo, ressalta o decreto conciliar: “Os restantes sacramentos, porém, assim como todos os ministérios eclesiásticos e obras de apostolado, estão vinculados com a sagrada Eucaristia e a ela se ordenam.[4] Com efeito, na santíssima Eucaristia está contido todo o tesouro espiritual da Igreja,[5] isto é, o próprio Cristo”.[6] E mesmo quem é chamado a uma vocação missionária, não pode esquecer que a própria evangelização deve ter como meta o Sacramento do altar e dele nutrir-se: “A Eucaristia aparece como fonte e coroa de toda a evangelização”.[7] Pois no Sacrifício Eucarístico se exerce a própria obra da Redenção.[8]

Garrigou-Lagrange sintetiza com precisão esta doutrina:

“O sacerdote deve considerar-se ordenado principalmente para oferecer o Sacrifício da Missa. Em sua vida, este Sacrifício é mais importante que o estudo e as obras exteriores de apostolado. Com efeito, o seu estudo deve ordenar-se ao conhecimento cada vez mais profundo do mistério de Cristo, supremo Sacerdote, e o seu apostolado deve derivar da união com Cristo, Sacerdote principal”.[9]

Royo Marín, ao comentar a exortação do Pontifical Romano, feita pelo Bispo aos ordenandos, afirma com ênfase que a Santa Missa é “a função mais alta e augusta do sacerdote de Cristo”.[10] E, conhecedor das múltiplas ocupações pastorais de um sacerdote, que podem facilmente desviá-lo do cerne da sua vocação de mediador entre Deus e os homens, reforça a mesma ideia, logo em seguida, com inflamadas palavras de zelo sacerdotal:

“Esta é a função sacerdotal por excelência, a primeira e mais sublime de todas, a mais essencial e indispensável para toda a Igreja, e ao mesmo tempo fonte e manancial mais puro de sua própria santidade sacerdotal. É-se sacerdote, antes de tudo e sobretudo, para glorificar a Deus mediante o oferecimento do Santo Sacrifício da Missa”.[11]

Talvez receoso de que suas palavras não penetrem suficientemente o espírito de seus leitores, irmãos no sacerdócio, Royo Marín enumera algumas ocupações legítimas que poderiam servir de pretexto a uma diminuição do zelo eucarístico, insistindo de novo na centralidade do Sacrifício da Missa:

“Por cima de todas as demais atividades sacerdotais, por cima inclusive de seu trabalho pastoral voltado para as almas, deverá colocar sempre em primeiro plano a digna e fervorosa celebração do Santo Sacrifício do Altar. Tudo quanto o distraia e estorve nesta função augusta deverá ser afastado pelo sacerdote com energia, lançando-o para longe de si. Sua função primária, ante a qual devem ceder todas as demais atividades, consiste — repetimos — na celebração do Santo Sacrifício da Missa, através do qual recebe Deus uma glorificação infinita”.[12]

Cabe salientar ainda que a Eucaristia não só confere a graça, como também a aumenta naquele que a recebe com as devidas disposições:

“O Sacramento da Eucaristia tem por si mesmo o poder de conferir a graça. […] A graça cresce e a vida espiritual aumenta, toda vez que se recebe realmente este Sacramento […] para que o homem seja perfeito em si mesmo pela união com Deus”.[13]

Bento XVI, ao tratar da vocação e espiritualidade sacerdotais, sob uma perspectiva pastoral, afirma que é por meio da oração que o sacerdote apascenta suas ovelhas. Os presbíteros, diz ele, têm “uma vocação particular para a oração, em sentido fortemente cristocêntrico: isto é, somos chamados a ‘permanecer’ em Cristo”. E, continua:

“O nosso ministério é totalmente ligado a este “permanecer” que equivale a rezar, e deriva dele a sua eficiência. […] A Celebração Eucarística é o maior e mais nobre ato de oração, e constitui o centro e a fonte da qual também as outras formas recebem a “linfa”: a Liturgia das Horas, a adoração eucarística, a lectio divina, o santo Rosário, a meditação”.[14]

Novamente, encontramos a Eucaristia no centro da vida sacerdotal.

CLÁ DIAS, João. A Santidade do sacerdote à luz de São Tomás de Aquino. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 8, jul-set 2009. p. 16-18.

[1]BENTO XVI. Carta para Proclamação do Ano Sacerdotal, 16 jun. 2009.

[2] PO, n. 2.

[3] Idem.

[4]Nota do texto original: “A Eucaristia é como que a consumação da vida espiritual, e o fim de todos os sacramentos” (S Th III, q. 73. a. 3 c); cf. S Th III, q. 65, a. 3.

[5] Nota do texto original: Cf. São Tomás, S Th III, q. 65, a. 3, ad 1; q. 79, a. 1 c. e ad 1.

