A construção do bem comum não deve renunciar à Verdade

Paris nocturnaPe. José Victorino de Andrade, EP

Vemos a extrema dificuldade que a política tem hoje na construção da gratuidade, sem os alicerces que dão fundamento à dádiva de si mesmo, à semelhança de Cristo, que deu a vida por todos, e deste modo, da caridade cristã, que se baseia no mandamento novo trazido pelo Senhor. Não se pode tratar de uma caridade estóica que dá sem se compadecer com o próximo, mantendo a distância e não se deixando levar pelos sentimentos, mas de algo totalmente novo, uma novidade que nos pede uma transformação, uma conversão. Assim, a justiça, a solidariedade e a gratuidade partem de uma Palavra que nos fala e renova, santifica e impele.

O Papa Bento XVI na Deus Caritas Est considera exactamente que “nunca haverá uma situação onde não seja preciso a caridade de cada um dos indivíduos cristãos, porque o homem, além da justiça, tem e terá sempre necessidade do amor” (n. 29). Mons. Giampaolo Crepaldi, actual Arcebispo de Trieste, mostrava numa conferência ainda enquanto Secretário do Pontifício Conselho Justiça e Paz, como o Estado nunca será capaz de “produzir” o amor fraterno, mesmo sendo uma sociedade a mais perfeita e a mais justa.1

O dominicano López de la Osa sugere a existência de valores evangélicos em comunicação e a acomodação a uma peculiar terminologia capaz de ser aceite em nossos dias: o compromisso compreensivo numa atitude empática, passando por um segundo momento que implica uma afectividade (simpatia), e que desemboca por sua vez no acto concreto (conatismo), o que leva à construção não só da nossa dignidade, como também do próximo.2

E salientando o peculiar papel dos “outros cristos”, Domenèc Melè chama a atenção para a exemplar unidade de vida à qual os cristãos estão chamados ao actuar na vida pública, que deve impeli-los ao dever e ao bem comum, a estar abertos e cooperantes, sem entretanto renunciar à verdade.3

Esta abertura não deverá deixar de levar a um edificante diálogo. Por isso, Mons. João S. Clá Dias, EP, ao comentar a passagem Evangélica: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21; Mc 12, 17),  salienta: “As coisas de Deus e as coisas da terra não devem ser antagónicas. Pelo contrário, entre elas deve haver colaboração. Na harmonia entre ambas as esferas, a temporal e a espiritual, está o segredo do progresso. E a História nos mostra que nada pode haver de mais excelente do que seguir o conselho de Nosso Senhor: ‘Buscai, pois, o reino de Deus e sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo’” (Lc 12, 31).4

_______________

1 22ª Settimana Sociale dei cattolici trevigiani. Lunedì, 29 settembre 2008. “[…] anche nella società più perfetta e più giusta ci sarà sempre bisogno dell’amore fraterno. La società, ed anche lo Stato, hanno bisogno di una risorsa che essi non sanno produrre”. In: CREPALDI, Giampaolo. Dottrina Sociale della Chiesa e Diritti Umani, 29/09/2008. Disponível em: <www.vanthuanobservatory.org >. Último acesso a 15/12/2010.

2 Cf. LÓPEZ DE LA OSA, José R. Politica y moral. p. 706.

3 Cf. MELÉ, Domènec. Cristianos en la sociedad: Introducción a la Doctrina Social de la Iglesia.  3. ed.  Madrid: Rialp, 2000. p. 203-204.

4 CLÁ DIAS, João S. Dar a César, ou dar a Deus? In: Arautos do Evangelho. São Paulo, n. 10, out. 2002, p. 11.

Aportes para o discernimento de um autêntico progresso: Da Populorum Progressio à Caritas in Veritate

Diác. José de Andrade, EP

 

 

relo“Hoje o mundo está cheio de convites ao progresso. Ninguém quer ser ‘não progressista’. Trata-se, todavia, de saber em que consiste o verdadeiro progresso”.[1] De acordo com Corrêa de Oliveira, este resume-se “no reto aproveitamento das forças da natureza, segundo a Lei de Deus e a serviço do homem”. Porém, “nem é o progresso material de um povo o elemento capital do progresso cristãmente entendido.” Mas, sobretudo, “no pleno desenvolvimento de todas as suas potências de alma, e na ascensão dos homens rumo à perfeição moral”.[2]

            Conforme o filósofo espanhol contemporâneo Ferrater Mora, o progresso pode considerar-se como um processo ou evolução, porém, onde se incorporam os valores.[3] Estes são fundamentais para um saudável e sustentável desenvolvimento, sem o qual, corre-se o risco de tudo desmoronar, pois não estaria construído sobre solo firme. E que solo mais firme haveria do que a “rocha de Pedro”? De facto, ao longo da história, a Igreja preocupou-se com um pleno desenvolvimento, repleto de valores, servindo-se para isso de uma atenta análise do decorrer dos tempos, munida das escrituras, a fim de servir-se da Palavra de Deus que interpela os homens de todos os tempos.

