Pregação de João e Batismo de Jesus

batismo-jesusJosé Afonso Sulzbach de Aguiar, EP

Havia cerca de quatro séculos que nenhum profeta fazia ouvir sua voz em Israel quando, no 15º ano do reinado de Tibério César, aproximando-se os dias anunciados por Daniel em relação à vinda do Messias, um súbito alvoroço percorreu Jerusalém e toda a Judeia. Nas margens sagradas do Jordão – o legendário rio, palco de deslumbrantes milagres e grandiosas cenas – aparecera um varão penitente, um enviado de Deus no espírito de Elias. João Batista era seu nome.

            Modelo de anacoreta até o momento de cumprir sua missão, o filho de Zacarias e Isabel abandonou a longa, austera e mística solidão em que vivera e desceu até o vale do Jordão, para onde convergiam de todos os lados caravanas, a fim de aí pregar palavras de um religioso temor: “Fazei penitência porque está próximo o Reino dos Céus” (Mt 3, 2).

            Multidões de israelitas afluíam para ouvi-lo e receber o seu batismo, símbolo da purificação do coração necessária para merecer o Reino dos Céus. O batismo de João – que era de preparação, de penitência, não ainda o Sacramento – produzia um afervoramento espiritual como nunca se vira antes em Israel. “Pessoas de Jerusalém, de toda a Judeia e de toda a circunvizinhança do Jordão vinham a ele. Confessavam seus pecados e eram batizados por ele nas águas do Jordão” (Mt 3, 5-6).

            E o arauto do Altíssimo apresentava- se sempre como mero precursor, dizendo sem cessar: “Eu vos dou um batismo de água, para que façais penitência. Mas, Aquele que virá depois de mim é mais poderoso do que eu; eu não sou digno de desatar a correia de Suas sandálias; Ele vos batizará no fogo e no Espírito Santo” (Mt 3, 11).

            Seis meses havia que o santo Precursor preparava os filhos de Israel para o encontro com o Messias, quando foi Jesus ao Jordão “a fim de ser batizado por ele” (Mt 3, 13). Ao notar a presença do Inocente no meio da multidão, João inclinou-se e Lhe disse: “Eu devo ser batizado por Ti e Tu vens a mim!” (Mt 3, 14). Jesus respondeu-lhe: “Deixa por agora, pois convém que cumpramos toda a justiça”. E João, obediente, O batizou (cf. Mt 3, 13-15).1

            Quando Jesus saiu da água, o Céu se abriu e o Espírito Santo pairou sobre Ele na forma de uma pomba. “E ouviu-se dos Céus uma voz: Tu és o Meu Filho muito amado; em Ti ponho as Minhas complacências” (Mc 1, 11). Grandiosa manifestação divina com a qual o Pai, o Filho e o Espírito Santo, unidos na obra da Redenção proclamavam a instituição do Sacramento mais necessário para a nossa Salvação.2

 

            Os Sacramentos, o que são?

            De acordo com o Catecismo da Igreja Católica, “os Sacramentos são sinais eficazes da graça, instituídos por Cristo e confiados à Igreja, por meio dos quais nos é dispensada a vida divina. Os ritos visíveis, sob os quais eles são celebrados, significam e realizam as graças próprias de cada Sacramento. Produzem fruto naqueles que os recebem com as disposições exigidas”.3

            No mesmo sentido – embora de forma mais sintética – se expressa o conhecido teólogo padre Antonio Royo Marín, OP, que afirma serem os Sacramentos “sinais sensíveis instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo, para significar e produzir a graça santificante naquele que os recebe dignamente”.

            Acompanhemos o douto dominicano na explicação dos termos desta breve e precisa definição.

            Os Sacramentos são, em primeiro lugar, sinais. – Ou seja, remetem a algo diferente de si mesmos, como a balança simboliza a justiça, ou a bandeira representa a Pátria.

            São sinais sensíveis. – Podem, portanto, ser percebidos pelos sentidos corporais. E o que acontece, por exemplo, com a água no Batismo, o pão e o vinho na Eucaristia, ou o óleo na Crisma e na Unção dos Enfermos.