[6] PO, n. 5

[7] Idem.

[8] Cf. idem, n. 13.

[9] GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. Op. cit., p. 38.

[10] ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la Perfección Cristiana. Madrid: BAC, 2001. p. 848.

[11] Idem, ibidem.

[12] Idem, p. 849.

[13]S Th III, q. 79, a. 1, ad 1.

[14] BENTO XVI. Homilia no Dia Mundial de Oração pelas Vocações, 3/5/2009.

Oração composta e rezada diariamente por São Tomás

Concedei-me, Deus misericordioso,
Aquilo que vos agrada:
Ardentemente desejar,
Prudentemente investigar,
Sinceramente apreciar,
Perfeitamente consumar.
Para louvor e glória de vosso nome,
Ordenai o meu estado;
O que me quereis conceder,
Fazei-me conhecer;
O que é necessário e útil à minha alma,
Ajudai-me a exercer.
Que minha via rumo a Vós, Senhor, seja segura e reta,
Sem esmorecer nas prosperidades ou adversidades,
Agradecendo-Vos nas prosperidades,
Conservando a paciência nas adversidades,
Não me deixando exaltar por aquelas,
Nem desanimando com estas.
Que nada me alegre senão o que me leva a Vós,
Nem me entristeça, senão o que me afasta de Vós,
Que a ninguém deseje comprazer, ou temer desagradar, senão a Vós.
Que as coisas passageiras a mim se aviltem por Vós,
Estimadas me sejam todas as vossas coisas, mas Vós,
Ó Deus, mais que tudo.
Que me causem desgosto todas as alegrias sem Vós,
Que nada mais deseje além de Vós.
Que me deleite o trabalho por Vós,
E que me seja tedioso o repouso sem Vós.
Dai-me constantemente um coração por Vós elevado,
Com dor e propósito de emenda por minhas faltas, ponderado.
Fazei-me, meu Deus:
Humilde sem simulação,
Alegre sem dissipação,
Sério sem depressão,
Oportuno sem opressão,
Ágil sem frivolidade,
Veraz sem duplicidade,
Temendo-Vos sem desesperação,
Confiante sem presunção,
Corrigindo o próximo sem pretensão,
Edificando-o pela palavra
E pelo exemplo, sem ostentação;
Obediente sem contradição,
Paciente sem murmuração.
Dai-me, ó dulcíssimo Deus, um coração:
Vigilante, que não se afaste de Vós por nenhuma curiosa cogitação,
Nobre, que não o rebaixe nenhuma indigna afeição,
Invencível, para que não fraqueje sob nenhuma tribulação,
Íntegro, que não seja seduzido por nenhuma violenta tentação,
Reto, que não se desvie por nenhuma perversa intenção.
Concedei-me, generosamente, Senhor meu Deus:
Uma inteligência para Vos conhecer,
Um amor para Vos buscar,
Uma sabedoria para Vos encontrar,
Uma vida para Vos agradar,
Uma perseverança fiel para Vos esperar,
E, por fim, uma confiança para Vos abraçar.
Que eu seja transpassado por vossas penas, pela penitência,
Que no caminho seja agraciado por vossos benefícios, pela graça,
E possa gozar de vossas alegrias na Pátria, pela glória.
Amém.

 

Texto latino da oração Concede michi extraído de: Guilelmus de Tocco. Ystoria sancti Thome de Aquino, cap. 29. In: Ibid. Ed. Claire Le Brun-Gouanvic. Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 1996, p. 156, l. 56-86. Tradução pelo Diác. Felipe de Azevedo Ramos, EP, com ligeiras adaptações para a língua portuguesa. Embora não conste o formato versificado no texto original acima mencionado, optou-se por dividi-lo em versos, a fim de obter uma melhor compreensão e destacar o estilo rimado do original. In: Lumen Veritatis, n. Lumen Veritatis n. 18; p. 115-117.

O primeiro olhar da inteligência

Mons. João S. Clá Dias, EP

O famoso neotomista francês, Pe. Réginald Garrigou-Lagrange, OP, deixou-nos ricas páginas a respeito do primeiro olhar da inteligência sobre as coisas e sobre a vida,[1] considerando-o primeiramente através de um prisma meramente natural e, em seguida, enquanto banhado pela graça.

Tomando como ponto de partida a afirmação de Nosso Senhor — si oculus tuus fuerit simplex, totum corpus tuum lucidum erit (Mt 6, 2) —, Garrigou-Lagrange comenta que esse é um estudo de universal interesse, chamando a atenção não apenas de estudiosos, mas também de pessoas mais simples, desde que tenham alma elevada e grandes aspirações.

