Missão de Arautos do Evangelho no Direito Canônico

Pe. Antônio Guerra, EP

Em relação ao CIC17 e ao modo de pensar anterior, encontramos uma novidade fundamental relativa às missões no atual CIC 83. Até o início do século XX consideravam-se na Igreja dois tipos de territórios. De um lado se encontravam os “territórios da cristandade” onde a Igreja estava estabelecida com dioceses e todos os seus organismos de governo. De outro lado haviam as chamadas “terras de missão”, onde a maioria da população não era católica. Nos “territórios da cristandade”, a maioria da população era constituída por católicos ― mais ou menos praticantes ― e isto fazia com que o surgimento de vocações ao sacerdócio e à vida consagrada fossem suficientes para atender aos fiéis desses territórios e, inclusive, proporcionava a possibilidade de que alguns saíssem a outros povos para levar a “Boa Nova do Evangelho.

Nas “terras de missão” não existia propriamente uma hierarquia estabelecida de modo completo, ou então esta era constituída por clérigos vindos de outros países. O pequeno número de vocações locais fazia necessário que se recebessem missionários para pregarem o Reino de Cristo.

Esses missionários ad gentes eram o que Pio XII denominou “arautos do Evangelho” em sua Encíclica de 1951[1]. Nela pedia “aos veneráveis irmãos patriarcas, primazes, arcebispos, bispos e outros ordinários locais em paz e comunhão com a Sé Apostólica […] para que a ação dos missionários se torne cada vez mais eficaz e para que não se perca em vão nem uma só gota do seu suor e do seu sangue[2]. E justificava a necessidade de um novo impulso missionário

É sumamente oportuno nestes tempos procelosos e ameaçadores, em que muitos povos se sentem divididos por interesses opostos, recomendar de novo a causa das missões, pois os arautos do evangelho são mensageiros da bondade humana e cristã, e a todos exortam à fraternidade e compreensão mútua, capaz de superar os conflitos dos povos e as fronteiras das nações[3].

O Papa Pacelli via na pregação e na aceitação do Evangelho a superação de muitos conflitos entre povos, e a instauração de um período de “bondade humana e cristã[4] contraposto aos “tempos procelosos e ameaçadores[5] em que vivia.

O Concílio julgou um dever chamar novamente a atenção dos católicos para a missão. Agora não somente ad gentes, mas também ad intra. Lembrou que, por meio do batismo, todos somos missionários por vocação divina.

Não apenas aqueles que, por especial chamado, podem ser denominados “Arautos do Evangelho”, pois deixam os “territórios da cristandade” para irem às “terras de missão”. Toda a Igreja é missionária. Nesse sentido, a missão ad gentes faz parte de sua constituição divina. Assim o comenta García Martín[6]

O Concílio Ecumênico Vaticano II afirmou claramente e proclamou solenemente que a Igreja por sua natureza é missionária[7]. O código de direito canônico recebeu esta doutrina determinando que o povo de Deus seja a Igreja à qual Deus confiou uma missão para ser cumprida no mundo […] [8]. A legislação eclesiástica no curso dos séculos foi reformada para responder fielmente à sua missão. Portanto, a novidade da legislação atual se refere, seja à natureza da Igreja como povo de Deus, seja à sua missão[9].

O CIC também explicita essa mesma doutrina de modo claro

c. 781 − Sendo que a Igreja toda é missionária por sua natureza e que a obra de evangelização é dever fundamental do povo de Deus, todos os fiéis conscientes da própria responsabilidade, assumam cada um a sua parte na obra missionária[10].

Toda a Igreja é missionária por natureza. Ora, esta missão foi dada por Deus quando a fundou, no momento em que o Sangue preciosíssimo de Cristo mesclado com a linfa saiu do seu costado aberto pela lança. E este primeiro ato foi eminentemente missionário; a linfa, caindo nos olhos do centurião cego deu-lhe a vista do corpo e da alma.

[1] Pio XII, Carta Encíclica Evangelii Praecones sobre o fomento das Missões, 2/6/1951, 19. AAS 43 (1951), 497-528.

[2] Evangelii Praecones, 19. AAS 43 (1951), 497-528.

[3] Ibidem, 2. 19.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] Martin, Garcia. L’Azione missionaria nel Codex Iuris canonici, Ediurcla, Roma, 2005, 2º ed., p. 47.

[7] Nota do texto original: Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Dogm. Lumen gentium, 17; decr. Ad Gentes, 2, 35. La suddetta espressione tottavia non è molto frequente, cfr. Ochoa, X., Index verborum cum documentis concilii Vaticani II, Romae 1966.

[8] Nota do texto original: Can 204, § 1. Il can. 781 riprende gli stessi principi.

[9] “Il concilio ecumenico Vaticano II ha affermato chiaramente e proclamato solennemente che la Chiesa per sua natura è missionaria. Il Codice di canonico ha recepito questa dottrina determinando che il popolo di Dio è la Chiesa cui Dio ha affidato una missione da compiere nel mondo… La legislazione ecclesiastica nel corso dei secoli è stata riformata per rispondere fedelmente alla sua missione. Pertanto la novità della legislazione attuale riguarda sia ecclesiastica nel corso dei secoli è stata riformata per rispondere fedelmente alla sua missione. Pertanto la novità della legislazione attuale riguarda sia la natura della Chiesa come popoli di Dio sia la sua missione” (Tradução minha).

[10] c. 781  Cum tota Ecclesia natura sua sit missionaria et opus evangelizationis ha­bendum sit fundamentale officium populi Dei, christifideles omnes, propriae res­ponsabilitatis conscii, partem suam in opere missionali assumant.

A ciência não deve excluir a caridade

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Ao longo de séculos, a Igreja teve um papel importantíssimo na construção da sociedade Ocidental. Criou as Universidades, e os Hospitais, desenvolveu a farmacêutica baseada nos produtos naturais (que tanta procura voltaram a ter nos nossos dias), foi uma verdadeira mecenas em termos de arte e cultura, conservou preciosas obras de arte e bibliotecas, desenvolveu o Direito Romano e a ideia de mercado, e a própria ciência e astronomia moderna lhe deve muito do que sabe e tem hoje. Bastaria lembrar a importância que tiveram sacerdotes como: Francisco de Vitória, pai do direito internacional, Nicholas Steno, pai da geologia, Athanasius Kircher, pai da egiptologia, Roger Boscovich, pai da moderna teoria atómica, ou mesmo os estudos da sismologia elaborados pelos filhos de Santo Inácio que fizeram com que muitos hoje lhe apelidassem de “Ciência Jesuítica” ou as cerca de 35 crateras lunares que levam o nome de matemáticos e astrónomos da mesma Companhia de Jesus, entres tantos outros que não caberia aqui enumerar[1].

Muitos foram também os leigos de convicções profundamente religiosas que estavam persuadidos que as suas investigações trariam contributos para desvendar o cosmos, mediante a perspectiva e o assombro do mistério de Deus e da sua criação, além da consciência de estarem verdadeiramente a promover o bem comum. Salientam-se nomes como: Louis Pasteur (1822-1895), Alessandro Volta (1745-1827) e André-Marie Ampère (1775-1836), entre outros[2].

John Bagnell Bury, historiador, lembra o histórico diálogo entre Roger Bacon e o Papa Clemente IV, e o interesse deste Pontífice pelas ciências, o que permitiu uma reforma intelectual na época, ampliando e reformando os estudos nas Universidades, beneficiando inclusive os estudos teológicos e das Escrituras[3].