            Foram instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo. – De acordo com São Tomás, “institui algo quem lhe dá vigor e força”. 5 Assim sendo, somente Nosso Senhor pode ser causa dos Sacramentos, e não a Igreja, “pois a graça santificante brota, como de seu manancial único, do Coração transpassado de Cristo”.6 Segue-se também daí que, como ensina São Pio X, não cabe à Igreja, “inovar nada acerca da substância mesma dos Sacramentos”.7

            Para significar e produzir a graça santificante. – A água do Batismo, por exemplo, lava o corpo do batizado para representar a purificação de sua alma, que fica limpa de todo pecado. E a Eucaristia, nos é dada sob a forma de alimento corporal, para simbolizar o alimento espiritual que a alma recebe pela presença real de Cristo em corpo, sangue, alma e divindade.

            Naquele que os recebe dignamente. – Para que os Sacramentos produzam a graça santificante é necessário que quem os recebe não oponha a eles nenhum obstáculo ou empecilho voluntário. Daí que seja requerido possuir o estado de graça para receber a Confirmação, Eucaristia, Unção dos Enfermos, Ordem e Matrimônio. E estar arrependido, ao menos com atrição sobrenatural,8 para receber a absolvição no Sacramento da Penitência, ou o Batismo quando se trata de pessoa em idade de uso da razão.

            Cabe notar, por fim, que os Sacramentos têm um caráter universal; Jesus Cristo não os instituiu unicamente para alguns escolhidos, mas adotisim para proveito de todos os homens.

                       

            Vida natural e vida sobrenatural

            Levando mais longe a analogia entre o plano simbólico e o plano da graça, São Tomás de Aquino estabelece na Suma Teológica um interessante paralelo entre a vida natural e a vida sobrenatural produzida pelos Sacramentos.9

            Enquanto, na vida natural, o homem é gerado, cresce e se alimenta; na vida sobrenatural, a alma nasce pelo Batismo, atinge a estatura e a força perfeitas pela Confirmação e nutre-se pela Eucaristia. E “como o homem incorre às vezes em enfermidade corporal ou espiritual, sendo esta o pecado, é necessário que seja curado da doença”.10 É esta a função da Penitência (Reconciliação), que restabelece a saúde, e da Unção dos Enfermos, que limpa a alma dos vestígios e sequelas deixados em sua alma pelo pecado.

            A esses cinco Sacramentos unem-se o do Matrimônio e o da Ordem – sendo este último análogo ao poder que recebe um homem para “reger a multidão” e exercer funções públicas – completando assim o número de sete.

            “A partir daí – conclui o Doutor Angélico – fica clara a questão do número dos Sacramentos, também enquanto visa à rebelião do pecado, pois o Batismo se dirige contra a falta de vida espiritual; a Confirmação, contra a fraqueza de alma que se encontra nos recém-nascidos; a Eucaristia, contra a fragilidade da alma diante do pecado; a Penitência, contra o pecado atual cometido depois do Batismo; a Unção dos Enfermos, contra as sequelas do pecado não suficientemente tiradas pela Penitência, ou provenientes da negligência ou da ignorância; a Ordem, contra a desorganização da multidão; o Matrimônio, contra a concupiscência pessoal e contra o desaparecimento da humanidade que acontece pela morte”.11

            “Nada permanece, portanto, à margem da influência benfazeja dos Sacramentos”, observa o padre Antonio Royo Marín.”Por meio deles a vida humana toda é santificada e o homem encontra-se provido com divina abundância de tudo quanto necessita para assegurar sua salvação eterna”.12

 

            O único Sacramento indispensável para a salvação

            Na tradicional relação estabelecida por São Tomás, o Batismo, novo nascimento espiritual, é o primeiro dos sete Sacramentos.13 Mas ele o é também do ponto de vista da necessidade, pois é o único Sacramento indispensável para cada um de nós, individualmente, alcançarmos a Bemaventurança eterna.14

            Assim o afirma com toda precisão o próprio São Tomás: “É pois, claro, que todos são obrigados ao Batismo e que, sem ele, não pode haver salvação para os homens”.15 E mais bela e claramente ainda o próprio Nosso Senhor: “Se alguém não renasce na água e no Espírito Santo, não pode entrar no Reino dos Céus” (Jo 3, 5).16

            Ora, “convém à misericórdia de quem ‘quer que todos os homens se salvem’, que permita encontrar-se facilmente o remédio para a salvação”.17 Daí que a matéria do Batismo seja uma matéria comum, a água, que qualquer um pode obter. E daí também que o ministro do Batismo, em circunstâncias excepcionais, possa ser qualquer pessoa, mesmo um não ordenado, homem ou mulher, e até mesmo um herege ou um pagão.18 Para o Sacramento ser válido, a Igreja só exige que seja utilizada a matéria do Sacramento, observada a forma e aplicada a intenção de fazer o que Ela própria faz, abstraindo de qualquer heresia ou infidelidade.