Nunca será demais realçar a riqueza virtual desse primeiro olhar e a necessidade, para o jovem ou o adulto de qualquer idade, de retornar a ele. Esse é o meio adequado do ser humano voltar-se para aquele mundo de verdades sobrenaturais e metafísicas as quais talvez tenha deixado obscurecer em seu espírito, seja porque colocou seu coração demasiadamente nos bens terrenos, seja porque sucumbiu à pressão do ambiente. Em geral, por ambas as razões.

A complexidade da vida nos dias atuais constitui outra grave dificuldade para o primeiro olhar. Com efeito, hoje as mentes são bombardeadas sem cessar pelas cacofonias da civilização do efêmero, do relativo, do contraditório, do meramente palpável. Já em meados do século XX se tornava avassalador o domínio do tecnicismo, mas este, graças ao avanço da eletrônica, vai agora alcançando um paroxismo. Enquanto a instituição da família cristã atravessa uma crise desagregadora sem precedentes, os lares são inundados por todo tipo de aparelhos fascinantes. Desde a mais tenra idade, meninos e meninas são cativados por jogos, blogs, you tubes, i-pods, play stations, face books, celulares, e — além do risco moral e psicológico que correm — perdem aquilo que de melhor tem a infância: os momentos serenos de contemplação das coisas, os “sonhos” com mundos maravilhosos, os períodos concedidos à imaginação criativa ancorada no bem e no belo. Não se trata de um problema circunscrito à infância: a possibilidade de recuperação do primeiro olhar padece sob o poder imperialista da técnica, e uma quantidade esmagadora de informações impossível de ser digerida.

Lembro-me com simpatia de um vietnamita que, nos anos 70, definia seu maior prazer na vida como estar sentado sozinho à porta de sua casa de campo, admirando a paisagem tingida pelas sucessivas cores do pôr-do-sol. Trata-se de uma atitude que se vai tornando rara. Hoje será mais provável encontrarmos cada um dos moradores dessa residência diante de uma tela de computador.

Nas épocas anteriores à civilização da técnica e ao domínio do relativismo e da superficialidade, as pessoas chegavam a alcançar uma robustez e segurança de espírito da qual é difícil fazer ideia. E o ponto de partida se encontrava numa infância na qual o senso do ser e dos seus transcendentais era desenvolvido natural e paulatinamente, servindo de farol para toda uma vida alicerçada no senso comum.

Mas ainda agora é possível, com muito esforço e boa orientação, restaurar esse senso, do qual dependem uma inteligência, uma vontade e uma sensibilidade bem constituídas.

Voltar àquele primeiro olhar límpido e inocente da criança nos seus primeiros contatos com o mundo é, do ponto de vista natural, a única maneira de atingir tal fim, impedindo que nossa inteligência soçobre no meio do caos moderno, e, pelo contrário, subjugue-o, discirna-o e contribua para mudar o rumo das coisas.

De igual ou maior importância é o dever de todo adulto de proteger, favorecer e guiar o desenvolvimento psicológico da criança na fidelidade ao primeiro olhar.

Com São Tomás, Garrigou-Lagrange afirma a similitude entre “o primeiro olhar intelectual de uma criança e, no outro extremo da existência, a contemplação simples do ancião que descobriu o verdadeiro sentido e o preço da vida”.[2]

Em resumo, a fidelidade ao primeiro olhar conduz à contemplação. Nem o burburinho das atividades, o convívio às vezes conflituoso, a turbulência intelectual, nem os tropeços, impedirão alcançar esse píncaro. O olhar límpido e fortalecido não sucumbe às desilusões, aos dramas e aos obstáculos, mas vive na paz constante.


[1]              Garrigou-Lagrange, Réginald. El Sentido Común, la Filosofia del ser y las fórmulas dogmáticas. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1944. p. 329-350.

[2]              Ibidem, p. 329.

Ao abraçarem o pecado, os homens se fecham à luz procedente do Verbo

moco-ricoMons. João Clá Dias, EP

O Evangelho de São João, apresenta Cristo enquanto luz, vida e verdade, que se revela aos homens submersos nas trevas da ignorância e do pecado, e através dessa revelação, eleva-os à contemplação dos misteriosos e infinitos horizontes sobrenaturais da fé. Vemos, assim, o quanto é densa de significação essa aproximação que São João faz a respeito de vida e luz. Por outro lado, podemos deduzir até que ponto o pólo oposto estaria colocado na morte e trevas, não no sentido de que se possa considerá-las como uma potência incriada e em luta contra Deus como desejariam os maniqueus, ou os gnósticos, por exemplo. Mas de fato inteiramente aplicáveis aos que se blindam em relação à luz, ou seja, à Palavra de Deus, e depois de se lançarem nas trevas, acabam por conferir a morte ao seu espírito.

