Pregação de João e Batismo de Jesus

batismo-jesusJosé Afonso Sulzbach de Aguiar, EP

Havia cerca de quatro séculos que nenhum profeta fazia ouvir sua voz em Israel quando, no 15º ano do reinado de Tibério César, aproximando-se os dias anunciados por Daniel em relação à vinda do Messias, um súbito alvoroço percorreu Jerusalém e toda a Judeia. Nas margens sagradas do Jordão – o legendário rio, palco de deslumbrantes milagres e grandiosas cenas – aparecera um varão penitente, um enviado de Deus no espírito de Elias. João Batista era seu nome.

            Modelo de anacoreta até o momento de cumprir sua missão, o filho de Zacarias e Isabel abandonou a longa, austera e mística solidão em que vivera e desceu até o vale do Jordão, para onde convergiam de todos os lados caravanas, a fim de aí pregar palavras de um religioso temor: “Fazei penitência porque está próximo o Reino dos Céus” (Mt 3, 2).

            Multidões de israelitas afluíam para ouvi-lo e receber o seu batismo, símbolo da purificação do coração necessária para merecer o Reino dos Céus. O batismo de João – que era de preparação, de penitência, não ainda o Sacramento – produzia um afervoramento espiritual como nunca se vira antes em Israel. “Pessoas de Jerusalém, de toda a Judeia e de toda a circunvizinhança do Jordão vinham a ele. Confessavam seus pecados e eram batizados por ele nas águas do Jordão” (Mt 3, 5-6).

            E o arauto do Altíssimo apresentava- se sempre como mero precursor, dizendo sem cessar: “Eu vos dou um batismo de água, para que façais penitência. Mas, Aquele que virá depois de mim é mais poderoso do que eu; eu não sou digno de desatar a correia de Suas sandálias; Ele vos batizará no fogo e no Espírito Santo” (Mt 3, 11).

            Seis meses havia que o santo Precursor preparava os filhos de Israel para o encontro com o Messias, quando foi Jesus ao Jordão “a fim de ser batizado por ele” (Mt 3, 13). Ao notar a presença do Inocente no meio da multidão, João inclinou-se e Lhe disse: “Eu devo ser batizado por Ti e Tu vens a mim!” (Mt 3, 14). Jesus respondeu-lhe: “Deixa por agora, pois convém que cumpramos toda a justiça”. E João, obediente, O batizou (cf. Mt 3, 13-15).1

            Quando Jesus saiu da água, o Céu se abriu e o Espírito Santo pairou sobre Ele na forma de uma pomba. “E ouviu-se dos Céus uma voz: Tu és o Meu Filho muito amado; em Ti ponho as Minhas complacências” (Mc 1, 11). Grandiosa manifestação divina com a qual o Pai, o Filho e o Espírito Santo, unidos na obra da Redenção proclamavam a instituição do Sacramento mais necessário para a nossa Salvação.2

 

            Os Sacramentos, o que são?

            De acordo com o Catecismo da Igreja Católica, “os Sacramentos são sinais eficazes da graça, instituídos por Cristo e confiados à Igreja, por meio dos quais nos é dispensada a vida divina. Os ritos visíveis, sob os quais eles são celebrados, significam e realizam as graças próprias de cada Sacramento. Produzem fruto naqueles que os recebem com as disposições exigidas”.3

            No mesmo sentido – embora de forma mais sintética – se expressa o conhecido teólogo padre Antonio Royo Marín, OP, que afirma serem os Sacramentos “sinais sensíveis instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo, para significar e produzir a graça santificante naquele que os recebe dignamente”.

            Acompanhemos o douto dominicano na explicação dos termos desta breve e precisa definição.

            Os Sacramentos são, em primeiro lugar, sinais. – Ou seja, remetem a algo diferente de si mesmos, como a balança simboliza a justiça, ou a bandeira representa a Pátria.

