A beleza nos símbolos e sua importância

pescadorMons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

A mente divina é infinitamente rica de seres possíveis e, embora Deus os possa criar todos, somente alguns Ele torna realidade. Assim, cada um de nós existiu como um possível na consideração de Deus, desde toda a eternidade1. Apesar d’Ele não ter querido criar todos os seres possíveis, é enorme a quantidade de criaturas vindas à existência pelo seu poder. Essa superabundância, como ocorre com todos os atos de Deus, foi intencional; entre outras razões, procedeu Ele dessa forma para espelhar uma maior quantidade de perfeições,2 ou mesmo evitar a sensação de monotonia que poderia facilmente se produzir na alma humana. Nessa imensa obra que O levou a descansar no sétimo dia, o Criador quis colocar uma nota de altíssima beleza: o simbolismo. Sobre isso, ensina-nos o Catecismo da Igreja Católica:

“Na vida humana, sinais e símbolos ocupam um lugar importante. Sendo o homem um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual, exprime e percebe as realidades espirituais por meio de sinais e símbolos materiais. Como ser social, o homem precisa de sinais para se comunicar com os outros, pela linguagem, por gestos, por ações. Vale o mesmo para sua relação com Deus (n. 1146)”.

Nesta terra de exílio, um dos melhores modos de nos comunicarmos com Deus e termos, assim, algum antegozo da visão beatífica é contemplar os símbolos do Criador postos no universo, pois “as perfeições invisíveis de Deus, o Seu sempiterno poder e divindade, tornam-se visíveis à inteligência, por suas obras” (Rm 1, 20). Ou seja, desde que queiramos, é-nos dado discernir o Invisível no visível, o Infinito no finito, o Criador nas criaturas.

Não há dúvida que a beleza estética pura e simples tem grande valor, mas a intelecção desse valor não atingirá sua plenitude enquanto não remeta, de alguma forma, através de seu simbolismo, para o próprio Deus. Daí que a beleza simbólica tenha uma categoria muito superior à estritamente física.

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1 Cf. S. Th. I, q. 15, a. 2-3.

2 Cf. S. Th. I, q. 47, a. 1.

São Bento e a ação benfazeja dos monges no Ocidente

Mons. João S. Clá Dias, EPS_Bento_05

A entrada de Paulo na comunidade cristã impulsionou o caráter universal da Igreja. Investido de um especial carisma para levar a boa nova do Evangelho às nações pagãs, alargou os limites da Igreja, como ele mesmo testifica: “viram que a evangelização dos incircuncisos me era confiada, como a dos circuncisos a Pedro (porque aquele cuja ação fez de Pedro o apóstolo dos circuncisos, fez também de mim o dos pagãos)” (Gl 2, 7-8).

O Espírito foi inspirando, dessa forma, os mártires e as virgens, os monges e os missionários, os doutores e confessores da fé. No século terceiro apareceu o monacato, com Santo Antão Abade e São Basílio. No século quinto o Espírito suscitou o grande Santo Agostinho. Mais tarde, o patriarca São Bento deu origem a um dos maiores movimentos de espiritualidade surgidos na era cristã, verdadeiro sopro de renovação que atingiu o ocidente.

O essencial da obra de Bento de Núrsia consistiu em fermentar uma sociedade cindida por revoltas, crises e guerras, transformando-a, aos poucos, na era “em que a filosofia do Evangelho governou os Estados ”. “No grande eclipse da civilização antiga que sobreveio no tempo das invasões, apenas permaneceu outra luz, excetuando o florescente império visigótico, que aquela que teve de se refugiar na brilhante constelação de mosteiros espalhados pela França e os países setentrionais, especialmente na remota Irlanda. Os monges foram os transmissores do saber antigo para os séculos futuros ”.

No século sexto o monacato se enriqueceu, com São Gregório Magno, de um caráter missionário, incorporando os povos germânicos à Igreja e estabelecendo as bases da Europa cristã. Assim se exprime Colombás (1998, p. 362):

Os antigos mosteiros, e mesmo os solitários independentes, desenvolveram, pela própria força das coisas, uma ampla atividade apostólica, no comum dos casos não sacramental nem ministerial, mas puramente espiritual. Isto é, os monges atuaram não em qualidade de clérigos, senão de “homens de Deus”. Sua ação emanava de sua espiritualidade. Impulsava-os a necessidade das almas, quando não a vontade dos bispos.

No século nono os monges Cirilo e Metódio levaram a palavra evangélica ao mundo eslavo, e no século décimo a reforma monástica de Cluny, iniciada pelo abade São Bernon e continuada com êxito por seus quatro sucessores, entre os quais destaca-se Santo Odilon, deu origem ao movimento devocional e renovador que configurou definitivamente a idéia de Europa e de cujo dinamismo brotou, no século XI, São Gregório VII e a denominada reforma gregoriana.

A verdadeira vantagem de Cluny vem, portanto, de haver tido à sua cabeça, sobretudo nos primeiros cem anos, homens excepcionais por sua têmpera, cultura, intuito organizador e político e, sobretudo, dotados de um carisma espiritual arrebatador.

Pode-se dizer que o esplendor dessa época, deveu-se, em grande parte, à influência da ação benéfica surgida dos claustros. Os grandes vôos da ordem temporal tiveram sua raiz nesses movimentos soprados pela graça no seio da Igreja, já que a missão destes não se limitava apenas ao empenho pela santificação de seus membros, mas estendia-se para o resto da sociedade, visando à sua sacralização.

Não é possível fechar os olhos à ação benfazeja que exercem [os monges] universalmente não só nos mosteiros de todo o Ocidente, mas nas cortes dos reis e dos papas, nos palácios dos bispos e nos castelos dos nobres. Eles põem em todas partes o levedo evangélico, que, cedo ou tarde, fermenta e produz frutos de santidade, de espiritualidade, de reforma dos costumes (LLORCA et at. 2003, p. 243).