Se a vida se torna tal só quando se reconhece chamada por Deus e só nesta compreensão — de ser “luz” — é vida, é necessário que tenha também a possibilidade de recusar tal compreensão e tornar-se “trevas”. Trevas em S. João não significa, como no gnosticismo, uma substância eterna e contrária a Deus; mas é um ato histórico, isto é, a revolta que perpassa toda a história do homem contra o apelo da palavra divina e o fechar-se do homem em si mesmo. Por isso a condição do homem fechado em si e que procura manter essa orgulhosa auto-suficiência é caracterizada por João como matar a verdade e ser mentiroso (8, 30-47), buscar a glória (isto é, a luz aparente) dos homens em vez da glória (a verdadeira luz) de Deus (5,44; 7,18; 12,43)[1].

Em contraste com as “trevas”, compreendemos ainda melhor a pulcritude da “luz”, como também o porquê da afirmação de Jesus: “O teu olho é a luz de teu corpo. Se o teu olho for simples, todo o teu corpo será luminoso” (Mt 6, 22). De fato, pode-se assegurar que se teu olho é simples, teu interior será luminoso. Se tua intenção é reta, teu interior estará penetrado de luz. Se teu coração é puro, verá as coisas como realmente são. Assim, ter o interior luminoso significa ver as coisas em sua verdadeira luz, apreciá-las segundo seu justo valor, de dentro do prisma da eternidade e em função de suas relações com o Verbo de Deus.

Ao se perguntar Santo André de Creta, bispo, em seu sermão de Domingo de Ramos:

“Que luz é esta?”, respondeu logo a seguir com toda clareza: “Só pode ser aquela que ilumina a todo homem que vem ao mundo (cf. Jo 1,9). A luz eterna, luz que não conhece o tempo e revelada no tempo, luz manifestada pela carne e oculta por natureza, luz que envolveu os pastores e se fez para os magos guia do caminho. Luz que desde o princípio estava no mundo, por quem foi feito o mundo e o mundo não a conheceu. Luz que veio ao que era seu, e os seus não a receberam”[2].

Aí está esse Deus que “habita uma luz inacessível” (1 Tm 6, 16) na realização de Seu eterno desejo de comunicar Sua própria vida, “a luz dos homens” (Jo 1, 4). E daí se entende o porquê de os homens, quando abraçam o pecado, fecharem os olhos à luz procedente do Verbo, Vida de nossa vida, Luz de nossa inteligência. À salvação, prefere o pecador as desordenadas trevas de suas paixões, de suas más inclinações.

Aquela vida é a luz dos homens, mas os corações insensatos não podem compreendê-la, porque seus pecados não lhes permitem; e para que não suponham que essa luz não existe, pelo fato de que não podem vê-la, prossegue: “A luz resplandeceu nas trevas, e as trevas não a compreenderam”. Por isso, irmãos, assim como o homem cego colocado diante do sol, embora estando em sua presença, se considera como ausente dele, dessa maneira todo insensato, todo iníquo, todo ímpio é cego de coração. Está diante da sabedoria, mas como um cego, seus olhos não a podem enxergar: ela não está longe dele, mas ele é quem está longe dela[3].

CLÁ DIAS, João. Lumen Veritatis. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho, n.2. jan-mar 2008. p. 22; 29-30. (adptado)

[1] RATZINGER, Joseph. Dicionário de Teologia, de Heinrich Fries – III vol. – pág. 207 – Edições Loyola – São Paulo – 1987).

[2] Liturgia das Horas, Vol. II, tradução para o Brasil da 2ª edição, 1999, Editoras Vozes, p. 366

[3] AUGUSTINOS, In Evangelium Ioanenis Tractatus Centum Viginti Quatro, § 18-19. Disponível em <htpp://www.sant-agostino.it/latino/comento_vsg/index2.htm>. Acesso em: 24 jun. 2007. Tradução nossa.

Obediência: O exemplo de São Tomás de Aquino

Diác. Inácio de Almeida, EP

Um dos hábitos pessoais de São Tomás era o de caminhar em torno do claustro. Andava depressa, com ímpeto e de cabeça erguida. Chesterton dizia que este modo de proceder do Angélico era uma “ação muito própria dos homens que travam as suas batalhas na inteligência”.1

Provavelmente foi numa dessas suas caminhadas que ocorreu o seguinte fato: um jovem frade do convento de Bolonha, necessitando fazer algumas compras, solicitou ao superior que lhe designasse alguém para acompanhá-lo até a cidade. Foi-lhe respondido que o primeiro frade que encontrasse pelo caminho deveria ser o seu acompanhante. Naquela ocasião, Tomás ali se encontrava apenas de passagem e, como de costume, passeava a passos largos em torno do claustro, certamente em altas meditações. Os dois acabaram se encontrando, ocasião em que o jovem frade se dirigiu ao Aquinate com as seguintes palavras: “Meu bom irmão, o superior lhe ordena que venha comigo”.2