 

            Batismo e Pecado Original

            Convêm, por fim, não esquecer que a necessidadeeste   Sacramento, conforme explica Besson, “é consequência dos efeitos do Pecado Original e das restituições prometidas pelo Homem-Deus”.19

            Cada um de nós pecou em Adão, e a morte entrou em nossa alma com o pecado; do mesmo modo, cada um de nós foi salvo no novo Adão, e para que a vida dEle entre na nossa alma é preciso que recebamos a graça do Batismo. “Sob as águas do Batismo, a mancha primitiva é apagada da fronte da humanidade; e com o título de filho batizado e regenerado, o homem decaído recupera seus direitos e sua herança celestial. Esta necessidade abrange todos os homens”.20

            Por isso, pouco tempo após seu nascimento, a criança é levada às fontes batismais por um padrinho que responde por sua Fé, e curva sob a água santa sua fronte ainda marcada com o pecado original.21 Consumado o rito, a criança ergue-se livre, inocente e imaculada, com o indelével sinete da ordem sobrenatural. Era escrava, e seus grilhões foram quebrados; estava morta, e foi ressuscitada.

 

            Dois principais efeitos

            Quais são os principais efeitos desse Sacramento?

            Em seu já mencionado livro Somos hijos de Dios, o padre Royo Marín enumera sete, com a precisão própria do teólogo. O Catecismo da Igreja Católica, sob uma focalização mais pastoral, afirma serem principalmente dois: a purificação dos pecados e o novo nascimento no Espírito Santo.22

            Pouco há a afirmar em relação ao primeiro deles, senão que a purificação é tão completa que “todos os pecados são perdoados: o pecado original e todos os pecados pessoais, bem como todas as penas do pecado”.23

            Mas além de assim limpar a alma, este Sacramento “faz do neófito uma criatura nova, um filho adovo de Deus que se tornou participante da natureza divina, membro de Cristo e co-herdeiro com Ele, templo do Espírito Santo”.24

            Com efeito, o Batismo nos torna membros do Corpo de Cristo e nos incorpora à Igreja. Através dele, a vida de Jesus Cristo circula em todo o Corpo, levando Sua graça capital a todos os membros e permitindo-lhes alcançar a graça e as virtudes: “Da cabeça que é Cristo deriva sobre Seus membros a plenitude da graça e da virtude, conforme o Evangelho de João: ‘De Sua plenitude todos nós recebemos’ (Jo 1, 16)”.25

            Assim, na ordem da satisfação, da redenção, do mérito, da oração, do sacerdócio: tudo se tornou comum entre Jesus Cristo e nós, porquanto a Igreja inteira, Corpo Místico de Jesus Cristo, pode ser considerada como uma só pessoa com Ele, conforme ensina São Tomás de Aquino.26

 

            A Paixão de Cristo é comunicada ao neófito

            As consequências desta doutrina têm um alcance maior do que se pensa, a ponto de São Paulo afirmar que pelo Batismo, o crente comunga na morte de Cristo, é sepultado e ressuscita com Ele.27 Sobre isto, comenta São Tomás: “Pelo Batismo somos incorporados na Paixão e Morte de Cristo. Diz Paulo: ‘Se estamos mortos com Cristo, cremos que também viveremos com Ele’.

            Demonstra-se assim que a todo batizado a Paixão de Cristo é comunicada para servir de remédio, como se ele próprio tivesse sofrido e morrido.

            Ora, a Paixão de Cristo é satisfação suficiente para todos os pecados de todos os homens. Por isso, quem é batizado, é liberto do reato de toda pena devida por seus pecados, como se ele próprio tivesse oferecido uma satisfação suficiente por todos os seus pecados”.28

 

Somos filhos de Deus

            Mas talvez o mais tocante e assombroso efeito do Batismo seja produzir a filiação divina.

            Deus tem apenas um filho segundo a Sua natureza, que é o Verbo Encarnado. Só a Ele o Pai transfere eternamente a natureza divina em toda a sua infinita plenitude. Porém, a graça santificante – que é um dos efeitos do Batismo – confere aos neófitos uma participação real e verdadeira nessa filiação “por uma adoção intrínseca, a qual põe em nossa alma, física e formalmente, uma realidade absolutamente divina, que faz circular o próprio sangue de Deus nas veias de nossa alma. Graças a este enxerto divino, a alma se faz participante da mesma vida de Deus. Trata-se de uma verdadeira geração espiritual, um nascimento sobrenatural que imita a geração natural e recorda, por analogia, a geração eterna do Verbo de Deus”.29

            Em uma palavra, a graça santificante, para a qual o Batismo nos abre as portas, não nos dá apenas o direito de nos chamarmos filhos de Deus, senão que nos faz tais em realidade. “Inefável maravilha – conclui o padre Royo Marín – que pareceria inacreditável se não constasse expressamente na divina Revelação”.30 Poderia Deus ter feito mais algo por nós?