Por amor, obediente até à morte

Mons. João S. Clá Dias, EPVitral-CrucifixiónPquia-ND-L'Epine_img_0086

Para São Tomás, a essência do oferecimento de Jesus, como vítima na Cruz, encontra seu verdadeiro valor espiritual não só na paciência com que suportou a Paixão, ou no auge da dor moral e física a que foi submetido. Ele chama a atenção para a obediência suprema da Divina Vítima, disposta a sofrer o auge de humilhação e dor, até à morte. Com efeito, abdicando de Sua vontade humana — “não seja feito como Eu quero, mas como Tu queres” (Mt 26, 39) — contradiz a soberba do homem pecador (cf. Rm 5, 19), conferindo assim méritos infinitos a Seus sofrimentos e morte (cf. Super Philip. cap. 2, lec. 2.).

É notória, como ressalta o próprio Doutor Angélico, a ligação íntima entre a obediência de Cristo e Sua ardente caridade. Sua obediência exímia “procedia da dileção que possuía pelo Pai e por nós” (Super Rom. cap. 1, lec. 5.). Ao mesmo tempo, por atingir o extremo de submissão e humilhação, mostrou-nos “a largura, o comprimento, a altura e a profundidade” de Seu amor “que ultrapassa todo o conhecimento” (Ef 3, 18-19).

Ao provar no artigo 2 da questão 22 que Cristo foi sacerdote e vítima ao mesmo tempo, São Tomás dá como principal argumento as palavras do Apóstolo: “Cristo nos amou e Se entregou a Deus por nós em oblação, como vítima agradável” (Ef 5, 2). Parece depreender-se daí que o amor de Jesus por nós foi a causa de Sua total entrega em holocausto (cf. Super Eph. cap. 3, lec. 5.).

O senso do maravilhoso capaz de regenerar o homem

auroraMons. João S. Clá Dias, EP

O homem é um todo substancial, harmonioso, constituído de um corpo cuja forma é a alma, e potências: vegetativa, sensitiva e intelectiva, que interatuam. Assim, se alguém, durante um passeio pelo campo, se encontra com um touro furioso, produz-se no organismo uma série de reações em cadeia: a glândula suprarrenal injeta imediatamente adrenalina no sangue, o coração se acelera, os brônquios se dilatam e a respiração também se acelera. A sensação de medo provoca reações fisiológicas que colocam o corpo em um estado correspondente à alma. Existem, pois, os estados físicos de medo, vaidade, coragem e muitos outros.

Entretanto, existe também o estado físico provocado pelo maravilhoso, que produz enorme bem estar e dispõe para o esforço e para a dedicação ao bem. A saúde se beneficia, uma série de indisposições orgânicas entram em ordem e se enfrentam melhor os estados de aflição e angústia. O deleite produzido pelo senso do maravilhoso é insuperável. Uma “experiência do maravilhoso” está ao alcance do homem e, quando bem assimilada, produz no organismo um efeito que poderá ser comparado a alguns medicamentos e antidepressivos. O que não quer dizer que os medicamentos não devam ser utilizados, mas a “maravilho-terapia” poderá favorecer uma recuperação mais rápida e eficaz.

Bosques, campinas, montanhas, as variações do céu diurno e noturno, as auroras e os ocasos, o mar majestoso… são remédios naturais postos por Deus à nossa disposição. Mas não são os únicos; também as obras humanas, as netas de Deus, segundo expressão de Dante.1

Faz parte da arte de bem viver o aproveitar tudo o que possa ser objeto de contemplação. O maravilhoso é o melhor da realidade, e aponta para o Absoluto. Os medievais eram especialistas nesta arte e fomentavam com naturalidade a “celestialização” das coisas; tudo o que faziam tendia ao ápice do maravilhoso. Comentava Dr. Plinio Corrêa de Oliveira que “a alma maravilhável é uma alma maravilhosa, capaz de fazer maravilhas”.2

O homem de hoje não perdeu a capacidade de admirar, por mais que a sociedade lhe faça muitos outros convites. É preciso proporcionar-lhe ocasiões para, maravilhando-se, discernir nas coisas aquilo que elas têm de belo, de bom e de verdadeiro, ou sua ausência, e com isto poder voltar-se para o essencial: Deus.

D. Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, descreve a adesão daquele que deixa “seduzir-se” pela Beleza que salva:

“É no interior da evidência objetiva, que se deixa perceber a partir do sujeito com a  primeira reação do ‘espanto’ e da ‘admiração’, que se encontra já a força que leva o homem a reconhecê-la como bela e, portanto, boa e verdadeira e por isso mesmo cheia de sentido para ser amada e seguida”.3

1 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. X vol. Trad. de Pinto de Campos J.; Augusto Falcão C. e Della Ninna A., São Paulo [s. d.]. Vol. II.  Inferno, canto XI, verso 105.

2 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. A admiração é a nossa estrela de Belém: Pronunciamento. São Paulo, 13 maio 1988.

3 FISICHELLA, Rino. Introdução à Teologia Fundamental. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2006. p. 142.

Qual a realidade do ser?

Mons. João S. Clá Dias, EPpensadores

Os filósofos gregos que se dedicaram a resolver esse árduo problema — indagando a respeito da origem das coisas, no que consistem, qual o princípio primeiro de tudo — elaboraram várias teorias.

Sem pretender dar uma lista exaustiva das soluções propostas, lembramos, por exemplo, Thales de Mileto, cuja conclusão era de que esse princípio era a água, que impregna todas as coisas. Os filósofos posteriores rejeitaram sua explicação, argumentando que a água é um elemento extremamente mutante.

Abordando o problema da mutação do mundo material, Platão procurou solucioná-lo dizendo que as coisas participam de ideias imutáveis, um pouco como a sombra depende de um objeto real. As essências, os universais, são imutáveis e existem no mundo das ideias. Essas ideias são a verdadeira realidade, e independem das coisas.