            São sinais sensíveis. – Podem, portanto, ser percebidos pelos sentidos corporais. E o que acontece, por exemplo, com a água no Batismo, o pão e o vinho na Eucaristia, ou o óleo na Crisma e na Unção dos Enfermos.

            Foram instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo. – De acordo com São Tomás, “institui algo quem lhe dá vigor e força”. 5 Assim sendo, somente Nosso Senhor pode ser causa dos Sacramentos, e não a Igreja, “pois a graça santificante brota, como de seu manancial único, do Coração transpassado de Cristo”.6 Segue-se também daí que, como ensina São Pio X, não cabe à Igreja, “inovar nada acerca da substância mesma dos Sacramentos”.7

            Para significar e produzir a graça santificante. – A água do Batismo, por exemplo, lava o corpo do batizado para representar a purificação de sua alma, que fica limpa de todo pecado. E a Eucaristia, nos é dada sob a forma de alimento corporal, para simbolizar o alimento espiritual que a alma recebe pela presença real de Cristo em corpo, sangue, alma e divindade.

            Naquele que os recebe dignamente. – Para que os Sacramentos produzam a graça santificante é necessário que quem os recebe não oponha a eles nenhum obstáculo ou empecilho voluntário. Daí que seja requerido possuir o estado de graça para receber a Confirmação, Eucaristia, Unção dos Enfermos, Ordem e Matrimônio. E estar arrependido, ao menos com atrição sobrenatural,8 para receber a absolvição no Sacramento da Penitência, ou o Batismo quando se trata de pessoa em idade de uso da razão.

            Cabe notar, por fim, que os Sacramentos têm um caráter universal; Jesus Cristo não os instituiu unicamente para alguns escolhidos, mas adotisim para proveito de todos os homens.

                       

            Vida natural e vida sobrenatural

            Levando mais longe a analogia entre o plano simbólico e o plano da graça, São Tomás de Aquino estabelece na Suma Teológica um interessante paralelo entre a vida natural e a vida sobrenatural produzida pelos Sacramentos.9

            Enquanto, na vida natural, o homem é gerado, cresce e se alimenta; na vida sobrenatural, a alma nasce pelo Batismo, atinge a estatura e a força perfeitas pela Confirmação e nutre-se pela Eucaristia. E “como o homem incorre às vezes em enfermidade corporal ou espiritual, sendo esta o pecado, é necessário que seja curado da doença”.10 É esta a função da Penitência (Reconciliação), que restabelece a saúde, e da Unção dos Enfermos, que limpa a alma dos vestígios e sequelas deixados em sua alma pelo pecado.

            A esses cinco Sacramentos unem-se o do Matrimônio e o da Ordem – sendo este último análogo ao poder que recebe um homem para “reger a multidão” e exercer funções públicas – completando assim o número de sete.

            “A partir daí – conclui o Doutor Angélico – fica clara a questão do número dos Sacramentos, também enquanto visa à rebelião do pecado, pois o Batismo se dirige contra a falta de vida espiritual; a Confirmação, contra a fraqueza de alma que se encontra nos recém-nascidos; a Eucaristia, contra a fragilidade da alma diante do pecado; a Penitência, contra o pecado atual cometido depois do Batismo; a Unção dos Enfermos, contra as sequelas do pecado não suficientemente tiradas pela Penitência, ou provenientes da negligência ou da ignorância; a Ordem, contra a desorganização da multidão; o Matrimônio, contra a concupiscência pessoal e contra o desaparecimento da humanidade que acontece pela morte”.11

            “Nada permanece, portanto, à margem da influência benfazeja dos Sacramentos”, observa o padre Antonio Royo Marín.”Por meio deles a vida humana toda é santificada e o homem encontra-se provido com divina abundância de tudo quanto necessita para assegurar sua salvação eterna”.12

 

            O único Sacramento indispensável para a salvação

            Na tradicional relação estabelecida por São Tomás, o Batismo, novo nascimento espiritual, é o primeiro dos sete Sacramentos.13 Mas ele o é também do ponto de vista da necessidade, pois é o único Sacramento indispensável para cada um de nós, individualmente, alcançarmos a Bemaventurança eterna.14