Entretanto, de modo até um pouco dramático, muitos convencionaram que a ciência se havia de separar totalmente da religião, afastando-se dos seus benéficos contributos. Quiseram pisar em solo que estava palmilhado por filósofos e teólogos há décadas ou mesmo séculos, colocando em causa soluções já propostas, entrando em campos que não lhes pertenciam, preferindo escalar por seus próprios meios quando as cordas que lhe permitiam ascender ao alto, mais depressa e seguramente, estavam ali, ao lado dos investigadores. Assim, o investigador moderno “escalou as montanhas da ignorância e está para chegar ao cume; quando consegue alcançar a última pedra, é recebido por um grupo de teólogos que há séculos estão ali sentados”[4].

 A procura pelo saber, não deve excluir a caridade e, por isso, o importantíssimo papel da religião e o seu contributo para que a caridade seja muito mais do que mera filantropia e se aplique a todos os domínios, devendo envolver toda a existência humana e preenchê-la, pois a caridade é sobremaneiramente o amor, e Deus é amor (Ver 1Jo 4, 8-4 e 16). Esta deve fecundar todas as nossas acções, conforme São Paulo: “Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver amor, nada sou […] de nada me aproveita (1Cor 1-3).

 Deste modo, entendemos melhor a aplicação que Bento XVI na Caritas in Veritate relacionando a caridade ou o amor – fruto do Espírito Santo – com a Sabedoria – dom do mesmo Espírito – que longe de se excluírem, atraem-se, têm a mesma proveniência, e para ela retornam, não sem antes terem produzido um bem superior: “A caridade não exclui o saber, antes reclama-o, promove-o e anima-o a partir de dentro. O saber nunca é obra apenas da inteligência; pode, sem dúvida, ser reduzido a cálculo e a experiência, mas se quer ser sapiência capaz de orientar o homem à luz dos princípios primeiros e dos seus fins últimos, deve ser ‘temperado’ com o ‘sal’ da caridade. A acção é cega sem o saber, e este é estéril sem o amor” (n. 30).

A técnica e a ciência, assim como o saber humano e seu salutar crescimento, dependem em grande medida desta referência. Seria como uma possante ave que deseja levantar voo e dificilmente alcançará os píncaros mais elevados se as duas asas, diametralmente opostas, não funcionarem juntas, coordenadamente. A caridade e a ciência, assim como todos os seus domínios e desdobramentos, devem voar juntas.


[1] Acerca deste assunto ver WOODS JR, Thomas. O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica. Lisboa: Atheleia, 2009. s.p.

[2] Para outros nomes e informação detalhada acerca de cada uma destas personagens ver um esboço da tese de mestrado na Gregoriana do Pe. Eduardo Caballero em: Revista Arautos do Evangelho. Sao Paulo. No. 95 (Nov., 2009); p. 37-39.

[3] “[Bacon chief work, the Opus Majus,] was addressed and sent to Pope Clement IV., who had asked Bacon to give him an account of his researches, and was designed to persuade the Pontiff of the utility of science from an ecclesiastical point of view, and to induce him to sanction an intellectual reform, which without the approbation of the Church would at that time have been impossible” (BURY, The idea of progress. Fairford: Echo Library, 2010, p. 20).

[4] JASTROW, R. God and the Astronomers. New York, 1978. p. 116.

A frequência à comunhão eucarística na História da Igreja

Pe. Alex Barbosa de Brito, EP

O costume da comunhão era tão frequente nos primeiros séculos que Jungmann atesta: até o séc. IV, além da comunhão em cada missa assistida, em geral aos Domingos, podia-se, depois de receber a hóstia consagrada, levar uma porção para casa, onde as pessoas guardavam cuidadosamente e, dia após dia, consumiam antes de qualquer outro alimento. Contudo, “de modo geral, porém, o recebimento de sacramento é reservado à missa que se tornou, normalmente, mais frequente desde que a Igreja tinha conquistado a paz”. (Cf. 2009, p. 802-803).

Considerando que o aspecto “banquete” é o que se percebe em primeiro lugar na celebração, não é de admirar que a Patrística, nos primeiros séculos, apresente a Eucaristia dando ênfase à “comida e bebida espiritual de vida eterna” (Didaqué 10); ao “pão e remédio de imortalidade, antídoto que afasta a morte e dá a vida em Cristo” (Inácio, Efes. 20); ao “alimento que nutre com o corpo e o sangue do Senhor” (Irineu, Adv. Haeres, 4,18,5); “a fim de que por eles também a alma seja alimentada” (Tertuliano, De Resurr. 8:PL 2,806); como “alimento que nutre as almas… como bebida que inebria o coração”. (Orígenes, in Matth. Comment., séries 85: PG 13,1734).

Por isso mesmo, os Padres da Igreja[2] apontam nos Evangelhos os primeiros indícios da comunhão frequente. Por exemplo, Santo Agostinho[3], falando do capítulo VI de São João, recorda no sermão 28, incluído no livro De Verbi Domini: Iste panis quotidianus est: accipe quotidie quod quotidie tibi prosit. (“Este pão é diário: toma cada dia o que cada dia te aperfeiçoa”, tradução nossa.)

Praticamente o mesmo conselho é dado por Santo Ambrósio (340-397), mestre de S. Agostinho (354-430), quando afirma: “Si quotidianus est panis, cur post annum illum sumis, (quemadmodum Graeci in Oriente facere consuerunt)?. Accipe quotidie, quod quotidie tibi prosit.”[4]

Tertuliano (De idolatria, c. VII) fala “das mãos que tocam diariamente o corpo do Senhor[5]”. São Cipriano (De oratione Dominica, XVIII) exorta com particular insistência à comunhão diária, e o Bispo de Hipona (Epist. LIV, n. 2) recomenda que, além do Domingo, seja recebida em certos dias.

Nesses tempos felizes, é incompreensível assistir à missa sem a comunhão, porque a comunhão é “essencialmente e no sentido mais profundo, o rito de participação do convívio sacrifical” (VAGAGGINI, 2009, p. 258). E àqueles que não estivessem presentes, por justa razão, era-lhes enviada a Eucaristia, recorda São Justino (Apologia I, n. 65).

Contudo, comenta Jungmann (2009, p. 803): “a alta frequência do recebimento da eucaristia diminui com surpreendente rapidez, pelo menos em alguns países”. Tal ruptura deste convívio diário, parece ter se iniciado ainda nos tempos de Santo Ambrósio[6], uma vez que, sem meias palavras, dizia: “Se o pão é cotidiano, por que esperais um ano para recebê-lo, como fazem os gregos?”[7]. (De Sacramentis, V, 25)

São João Crisóstomo comprova a ruptura com os tempos apostólicos, ao se queixar de que “em Constantinopla muitos só comungarem uma vez por ano” (in Hebraeos 17,4); e não sem certa melancolia finaliza: “em vão se celebra o sacrifício todos os dias; em vão estamos todos os dias no altar, ninguém vem comungar”. (In Ephesios, h. 3,4).

Já no século V, Santo Agostinho fazia o seguinte reparo: “Em alguns lugares não se transcorre um dia sem que se ofereça o sacrifício, enquanto em outros ele é oferecido somente aos sábados e domingos, e em outros só aos domingos”. (Epistola ad Ianuarium 54, II, 2).

A normativa se pressentia necessária. Na Gália, por exemplo, o Sínodo de Agde (506), prescreveu o mínimo de três comunhões anuais: no Natal, na Páscoa e em Pentecostes;[8] decretou também a comunhão dominical, sobretudo nos Domingos da Quaresma, mas com resultados tênues e passageiros. (Cf. JUNGMANN, 2009, p. 803).