Seu discípulo Aristóteles, um fino observador das coisas, discordou do mestre, atribuindo importância ao mundo material. Ele resolveu o problema da permanência e mudança introduzindo noções de potência e ato, as quais aparecem como matéria e forma. As coisas da natureza estão em ato, são reais, mas têm potência para sofrer mudanças.

A partir de Aristóteles, a filosofia passou a ter por objeto estudar o ser enquanto ser, e não este ou aquele ser determinado. Estava iniciada toda uma metafísica do ser, cujo desenvolvimento último é devido de modo particular à genialidade de São Tomás de Aquino.

Além de aperfeiçoar as noções de potência e ato, São Tomás mostra que essência e existência guardam, entre si, a proporção de passivo e ativo, analogicamente à matéria e à forma, que são como potência e ato. São duas realidades da mesma coisa.A existência é realmente distinta da essência, pois o ato de ser se distingue de sua potência, que o recebe e o limita.

Em termos mais simples, a essência se atualiza, ou seja, passa de potência a ato, o que significa ainda, adquire existência, em cada ser particular e concreto. Não importa que um cavalo seja grande ou pequeno, forte ou fraco, negro, alazão ou rajado, nem importa que tenha nascido com algum defeito. Em todos a mesma essência “cavalo”, ou a “cavalaridade”, se atualiza, se torna real. A essência não é algo de meramente abstrato, mas também não existe por si só. Ela existe de fato, mas somente no ser real.

A essência é, pois, potência; pode existir ou não. De seu turno, o ato de seresse.A essência, por si mesma, não pode passar de potência a ato, ou seja, vir a ter existência. É preciso haver um ato criativo e, portanto, um Criador, um Ser no qual essência e existência sejam inseparáveis. Em Deus, o Ato de Ser e a Essência se identificam: Ele é Ato Puro, Eterno e Necessário, capaz de subsistir independentemente de qualquer potência.

Já as criaturas são seres contingentes, e poderiam não existir; seu ser chegou ao ato, à existência, depois de estar em potência.

As criaturas participam do ato de ser em graus diversos, segundo suas respectivas essências: quanto mais perfeitas são, maior é o ato de ser do qual participam. Desse modo, um pedregulho participa do ato de ser de um modo menos intenso que uma rosa. E uma formiga, de um modo menos intenso que um leão. O homem, por sua vez, participa desse ato menos intensamente que os anjos. Assim, a fonte última de toda perfeição individual é o esse.

Esta é, pois, uma das principais doutrinas metafísicas de São Tomás: a distinção real entre essentia e esse. Sem ela o ensinamento tomista sobre essência e existência torna-se incompreensível.

As sete palavras de Jesus

cruz-livroMons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

Afirma São Tomás que “o último na ação é o primeiro na intenção”. Pelos derradeiros atos e disposições de alma de quem transpõe os umbrais da eternidade, chegamos a compreender bem qual foi o rumo que norteou sua existência.

No caso de Jesus, não só na morte de cruz, mas também, de forma especial, em suas últimas palavras, vemos o sentido mais profundo de sua Encarnação. Nelas encontramos uma rutilante síntese de sua vida: constante e elevada oração ao Pai, apostolado através da pregação, conduta exemplar, milagres e perdão.

A cruz foi o divino pedestal eleito por Jesus para proclamar suas últimas súplicas e decretos. No alto do Calvário se esclareceram todos os seus gestos, atitudes e pregações. Maria também compreendeu ali, com profundidade, sua missão de mãe.

Jesus é a Caridade. A perfeição dessa virtude, nós a encontramos nas “Sete Palavras”. As três primeiras têm em vista os outros (inimigos, amigos e familiares); as demais, a Si próprio.

1ª Palavra: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34)

Pai — É o mais suave título de Deus. Nessa hora extrema, Jesus bem poderia invocá-Lo chamando-O Deus. Percebe-se, entretanto, claramente a intenção do Redentor: quis afastar, dos fautores daquele crime, a divina severidade do Juiz Supremo, interpondo a misericórdia de sua paternalidade. Chega-se a entrever a força de seu argumento: se o Filho, vítima do crime, perdoa, por que não o fazeis também Vós?

É a primeira “palavra” que os divinos lábios d’Ele pronunciam  na cruz, e nela já encontramos o perdão. Perdão pelos que Lhe infligiram diretamente seu martírio. Perdão que abarca também todos os outros culpados: os pecadores. Nesse momento, portanto, Jesus pediu ao Pai também por mim.

Embora não houvesse fundamento para escusar o desvario e ingratidão do povo, a sanha dos algozes, a inveja e ódio dos príncipes e dos sacerdotes, etc., tão infinita foi a Caridade de Jesus que Ele argumenta com o Pai: “porque não sabem o que fazem”.

A ausência absoluta de ressentimento faz descer do alto da cruz a luminosidade harmoniosa e até afetuosa do amor ao próximo como a si mesmo. Ouvindo essa súplica, chegamos a entender quanta isenção de ânimo havia em Jesus, na ocasião em que expulsou os vendilhões do Templo: era, de fato, o puro zelo pela casa de seu Pai.

2ª Palavra: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43)

A cena não podia ser mais pungente. Jesus se encontra entre dois ladrões. Um deles faz jus à afirmação da Escritura: “Um abismo atrai outro abismo” (Sl 41, 8). Blasfema contra Jesus, dizendo: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo, e salva-nos a nós” (Lc 23, 39).

Enquanto esse ladrão ofende, o outro louva Jesus e admoesta seu companheiro, dizendo: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício? Para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez mal algum” (Lc 23, 40-41).

São palavras inspiradas, nas quais transparecem a santa correção fraterna, o reconhecimento da inocência de Cristo, a confissão arrependida dos crimes come­tidos. São virtudes que lhe preparam a alma para uma ousada súplica: “Senhor, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino!” (Lc 23, 42).