Então Frei Tomás, com um gesto de cabeça, assentiu ao chamado e seguiu-o sem nada dizer. Como o outro religioso era mais jovem e caminhava ainda mais depressa, o Mestre Tomás ia ficando para trás, sendo constantemente repreendido pelo companheiro por isso. O santo desculpava-se humildemente e esforçava-se em segui-lo. Por outro lado, alguns cidadãos de Bolonha, que conheciam Frei Tomás, ficaram admirados por vê-lo seguir com tanta dificuldade um frade de pouca idade. Intuíram então que se tratava de algum engano, aproximaram-se do noviço e informaram-lhe quem era o ilustre acompanhante. Assustado, o bom frade se voltou para São Tomás pedindo perdão, o qual foi imediatamente concedido. O povo, por sua vez, dirigindo-se ao mestre, perguntou o motivo daquele modo de agir, ao que o Angélico respondeu: “A obediência é a perfeição da vida religiosa, pela qual o homem se submete ao homem por Deus, como Deus obedeceu ao homem em favor do homem”.3

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1) Chesterton, G.K. Santo Tomás de Aquino. Santo Tomás de Aquino: Biografia. Trad. Carlos Ancêde Nougué. São Paulo: LTr, 2003, p. 109.

2) Guilelmus de Tocco. Ystoria sancti Thome de Aquino. Ed. intr. e notas: Claire Le Brun-Gouanvic. Toronto: PIMS, 1996, cap. 25, p. 148: “Bone Frater, prior mandat quod veniatis mecum”.

3) Loc. cit.: “Quod in obedientia perficitur omnis religio, qua homo homini propter Deum subicit, sicut Deus homini propter hominem obediuit”.

A castidade da inteligência

Mons. João S. Clá Dias,EP

A castidade natural da inteligência consiste numa lealdade em face da realidade objetiva, numa busca da verdade, sem apego às próprias opiniões ou inclinações, uma vez que o homem é criado com a faculdade para conhecer retamente, e não para deformar sua visualização sobre a obra da criação. Na proporção em que penetra nas realidades dos seres em busca de uma união maior com Deus, ela cresce em sua capacidade de analisá-las com integridade, elevação e pureza.

Pelo contrário, se o homem perde essa castidade natural da inteligência, ao negar-se a procurar a Deus na obra da criação — e isso acontece sempre — as trevas penetram de certo modo em seu coração, podendo levá-lo à idolatria, conforme nos afirma o apóstolo: “Com efeito, a ira de Deus manifesta-se do céu contra toda a impiedade e injustiça daqueles homens que retêm a verdade de Deus na injustiça[1], porque o que se pode conhecer de Deus é-lhes manifesto, pois Deus lho manifestou. De fato, as coisas invisíveis dele, depois da criação do mundo, compreendendo-se pelas coisas feitas, tornaram-se visíveis, e assim o seu poder eterno e a sua divindade[2], de modo que são irrecusáveis, porque, tendo conhecido a Deus, não O glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, mas desvaneceram-se nos seus pensamentos e obscureceu-se o seu coração insensato, pois, dizendo ser sábios, tornaram-se estultos, e mudaram a glória de Deus incorruptível na figura de um simulacro de homem corruptível, de aves, de quadrúpedes e de serpentes” (Rm 1, 18-23).

Depois de empreender os movimentos iniciais nas veredas do uso da razão, com seus puros e naturais recursos, logo nos primeiros esforços para compreender os seres criados que o circundam, pode o homem conceber a idéia da existência de Deus. Verá que Ele se constitui no ser absoluto, causa eficiente de toda criação, conservador do universo. Não tardará em se dar conta de ser Ele o fim supremo de cada criatura em particular, como também do conjunto de todas elas. Por isso, conforme lemos nesses versículos de São Paulo, uma inteligência virginal, jamais “retém” em si mesma o conhecimento desinteressado e, portanto, nunca recusa os ensinamentos nascidos das realidades criadas, assim trilhando as vias em busca de Deus, a não ser que já O tenha encontrado. E mesmo neste caso, crescerá nela, o desejo de ainda mais e mais reencontrá-Lo.

Eis, naturalmente falando, uma inteligência casta. Nesse caminho da descoberta de Deus, essa inteligência, nEle repousará, contemplando Seus esplendores em Sua obra, com inteira abertura, sem a menor resistência, e até mesmo reticência, com integridade, submissão à realidade que conduz ao divino, e na mais perfeita lealdade.

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[1] É preciso inteligir e agir em consequência do conhecimento que o homem tem de Deus e de Sua natureza através da obra da criação, caso contrário, esse conhecimento se torna enclausurado na maldade do pecado original, na qual todos nós nascemos. Uma vez retida essa “verdade de Deus”, o conhecimento passa a ser inativo.