Três terão sido, talvez, as principais causas da diminuição da frequência à comunhão eucarística dos fiéis: O arianismo, o purismo ritual ou legal e a pureza de consciência mal entendida. Esta última razão fortemente influenciada pelo arianismo e muito semelhante ao que se veria muitos e muitos anos mais tarde no movimento jansenista (séc. XVIII).

As invasões bárbaras (entre 300 a 800) trouxeram em seu bojo o arianismo. Após a queda do Império Romano, quando os missionários católicos entraram em contato com eles, muitos já eram arianos, sobretudo os povos oriundos do Norte da Europa que sofreram a pseudoevangelização de Wulfila, monge-bispo ariano do clero de Bizâncio. Onde a influência da heresia foi menos perniciosa, “a comunhão frequente e vinculada naturalmente com a celebração do sacrifício permanecia em vigor por mais tempo.”[9] (JUNGMANN, 2009, p. 804).

Quanto à pureza ritual, encontramos no Antigo Testamento uma série de regras que lhe diziam respeito (Cf. Lv 15,1-30; 12,1-8). Anacronismos à parte, esta concepção de modo misterioso reapareceu entre os cristãos dos séculos IV e V, colaborando fortemente para o afastamento da Comunhão Eucarística. Proibições da ordem da pureza ritual são encontradas nas fontes desde o século III. (Cf. JUNGMANN, 2009, p. 805). São Jerônimo sugere abstinência aos casados nos dias de receber a Eucaristia (Epistola 49,15; Contra Jovinianum 1,20) e o Doutor de Hipona, Santo Agostinho, recomenda que se deve receber a Eucaristia nos dias em que se vive maior pureza e continência (Epistola LIV, II).

No que diz respeito à pureza de consciência, em I Cor 11,28 o Apóstolo prescreve que o homem se examine antes de comungar, probet se ipsum homo. Na baixa Idade Média, não faltou quem entendesse esta norma como se todos estivessem obrigados à confissão sacramental antes de cada Comunhão. Ora, tornava-se muito difícil atender em confissão toda a comunidade de fiéis, antes de cada Missa, tanto mais que não era permitido aos católicos receberem os sacramentos fora do território paroquial. Outro fator digno de nota foi o pio costume das chamadas missas privadas, que desde o século VII se generalizou. Até então, costumava-se celebrar a Eucaristia de modo solene, com a presença do clero e do povo. Com a multiplicação das missas, bastaria a representação de um fiel que ajudasse à Missa. Multiplicaram-se as missas, multiplicou-se número dos altares, menos o número de comunhões, a maioria dos fiéis comungava apenas na Pascoa, “por mais que se recomendasse o costume antigo de comungar todos os Domingos”. (GARCIA-VILLOSLADA, MMIII, p. 227; Tradução e grifo do autor).

A situação ficou tão calamitosa que no século XI, o IV Concílio Lateranense (1215), em seu famoso capítulo 21 Omnis utriusque sexus, estabeleceu o preceito da confissão anual e da comunhão pascal:

Cada fiel, de um e de outro sexo, chegando à idade da razão, confesse lealmente, sozinho, todos os seus pecados a seu próprio sacerdote, ao menos uma vez ao ano, e se aplique a cumprir, segundo suas forças, a penitência que lhe foi imposta; receba com reverência ao menos pela Páscoa o sacramento da Eucaristia. (Denz. 812).

O preceito conciliar remediou a situação, mas ainda estava longe a solução definitiva do problema. Exemplo característico desse tempo foi o de S. Luís IX, rei de França (1214-1270). O mítico e piedoso monarca comungava cerca de seis vezes ao ano. (Cf. ROPS, 1993, p. 72). A literatura canônica insistia na obrigação do jejum eucarístico com severidade tal, que alguns autores chegavam a exigir implacáveis sacrifícios. Em 1237, o Sínodo de Coventry (Inglaterra) prescrevia jejum preparatório de meia semana. Outros afirmavam que o fato de não se frequentar o sacramento aumentaria a reverência para com o mesmo. (Cf. JUNGMANN, 2009, p. 805). O Doutor Universal, que conviveu de perto com esta mentalidade formada ao longo de séculos, foi grande defensor da comunhão frequente. Citando Santo Agostinho teceu esta belíssima consideração sobre o temor reverencial e o temor filial:

Deve-se dizer que o respeito devido a este sacramento deve unir o temor ao amor. Pois o temor reverencial a Deus é chamado temor filial. O desejo de comungar é provocado pelo amor; do temor, porém, nasce a humildade do respeito. Desta sorte, ambos pertencem ao respeito devido a este sacramento, seja quando se comunga todos os dias, seja quando, às vezes, se abstém dele. (Suma III, q. 80, a. 10, quanto ao 3º).

Como fossem raras as comunhões sacramentais, incentivavam-se as espirituais. Mas, o desequilíbrio levou não poucos a desenvolverem uma controversa devoção: a comunhão vicária, ou seja, o sacerdote comungava em substituição à comunhão dos fiéis[10].

Era desejo dos Padres no Concílio de Trento que os fiéis comungassem todos os dias. Com o objetivo de facilitar o acesso dos fiéis à comunhão eucarística, a partir deste Concílio introduziu-se o costume de ministrar a comunhão sem relação com a celebração do sacrifício, ou seja, extra missam. (Cf. SARAIVA MARTINS, 2005, p. 239). A luta contra os pseudo reformistas, que negavam a presença real e o caráter sacrifical da Missa, fez com que a Igreja concentrasse seus esforços em desenvolver a teologia nesses dois campos, ademais de normatizar, tendo em vista os aspectos que eram especialmente atacados. Ao longo de quase toda a Idade Média estabeleceu-se a devoção à Santa Missa enquanto sacrifício eucarístico. Ne declines ad dexteram neque ad sinistram, averte pedem tuum a malo[11] (Pv 4,27), nos ensina o livro dos Provérbios. Na busca constante do equilíbrio, a Igreja no Concílio de Trento voltou a incentivar a participação dos fiéis na comunhão eucarística.


[1] Cipriano Vagaggini, monge beneditino camaldulense (+1999), foi um dos principais artífices da Constituição Sacrosantum Concilium e um dos animadores da reforma litúrgica, com contribuições originais na redação das novas Orações Eucarísticas II e IV (2009, contracapa).

[2] Tertuliano, além do valor histórico e literário de seus escritos, merece destaque particular pelas informações mais particularizadas que nos fornece. Ademais, foi o primeiro dos escritores latinos a apresentar o termo grego de Paulo pelo latino “coena Dei” (De spect. 13, loc. cit.) e “convivium dominicum” (Ad uxor, 2,4). Faz-nos ele ainda ver o corpo de Cristo no “pão cotidiano” que pedimos na oração do Pai nosso (De orat, 6: PL 1,1263); além de atestar que o “sacramento da Eucaristia” era “recebido” habitualmente na celebração que se realizava “antes do amanhecer, somente da mão do presidente” (De cor. 3: PL 2,79).

[3] Serm. 84, inter Opp. Aug., al de Verbis Domini., serm. 28, n. 3; ML 39, 1908

[4] Sancti Ambrosii Mediolanensis Episcopi. De Sacramentis. Libri Sex. (C. G. S.). Liber quintus. Caput IV. PL. Vol. 16, col. 452b.

[5] Além de incentivar a comunhão eucarística, Tertuliano chama atenção a respeito de algumas normas a ser observadas: “ante omnem cibum gustes”, ou seja, que os fiéis tivessem o cuidado de tomar a Eucaristia antes de qualquer outro alimento; e que não comesse dela quem não fosse cristão. (Tertuliano, Ad. Uxor, 2,5, PL 1408).