Ao referir-se a Jesus enquanto “Senhor”, o bom ladrão professa sua condição de escravo e reconhece-O como Redentor. O “lembra-te de mim” é afirmativo, não tem nenhum sentido condicional, pois sua confiança é plena e inabalável. Compreende a superioridade da vida eterna sobre a terrena, por isso não pede aquilo que, para o mau ladrão, constitui um delírio: o afastamento da morte, a recuperação da saúde e da integridade.

O bom ladrão confessa publicamente a Nosso Senhor Jesus Cristo, ao contrário até mesmo de São Pedro, que havia três vezes negado o Senhor. Tal gesto lhe fez merecer de Jesus este prêmio: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43).

Jesus torna solene a primeira canonização da história: “Em verdade…”

A promessa é categórica até quanto à data: hoje. São Cipriano e Santo Agostinho chegam a afirmar ter recebido o bom ladrão a palma do martírio, pelo fato de, por livre e espontânea vontade, haver confessado publicamente a Nosso Senhor Jesus Cristo.

3ª Palavra: “Junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cleófas, e Maria Madalena. Quando Jesus viu sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: ‘Mulher, eis aí teu filho’. Depois disse ao discípulo: ‘Eis aí tua mãe’. E dessa hora em diante o discípulo a levou para a sua casa” (Jo 19, 25-27).

Com essas palavras, Jesus finaliza sua comunicação oficial com os homens antes da morte (as quatro outras serão de sua intimidade com Deus). Quem as ouve são Maria Madalena, representan­do a via da penitência; Maria, mulher de Cleófas, a dos que vão progredindo na vida espiritual; Maria Santíssima e São João, a da perfeição.

Consideremos um breve comentário de Santo Ambrósio sobre este trecho: “São João escreveu o que os outros calaram: [pouco depois de] conceder o reino dos céus ao bom ladrão, Jesus, cravado na cruz, considerado vencedor da morte, chamou sua Mãe e tributou a Ela a reverência de seu amor filial. E, se perdoar o ladrão é um ato de piedade, muito mais é homenagear a Mãe com tanto carinho… Cristo, do alto da cruz, fazia seu testamento, distribuindo entre sua Mãe e seu discípulo os deveres de seu carinho” (in S. Tomás de Aquino, Catena Aurea).

É arrebatador constatar como Jesus, numa atitude de grandioso afeto e nobreza, encerrou oficialmente seu relacionamento com a humanidade, na qual se encarnara para redimi-la. Do auge da dor, expressou o carinho de um Deus por sua Mãe Santíssima, e concedeu o prêmio para o discípulo que abandonara seus próprios pais para segui-Lo: o cêntuplo nesta terra (Mt 19, 29).

É perfeita e exemplar a presteza com que São João assume a herança deixada pelo Divino Mestre: “E dessa hora em diante, o discípulo a levou para a sua casa” (Jo 19, 27). São João desce do Calvário protegendo, mas sobretudo protegido pela Rainha do céu e da terra. É o prêmio de quem procura adorar Jesus no extremo de seu martírio.

4ª Palavra: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27, 45)

Jesus clama em alta voz. Seu brado fende não somente os ares daquele instante, mas os céus da história. Nossos ouvidos são duros, era indispensável falar com força. Jesus não profere uma queixa, nem faz uma acusação. Deseja, por amor a nós, fazer-nos entender a terrível atrocidade de seus tormentos. Assim mais facilmente adquiriremos clara noção de quanto pesam nossos pecados e de quanto devemos ser agradecidos pela Redenção.

Como entender esse abandono? Não rompeu-se — e é impossível — a união natural e eterna entre as pessoas do Pai e do Filho. Nem sequer separaram-se as naturezas humana e divina. Jamais se interrompeu a união entre a graça e a vontade de Jesus. Tampouco perdeu sua alma a visão beatífica.

Perdeu Jesus, isto sim, e temporariamente, a união de proteção à qual Ele faz menção no Evangelho: “Aquele que me enviou está comigo; ele não me deixou sozinho” (Jo 8, 29). O Pai bem poderia protegê-Lo nessa hora (cfr. Mc 14, 36; Mt 26, 53; Lc 22, 43). O próprio Filho poderia proteger seu Corpo (Jo 10, 18; 18, 6), ou conferir-lhe o dom de incorruptibilidade e de impassibilidade, uma vez que sua alma estava na visão beatífica.

Mas assim determinou a Santíssima Trindade: a debilidade da natureza humana em Jesus deveria prevalecer por um certo período, a fim de que se cumprisse o que estava escrito. Por isso Jesus não se dirige ao Pai como em geral procedia, mas usa da invocação “meu Deus”.

A ordem do universo criado é coesa com a ordem moral. Ambas procedem de uma mesma e única causa. Se a primeira não se levanta para se vingar daqueles que dilaceram os princípios morais por meio de seus pecados, é porque Deus lhe retém o ímpeto natural. Se assim não fosse, os céus, os mares e os ventos se ergueriam contra toda e qualquer ofensa feita a Deus. Mas como frear a natureza diante do deicídio? Por isso, na hora daquele crime supremo, “cobriu-se toda a terra de trevas”… (Mt 27, 45).

5ª Palavra: “Tenho sede.” (Jo 19, 28)

Assinala o evangelista que Jesus dissera tais palavras por saber “que tudo estava consumado, para se cumprir plenamente a Escritura”. Vendo um vaso cheio de vinagre que havia por ali, os soldados embeberam uma esponja, “e fixando-a numa vara de hissopo, chegaram-lhe à boca” (Jo 19, 28-29).

Cumpria-se assim o versículo 22 do salmo 68: “Puseram fel no meu alimento; na minha sede deram-me vinagre para beber”.

Qual a razão mais profunda desse episódio? É um verdadeiro mistério.

Jesus derramara boa quantidade de seu preciosíssimo Sangue durante a flagelação. As chagas, em via de cicatrização, foram reabertas ao longo do caminho e ainda mais quando Lhe arrancaram as roupas para crucificá-Lo. O pouco sangue que Lhe restava escorria pelo sagrado lenho. Por isso, a sede tornou-se ardentíssima. Além desse sentido físico, a sede de Jesus significava algo mais: o Divino Redentor tinha sede da glória de Deus e da salvação das almas.