[2] “Deus, criando e conservando todas as coisas por meio de Seu Verbo, proporciona aos homens nas coisas criadas, um testemunho permanente de si mesmo…” (Dei Verbum, 3 – Concílio Vaticano II).

Caráter das inteligências elevadas conforme São Tomás de Aquino

s-tomas

BALMÈS, Jacques. Art d’arriver au vrai: Philosophie pratique. Paris: Auguste Vaton, 1850. p. 138-140 (Capítulo XVI). Traduzido do Francês por: Pe. José Victorino de Andrade, EP.

 

Por que certas verdades simples não se apresentam a todas as inteligências? Como o gênero humano acaba admirando um homem tido por extraordinário, se soube ver certas coisas que o mundo inteiro (ao menos assim parece) poderia ter visto como ele? Isto é perguntar a razão de um segredo da Providência, é questionar por que o Criador concede a alguns espíritos de elite uma grande força de intuição, ou, por assim dizer, uma visão intelectual imediata, recusada ao maior número (de pessoas).

 

São Tomás expõe sobre esse fato particular uma admirável doutrina. Segundo o santo doutor, o raciocínio é uma marca da fraqueza de nosso espírito. A faculdade de desenvolver as ideias nos foi dada para superar essa debilidade. Os anjos compreendem, mas não raciocinam. Quanto mais uma inteligência é elevada, mais o número de suas ideias diminui, porque ela encerra, num pequeno número desse tipo de coisas, aquilo que as inteligências de um grau inferior repartem em número maior. Assim, os anjos do mais alto grau abraçam, com a ajuda de algumas ideias apenas, um círculo imenso de conhecimentos. O número de ideias vai-se reduzindo sempre nas inteligências criadas, à medida que elas se aproximam do Criador. E Ele, a Ideia por excelência, o Ser infinito, a Inteligência infinita, quer tudo numa mesma ideia, simples, única, imensa, ideia que não é outra que a sua essência. Que sublime teoria. Ela revela um conhecimento admirável dos segredos do espírito e nos sugere inumeráveis aplicações relativamente às faculdades do homem.

 

De fato, os espíritos de elite não se distinguem pela quantidade de suas ideias. Eles não possuem senão um pequeno número, no qual eles envolvem o mundo. A ave das planícies se fadiga de rasar a terra; ela passa e repassa pelos mesmos lugares, não passando jamais as sinuosidades e os limites do vale onde nasceu. A águia, em seu voo majestoso, sobe, sobe sempre, não se detém antes dos mais altos cumes, e de lá seu olhar acurado contempla as montanhas, os cursos dos rios, as vastas planícies cobertas de cidades populosas, as verdes pradarias e as ricas pastagens.

 

Há em todas essas questões um ponto de vista culminante, em que se posiciona o gênio. Desta feita, o seu olhar domina e envolve as coisas. Se ele não é dado ao comum dos homens de se elevar até lá numa primeira volta, ao menos ele deve tender para isso sem cessar. Os resultados pagam o esforço ao cêntuplo. Como pudemos observar, toda a questão, ou mesmo toda a ciência, resume-se em um pequeno número de princípios essenciais, dos quais todos os outros decolam. Devem-se compreender esses princípios e o resto se tornará simples e fácil, e não nos deteremos mais em detalhes (escusados).

 

Apresente ao espírito o objeto simplificado o mais possível e desembaraçado por assim dizer, de toda a folhagem inútil. A sua singeleza exige. Para obter que ele multiplique sua atenção, evite exigir muito dele. Trate de circunscrevê-lo. Esse método lhe facilita a compreensão das coisas, dá às suas percepções a exatidão e a lucidez, e ajuda possantemente a memória.

 

Devemos concluir acerca das doutrinas aqui contidas […] que se deve renunciar ao raciocínio e mesmo ao estudo, e se abandonar à sorte de um quietismo intelectual? Isto, a Deus não agrada! Se há uma condição indispensável ao progresso de toda a faculdade, é o trabalho. Tanto na ordem intelectual, como na ordem física, um órgão que não funcione entorpece e perde uma porção de sua vida. Um membro que não se mova, paralisa. Os gênios mais dotados não entram plenamente em posse de suas forças sem um trabalho penoso e sustido. A inspiração não desce sobre o desocupado; ela exige, antes, produzir uma espécie de fermentação de ideias e sentimentos elevados. A intuição, quer dizer, a vista de espírito, não se adquire sem um longo hábito de olhar. O golpe de vista rápido, seguro e delicado de um grande pintor não é um dom gratuito da natureza; é um dom que se deve à contemplação apaixonada, à observação, ao estudo paciente de bons modelos. O sentimento divino da harmonia não se desenvolveria jamais na organização, mesmo a mais harmoniosa, se contrastasse sem cessar dos seus [aspectos] ásperos e discordantes.

 

in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 7, abr-jun 2009. p. 124-126.