[6] Crisóstomo, In Eph. Hom. 3,4 (PG 62,29), cf. In I Tim hom. 5,3 (PG 62,529s.); In Hebr. Hom 17,4 (PG 63,131s.).

[7] Quemadmodum Graeci in Oriente facere consuerunt. Tradução nossa.

[8] Can. 18 (Mansi VIII, 327).

[9] Isso atestam para o séc. VII-VIII os ordinários romanos que são voltados primeiramente para a missa estacional. Esta, porém, acontecia na Quaresma quase diariamente. […] Também segundo Beda (+ 735), Ep. 2 ad Egbertum (PL 94, 666A), naquela época cristãos de todas as idades comungavam em Roma em cada Domingo. Em 88, o papa Nicolau I, Ep. 97, n. 9 (PL 119, 983) dá uma resposta afirmativa à pergunta dos búlgaros se devem comungar diariamente na Quaresma, desde que estejam na atitude certa. (JUNGMAN, 2009, nota n. 32 da p. 804).

[10] À primeira vista, o que poderia ser um belo gesto de piedade, foi se tornando um meio a mais para que as pessoas deixassem de comungar. Havia mesmo quem dissesse que, quando o sacerdote comunga, “alimenta a si mesmo na alma, e a todos nós”. Combatendo-o, o Sínodo de Tréveris (1227) proibiu que o sacerdote recebesse o corpo de Cristo em lugar dos enfermos. (Cf. JUNGMANNM, 2009, p. 806-807 e notas).

[11] Não te desvies nem para a direita, nem para a esquerda e afasta os teus pés do mal.

Referências

GARCIA-VILLOSLADA, Ricardo. Historia de la Iglesia Católica: Edad Media (800-303), La cristiandad en el mundo europeo y feudal. 6. ed. Madrid: BAC, MMIII.

JUNGMANN, J. A. Missarum Sollemnia: Origens, Liturgia, História e Teologia da Missa Romana. Tradução de Monika Ottermann. São Paulo: Paulus, 2009, 961 p.

VAGAGGINI, Cipriano. O Sentido Teológico da Liturgia. Trad. Francisco Figueiro de Moraes. São Paulo: Edições Loyola. 2009, 843 p.

SARAIVA MARTINS, Cardeal José. Eucaristia. Lisboa: Universidade Católica Editora. 2005.

A verdade deve ser buscada na Igreja de Cristo

Pe. Antônio Guerra, EP

A Verdade que o homem procura por conaturalidade ― e também por obrigação moral ― não pode ser procurada em qualquer lugar, pois não a encontraria. A verdade deve ser procurada onde ela se encontra. Ela é única, insubstituível, e deve corresponder aos anseios mais profundos do ser humano. Depois da Encarnação do Verbo, a verdade deve ser buscada na Igreja fundada por Jesus Cristo Nosso Senhor. Ele que é a Verdade, deixou-nos a Igreja como sacramento de santificação, a qual, como mãe amorosa e paciente, ensina o homem a chegar até a Verdade íntegra e incomensurável, Jesus, filho de Maria.

Conhecida a Verdade em sua Igreja, o homem tem o direito e a obrigação de abraçá-la e segui-la. Entretanto, deve-se recordar as dificuldades decorrentes da natureza limitada do homem e dos desfiguramentos oriundos do pecado original. Já antes da queda de nossos primeiros pais, o homem não conseguiria chegar totalmente a esse conhecimento da verdade a não ser com a ajuda divina. São Tomás é muito claro ao tratar da hipótese de o homem ter sido criado em estado de pura natureza, sem a graça

O homem em estado de integridade ordenava o amor de si mesmo ao amor de Deus como seu fim, e outro tanto com o amor que tinha às demais coisas. E assim amava a Deus mais que a si mesmo e por cima de tudo. Mas no estado de natureza decaída o homem fraqueja neste terreno, porque o apetite da vontade racional, devido à corrupção da natureza, se inclina ao bem privado, enquanto não seja curado pela graça divina. Devemos, pois, concluir que o homem, em estado de integridade, não necessitava de um dom gratuito acrescido aos bens de sua natureza para amar a Deus sobre todas as coisas, ainda que necessitasse do impulso da moção divina. Mas no estado de corrupção necessita o homem, inclusive para lograr este amor, do auxílio da graça que cure sua natureza[1].

Nessa hipótese que o homem tivesse sido criado sem a graça ― a qual lhe tivesse sido concedida depois ― “em estado de natureza íntegra” não precisava da graça para amar a Deus mais do que a si mesmo, pois esse amor, já o vimos, é conatural ao homem.

Ele precisava, porém, do impulso da moção divina”[2] para chegar a amar ao Criador mais do que a si mesmo. Esse amor a Deus sobre todas as coisas o homem o praticava sem o auxílio da graça. Bastava a ele certo auxílio de Deus.

Porém, no estado de natureza corrompida pelo pecado original, o homem, para ter esse amor a Deus mais do que a si mesmo, precisa do auxílio da graça, que: “cure sua natureza[3]. Sem a divina graça o homem (batizado ou não) muito dificilmente (quiçá seja impossível) encontrará em si forças para procurar a Verdade e amar inteiramente o Bem.


[1] Suma Teológica I-II q. 109, a. 3 co.

[2] Suma Teológica I-II q. 109, a.3 co.

[3] Ibidem.

As cores litúrgicas dos paramentos

Pe. Mauro Sérgio Isabel, EP

dom-baldisseriTudo na Liturgia da Igreja é rico em simbolismos. Isto se nota também nas cores dos paramentos sagrados, as quais variam de acordo com o tempo litúrgico e as comemorações de Nosso Senhor, da Virgem Maria ou dos Santos. Basicamente, são quatro as cores litúrgicas: branco, vermelho, verde e roxo. Além destas, há quatro outras que são opcionais, isto é, podem ser usadas em circunstâncias especiais: dourado, rosa, azul e preto.

O branco simboliza a pureza e é usado nos tempos do Natal e da Páscoa, bem como nas comemorações de Nosso Senhor Jesus Cristo (exceto as da Paixão), da Virgem Maria, dos Anjos e dos Santos não-mártires.

O vermelho, símbolo do fogo da caridade, usa-se nas celebrações da Paixão do Senhor, no domingo de Pentecostes, nas festas dos Apóstolos e Evangelistas, e nas celebrações dos Santos Mártires.

Rosa: Domingos de Gaudete (Advento) e Laetare (Quaresma)

O verde, sinal de esperança, é usado na maior parte do ano, no período denominado Tempo Comum .

Para os tempos do Advento e da Quaresma, a Igreja reservou o roxo, a cor da penitência. E estabeleceu duas exceções, que correspondem a dois interstícios de alegria em épocas de contrição: no 3º domingo do Advento e no 4º domingo da Quaresma, o celebrante pode trajar paramentos rosa.

Em circunstâncias solenes, podese optar pelo dourado em lugar do branco, do vermelho ou do verde. Em alguns países é permitido utilizar o azul, nas celebrações em honra de Nossa Senhora. E nas Missas pelos fiéis defuntos o celebrante pode escolher entre o roxo e o preto.

Revestido assim, de acordo com as sábias determinações da Santa Igreja, o sacerdote sobe ao altar para o Sagrado Banquete, tornando claro a todos, e a si mesmo, que está atuando na pessoa de Outro, ou seja, de Nosso Senhor Jesus Cristo.

(Revista Arautos do Evangelho, Abril/2009, n. 88, p. 48 à 51)

Fundamento bíblico do primado petrino

Pe. Eduardo Caballero Baza, EP

São Pedro ocupa posição preeminente no Novo Testamento, onde é mencionado 114 vezes nos Evangelhos e 57 vezes nos Atos dos Apóstolos.