 

Notas

1 Durante sua recente visita ao lugar onde fora batizado Jesus, o Papa Bento XVI explica o porquê deste gesto do Redentor: “Jesus se colocou na fila com os pecadores e aceitou o batismo de penitência de João como um sinal profético da sua própria Paixão, Morte e Ressurreição para o perdão dos pecados” (10/5/2009).

2 São Tomás afirma que este Sacramento foi instituído quando Cristo foi batizado, se bem que a necessidade de recebê-lo só tenha sido notificada à humanidade depois da sua Paixão e Ressurreição (cf. ST III, q. 66, a. 2).

3 CIC n. 1131-1132.

4 ROYO MARÍN, OP, Pe. Antonio. Somos hijos de Dios. Madrid: BAC, 1977, p. 93.

5 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 64, a. 2. Cf. Denzinger – Hünermann, n. 1864.

6 ROYO MARÍN, OP, Op. cit., p. 93-94. 7 Denzinger – Hünermann, n. 3556.

8 A atrição, ou contrição imperfeita, é o arrependimento suscitado pelo temor do castigo. Para melhor conhecer as diferenças entre atrição e contrição perfeita, pode-se consultar Arautos do Evangelho, n. 84, dezembro 2008, p. 34-35.

9 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 65, a. 1.

10 Idem, q. 65, a. 1, resp.

11 Idem, ibidem.

12 ROYO MARÍN, OP, Op. Cit., p. 94.

13 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 65, a. 2, resp.

14 Cf. Idem, q. 65, a. 3, ad. 3; a. 4, resp. A Penitência e a Ordem sacerdotal são também de necessidade absoluta, mas a primeira só é requerida para aqueles que pecaram depois do Batismo, e a segunda é imprescindível para a Igreja, não para os indivíduos (cf. ST III, q. 65, a. 4).

15 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, III q. 68, a. 1, resp.

16 Não trataremos neste artigo do batismo de sangue (dos mártires não batizados) nem do de desejo, pois embora produzam os mesmos efeitos do Batismo sacramental, não são eles sacramentos propriamente ditos (cf. ST III, q. 66, a. 11, ad. 2). O leitor interessado em conhecer o que São Tomás afirma sobre ambos, pode consultar o art. 12 da questão 66 (batismo de sangue) e o art. 2 da q. 68 (batismo de desejo). Sobre o problema da crianças não batizadas que não alcançaram o uso da razão, ver a Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé de 19 de abril de 2007.

17 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 67, a. 3.

18 Cf. Idem, q. 67, a. 3-5.

19 BESSON, Mgr. Louis François Nicolas. Les Sacrements. Paris: Reaux- Bray, 1886, p. 116.

20 Idem, ibidem.

21 Sobre a conveniência de não postergar o Batismo das crianças ver Suma Teológica, III, q. 68, a. 3 e 9.

22 Cf. CIC §1262. O Rvmo. Pe. Royo Marín, em sua obra Somos hijos de Dios, faz a relação sistemática dos efeitos do Batismo que reproduzimos no Box anexo.

23 CIC n. 1263.

24 CIC n. 1265.

25 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, III, q. 69, a. 4. Afirma também São Tomás: “Pelo Batismo renascemos para a vida espiritual, própria dos que crêem em Cristo. […] Ora, a vida e a união dos membros com a cabeça da qual recebem o sentido e o movimento” (Suma Teológica, III, q. 69, a. 5).

26 Cf. Idem: “Deve-se dizer que cabeça e membros são como uma única pessoa mística. Portanto, a satisfação de Cristo pertence a todos os fiéis como membros Seus” (ST III, q. 48, a.2 ad 1). “Toda a Igreja, que é o Corpo Místico de Cristo, é considerada como uma só pessoa com sua cabeça, que é Cristo” (ST III, q. 49, a. 1 Resp).

27 Cf. CIC n. 1227.

28 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, III, q. 69, a. 4, Resp.