 

Sem a dimensão jurídica, não seria compreensível a Igreja tal como foi fundada por Cristo

Pe. José Manuel de Andrade, EP

Há uma tendência de querer ver na Igreja apenas um lado carismático, pretendendo dispensá-la do aspecto jurídico, sendo que este não é desprovido de um significado e uma missão. Ele existe para que, havendo uma sociedade eclesial de instituição definida, se crie de forma acabada e com os devidos contornos, em seu tempo e em seu lugar, uma ordem baseada nos valores evangélicos e participa do fim a que se propõe a Igreja: a salvação das almas.

São Paulo ensina que a justificação não se realiza pelas obras da lei, mas por meio da fé (cf. Rm 3, 28; cf. Gl 2, 16), porém, não exclui a obrigatoriedade do Decálogo (cf. Rm 13, 8-10; cf. Gl 5, 13-25; 6, 2), nem nega a importância da disciplina na Igreja de Deus (cf. 1 Cor 5-6). Já o primeiro Concílio, de Jerusalém, presidido por Pedro, compreendia uma parte dogmática e moral e outra disciplinar.[1]

Assim sendo, a necessidade do direito na Igreja não deve traduzir-se por uma simples conveniência, por muito intensa que seja. Esta dimensão jurídica é fundamental, porque sem ela não é compreensível a Igreja tal como foi fundada por Cristo.[2] Conforme João Paulo II:

“Como principal documento legislativo da Igreja, baseado na herança jurídico-legislativa da Revelação e da Tradição, o Código deve ser considerado instrumento indispensável para assegurar a devida ordem tanto na vida individual e social como na própria atividade da Igreja. Por isso, além dos elementos fundamentais da estrutura hierárquica e orgânica da Igreja, estabelecidos por seu Divino Fundador ou fundamentados na tradição apostólica ou em tradições antiquíssimas, e além das principais normas referentes ao exercício do tríplice múnus confiado à Igreja, é necessário que o Código defina também certas regras e normas de ação”.[3]

Assim sendo, o Direito dentro do Povo de Deus não é só uma ordenação de condutas, mas também uma estrutura da sociedade; ele ordena e organiza o grupo social criando vínculos, estabelecendo situações jurídicas, delimitando âmbitos de competência e autonomia, outorgando poderes e direitos, etc.[4] Conforme afirmava Paulo VI: “A vida da Igreja não pode existir sem um ordenamento jurídico”.[5]


[1] Cf. BÍBLIA SAGRADA (anotada pela Faculdade de Teologia da Universidade de Navarra) Braga: Edições Theologica, 1990. Vol. II. p. 257.

[2] Ver Mt 16, 19 e Jo 21, 17.

[3] JOÃO PAULO II. Constituição Apostólica Sacrae Disciplinae Leges. In: Communicationes, XV (1983).

[4] Cf. INSTITUTO MARTÍN DE AZPILCUETA. Comentário Exegético al Código de Derecho Canónico. 3. ed. Pamplona: EUNSA, 2002. Vol. I.  p. 40-41.

[5] “Vita ecclesialis sine ordinatione iuridica nequit exsistere”. (Apud Herranz, J. Il Dirito Canonico, Perché? Lezione all’Università Cattolica di Milano. 29 aprile 2002 tradução minha).

Os apetites humanos

Mons. João S. Clá Dias, EP

Todas as coisas apetecem o bem, diz São Tomás, até mesmo as que carecem de conhecimento.[1] O Aquinate assim define essa natural propensão dos seres:

“Por isso, já que todas as coisas estão ordenadas e dirigidas por Deus ao bem, e em cada uma delas há um princípio pelo qual elas tendem ao fim, como dirigindo-se ao fim, deve-se dizer que todas as coisas naturais apetecem o bem por natureza”.[2]

Esse primeiro tipo de inclinação — chamado apetite natural — é uma tendência sempre atual, que relaciona uma forma a seu bem ou à sua perfeição. Por exemplo, um corpo pesado inclina-se de maneira constante para baixo. O homem, como criatura que é, compartilha o apetite natural com todos os outros seres. São Tomás afirma ainda:

“A ordem dos preceitos da lei natural é conforme à ordem das inclinações naturais. Pois a primeira inclinação que existe no homem, de acordo com a natureza que ele tem de comum com todas as substâncias, é para o bem, no sentido de que toda substância procura a conservação do seu ser, segundo sua natureza”.[3]

Conforme Frei Abelardo Lobato, O.P., “o apetite natural se manifesta de modo magnífico na lex naturalis do homem, uma esplêndida participação da lei eterna”.[4] E acrescenta:

“Tomás de Aquino colocou em relevo de muitos modos tudo o que é conatural ao homem. A natureza compreende a totalidade, é determinada pela espécie, e tem um peso ontológico que se inclina para os bens convenientes a ela, com anterioridade aos dinamismos das potências. Na esfera do conhecer há que se admitir conhecimentos por conaturalidade e por instinto, que brotam espontaneamente do espírito do homem”.[5]

Note-se que tal conhecimento por conaturalidade, por se tratar de um conhecimento instintivo prévio, reveste-se da maior importância na determinação dos atos humanos. Lobato afirma que esse apetite natural “tende para o bem de modo determinado e bem seguro”.[6]

Além do apetite natural, os animais dispõem ainda do apetite sensitivo, ao qual, no caso do homem, acrescenta-se o apetite racional. Estes dois apetites supõem o conhecimento sensível e o intelectual.