Fala em nome de todos os Apóstolos (Lc 12, 41, Mt 19, 27, Mc 10, 28, Lc 18, 28), responde por eles (Jo 6, 68, Mt 16, 16, Mc 8, 29) e age por todos (Mt 14, 28, Mc  8, 32, Mt 16, 22, Lc 22, 8, Jo 18, 10). Outras vezes  os evangelistas referem- se aos Apóstolos dizendo  “Pedro e os seus” (Mc 1, 36, Lc 8, 45; 9, 32, Mc 16, 7,  At 2, 14. 37). Jesus o elege depois de fazer um  grande milagre (Lc 5, 1-11); serve-Se de sua barca  para pregar às multidões (Lc 5, 3); hospeda-Se em  sua casa (Mc 1, 29); associa-o a Si no pagamento do tributo (Mt 17, 23-26); escolhe-o, com Tiago e João,  para assistir à ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,  37), à transfiguração (Mc 9, 2) e à agonia no  Getsêmani (Mc 14, 33); é o primeiro a quem aparece  ressuscitado (Lc 24, 34). É o único dos Doze que o  anjo nomeia para ser-lhe comunicada a mensagem  da Páscoa (Mc 16, 7). São João espera a chegada  de São Pedro, para deixá-lo entrar primeiro no  Sepulcro de Jesus (Jo 20, 2-8).

Depois da Ascensão e de Pentecostes, vemos São  Pedro exercendo a autoridade máxima na Igreja.  Completa o Colégio Apostólico com a eleição de São  Matias (At 1, 5ss); fala em nome dos Apóstolos  no dia de Pentecostes (At 2, 14ss); defende perante  as autoridades judaicas o direito dos Apóstolos, de  pregar a Fé em Cristo (At 4, 8-12); condena Ananias  e Safira (At 5, 1-11); é inspirado a abrir as portas da   Igreja também aos pagãos, com a conversão do  centurião Cornélio (At 10, 47); preside o Concílio de  Jerusalém (At 15, 6ss); toda a Igreja orava por sua  libertação, quando foi encarcerado por ordem de  Herodes (At 12, 5).

Por outro lado, São Paulo assinala de modo preeminente a importância de São Pedro como  cabeça da Igreja. Depois de sua estada na Arábia,  dirige-se a Jerusalém para vê-lo (Gal 1, 18);  reconhece nele uma das colunas da Igreja (Gal 2, 9);  coloca-o como o primeiro entre as testemunhas das aparições de Cristo ressuscitado (Cor 15, 5); e mesmo quando lhe resiste “em face” em Antioquia,  age como quem reconhece sua autoridade e, portanto, confirma de algum modo seu primado (Gal  2, 11-14).

A Igreja é amiga do progresso

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Uma superficial consideração do mundo de hoje leva a crer que a Igreja é contra o progresso. Tal seria, pois, enquanto tal e na verdadeira acepção da palavra, é uma coisa boa. A este respeito, escreveu Paulo VI em seu último livro, ainda enquanto Cardeal Montini, em 1963: “A cristandade não é um obstáculo ao progresso moderno porque não o considera apenas nos seus aspetos técnicos e econômicos, mas no total de seu desenvolvimento. Os bens temporais poderão certamente ajudar o completo desenvolvimento do homem, mas eles não constituem o ideal da perfeição humana ou a essência do progresso social”.[1]

O problema com o aparente progresso, este sim, criticado pela Igreja, está no fato de ter sido acompanhado por uma filosofia que parecia dispensar Deus e confiar na mera técnica, ou no próprio homem, tal como advertiu o então cardeal Ratzinger: “Não é a expansão em si das possibilidades técnicas que é má, mas a arrogância iluminista que, em muitos casos, esmagou estruturas desenvolvidas e calcou as almas de homens cujas tradições religiosas e éticas foram postas de parte de forma displicente”.[2]

Thomas S. Kuhn, chegou mesmo a colocar o dedo na ferida e a levantar o problema para onde caminhava a ciência e a técnica em meados do séc. XX, pois, seu processo parecia partir de estágios primitivos e aparentava não levar a pesquisa para mais perto da verdade ou em direção a algo, o que significava que um número inquietante de problemas poderiam advir.[3] Anteriormente, já Kierkegaard alertava que, tornando-se a ciência um modo de vida, então esse seria o modo mais terrível de viver: “encantar todo o mundo e se extasiar com as descobertas e a genialidade, sem, no entanto, [o homem] conseguir compreender-se a si mesmo”.[4]

O progresso, não pode senão trazer benefícios para a humanidade; se não os traz, e até tantas vezes concorre para agravar os problemas humanos, deve-se atribuir isto ao fato de que o progresso contemporâneo, sob muitos aspectos, não é um progresso autêntico. Este desvio deverá ser possível porque existe na humanidade um factor de desordem, causado pelo pecado original, tantas vezes esquecido pelos homens e lembrado pela Igreja (Caritas in Veritate, n. 34). Não basta o desenvolvimento técnico. Ele tem de ser acompanhado pelo ético, humano, deve ter em visto o homem todo e todos os homens. Um progresso integro e integral.

O remédio para os males do falso progresso estão na caridade, porém, caridade na Verdade, ou seja,em Jesus Cristo. Se d’Ele não se tivesse afastado o homem, não teria o progresso sofrido tal desvio. Ao voltar-se para Deus, e valorizar o amor conforme o mandamento novo trazido por Jesus, o progresso se desenvencilhará de suas deturpações e produzirá os frutos mais excelentes. Esta forma de progresso vem muito bem delineado no recente Compêndio de Doutrina Social da Igreja:

“A humanidade compreende cada vez mais claramente estar ligada por um único destino que requer uma comum assunção de responsabilidades, inspirada em um humanismo integral e solidário: vê que esta unidade de destino é freqüentemente condicionada e até mesmo imposta pela técnica ou pela economia e adverte a necessidade de uma maior consciência moral, que oriente o caminho comum. Estupefactos pelas multíplices inovações tecnológicas, os homens do nosso tempo desejam ardentemente que o progresso seja votado ao verdadeiro bem da humanidade de hoje e de amanhã”. (n. 6)


[1] MONTINI, Giovanni Battista. The Christian in the Material World. Baltimore: Helicon, 1964. (tradução minha).

[2] RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância. Traduções UCEDITORA: Lisboa, 2007. P. 71

[3] Cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia: Do romanismo até nossos dias. V. 3. São Paulo: Paulus, 1991. p. 1046.

[4] Idem, p. 250.

O sigilo na confissão

Pe. Caio Newton de Assis Fonseca, EP

Sigilo vem do latim sigillum, selo, lacre. Como em tempos já bem idos, se fechavam as cartas ou documentos contendo coisas reservadas com um selo ou lacre, a palavra metaforicamente passou a designar segredo.

Na Teologia da Penitência, chama-se sigilo a obrigação absoluta, perpétua e inviolável que tem o confessor de guardar segredo sobre a matéria da confissão. Ou, mais laconicamente, sigillum est debitum confessionem celandi: obrigação de ocultar a confissão (AQUINO, Tomás de. Suplemento de la Suma, q. 11, a. 3, ad resp.).

Porém, não é só sobre o sacerdote que pende a obrigação do segredo da matéria da confissão. Ela pende também sobre o intérprete, se houver, e sobre todos aqueles a quem, por qualquer motivo, tenha chegado o conhecimento de pecados por meio de confissão. Mas, neste caso, tal obrigação se chama segredo de confissão.