E o que lhe oferecem? Um soldado lhe apresenta, na ponta de uma vara, uma esponja empapada de vinagre. Era a bebida dos condenados.

Podemos de alguma maneira aliviar pelo menos esse tormento de Jesus? Sim! Antes de tudo, compadecendo-nos d’Ele com amor e verdadeira piedade, e apresentando-Lhe um coração arrependido e humilhado.

Devemos querer ter parte nessa sede de Cristo, almejando acima de tudo à nossa própria santificação e salvação, com redobrado esforço, de modo a não pensar, desejar ou praticar algo que a Ele não nos conduza. Para Ele será uma água fresca e cristalina nossa fuga vigilante das ocasiões próximas de pecado. Compadeçamo-nos também dos que vivem no pecado ou nele caem, e trabalhemos por sua salvação. Em suma, apliquemo-nos com ânimo na tarefa de apressar o triunfo do Imaculado Coração de Maria.

O Salvador clama a nós do alto da cruz que defendamos, mais ainda que o bom ladrão, a honra de Deus, procurando conduzir a opinião pública para a verdadeira Igreja. É nosso dever buscar entusiasmadamente a glória de Cristo, “que nos amou e por nós se entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor.” (Ef 5, 2).

6ª Palavra: “Tudo está consumado.” (Jo 19, 30)

A Sagrada Paixão terminara e, com ela, a pregação. Todas as profecias haviam se cumprido, conforme interpreta Santo Agostinho: a concepção virginal (Is 7, 14); o nascimento em Belém (Mq 5, 1); a adoração dos Reis (Sl 71, 10); a pregação e os milagres (Is 61, 1; 35, 5-6); a gloriosa entrada em Jerusalém no dia de Ramos (Zc 9,9) e toda a Paixão (Isaías e Jeremias).

Na Cruz foi vencida a guerra contra o demônio: “Agora é o juízo deste mundo; agora será lançado fora o príncipe deste mundo” (Jo 12, 31). No paraíso terrestre, o demônio adquirira de modo fraudulento a posse deste mundo, com o pecado de nossos primeiros pais. Jesus a recuperou como legítimo herdeiro.

Consumado também estava o edifício da Igreja. Este iniciou-se com o batismo no Jordão, onde foi ouvida a voz do Pai indicando seu Filho muito amado, e se concluiu na cruz, na qual Jesus comprou todas as graças que serão distribuídas até o fim do mundo através dos sacramentos.

Para que o preciosíssimo Sangue do Salvador ponha fim ao império do demônio em nossas almas, é preciso que crucifiquemos nossa carne com seus caprichos e delírios, combatendo também o res­peito humano e a soberba. Jesus nos abriu um caminho que, aliás, todos os santos trilharam.

7ª Palavra: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.” (Lc 23, 46)

Estabeleceu-se na Igreja, desde os primórdios, o costume de enco­mendar as almas dos fiéis defuntos, a fim de que a luz perpétua os ilumine.

Jesus, porém, não tinha necessidade de encomendar sua alma ao Pai, pois ela havia sido criada no pleno gozo da visão beatífica. Desde o primeiro instante de sua existência, encontrava-se unida à natureza divina na pessoa do Verbo. Portanto, ao abandonar o corpo sagrado, sairia vitoriosa e triunfante. “Meu espírito”, e não alma, provavelmente aqui significaria a vida corporal de Jesus.

Mas Jesus aguardava sua ressurreição para logo. Ao entregar ao Pai a vida que d’Ele recebera, sabia que ela Lhe seria restituída no tempo devido.

Com reverência tomou o Pai Eterno em suas mãos a vida de seu Filho unigênito, e com infinito comprazimento a devol­veu, no ato da ressurreição, a um corpo imortal, impassível e glorioso. Abriu-se, assim, o caminho para a nossa ressurreição, ficando-nos a lição de que ela não pode ser atingida senão pelo calvário e pela cruz.

AVE CRUX, SPES UNICA.

Há diversidade de dons, mas um só Espírito

Mons. João S. Clá Dias, EPFim ano sacerdotal

No Catecismo da Igreja Católica explica-se “o mistério sagrado da Igreja Una” em função da sua origem divina, tendo ela por “modelo e supremo princípio a unidade de um só Deus na Trindade de pessoas”. “Contudo — prossegue o texto — desde a origem, esta Igreja Una se apresenta com uma grande diversidade, que provém ao mesmo tempo da variedade dos dons de Deus e da multiplicidade das pessoas que os recebem” (n. 813-814).

“Há diversidade de dons, mas um só Espírito” (1Cor 12, 4), ensina São Paulo aos Coríntios. Com efeito, ante a abundância das manifestações carismáticas entre os fiéis, o Apóstolo orienta os discípulos a considerar a unidade da Igreja, o “Corpo de Cristo” (1 Cor 27), pois a variedade dos dons — sabedoria, palavra de ciência, poder de realizar milagres, discernimento dos espíritos, e tantos outros (cf. 1 Cor 8-10) — é concedida pelo mesmo Deus “que opera tudo em todos” (1 Cor 6).

Assim, a unidade na variedade da Igreja explica-se pela ação do Espírito Santo, “princípio de toda ação vital e verdadeiramente salutar em cada uma das diversas partes do Corpo” (Catecismo, 798).

Consumada, pois, a obra que o Pai confiara ao Filho realizar na terra (cf. Jo 17, 4), foi enviado o Espírito Santo no dia de Pentecostes a fim de santificar perenemente a Igreja para que assim os crentes pudessem aproximar-se do Pai por Cristo num mesmo Espírito (cf. Ef 2, 18). Ele é o Espírito da vida ou a fonte de água que jorra para a vida eterna (cf. Jo 4, 14; 7, 38-39). […] O Espírito habita na Igreja e nos corações dos fiéis como num templo (cf. 1 Cor 3, 16; 6, 19). […] Unifica-a na comunhão e no ministério. Dota-a e dirige-a mediante os diversos dons hierárquicos e carismáticos. E adorna-a com Seus frutos (cf. Ef 4 11-12; 1 Cor 12, 4;  Gl 5, 22) (LG, 4).