29 ROYO MARIN, OP, Op. cit., p. 20-21.

30 Idem, p. 21.

(Revista Arautos do Evangelho, Jul/2009, n. 91, p. 22 à 27)

O encontro de São João Batista com Jesus

batistaMons. João Clá Dias, EP

I – UM DOS MAIS BELOS ENCONTROS DA HISTÓRIA

            “O semelhante se alegra com seu semelhante”, diz um antigo provérbio latino, e de fato é esse um princípio intrínseco a todos os seres com vida, na medida em que sejam passíveis de felicidade. Deus assim nos criou e fez uns dependerem dos outros, aperfeiçoando- nos com o mais entranhado dos instintos, o de sociabilidade. Se para um pássaro constitui motivo de gáudio o encontrar-se com outro da mesma espécie, para nós, esse fenômeno é mais intenso. Ora, se grande é o júbilo de duas crianças afins ao se encontrarem pela primeira vez no colégio, qual não terá sido a reação dos dois maiores homens de todos os tempos, ao se contemplarem face a face?
            Assim se realizou um dos mais belos encontros da História, João Batista diante de Jesus; para melhor compreendê- lo, analisemos as analogias entre um e outro.

Traços de semelhança entre Jesus e João

 
 
 

            Apesar de serem duas pessoas infinitamente distantes entre si pela natureza – João é mero homem, Jesus é a Segunda Pessoa da Trindade Santíssima – numerosos traços de semelhança os unem.

            Jesus é o alfa e o ômega da História. João é o começo do Evangelho e o fim da antiga Lei (1). Assim o afirma o próprio Nosso Senhor: “Com efeito, todos os profetas e a Lei profetizaram até João” (Mt 11, 13-14).

            Segundo Tertuliano, João Batista é uma “figura única na História, adornada em vida de um prestígio sobre-humano, que se levanta misteriosa e solene nos confins de ambos os Testamentos” (2). Dele afirma Jesus: “Na verdade vos digo que entre os nascidos de mulher, não veio ao mundo outro maior que João Batista” (Mt 11, 11).
Além do mais, a concepção de ambos, de Jesus e de João, é precedida pelo anúncio do mesmo embaixador São Gabriel Arcanjo (Lc 1, 11-19 e 26- 34). As mensagens não diferem muito, em seus termos, uma da outra. Os nomes de Jesus e de João foram designados por Deus (Lc 1,13 e 31).

            No próprio ato de anunciar o nascimento, o Mensageiro celeste profetiza também o futuro tanto do Precursor (Lc 1,13-17) quanto do Messias (Lc 1,31-33).

O perfil do Precursor

            Sobre Jesus, se fôssemos analisar as grandezas de suas qualidades e de suas obras, “nem todo o mundo poderia conter os livros que seria preciso escrever” (Jo 21, 25).
            No Batista, tudo é sui generis, a começar pela profecia de sua vinda, proferida por Isaías e Malaquias: “Uma voz exclama: Abri no deserto um caminho para o Senhor, traçai na estepe uma pista para nosso Deus” (Is 40, 3); “Vou mandar meu mensageiro para preparar o meu caminho” (Mal 3, 1).

            Mais impressionante ainda é a sua santificação no seio materno operada pela Santíssima Virgem: “Porque, logo que a voz de tua saudação chegou aos meus ouvidos, o menino saltou de alegria no meu ventre” (Lc 1, 44).

            A grandeza de sua missão é profetizada pelo próprio pai: “E tu, menino, serás chamado o profeta do Altíssimo, porque irás à frente do Senhor, a preparar os seus caminhos; para dar ao seu povo o conhecimento da salvação” (Lc 1, 76-77).
A rudeza da forma de vida escolhida pelo Batista lhe confere uma aura de austeridade ímpar: “Ora o menino crescia e se fortificava no espírito. E habitou nos desertos até o dia da sua manifestação a Israel” (Lc 1, 80). “Andava João vestido de pêlo de camelo, (…) e alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre” (Mc 1, 6).