Esta distinção entre sigilo para o confessor e segredo de confissão para todos os outros a estabeleceu o CIC de 1983, atualmente vigente (c. 983). Antes dele, o CIC de1917 não fazia semelhante distinção, como se vê:

889 § 1. O sigilo sacramental é inviolável; guarde-se, pois, muito bem o confessor de revelar no mais mínimo o pecador nem por palavra, nem por algum sinal, nem de qualquer outro modo e por nenhuma causa.

§ 2. Estão do mesmo modo obrigados a guardar o sigilo sacramental o intérprete e todos aqueles a quem de um modo ou de outro tivesse chegado a notícia da confissão.

O lugar do batismo conforme o Código de Direito Canônico

batizadoPe. Antônio Carlos Coluço, EP

Não há alterações no vigente CIC no que tange ao lugar habitual do batismo. Isto é, a igreja – paroquial ou não – com pia batismal. Porém, em caso de necessidade, sempre foi permitido o ato do batismo em qualquer lugar (c. 773 no CIC’17; c. 857, c. 687 § 1 no CIC’83). Contudo há variações de certos detalhes, seja no CIC’83, em relação ao CIC’17, como no CCEO, em paralelo com a normativa latina. Analisar-se-á, em primeiro lugar, as diferenças entre o CIC’83 e o CIC’17.

Um aspecto a destacar está relacionado com a mudança operada nos conceitos das diversas categorias de templos [hoje reduzidas no CIC a “igreja” (ecclesiae) – c. 1214; “oratório” (oratorii) – c. 1223; e “capela privada” (sacelli privati) – c. 1226], fato que leva à reconsideração dos lugares onde há pia batismal.

Conserva-se, porém, a normativa (c. 858 § 1): “toda igreja paroquial tenha sua pia baptismal”, (quaevis ecclesia paroecialis baptismalem fontem habeat) (cf. c. 774 § 1, no CIC’17).

Permanece sob a autoridade do Ordinário do lugar a capacidade de autorizar, ou mandar, que sejam colocadas pias batismais em outras igrejas (c. 858 § 2, no CIC’83; cf. c. 774 § 2, no CIC’17).

É mantida a normativa de que, “por causa da distância”, “propter locorum distantiam”, ou outra causa que provoque grave incômodo, o batismo possa ser administrado em qualquer igreja ou oratório. Porém, acrescenta a legislação atual: “ou mesmo em outro lugar conveniente” (aut etiam alio in loco decenti) (c. 859 § 2; cf. c. 775, no CIC’17).

A legislação atual relativa às casas particulares é diferente, tanto no rito latino como no oriental; e ainda diverso do antigo CIC. Com efeito, neste (CIC’17) proibia: “in domibus privatis… administrari non debet”, exceto para os filhos ou herdeiros do trono; ou para os casos em que o Ordinário do lugar “pro suo prudenti arbitrio et conscientia, iusta ac rationabili de causa, in casu aliquo extraordinario”. Assim, vemos que era concedida uma liberdade muito estreita ao Ordinário para autorizar tais sacramentos em casas particulares. E ainda o mesmo CIC’17, no c. 776 § 2, acrescentava que o rito deveria ser realizado “in sacello domus aut saltem in alio decenti loco” – no oratório da casa (supõe-se devidamente autorizado) ou em outro lugar digno.

A normativa atual apenas autoriza “salvo permissão do Ordinário local, por justa causa” (c. 860 § 1) “nisi loci Ordinarius gravi de causa id permiserit”. Assim, a liberdade do Ordinário é estendida.

Pelo contrário, o § 2 do mesmo c. 860 introduz uma interdição inexistente no CIC’17:

não se celebre o batismo em hospitais (In valetudinariis (…) baptismus ne celebretur): Exceto em caso de necessidade ou por outra razão pastoral que o imponha (nisi in casu necessitatis vel alia ratione pastorali cogente); [ou] salvo determinação contrária do Bispo diocesano” (nisi aliter Episcopus dioecesanus statuerit).

Portanto, se por um lado concedem-se certas licenças, por outro se impedem certos lugares para a realização do ato batismal.

A Imaculada Conceição: “Piedosa crença” que se tornou dogma

imaculadaMons. João Clá Dias, EP

Os mais antigos Padres da Igreja, amiúde se expressam em termos que traduzem sua crença na absoluta imunidade do pecado, mesmo o original, concedida à Virgem Maria. Assim, por exemplo, São Justino, Santo Irineu, Tertuliano, Firmio, São Cirilo de Jerusalém, Santo Epifânio, Teódoro de Ancira, Sedulio e outros comparam Maria Santíssima com Eva antes do pecado. Santo Efrém, insigne devoto da Virgem, A exalta como tendo sido “sempre, de corpo e de espírito, íntegra e imaculada”. Para Santo Hipólito Ela é um “tabernáculo isento de toda corrupção“. Orígenes A aclama “imaculada entre imaculadas, nunca afetada pela peçonha da serpente“. Por Santo Ambrósio é Ela declarada “vaso celeste, incorrupta, virgem imune por graça de toda mancha de pecado”. Santo Agostinho afirma, disputando contra Pelágio, que todos os justos conheceram o pecado, “menos a Santa Virgem Maria, a qual, pela honra do Senhor, não quero que entre nunca em questão quando se trate de pecados”.
Cedo começou a Igreja – com primazia da Oriental – a comemorar em suas funções litúrgicas a imaculada conceição de Maria. Passaglia, no seu De Inmaculato Deiparae Conceptu, crê que a princípios do Século V já se celebrava a festa da Conceição de Maria (com o nome de Conceição de Sant’Ana) no Patriarcado de Jerusalém. O documento fidedigno mais antigo é o cânon de dita festa, composto por Santo André de Creta, monge do mosteiro de São Sabas, próximo a Jerusalém, o qual escreveu seus hinos litúrgicos na segunda metade do século VII.
Tampouco faltam autorizadíssimos testemunhos dos Padres da Igreja, reunidos em Concílio, para provar que já no século VII era comum e recebida por tradição a piedosa crença, isto é, a devoção dos fiéis ao grande privilégio de Maria (Concílio de Latrão, em 649, e Concílio Constantinopolitano III, em 680).
Em Espanha, que se gloria de ter recebido com a fé o conhecimento deste mistério, comemora-se sua festa desde o século VII. Duzentos anos depois, esta solenidade aparece inscrita nos calendários da Irlanda, sob o título de “Conceição de Maria”.
Também no século IX era já celebrada em Nápoles e Sicílias, segundo consta do calendário gravado em mármore e editado por Mazzocchi em 1744.
Em tempos do Imperador Basílio II (976-1025), a festa da “Conceição de Sant’Ana” passou a figurar no calendário oficial da Igreja e do Estado, no Império Bizantino.
No século XI parece que a comemoração da Imaculada estava estabelecida na Inglaterra, e, pela mesma época, foi recebida em França. Por uma escritura de doação de Hugo de Summo, consta que era festejada na Lombardia (Itália) em 1047. Certo é também que em fins do século XI, ou princípios do XII, celebrava-se em todo o antigo Reino de Navarra.

Séculos XII-XIII: Oposições
No mesmo século XII começou a ser combatido, no Ocidente, este grande privilégio de Maria Santíssima.
Tal oposição haveria ainda de ser mais acentuada e mais precisa na centúria seguinte, no período clássico da escolástica. Entre os que puseram em dúvida a Imaculada Conceição, pela pouca exatidão de idéias à matéria encontram-se doutos e virtuosos varões, como, por exemplo, São Bernardo, São Boaventura, Santo Alberto Magno e o angélico São Tomás de Aquino.