É importante ressaltar que nessa mesma Igreja, acompanhada sempre pelo sopro do Paráclito, há uma ordenação hierárquica dos carismas por Ele mesmo instituída, pois, segundo o próprio São Paulo: “Deus constituiu primeiramente os apóstolos, em segundo lugar os profetas, em terceiro os doutores, depois os que têm o dom dos milagres” (1 Cor 28).

Com efeito, sendo Cristo “pedra angular”, edificou Sua Igreja sobre “o fundamento dos apóstolos” (Ef 2, 20), dando-lhes o poder de ligar e desligar na terra e no Céu (Mt 18, 18). E, dentre eles, designou Pedro e seus sucessores como princípio e fundamento visível da unidade da fé (D 4147), a quem incumbe confirmar os seus irmãos (Lc 22, 32).

É por essa determinação divina que São Pedro e os Apóstolos constituíram um Colégio. E também, em virtude da função conferida de forma singular pelo Senhor a Pedro, e que se transmite aos seus sucessores, o Bispo de Roma é cabeça do Colégio dos Bispos, Vigário de Cristo e Pastor de toda a Igreja na terra, com poder ordinário, supremo, pleno, imediato e universal, podendo exercê-lo sempre livremente (câns. 330 e 331).

Por sua vez, o Colégio Episcopal, no qual persevera continuamente o corpo apostólico, também é sujeito do poder supremo e pleno sobre toda a Igreja, em união com sua cabeça e nunca sem ela (cân. 336). Existe na Igreja, também, por instituição divina, o poder de regime ou de jurisdição (cân.129), que se divide em legislativo, executivo e judiciário (cân. 135).

A essa Igreja, verdadeira construção de Deus (cf. 1 Cor 3, 9), em sua unidade fundamental e em sua diversidade carismática, cada fiel, exercendo sua função peculiar, deve dedicar todo seu entusiasmo, sua obediência e seu amor. Amor que brotando do mais profundo do coração, mova-o à dedicação e ao apostolado, em função da vocação cristã comum a todos os batizados:

Existe na Igreja diversidade de serviços, mas unidade de missão. Aos Apóstolos e a seus sucessores foi por Cristo conferido o múnus de, em nome e com o poder dEle, ensinar, santificar e reger. Os leigos, por sua vez, participantes do múnus sacerdotal, profético e régio de Cristo, compartilham a missão de todo o povo de Deus na Igreja e no mundo (AA 2).

Início de tudo o que virá depois

Mons. João Clá Dias, EP

Quando a criancinha, em seu berço, “pesquisa” com intensidade seu primeiro chocalho, ou observa longa e profundamente o rosto de sua mãe, ou tem a curiosidade despertada pelo acender e apagar da lâmpada, está realizando a descoberta do ser. Este é o objeto da intuição, o primeiro a ser apreendido pela inteligência através dos sentidos, e dele deflui todo pensamento metafísico.

viewEm várias passagens de sua obra, São Tomás se manifesta neste sentido. Tomemos, por exemplo, a seguinte sentença em De Veritate: “Aquilo que o intelecto apreende primeiramente como o mais conhecido e no qual resolve todas as suas concepções é o ser [ens]”.1 Na Suma Teológica, ele reafirma tal princípio: “Há uma certa ordem naquilo que está ao alcance da apreensão humana. O que o intelecto apreende em primeiro lugar é o ser [ens], cuja compreensão está inclusa em todas as suas apreensões”.2

A doutrina da apreensão do ser — o ente (ens) — em primeiro lugar pela inteligência constitui a pedra angular da filosofia tomista: “O que primeiro o intelecto concebe é o ente, pois algo é cognoscível na medida em que se encontra em ato”.3

O “ente” é algo cognoscível enquanto é em ato. São Tomás toca continuamente nessa tecla. O ser, objeto próprio do intelecto, é “o primeiro inteligível, assim como o som é o primeiro audível”.4

Chesterton observa que essa filosofia tem como ponto de referência a realidade, quer dizer, ela corresponde ao senso comum. O Doutor Angélico “está absolutamente certo de que a diferença entre giz e queijo, ou entre porco e pelicano, não é uma mera ilusão, ou ofuscamento de nossa confusa mente, cegada por uma única luz; mas é mais ou menos aquilo que nós sentimos que seja”.5

Contrapondo-se ao robusto pensamento de São Tomás, vêm se sucedendo nos últimos séculos as divagações de correntes filosóficas que tiraram os olhos do ser para se concentrarem em um subjetivismo radical, incapazes de entender a realidade das coisas e obscurecendo a própria noção da existência de Deus. O imanentismo cartesiano é o caminho reto para o ateísmo ou o agnosticismo, e a filosofia após Descartes seguiu festiva por ali. Os passos seguintes levam à negação da moralidade objetiva.

A única solução sensata é voltar os olhos de novo para o ser. Pois é precisamente ele, em toda a sua inabarcável variedade e rica unicidade, que é entendido primordialmente pela inteligência através da experiência sensível.

A criança que está deitando seus primeiros olhares em torno de si vai formar conceitos no contato com o ser. Quaisquer que sejam tais conceitos — mamãe, frio, gostoso —, eles serão uma especificação ou um exemplo daquilo que é.

Até mesmo para conhecer sua própria alma o homem tem necessidade de primeiramente conhecer o ser material. Com efeito, não se pode dizer que conhecemos em primeiro lugar nosso espírito. Até mesmo para definir a espiritualidade somos obrigados a recorrer à matéria, falando de imaterialidade. Pela mesma razão, usamos de analogia com o espaço material para atribuirmos profundidade e elevação à alma.