            Assim o afirma com toda precisão o próprio São Tomás: “É pois, claro, que todos são obrigados ao Batismo e que, sem ele, não pode haver salvação para os homens”.15 E mais bela e claramente ainda o próprio Nosso Senhor: “Se alguém não renasce na água e no Espírito Santo, não pode entrar no Reino dos Céus” (Jo 3, 5).16

            Ora, “convém à misericórdia de quem ‘quer que todos os homens se salvem’, que permita encontrar-se facilmente o remédio para a salvação”.17 Daí que a matéria do Batismo seja uma matéria comum, a água, que qualquer um pode obter. E daí também que o ministro do Batismo, em circunstâncias excepcionais, possa ser qualquer pessoa, mesmo um não ordenado, homem ou mulher, e até mesmo um herege ou um pagão.18 Para o Sacramento ser válido, a Igreja só exige que seja utilizada a matéria do Sacramento, observada a forma e aplicada a intenção de fazer o que Ela própria faz, abstraindo de qualquer heresia ou infidelidade.

 

            Batismo e Pecado Original

            Convêm, por fim, não esquecer que a necessidadeeste   Sacramento, conforme explica Besson, “é consequência dos efeitos do Pecado Original e das restituições prometidas pelo Homem-Deus”.19

            Cada um de nós pecou em Adão, e a morte entrou em nossa alma com o pecado; do mesmo modo, cada um de nós foi salvo no novo Adão, e para que a vida dEle entre na nossa alma é preciso que recebamos a graça do Batismo. “Sob as águas do Batismo, a mancha primitiva é apagada da fronte da humanidade; e com o título de filho batizado e regenerado, o homem decaído recupera seus direitos e sua herança celestial. Esta necessidade abrange todos os homens”.20

            Por isso, pouco tempo após seu nascimento, a criança é levada às fontes batismais por um padrinho que responde por sua Fé, e curva sob a água santa sua fronte ainda marcada com o pecado original.21 Consumado o rito, a criança ergue-se livre, inocente e imaculada, com o indelével sinete da ordem sobrenatural. Era escrava, e seus grilhões foram quebrados; estava morta, e foi ressuscitada.

 

            Dois principais efeitos

            Quais são os principais efeitos desse Sacramento?

            Em seu já mencionado livro Somos hijos de Dios, o padre Royo Marín enumera sete, com a precisão própria do teólogo. O Catecismo da Igreja Católica, sob uma focalização mais pastoral, afirma serem principalmente dois: a purificação dos pecados e o novo nascimento no Espírito Santo.22

            Pouco há a afirmar em relação ao primeiro deles, senão que a purificação é tão completa que “todos os pecados são perdoados: o pecado original e todos os pecados pessoais, bem como todas as penas do pecado”.23

            Mas além de assim limpar a alma, este Sacramento “faz do neófito uma criatura nova, um filho adovo de Deus que se tornou participante da natureza divina, membro de Cristo e co-herdeiro com Ele, templo do Espírito Santo”.24

            Com efeito, o Batismo nos torna membros do Corpo de Cristo e nos incorpora à Igreja. Através dele, a vida de Jesus Cristo circula em todo o Corpo, levando Sua graça capital a todos os membros e permitindo-lhes alcançar a graça e as virtudes: “Da cabeça que é Cristo deriva sobre Seus membros a plenitude da graça e da virtude, conforme o Evangelho de João: ‘De Sua plenitude todos nós recebemos’ (Jo 1, 16)”.25

            Assim, na ordem da satisfação, da redenção, do mérito, da oração, do sacerdócio: tudo se tornou comum entre Jesus Cristo e nós, porquanto a Igreja inteira, Corpo Místico de Jesus Cristo, pode ser considerada como uma só pessoa com Ele, conforme ensina São Tomás de Aquino.26

 

            A Paixão de Cristo é comunicada ao neófito

            As consequências desta doutrina têm um alcance maior do que se pensa, a ponto de São Paulo afirmar que pelo Batismo, o crente comunga na morte de Cristo, é sepultado e ressuscita com Ele.27 Sobre isto, comenta São Tomás: “Pelo Batismo somos incorporados na Paixão e Morte de Cristo. Diz Paulo: ‘Se estamos mortos com Cristo, cremos que também viveremos com Ele’.