Século XIV: Escoto e a reação a favor do dogma
O combate a esta augusta prerrogativa da Virgem não fez senão acrisolar o ânimo de seus partidários. Assim, o século XIV se inicia com uma grande reação a favor da Imaculada, na qual se destacou, como um de seus mais ardorosos defensores, o beato espanhol Raimundo Lulio.
Outro dos primeiros e mais denodados campeões da Imaculada Conceição foi o venerável João Duns Escoto (seu país natal é incerto: Escócia, Inglaterra ou Irlanda; morreu em 1308), glória da Ordem dos Menores Franciscanos, o qual, depois de bem fixar os verdadeiros termos da questão, estabeleceu com admirável clareza os sólidos fundamentos para desvanecer as dificuldades que os contrários opunham à singular prerrogativa mariana.
Sobre o impulso dado por Escoto à causa da Imaculada Conceição, existe uma tocante legenda. Teria ele vindo de Oxford a Paris, precisamente para fazer triunfar o imaculatismo. Na Universidade da Sorbonne, em 1308, sustentou uma pública e solene disputa em favor do privilégio da Virgem.
No dia dessa grande ato, Escoto, quando chegou ao local da discussão, prosternou-se diante de uma imagem de Nossa Senhora que se encontrava em sua passagem, e lhe dirigiu esta prece: “Dignare me laudare te, Virgo sacrata: da mihi virtutem contra hostes tuos”. A Virgem, para mostrar seu contentamento com esta atitude inclinou a cabeça – postura que, a partir de então, Ela teria conservado…
Depois de Escoto, a solução teológica das dificuldades levantadas contra a Imaculada Conceição se tornou casa dia mais clara e perfeita, com o que seus defensores se multiplicaram prodigiosamente. Em seu favor escreveram inúmeros filhos de São Francisco, entre os quais se podem contar os franceses Aureolo (m. em 1320) e Mayron (m. em 1325), o escocês Bassolis e o espanhol Guillermo Rubión. Acredita-se que esses ardorosos propagandistas do santo mistério estejam na origem de sua celebração em Portugal, nos primórdios do século XIV.
O documento mais antigo da instituição da festa da Imaculada nesse país é um decreto do Bispo de Coimbra, D. Raimundo Evrard, datado de 17 de Outubro de 1320. A par dos doutores franciscanos, cumpre ainda mencionar, entre os defensores da Imaculada Conceição nos séculos XIV-XV, o carmelita João Bacon (m. em 1340), o agostiniano Tomás de Estrasburgo, Dionísio, o Cartuxo (m. em 1471), Gerson (m. em 1429), Nicolau de Cusa (m. em 1464) e outros muitos esclarecidos teólogos pertencentes a diversas escolas e nações.

Séculos XV-XVI: acirradas disputas
Em meados do século XV, a Imaculada Conceição foi objeto de renhido combate durante o Concílio de Basiléia, resultando num decreto de definição sem valor dogmático, posto que este sínodo perdeu a legitimidade ao se desligar do Papa.
Entretanto, crescia cada dia mais o número das cidades, nações e colégios que celebravam oficialmente a festa da Imaculada. E com tal fervor, que nas cortes da Catalunha, reunidas em Barcelona entre 1454 e 1458, decretou-se pena de perpétuo desterro para quem combatesse o santo privilégio.
O autêntico Magistério da Igreja não tardou a dar satisfação aos defensores do dogma e da festa. Pela bula Cum proeexcelsa, de 27 de Fevereiro de 1477, o Papa Sixto IV aprovou a festa da Conceição de Maria, enriqueceu-a de indulgências semelhantes às festas do Santíssimo Sacramento e autorizou ofício e missa especial para essa solenidade.
Pelos fins do século XV, porém, a disputa em torno da Imaculada Conceição de tal maneira acirrou os ânimos dos contendores, que o mesmo Papa Sixto IV se viu obrigado a publicar, em data de 4 de setembro de 1483, a Constituição Grave Nimis, proibindo sob pena de excomunhão que os de uma parte chamassem hereges aos da outra.
Por essa época, festejavam a Imaculada célebres universidades, como as de Oxford, de Cambridge e a de Paris, a qual, em 1497, instituiu para todos os seus doutores o juramento e o voto de defender perpetuamente o mistério da Imaculada Conceição, excluindo de seus quadros quem não os fizesse. De modo semelhante procederam as universidades de Colônia (em 1499), de Magúncia (em 1501) e a de Valência (em 1530).
No Concílio de Trento (1545-1563) se ofereceu nova ocasião para denodado combate entre os dois partidos. Sem proferir uma definição dogmática da Imaculada Conceição, esta ssembléia confirmou de modo solene as decisões de Sixto IV. A 15 de Junho de 1546, na sessão V, em seguida aos cânones sobre o pecado original, acrescentaram-se estas significativas palavras: “O sagrado Concílio declara que não é sua intenção compreender neste decreto, que trata do pecado original, a Bem-aventurada e imaculada Virgem Maria, Mãe de Deus, mas que devem observar-se as constituições do Papa Sixto IV, de feliz memória, sob as penas que nelas se cominam e que este Concílio renova”.
Por esse tempo, começaram a reforçar as fileiras dos defensores da Imaculada Conceição os teólogos da recém-fundada Companhia de Jesus, entre os quais não se achou um só de opinião contrária. Aliás, pelos primeiros missionários jesuítas no Brasil temos notícia de que, já em 1554, celebrava-se o singular privilégio mariano em nosso País. Além da festa comemorada no dia 8 de Dezembro, capelas, ermidas e igrejas eram edificadas sob o título de Nossa Senhora da Conceição.
Entretanto, a piedosa crença ainda suscitava polêmicas, coibidas pela intervenção do Sumo Pontífice. Assim, em outubro de 1567, São Pio V, condenando uma proposição de Bayo que afirmava ter morrido Nossa Senhora em conseqüência do pecado herdado de Adão, proibiu novamente a disputa acerca do augusto privilégio da Virgem.