            Ao iniciar suas pregações, foi acolhido pela opinião pública da época com enorme prestígio, pois, já ao seu nascimento, “o temor se apoderou de todos os seus vizinhos, e divulgaram-se todas essas maravilhas por todas as montanhas da Judéia. Todos os que as ouviram as ponderavam no seu coração dizendo: ‘Que virá a ser este menino?’ Porque a mão do Senhor estava com ele” (Lc 1, 65-66). Logo de início, João atraiu multidões: “E iam ter com ele toda a região da Judéia e todos os habitantes de Jerusalém” (Mc 1, 5), “porque todos tinham a João como verdadeiro profeta” (Mc 11, 32).
            Os soldados, os publicanos e as multidões lhe perguntavam “Mestre, que devemos fazer?” (Lc 3, 10-14). O próprio Herodes, querendo matá-lo “teve medo do povo, porque este o considerava como um profeta” (Mt 14, 5). Essa grande fama se estendeu até após sua morte:
“porque todos tinham João como um profeta” (Mt 21, 26).
As repercussões sobre sua figura, palavras e obras ecoaram entre os vales e os montes da Terra Prometida, a ponto de o povo chegar a pensar “que talvez João fosse o Cristo” (Lc 3, 15).

Pois bem, fixemos em nossa lembrança essa gloriosa projeção alcançada em vida por São João Batista e abramos um parênteses para considerar a principal de suas virtudes: a da restituição, a qual consiste essencialmente em atribuir a Deus os dons d’Ele recebidos.

II – INVEJA E AMBIÇÃO, VÍCIOS UNIVERSAIS

            A ambição é uma paixão tão universal quanto o é a vida humana. Quase se poderia dizer que ela se instala na alma antes mesmo do uso da razão, sendo facilmente discernível no modo de a criança agarrar seu brinquedo ou na ânsia de ser protegida. Ao tomar consciência de si e das coisas, os impulsos primeiros de seu ser convidá-la-ão a chamar a atenção sobre sua pessoa e, se ela cede, ter-se-á iniciado o processo da ambição. O desejo de ser conhecida e estimada é a primeira paixão que macula a inocência batismal. Quantos de nós não nos lançamos nos abismos da ambição, da inveja e da cobiça já nos primeiros anos de nossa infância? Essas provavelmente foram as raízes dos ressentimentos que tenhamos tido a propósito da glória dos outros. Sim, pelo fato de desejarmos a estima de todos, por nos crermos no direito à glória e ao louvor dos nossos circunstantes, constitui para nós uma ofensa o sucesso dos outros. Por isso São Tomás define a inveja como sendo “a tristeza do bem alheio enquanto se considera como mal próprio, porque diminui a própria glória ou excelência” (3).
Há paixões que se mantêm letárgicas até a adolescência, assim não o é a inveja; ela se manifesta já na infância e acompanha o homem até a hora de sua morte. Não será difícil aos pais observar os sinais desse vício, em seus pequenos. Irmãos ou irmãs, entre si, não poucas vezes terão problemas por se imaginarem eclipsados pelas qualidades ou privilégios de seus mais próximos. Quantas vezes não acontece de ser necessário separar-se irmãos, ou irmãs, na tentativa de corrigir essas rivalidades que podem chegar a extremos inimagináveis, tal qual se deu entre os primeiros filhos de Eva, Caim e Abel?

            A ambição e a inveja são mais universais do que parece à primeira vista; poucos se vêem livres de suas garras. Elas se levantam e tomam corpo em relação aos que nos são mais próximos, como afirma São Tomás: “A inveja é do bem alheio enquanto diminui o nosso. Portanto, somente se suscita a respeito daqueles que se quer igualar ou superar. Isto não sucede em pessoas que diferem muito de nós em tempo, espaço e lugar, senão nas que nos estão próximas” (4).

            Assim, ao sábio será mais difícil invejar o general, e vice- versa, ou, uma médica a uma costureira; mas dentro da mesma profissão, quanto mais relacionadas forem as pessoas entre si, mais intensa se manifestará essa paixão.

            Em conseqüência, poder-se-ia dizer que jamais se excitaria esse mau pendor nas almas dos contemporâneos de Jesus face a suas qualidades, pois a diferença entre Ele e qualquer pessoa deste mundo é simplesmente infinita. De fato, esse seria o normal relacionamento dos outros com o Redentor, se seu nascimento e vida fossem refulgentes de poder e de glória. Mas Ele veio ao mundo numa gruta em Belém, foi envolto em panos e depositado na manjedoura sobre palha, viveu em Nazaré exercendo a profissão de carpinteiro para auxiliar seu pai. Assim, só mesmo um forte olhar de fé poderia discernir nesse Menino uma Pessoa de Deus. E essas aparências contrárias à sua divindade chegaram a ser tão extremas que Jesus conferiu o título de bem-aventurado a quem não se envergonhasse de segui-lO (Mt 11, 6). Se Ele tivesse manifestado todo o fulgor da infinita distância existente entre a natureza divina de sua Pessoa e a nossa humana, não haveria quase mérito na restituição dos bens que d’Ele recebemos.
            É justamente em função das primeiras palavras pronunciadas por Maria em seu cântico de ação de graças, ouvidas com alegria por João Batista no seio materno, que toma brilho a mais alta virtude do Precursor: “A minha alma glorifica o Senhor; e o meu espírito exulta de alegria em Deus meu Salvador porque olhou para a humildade de sua serva” (Lc 1, 46-48). Essa foi a formação recebida pelo menino-profeta ao longo dos meses durante os quais Maria viveu em casa de Isabel: humildade e servidão. Como teria sido de um valor inestimável se os pontífices e fariseus do Sinédrio houvessem sido educados na mesma escola de João! Certamente não se teriam reunido depois da ressurreição de Lázaro, para decretar a morte de Jesus (Jo 11, 47-53).