O conceito de ser é, assim, anterior a todo outro conceito. É a primeira proposição que a mente humana forma no início de sua vida de experiência: “Alguma coisa existe”. Apreendido o ser através da luz natural da inteligência, a noção de ser está subjacente a tudo o que se possa conceber.

O ser assim apreendido em primeiro lugar é algum ser particular, e qualquer que seja o nome que se lhe dê significará minimamente alguma coisa que é.

O inter-relacionamento entre os diversos sentidos, cada um captando a realidade do ser segundo seu modo próprio, é a base para que a inteligência a apreenda como real inteligível e verdadeiro, como mostra Garrigou-Lagrange: “Enquanto a vista alcança o real colorido, como colorido, a inteligência o alcança como real inteligível. Do mesmo modo, assim como o ouvido alcança o real como sonoro, e o paladar o percebe como mais ou menos saboroso”.6

Havendo afirmado que o ser (ente) é o primeiro que cai na apreensão do intelecto, São Tomás completa seu pensamento com esta definição: “O primeiro princípio indemonstrável é: não é possível afirmar e negar ao mesmo tempo, fundado na noção de ser e não ser. E neste princípio se fundam todos os outros, como diz [Aristóteles] no livro 4 da Metafísica”.7

Fica assim introduzido um primeiro aspecto do ser que o intelecto conhece: sua oposição ao não-ser, ou seja, o princípio de não-contradição.

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1 “Illud autem quod primo intellectus concipit quasi notissimum et in quo omnes conceptiones resolvit est ens” (De Veritate, q. 1, a. 1).

2 “In his autem quae in apprehensione omnium cadunt, quidam ordo invenitur. Nam illud quod primo cadit in apprehensione, est ens, cuius intellectus includitur in omnibus quaecumque quis apprehendit” (S. Th. I-II, q. 94, a. 2).

3 “Primo autem in conceptione intellectus cadit ens: quia secundum hoc unumquodque cognoscibile esta, inquantum est actu” (S. Th. I, q. 5, a. 2).

4 “Unde ens est proprium obietum intellectus, et sic est primus intelligibile, sicut sonus est primum audibile” (S. Th. I, q. 5, a. 2).

5 CHESTERTON, G. K. St. Thomas Aquinas, the “Dumb Ox”. New York: Image, 1956. p. 40.

6 Garrigou-Lagrange, Réginald. El Sentido Común, la Filosofia del ser y las fórmulas dogmáticas. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1944. p. 330.

7 “Primum principium indemonstrabile est quod non est simul affirmare et negare, quod fundatur supra rationem entis et non entis, et super hoc principio omnia alia fundantur, ut dicitur in IV Metaphys” (S. Th. I-II, q. 94, a. 2).

Corrimãos da escada da vida

caminhoMons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

A teologia moral de Santo Agostinho, tanto como a ética de Aristóteles, foram as fontes das doutrinas escolásticas sobre a razão moral. Em De Libero Arbitrio, o bispo de Hipona afirmara que a moralidade exige da vontade humana sua conformidade com as prescrições da lei imutável e eterna, impressa na nossa mente. Tal lei, chamada de summa ratio (“razão suprema”), deve ser sempre obedecida. Por seus padrões é que são julgados os bons e os maus.1

Concorde com a tese agostiniana,2 São Tomás procura definir meticulosamente a lei eterna acentuando de início que ela “não é senão a razão da sabedoria divina, na medida em que ela dirige todos os atos e movimentos”.3 Essa lei — que se identifica com a Providência Divina — é, portanto, o princípio ordenador de todo o universo criado: “Toda a comunidade do universo é governada pela razão divina. E assim a própria razão do governo das coisas em Deus, como príncipe do universo, tem razão de lei”.4 Assim, a suprema lei é o próprio Deus, sendo eterna como Ele é eterno; é a Sabedoria de Deus “que move todas as coisas para seu devido fim”.5 E todas as coisas são avaliadas segundo a lei eterna, seguindo-se daí que dela todas participam de algum modo, e suas propensões para seus atos e fins próprios vêm da impressão em si dessa lei.

Nas questões 90 a 108 da Suma Teológica, parte I-II, São Tomás se estende genialmente sobre o significado e o alcance da lei eterna e sobre as outras leis que dela derivam: a lei natural, a lei divina e a lei humana.

Começando pela lei natural, ele a define como “a participação da lei eterna na criatura racional”, sendo proporcionada pela “luz do intelecto posta em nós por Deus, através da qual conhecemos o que devemos fazer e o que devemos evitar”,6 por ser uma norma imperativa para dirigir os atos livres do homem.

Noutro lugar, São Tomás descreve a lei natural como os primeiros princípios da atividade moral humana, evidentes de si, não demonstráveis.7

Ninguém pode, com sinceridade e no uso normal de suas faculdades mentais,8  negar a existência dessa lei natural, segundo a qual há obras boas e outras más por sua própria natureza. São Tomás afirma que todos os homens conhecem pelo menos os princípios comuns da lei natural.9 Diz ele ainda que, “quanto aos princípios comuns da razão quer especulativa, quer prática, a verdade ou retidão é a mesma em todos, e igualmente conhecida”.10 Quer dizer, não há quem não conheça a distinção entre bem e mal, e nossa obrigação de optar pelo primeiro e rejeitar o segundo se apresenta à inteligência com força de lei.

Também a lei humana positiva tem a obrigação de se conformar com a Sabedoria de Deus. É a ela que o Aquinate se refere quando afirma que, como “o fim último da vida humana é a felicidade ou bem-aventurança […] é necessário que a lei vise maximamente à ordem que é para a bem-aventurança”.11 A lei temporal não pode colidir com a lei eterna, mas deve secundá-la.