Segundo Lobato, este é um dos pontos fundamentais da antropologia tomista — os três tipos de apetites do homem — que constituem justamente a primeira base, o primeiro substrato da tendência e movimento do ser humano para o bem.

Sendo passivas, as potências apetitivas se distinguem pelos princípios motores que as determinam. O fato de o objeto desejado ser apreendido pelo sentido ou pela inteligência não constitui uma circunstância puramente acidental: a afetividade sensível orienta-se para os bens particulares, considerados como tais; o apetite racional — a vontade — sempre visará a esses bens particulares sob a razão universal de bem. Assim como a atividade da razão tende à verdade, a da vontade tende para o bem.

Depois de lembrar a “persistência e determinação” dos apetites naturais, Lobato diz que isso só é compreensível se for referido ao próprio Autor da natureza,

“que deu a cada ser uma tendência para os bens que lhe convêm. Daí procede o ímpeto de conservar, manter e acrescentar o próprio ser. No homem, o apetite natural está na base de todas as suas inclinações. Enquanto é homo viator, é homem de desejos”.[7]

O apetite sensitivo procede da forma e do conhecimento sensível, sendo comum aos homens e aos animais irracionais. A atividade sensitiva humana conta com duas potências distintas, pelas quais tende ao bem, quando este se apresenta simplesmente como tal (bonum simpliciter), ou se dispõe ao esforço para obtê-lo, quando é preciso vencer dificuldades e obstáculos (bonum arduum). No primeiro caso temos o apetite concupiscível; no segundo, o irascível. O mal sensível também é objeto das potências sensitivas, causa repugnância à concuspicência e provoca no irascível a disposição para a luta, a fim de evitá-lo.

De modo sucinto, Lobato define o apetite sensitivo como sendo

“o movimento do sujeito em direção aos bens concretos, que o conhecimento descobriu na esfera do sensível, nos entes reais, e os apetece aqui e agora como algo que lhe agrada, que lhe é útil, ou algum mal de que ele foge porque se lhe mostra nocivo”.[8]

Os atos do apetite sensitivo (concupiscíveis e irascíveis) são acompanhados de modificações corporais. Costuma-se denominá-los paixões, designando uma tendência ou um movimento de caráter ativo, ou uma afeição aparentemente passiva. Em si mesmas, as paixões não são boas nem más. No homem elas recebem uma influência da razão e da vontade. Na medida em que essa influência seja voluntária e livre, haverá bondade ou malícia moral.

Entre as principais paixões, as pertencentes ao concupiscível são a alegria, a tristeza, o amor e o ódio. Ao irascível pertencem a audácia, o temor, a esperança e semelhantes.[9]

O apetite irascível apela para faculdades mais intelectivas, diferentemente do apetite concupiscível; para desejar bastam sensações ou imagens; para se encolerizar é preciso tomar consciência das relações abstratas ao alcance apenas dos sentidos internos superiores, a cogitativa e a memória, e envolver mais a razão.

As tendências estáveis adquiridas por repetição de atos são chamadas hábitos. Estes podem ser maus (vícios), ou bons (virtudes).

Acima do apetite sensitivo, coloca-se o apetite racional, chamado também de vontade, sobre o qual falaremos mais adiante.


[1] De Veritate, q. 22, a. 1: “Dicendum quod omnia bonum appetunt, non solum habentia cognitionem sed etiam quae sunt cognitionis expertia”.

[2] De Veritate, q. 22, a. 1.

[3] S. Th. I-II, q. 94, a. 2. “Inest enim primo inclinatio homini ad bonum secundum naturam in qua communicat cum omnibus substantiis: prout scilicet quaelibet substantia appetit conservationem sui esse secundum suam naturam”.

[4] LOBATO, Abelardo. El hombre en cuerpo y alma. Tratado I: El cuerpo humano. In: El Pensamiento de Tomás de Aquino para el hombre de Hoy. Vol. 1. Valencia: Edicep, 1994. p. 212.

[5] Ibidem, p. 212-213.

[6] Ibidem, p. 213.

[7] Loc. cit.

[8] Loc. cit.

[9] Cf. S. Th. I-II, q. 23, a. 1.