III – SÃO JOÃO BATISTA E A VIRTUDE DA RESTITUIÇÃO

            Aproximemo-nos de João nas margens do rio Jordão e analisemos seu prestígio de pregador. Profeta como igual nunca houve em Israel, fundador e chefe de uma escola, todo o povo o procura. Entretanto, seu renome está condenado a uma lenta morte, sua instituição deverá dissolver-se paulatinamente, sobre a glória de sua obra far-se-á um grande eclipse, pois um valor mais alto se aproxima. Esse era o momento do ressentimento, da ambição ferida e talvez até da inveja. Muito pelo contrário, a reação de João foi de heróica humildade e ilimitada servidão, como encontramos narrado no Evangelho de hoje.

29 No dia seguinte João viu Jesus, que vinha ter com ele …           

Assim como Maria foi à sua prima Santa Isabel, é Jesus quem se dirige a João, e agora pela segunda vez. O discípulo amado não nos relata o Batismo de Jesus como o faz Mateus (3, 13-17) e, segundo São João Crisóstomo, Jesus volta a encontrar-se com o Batista para desfazer o equívoco de que, na primeira vez, Ele tivesse ido procurá-lo tal qual o faziam todos, ou seja, para confessar seus pecados ou para obter a purificação dos mesmos pelas águas do Jordão.

  … e disse: “Eis o Cordeiro de Deus, eis O que tira o pecado mundo”.

            Assim como hoje nossa fé se robustece em méritos ao contemplar uma Hóstia consagrada e crer na Presença Real de Jesus Eucarístico, também naqueles dias era indispensável, para benefício de todos, o Redentor apresentar- Se sob osvéus de nossa natureza. Jesus, desde o nascimento até essa ocasião, era um homem comum e corrente em todas as suas aparências. Tornava- se necessário ir descerrando pouco a pouco esses véus, a fim de introduzir o povo na verdadeira perspectiva debaixo da qual fosse possível prestar- Lhe um culto de latria. Excelente meio escolheu o Salvador: suscitou um varão que havia comovido toda Israel por sua figura constituída de mistério, profetismo e santidade, saído de dentro de uma vida feita de ascese e penitência, o Precursor.
            Era chegado o momento de os judeus ouvirem, de lábios dignos da máxima credibilidade, a proclamação da grandeza do Messias ali presente. A preparação dos corações estava concluída, o caminho do Senhor já se encontrava endireitado, a voz ecoara pelo deserto, o Filho de Deus precisava ser conhecido e, para tal, era indispensável muita clareza na comunicação: “Eis o Cordeiro de Deus”.
            O conhecimento de Deus é bem diferente do nosso. Vivemos no tempo, e a cronologia é fundamental em nosso processo intelectivo. Para Deus tudo é presente e, ao criar, fez Ele depender uns seres de outros. No pináculo da criação, colocou Cristo como Causa, Modelo, Regente e Guia, e, tendo em vista o pecado e o Redentor, criou o cordeiro para simbolizar este grandioso aspecto de seu Unigênito Encarnado, o de vítima expiatória, numa clara referência ao “cordeiro pascal” (Ex 12, 3-6), ou quiçá, ao duplo sacrifício diário oferecido no Templo (Ex 29, 38), ou como comenta Orígenes: “Porque Ele, tomando sobre si nossas aflições e tirando os pecados de todo mundo, recebeu a morte como batismo” (5).

            O cordeiro é um animal pacífico e pacificador. Solto no pasto ou posto na baia, ele tranqüiliza os corcéis fogosos, evitando-lhes ferimentos inúteis.
            A afirmação de João é feita no presente do indicativo -“Aquele que tira” – para indicar a perpetuidade do ato redentor.