            Demonstra-se assim que a todo batizado a Paixão de Cristo é comunicada para servir de remédio, como se ele próprio tivesse sofrido e morrido.

            Ora, a Paixão de Cristo é satisfação suficiente para todos os pecados de todos os homens. Por isso, quem é batizado, é liberto do reato de toda pena devida por seus pecados, como se ele próprio tivesse oferecido uma satisfação suficiente por todos os seus pecados”.28

 

Somos filhos de Deus

            Mas talvez o mais tocante e assombroso efeito do Batismo seja produzir a filiação divina.

            Deus tem apenas um filho segundo a Sua natureza, que é o Verbo Encarnado. Só a Ele o Pai transfere eternamente a natureza divina em toda a sua infinita plenitude. Porém, a graça santificante – que é um dos efeitos do Batismo – confere aos neófitos uma participação real e verdadeira nessa filiação “por uma adoção intrínseca, a qual põe em nossa alma, física e formalmente, uma realidade absolutamente divina, que faz circular o próprio sangue de Deus nas veias de nossa alma. Graças a este enxerto divino, a alma se faz participante da mesma vida de Deus. Trata-se de uma verdadeira geração espiritual, um nascimento sobrenatural que imita a geração natural e recorda, por analogia, a geração eterna do Verbo de Deus”.29

            Em uma palavra, a graça santificante, para a qual o Batismo nos abre as portas, não nos dá apenas o direito de nos chamarmos filhos de Deus, senão que nos faz tais em realidade. “Inefável maravilha – conclui o padre Royo Marín – que pareceria inacreditável se não constasse expressamente na divina Revelação”.30 Poderia Deus ter feito mais algo por nós?

 

Notas

1 Durante sua recente visita ao lugar onde fora batizado Jesus, o Papa Bento XVI explica o porquê deste gesto do Redentor: “Jesus se colocou na fila com os pecadores e aceitou o batismo de penitência de João como um sinal profético da sua própria Paixão, Morte e Ressurreição para o perdão dos pecados” (10/5/2009).

2 São Tomás afirma que este Sacramento foi instituído quando Cristo foi batizado, se bem que a necessidade de recebê-lo só tenha sido notificada à humanidade depois da sua Paixão e Ressurreição (cf. ST III, q. 66, a. 2).

3 CIC n. 1131-1132.

4 ROYO MARÍN, OP, Pe. Antonio. Somos hijos de Dios. Madrid: BAC, 1977, p. 93.

5 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 64, a. 2. Cf. Denzinger – Hünermann, n. 1864.

6 ROYO MARÍN, OP, Op. cit., p. 93-94. 7 Denzinger – Hünermann, n. 3556.

8 A atrição, ou contrição imperfeita, é o arrependimento suscitado pelo temor do castigo. Para melhor conhecer as diferenças entre atrição e contrição perfeita, pode-se consultar Arautos do Evangelho, n. 84, dezembro 2008, p. 34-35.

9 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 65, a. 1.

10 Idem, q. 65, a. 1, resp.

11 Idem, ibidem.

12 ROYO MARÍN, OP, Op. Cit., p. 94.

13 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 65, a. 2, resp.

14 Cf. Idem, q. 65, a. 3, ad. 3; a. 4, resp. A Penitência e a Ordem sacerdotal são também de necessidade absoluta, mas a primeira só é requerida para aqueles que pecaram depois do Batismo, e a segunda é imprescindível para a Igreja, não para os indivíduos (cf. ST III, q. 65, a. 4).

15 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, III q. 68, a. 1, resp.