 

Fundada para estabelecer já neste mundo o reino do céu e não para conquistar um poder terrestre, a Igreja afirma claramente que os dois domínios são distintos, como são soberanos os dois poderes, eclesiástico e civil, cada um na sua ordem. Porém, vivendo na história, deve estar atenta aos sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho. Comungando nas melhores aspirações dos homens e sofrendo de os ver insatisfeitos, deseja ajudá-los a alcançar o pleno desenvolvimento e, por isso, propõe-lhes o que possui como próprio: uma visão global do homem e da humanidade.[4]

 

            Uma superficial consideração do mundo de hoje leva a crer que a Igreja é contra o progresso, tal seria, pois, enquanto tal e na verdadeira acepção da palavra, é uma coisa boa. A este respeito, escreveu Paulo VI em seu último livro, ainda enquanto Cardeal Montini, em 1963:

 

A cristandade não é um obstáculo ao progresso moderno porque não o considera apenas nos seus aspetos técnicos e econômicos, mas no total de seu desenvolvimento. Os bens temporais poderão certamente ajudar o completo desenvolvimento do homem, mas eles não constituem o ideal da perfeição humana ou a essência do progresso social.[5]

 

            O problema com o aparente progresso, este sim, criticado pela Igreja, está no fato de ter vindo acompanhado de uma filosofia de vida que parecia dispensar Deus e confiar na mera técnica, ou no próprio homem, tal como advertiu o então cardeal Ratzinger:

 

Não é a expansão em si das possibilidades técnicas que é má, mas a arrogância iluminista que, em muitos casos, esmagou estruturas desenvolvidas e calcou as almas de homens cujas tradições religiosas e éticas foram postas de parte de forma displicente. O desenraizamento das almas e a destruição de estruturas comunitárias que então ocorreram, são certamente o principal motivo pelo qual a ajuda ao desenvolvimento apenas muito raramente tenha conduzido a resultados positivos.[6]

 

            Thomas S. Kuhn, chegou mesmo a colocar o dedo na ferida e a levantar o problema para onde caminhava a ciência em meados do séc. XX, pois, seu processo parecia partir de estágios primitivos e aparentava não levar a pesquisa para mais perto da verdade ou em direção a algo, o que significava que um número inquietante de problemas poderiam advir.[7]

            Anteriormente, já Kierkegaard alertava que, tornando-se a ciência um modo de vida, então esse seria o modo mais terrível de viver: “encantar todo o mundo e se extasiar com as descobertas e a genialidade, sem, no entanto, [o homem] conseguir compreender-se a si mesmo”.[8]

            No decorrer da 2ª Guerra Mundial, o mundo ocidental fica chocado com as práticas abusivas de médicos nazis que em nome da ciência, cometem as maiores atrocidades contra o ser humano em nome da ciência. Surge então o desenvolvimento de um código ético que se condensa com o nome da Bioética e formula-se aí também a idéia que a ciência não é mais importante que o homem. O progresso técnico deve ser controlado e acompanhar a consciência da humanidade sobre os efeitos que pode ter no mundo e na sociedade para que as novas descobertas e suas aplicações não fiquem sujeitas a todo o tipo de interesses.[9]

            Como o progresso não se reduz a questões científicas, muito pelo contrário, a Populorum Progressio, documento fundamental para o âmbito deste estudo, trouxe-nos importantes aportes: “Combater a miséria e lutar contra a injustiça, é promover não só o bem-estar mas também o progresso humano e espiritual de todos e, portanto, o bem comum da humanidade”.[10] Esta forma de progresso integral vem muito bem delineado no recente Compêndio de Doutrina Social da Igreja:

 

A humanidade compreende cada vez mais claramente estar ligada por um único destino que requer uma comum assunção de responsabilidades, inspirada em um humanismo integral e solidário: vê que esta unidade de destino é freqüentemente condicionada e até mesmo imposta pela técnica ou pela economia e adverte a necessidade de uma maior consciência moral, que oriente o caminho comum. Estupecfatos pelas multíplices inovações tecnológicas, os homens do nosso tempo desejam ardentemente que o progresso seja votado ao verdadeiro bem da humanidade de hoje e de amanhã. (n. 6)

 

 

            O remédio para os males e um falso progresso estão na caridade, porém, caridade na Verdade, ou seja, em Jesus Cristo. Se d’Ele não se tivesse afastado o homem, não teria o progresso sofrido tal desvio. Ao voltar-se para Deus, e valorizar o amor conforme o mandamento novo trazido por Jesus, o progresso se desenvencilhará de suas deturpações e produzirá os frutos mais excelentes. Tal como afirma Bento XVI na sua mais recente encíclica:

 

A partilha dos bens e recursos, da qual deriva o autêntico desenvolvimento, não é assegurada pelo simples progresso técnico e por meras relações de conveniência, mas pelo potencial de amor que vence o mal com o bem (cf. Rm 12, 21) e abre à reciprocidade das consciências e das liberdades. (Caritas in Veritate, n. 7)

VICTORINO DE ANDRADE, José. Aportes para o discernimento de um autêntico progresso: Da Populorum Progressio à Caritas in Veritate. Projecto de Mestrado em Teologia Moral. UPB. Escuela de Teología, filosofía y humanidades. Facultad de Teología, 2009. p. 3-5.


[1] JOÃO PAULO II. Visita pastoral à paróquia romana de São Clemente. Domingo, 2 de Dezembro de 1979. in: <www.vatican.va>.

[2] CORRÊA DE OLIVEIRA. Plinio. RCR. in: Catolicismo, nº100, 1959. p. 31.

[3] FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia. Tradução de António José Massano e Manuel Palmeirim. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978. p. 231.

[4] Populorum Progressio, n. 13.

[5] MONTINI, Giovanni Battista. The Christian in the Material World. Baltimore: Helicon, 1964. (tradução minha).

[6] RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância. Traduções UCEDITORA: Lisboa, 2007. P. 71

[7] Cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia: Do romanismo até nossos dias. V. 3. São Paulo: Paulus, 1991. p. 1046.

[8] Idem, p. 250.

[9] Cf. SÓNIA. Ética: Emergências Médicas – 2º ano. in: Bioética. Doc. Prefeitura de Araquara, 1997. p. 1.

[10] Populorum Progressio, n. 76.