30 Este é Aquele de quem eu disse: Depois de mim vem um homem que é superior a mim, porque era antes de mim, …


            É patente tratar-se aqui de um Homem de corpo e alma. Embora tenha nascido depois do Batista, este último confessa publicamente não só que Jesus lhe é superior, mas também que já existia antes dele. E é real, pois, enquanto Verbo de Deus, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Ele é eterno. Assim, neste versículo, o Precursor proclama a Humanidade unida à Divindade, numa só Pessoa. É a revelação do mistério da Encarnação.


31 … e eu não O conhecia, mas vim batizar em água, para Ele ser reconhecido em Israel.

            João quis evitar o equívoco da parte do povo, o qual poderia julgar serem suas afirmações sobre Jesus feitas com base no parentesco existente entre ambos. E realmente, o Batista se retirara ao deserto ainda menino e não estivera com Ele antes. Portanto, suas declarações eram fruto de um discernimento essencialmente profético, como também é profética sua missão, pois torna claro o objetivo de seu batismo: o reconhecimento do Messias, da parte do povo.


32 João deu este testemunho: “Vi o Espírito descer do Céu em forma de pomba e repousou sobre ele”.


            O mistério da Santíssima Trindade não havia sido revelado até então; entretanto, de dentro da Teologia como é hoje conhecida, torna-se patente a presença das Três Pessoas nessa proclamação de João Batista.

            A pomba é inocente por sua natureza e, ao contrário das aves de rapina, não se alimenta de carnes mortas, mas sim de sementes da terra. Gemem quando estão enamoradas. Eis um belo símbolo do Espírito Santo, a Inocência que nos instrui, ilumina e santifica com gemidos inefáveis dentro de nós.


33 Eu não O conhecia, mas O que me mandou batizar em água, disseme: Aquele sobre quem vires descer e repousar o Espírito, esse é O que batiza no Espírito Santo.

            Reafirma São João Batista não ter antes conhecido Jesus. Compreende-se sua insistência a esse respeito, pois os laços familiares eram vigorosos naqueles tempos e havia o risco de interpretarem as palavras do Precursor sob um prisma meramente humano.
            Era indispensável fixar a atenção de todos na origem divina de suas proclamações, daí a referência Àquele que o havia mandado batizar.


34 Eu O vi, e dei testemunho de que Ele é o Filho de Deus.


            Sim, Jesus é o Unigênito do Pai. Enquanto os outros todos – inclusive a Santíssima Virgem – somos filhos adotivos, Jesus é gerado e não criado, desde toda a eternidade. João já havia declarado ser o Messias o Cordeiro de Deus, que batizaria no Espírito Santo. Porém, esta é a primeira vez que declara tratar-se especificamente do Filho de Deus.


IV – CONCLUSÃO: CASTIGO DA AMBIÇÃO E DA INVEJA

            O castigo de Deus à ambição e à inveja se faz presente não só na eternidade, mas também nesta vida. Quem se deixa arrastar por esses vícios, perde a noção do verdadeiro repouso e passa a viver constantemente na preocupação, na inquietude e na ansiedade. Sempre estará atormentado pelo pavor de ficar à margem, de ser esquecido, igualado ou superado. Sua existência será um inferno antecipado e essas paixões se constituirão em seus próprios carrascos.

            Pelo contrário, quanta felicidade, paz e doçura têm as almas que são despretensiosas, reconhecedoras dos bens e das qualidades alheias, restituidoras a Deus dos dons por Ele concedidos.

            Entremos na escola de Maria, e d’Ela aprendamos a restituir a Deus nosso ser, nossa família e todos os nossos haveres. Ela nos ensinará a glorificar ao Senhor por ter contemplado o nosso nada e, como resultado, nosso espírito exultará de alegria (Lc 1, 47), a exemplo de seu primeiro discípulo, São João Batista.

1 ) Suma Teológica III, q. 38, a. 1 ad. 2.

2 ) Cf. Adversus Marcionem, IV, 33: PL 2, 471.
3 ) Suma Teológica II-II, q. 36, a. 1.

4 ) Suma Teológica II-II, q. 36, a.1, ad. 2.

5 ) Apud Catena Áurea, in Jo I, 29.

(Revista Arautos do Evangelho, Jan/2005, n. 37, p. 6 à 11)

 Ver também: http://presbiteros.blog.arautos.org/2010/01/07/pregacao-de-joao-e-batismo-de-jesus/