16 Não trataremos neste artigo do batismo de sangue (dos mártires não batizados) nem do de desejo, pois embora produzam os mesmos efeitos do Batismo sacramental, não são eles sacramentos propriamente ditos (cf. ST III, q. 66, a. 11, ad. 2). O leitor interessado em conhecer o que São Tomás afirma sobre ambos, pode consultar o art. 12 da questão 66 (batismo de sangue) e o art. 2 da q. 68 (batismo de desejo). Sobre o problema da crianças não batizadas que não alcançaram o uso da razão, ver a Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé de 19 de abril de 2007.

17 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 67, a. 3.

18 Cf. Idem, q. 67, a. 3-5.

19 BESSON, Mgr. Louis François Nicolas. Les Sacrements. Paris: Reaux- Bray, 1886, p. 116.

20 Idem, ibidem.

21 Sobre a conveniência de não postergar o Batismo das crianças ver Suma Teológica, III, q. 68, a. 3 e 9.

22 Cf. CIC §1262. O Rvmo. Pe. Royo Marín, em sua obra Somos hijos de Dios, faz a relação sistemática dos efeitos do Batismo que reproduzimos no Box anexo.

23 CIC n. 1263.

24 CIC n. 1265.

25 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, III, q. 69, a. 4. Afirma também São Tomás: “Pelo Batismo renascemos para a vida espiritual, própria dos que crêem em Cristo. […] Ora, a vida e a união dos membros com a cabeça da qual recebem o sentido e o movimento” (Suma Teológica, III, q. 69, a. 5).

26 Cf. Idem: “Deve-se dizer que cabeça e membros são como uma única pessoa mística. Portanto, a satisfação de Cristo pertence a todos os fiéis como membros Seus” (ST III, q. 48, a.2 ad 1). “Toda a Igreja, que é o Corpo Místico de Cristo, é considerada como uma só pessoa com sua cabeça, que é Cristo” (ST III, q. 49, a. 1 Resp).

27 Cf. CIC n. 1227.

28 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, III, q. 69, a. 4, Resp.

29 ROYO MARIN, OP, Op. cit., p. 20-21.

30 Idem, p. 21.

(Revista Arautos do Evangelho, Jul/2009, n. 91, p. 22 à 27)

A eficácia do ministério sacerdotal

hostiaMons. João Clá Dias, EP

Ressalta Dom Chautard que a um sacerdote santo corresponde um povo fervoroso; a um sacerdote fervoroso, um povo piedoso; a um sacerdote piedoso, um povo honesto; a um sacerdote honesto, um povo ímpio.[1] Grande é, pois, o papel da virtude do ministro, para o êxito de seu ministério.

No que respeita à aplicação do valor da Santa Missa, com finalidade propiciatória, é que se pode falar de sua eficácia subjetiva, dependente das disposições de quem a celebra e daqueles aos quais ela é aplicada, como explica São Tomás:

Na satisfação atende-se mais à disposição de quem oferece do que à quantidade da oferenda. Por isso, o Senhor observou, a respeito da viúva que oferecia duas moedinhas, que ela “depositou mais que todos os outros”. Ainda que a oferenda da Eucaristia, quanto à sua quantidade, seja suficiente para satisfazer por toda a pena, contudo ela tem valor de satisfação para quem ela é oferecida ou para quem a oferece, conforme a medida de sua devoção, e não pela pena inteira.[2]

A respeito deste trecho do Doutor Angélico, Robert Raulin faz o seguinte comentário: “Seria perniciosa ilusão acreditar que o ofertante está dispensado do fervor, sob pretexto de que Cristo, oferecendo-Se na Missa, satisfez plenamente por todos os pecados do mundo”.[3]

Outro argumento, ainda, apresenta o Aquinate, para vincular a eficácia da Eucaristia à devoção dos que se beneficiam do valor infinito deste augusto Sacramento:

A Paixão de Cristo traz proveito a todos para a remissão da culpa, a obtenção da graça e da glória, mas o efeito só é produzido naqueles que se unem à Paixão de Cristo pela fé e caridade. Assim, também este Sacrifício, que é o memorial da Paixão do Senhor, só produz efeito naqueles que se unem a este Sacramento pela fé e caridade. […] Aproveitam, no entanto, mais ou menos, segundo a medida de sua devoção.[4]

 

A especial obrigação dos sacerdotes em trilhar o caminho da santidade é reafirmada no decreto Presbyterorum ordinis: “Estão, porém, obrigados por especial razão, a buscar essa mesma perfeição visto que, consagrados de modo particular a Deus pela recepção da Ordem, se tornaram instrumentos vivos do sacerdócio eterno de Cristo”.[5] E de seu aperfeiçoamento pessoal, ensina o mencionado documento conciliar, decorrerá maior ou menor abundância de frutos de sua ação pastoral:

A santidade dos presbíteros muito concorre para o desempenho frutuoso do seu ministério; ainda que a graça de Deus possa realizar a obra da salvação por ministros indignos, todavia, por lei ordinária, prefere Deus manifestar as suas maravilhas por meio daqueles que, dóceis ao impulso e direção do Espírito Santo, pela sua íntima união com Cristo e santidade de vida, podem dizer com o Apóstolo: “Se vivo, já não sou eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20).[6]

 

Ante esta realidade, o sacerdote tem dois grandes deveres. Um para consigo mesmo e outro para com o povo, pois ambos se beneficiam dos frutos da Santa Missa, especialmente o celebrante, conforme o grau de fervor ou devoção.[7]

Segundo alguns teólogos, este fruto especialíssimo da Santa Missa, destinado ao sacerdote, é maior do que o destinado aos demais participantes do Sacrifício Eucarístico, ou àqueles aos quais se aplica o seu valor. É neste manancial inesgotável da misericórdia de Deus que cada ministro ordenado deve ir buscar as melhores graças para a sua santificação, assim como a daqueles que lhe estão confiados:

Por causa do poder do Espírito Santo, que pela unidade da caridade comunica os bens dos membros de Cristo entre si, acontece que o bem particular presente na Missa de um bom sacerdote se torna frutuoso para outras pessoas.[8]

 

Dessa maneira, corresponderá ele à altíssima dignidade de seu ministério, segundo dizia o Santo Cura d’Ars:

Sem o sacramento da Ordem, não teríamos o Senhor. Quem O colocou ali naquele sacrário? O sacerdote. Quem acolheu a vossa alma no primeiro momento do ingresso na vida? O sacerdote. Quem a alimenta para lhe dar a força de realizar a sua peregrinação? O sacerdote. Quem há de prepará-la para comparecer diante de Deus, lavando-a pela última vez no sangue de Jesus Cristo? O sacerdote, sempre o sacerdote. E se esta alma chega a morrer [pelo pecado], quem a ressuscitará, quem lhe restituirá a serenidade e a paz? Ainda o sacerdote. […] Depois de Deus, o sacerdote é tudo! […] Ele próprio não se entenderá bem a si mesmo, senão no Céu.[9]

CLÁ DIAS, João. A Santidade do sacerdote à luz de São Tomás de Aquino. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 8, jul-set 2009. p. 19-21.


[1] Cf. CHAUTARD, OCSO, Jean-Baptiste. A Alma de todo o apostolado. Porto: Civilização, 2001, p. 34-35.

[2] S Th III, q. 79, a. 5, Resp.

[3] In: AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2006, v. 9, p. 358.

[4] S Th III q. 79, a. 7, ad 2.

[5] PO, n. 12.

[6] Idem.

[7] Cf. ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología Moral para Seglares. Madrid: BAC, 1994, v. 2, p. 158.

[8] S Th III q. 82, a. 6, ad 3.

[9] Palavras de São João Maria Vianney, citadas pelo Papa Bento XVI na Carta para Proclamação do Ano Sacerdotal, 16 jun. 2009.