Séculos XVII e seguintes: consolidação da “piedosa crença”
No século XVII, o culto da Imaculada Conceição conquista Portugal inteiro, desde os reis e os teólogos até os mais humildes filhos do povo. A 9 de Dezembro de 1617, a Universidade de Coimbra, reunida em claustro pleno, resolve escrever ao Papa manifestando-lhe a sua crença na imaculabilidade de Maria.
Naquele mesmo ano, Paulo V, decretou que ninguém se atrevesse a ensinar publicamente que Maria Santíssima teve pecado original. Semelhante foi a atitude de Gregório XV, em 1622.
Por essa época, a Universidade de Granada se obrigou a defender a Imaculada Conceição com voto de sangue, quer dizer, comprometendo-se a dar a vida e derramar o sangue, se necessário fosse, na defesa deste mistério. Magnífico exemplo que foi imitado, sucessivamente, por grande número de cabidos, cidades, reinos e ordens militares.
A partir do século XVII também foram se multiplicando as corporações e sociedades, tanto religiosas como civis, e até mesmo estados, que adotaram por padroeira à Virgem no mistéiro de sua Imaculada Conceição.
Digna de particular referência é a iniciativa de D. João IV, Rei de Portugal, proclamando Nossa Senhora da Conceição padroeira de seus “Reinos e Senhorios”, ao mesmo tempo que jura defendê-La até à morte, segundo se lê na provisão régia de 25 de março de 1646. A partir deste momento, em homenagem à sua Imaculada Soberana, nunca mais os reis portugueses puseram a coroa na cabeça.
Em 1648, aquele mesmo Monarca mandou cunhar moedas de outro e prata. Foi com estas que se pagou o primeiro feudo a Nossa Senhora. Com o nome de Conceição, tais moedas tinham no anverso a legenda: JOANNES IIII, D. G. PORTUGALIAE ET ALBARBIAE REX, a Cruz de Cristo e as armas lusitanas. No reverso: a imagem da Senhora da Conceição sobre o globo e a meia lua, com a data de 1648 e, nos lados, o sol, o espelho, o horto, a casa de ouro, a fonte selada e a Arca da Aliança, símbolos bíblicos da Santíssima Virgem.
Outro decreto de D. João IV, assinado em 30 de junho de 1654, ordenava que “em todas as portas e entradas das cidades, vilas e lugares de seus Reinos”, fosse colocada uma lápide cuja inscrição exprimisse a fé do povo português na imaculada Conceição de Maria.
Igualmente a partir do século XVII imperadores, reis e as cortes dos reinos começaram a pedir com admirável constância, e com uma insistência de que há poucos exemplos na História, a declaração dogmática da Imaculada Conceição.
Pediram-na a Urbano VIII (m. em 1644) o Imperador Fernando II da Áustria; Segismundo, Rei da Polônia; Leopoldo, Arquiduque do Tirol; o eleitor de Magúncia; Ernesto de Baviera, eleitor de Colônia.
O mesmo Urbano VIII a pedidos do Duque de Mântua e de outros príncipes, criou a ordem militar dos Cavaleiros da Imaculada Conceição, aprovando ao mesmo tempo seus estatutos. Por devoção à Virgem Imaculada, quis ele ser o primeiro a celebrar o augusto Sacrifício na primeira igreja edificada em Roma sob o título da Imaculada, para uso dos menores capuchinhos de São Francisco.
Porém, o ato mais importante emanado da Santa Sé, no século XVII, em favor da Imaculada Conceição, foi a bula Sollicitude omnium Ecclesiarum, do Papa Alexandre VII, em 1661. Neste documento, escrito de sua própria mão, o Pontífice renova e ratifica as constituições em favor de Maria Imaculada, ao mesmo tempo que impõe gravíssimas penas a quem sustentar e ensinar opinião contrária aos ditos decretos e constituições. Esta bula memorável precede diretamente, sem outro decreto intermediário, a bula decisiva de Pio IX.
Em 1713, Felipe V de Espanha e as Cortes de Aragão e Castela pediram a solene definição a Clemente XI. E o mesmo Rei, com quase todos os Bispos espanhóis, as universidades e Ordens religiosas, a solicitaram a Clemente XII, em 1732.
No pontificado de Gregório XVI, e nos primeiros anos de Pio IX, elevaram-se à Sé Apostólica mais de 220 petições de Cardeais, Arcebispos e Bispos (sem contar as dos cabidos e ordens religiosas) para que se fizesse a definição dogmática.

O triunfo da Imaculada Conceição
Enfim, chegado era o tempo. Em 2 de fevereiro de 1849, Pio IX, desterrado em Gaeta, escreveu a todos os Patriarcas Primazes, Arcebispos e Bispos do orbe a Encíclica Ubi primum, questionando-lhes acerca da devoção de seu clero e de seus povos ao mistério da Imaculada Conceição, e seu desejo de vê-lo definido. De um total de 750 Cardeais, Bispos e vigários apostólicos que em seu seio contava então a Igreja, mais de 600 responderam ao Sumo Pontífice. Levando-se em conta as dioceses que estariam vacantes, os prelados enfermos e as respostas perdidas, pode-se dizer que todos atenderam à solicitação do Papa, manifestando unanimemente que a fé de seu povo era completamente favorável à Imaculada Conceição, e apenas cinco se diziam duvidosos quanto à oportunidade de uma declaração dogmática. Afirmara-se a crença universal da Igreja. Roma iria falar, a causa estava julgada.
Agora – são palavras de uma testemunha da bela festa de 8 de dezembro de 1854 – transportemo-nos ao augusto templo do Chefe dos Apóstolos (Basílica de São Pedro de Roma). Nas suas amplas naves se comprime e se confunde uma imensa multidão impaciente, porém recolhida. É hoje em Roma, como outrora em Éfeso: as celebrações de Maria são em toda a parte populares. Os romanos se aprestam a receber a definição da Imaculada Conceição, como os efesianos acolheram a da maternidade divina de Maria: com cânticos de júbilo e manifestações do mais vivo entusiasmo.
Eis no limiar da Basílica o Soberano Pontífice. Circundam-no 54 Cardeais, 42 Arcebispos e 98 Bispos dos quatro cantos do orbe cristão, duas vezes mais vasto que o antifo mundo romano. Os Anjos da Igrejas estão presentes como testemunhas de fé de seus povos na Imaculada Conceição. Subitamente, irrompem as vozes em tocantes e reiteradas aclamações. O cortejo dos Bispos atravessa lentamente o longo corredor do Altar da Confissão. Sobre a cátedra de São Pedro está sentado seu 258º sucessor.
Iniciam-se os santos mistérios. Logo o Evangelho é anunciado e cantado nas diversas línguas do Oriente e do Ocidente. Eis o solene momento marcado para o decreto pontifício. Um Cardeal carregado de anos e de méritos, aproxima-se do trono: é o decano do Sacro Colégio; feliz está ele, como outrora o velho Simeão, por ver o dia da glória de Maria … Em nome de toda a Igreja, dirige ele ao Vigário de Cristo uma derradeira postulação.
O Papa, os Bispos e toda a grande assembléia caem de joelhos; a invocação ao Espírito Santo se faz ouvir; o sublime hino é repetido por cinqüenta mil vozes ao mesmo tempo, subindo aos Céus como imenso concerto.
Cessado o cântico, ergue-se o Pontífice sobre a cátedra de São Pedro; sua face é iluminada por celeste raio, visível efusão do Espírito de Deus; e de uma voz profundamente emocionada, em meio às lágrimas de alegria, pronuncia ele as solenes palavras que colocam a Imaculada Conceição de Maria no número dos artigos de nossa fé:
“Declaramos – disse ele -, pronunciamos e definimos que a doutrina de que a Bem-aventurada Virgem Maria, no primeira instante de sua conceição, por singular graça e privilégio de Deus Onipotente, em atenção aos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de culpa original, essa doutrina foi revelada por Deus, e deve ser, portanto, firme e constantemente crida por todos os fiéis”.

O Cardeal decano, prostrado segunda vez aos pés do Pontífice, suplicou-lhe então que a publicase as cartas apostólicas contendo a definição. E como promotor da fé, acompanhado dos protonotários apostólicos, pediu também que se lavrasse um processo verbal desse grande ato. Ao mesmo tempo, o canhão do Castelo de Santo Angêlo e todos os sinos da Cidade Eterna anunciavam a glorificação da Virgem Imaculada.
À noite, Roma, cheia de ruidosas e alegres orquestrazs embandeirada, iluminada, coroada de inscrições e de emblemas, foi imitada por milhares de vilas e cidades em toda a superfície do globo.
O ano seguinte pode ser chamado o Ano da Imaculada Conceição: quase todos os dias foram assinalados por destas em honra da Santíssima Virgem.
Em 1904, São Pio X celebrou, juntamente com toda a Igreja Universal, com grande solenidade e regozijo, o cinqüentenário da definição do dogma da Imaculada Conceição.
O Papa Pio XII, por sua vez, em 1954 comemorou o primeiro centenário dessa gloriosa verdade de fé, decretanto o Ano Santo Mariano. Celebração esta coroada pela Encíclica Ad Coeli Reginam, na qual o mesmo Pontífice proclama a soberania da Santíssima Virgem, e estabelece a festa anual de Nossa Senhora Rainha.

(CLÁ DIAS, JOÃO. Pequeno Ofício da Imaculada Conceição Comentado. Artpress. São Paulo, 1997, pp. 494 à 502)