A lei divina — consolidada nos Dez Mandamentos — mostra ao homem o caminho a seguir para praticar o bem e atingir seu fim. São Tomás se pergunta se, havendo já a lei natural e as leis humanas, é preciso também haver uma lei divina positiva. Ele inicia sua resposta lembrando que a bem-aventurança eterna, para a qual o homem foi criado, “excede a proporção da potência natural humana”. Assim faz-se necessário que, “acima da lei natural e humana, fosse dirigido também a seu fim pela lei divinamente dada”.12

Todas essas leis são como que corrimãos numa longa e difícil trajetória, numa escada colocada sobre um abismo. Pode ser que esses corrimãos pareçam limitações absurdas à liberdade. Na realidade, são anteparos que Deus nos concedeu para proteger a verdadeira liberdade e para nos auxiliar na ascensão até Ele.

Como estão equivocadas certas correntes de educação que procuram instilar na criança e no jovem a ideia de que os princípios morais são frios e cruéis! O certo, afirmam elas, seria optar por uma moral “amiga”, relativa, dependente apenas das circunstâncias, dos casos particulares, e esquecer tais princípios.

É supérfluo realçar a nocividade de tal doutrina para o tesouro acumulado a partir do primeiro olhar sobre o ser. E que resultados funestos trazem para a sociedade como um todo. Basta olharmos para o que vai se passando à nossa volta…

1 De Libero Arbitrio, I, 1.6.15.48-49; 51: “Illa lex quae summa ratio nominatur cui semper obtemperandum est et per quam mali miseram, boni beatam vitam merentur […], potestne cuipiam intellegenti non incommutabilis aeternaque videri? An potest aliquando iniustum esse, ut mali miseri, boni autem beati sint? […] Ut igitur breviter aeternae legis notionem, quae impressa nobis est, quantum valeo, verbis explicem, ea est, qua iustum est, ut omnia sint ordinatissima”.

2 Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 1: “Sed contra est quod Augustinus dicit quod lex aeterna est summa ratio, cui semper obtemperandum est”.

3 S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Nihil aliud est quam ratio divinae sapientiae, secundum quod est directiva omnium actuum et motionum”.

4 S. Th. I-II, q. 91, a. 1: “Tota communitas universi gubernatur ratione divina. Et ideo ipsa gubernationis rerum in Deo sicut in principe universitatis existens, legis habet rationem”.

5 S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Moventis omnia ad debitum finem”.

6 Collationes in decem praeceptis, Proœmium: “Lex naturae […] nihil aliud est nisi lumen intellectus insitum nobis a Deo, per quod cognoscimus quid agendum et quid vitandum”.

7 Cf. S. Th. I-II, q. 94, a. 2. “Sunt quaedam principia per se nota”.

8 “Alguma pessoa dotada de inteligência”, dizia Santo Agostinho (op. cit. 1.6.15.48).

9 Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 2.

10 S. Th. I-II, q. 94, a. 4. “Quantum ad communia principia rationis sive speculativae sive practicae, est eadem veritas seu rectitudo apud omnes, et aequaliter nota”.

11 S. Th. I-II, q. 90, a. 2. “Oportet quod lex maxime respiciat ordinem qui est in beatitudinem”.

12 S. Th. I-II, q. 91, a. 4. “Excedit proportionem naturalis facultatis humanae. Ut supra legem naturalem et humanam, dirigeretur etiam ad suum finem lege divinitus data”.

Predomínio do frenesi e da instantaneidade

Mons. João S. Clá Dias, EPtibidabo

Em um de seus últimos documentos — “O rápido desenvolvimento”, sobre os meios de comunicação —, João Paulo II ressaltou um aspecto da pós-modernidade:

“As modernas tecnologias aumentam de maneira impressionante a velocidade, a quantidade e o alcance da comunicação, mas não favorecem de igual modo aquele intercâmbio frágil entre uma mente e outra, entre um coração e outro, que deve caracterizar qualquer forma de comunicação ao serviço da solidariedade e do amor” (n. 13).

Sem deixar de apontar a necessidade de os católicos aprimorarem sua participação nos chamados “grandes areópagos” dos meios de comunicação, é importante salientar que seria suicida uma posição ingênua e acrítica desses meios, como se só trouxessem vantagens, e não acarretassem, concomitantemente, perigos colaterais…

Em um mundo no qual predomina uma “cultura do instantâneo”, da permanente mudança, do descartável, do relativo, as transmissões ao vivo pela televisão e a rapidez de interação oferecida pela internet só podem agravar o quadro geral. Tal ambiente facilita a queda do edifício de certezas próprio da mente humana.

Não parecem atuais as respostas perenes, nem as regras que não caducam, nem normas éticas objetivas. Em nosso tempo todos os valores são arrastados na enxurrada da instantaneidade, no torvelinho de um devir que não deixa nada de pé.

Desaparecem as normas morais objetivas, ruem os princípios imutáveis da filosofia, e, mais ainda, os da teologia.

Tout passe, tout casse, tout lasse et tout se remplace… parece o único dogma a permanecer de pé.

Mais do que nunca é necessário voltar ao essencial, ao diretamente relacionado com o ser, ao robustecimento desse senso do ser do qual fizemos aqui objeto de análise.

Os ventos de 1968 (o ano dos movimentos contestatários, especialmente o da Sorbonne) deixaram, a esta altura, seus grandes desiludidos. Uma grande multidão se interroga sobre a validade do “tout passe…” e se volta à procura do perene, do estável, daquilo que tem o selo da credibilidade.

Os funerais de João Paulo II reuniram milhões de pesarosos fiéis em Roma (além de pessoas que, independentemente de suas convicções religiosas, foram à Cidade Eterna prestar uma homenagem ao finado Papa). Do mesmo modo, a escolha do Cardeal Ratzinger para ocupar o trono papal atraiu as atenções do mundo inteiro. As exéquias de um e a eleição do outro foram acompanhados à distância por milhões de pessoas que se utilizaram dos modernos meios de comunicação. Esse fenômeno não só evidenciou sinais de respeito e admiração pelo Papado, mas também foi uma exuberante e incontestável prova da atração por símbolos, ritos, cores e cerimonial, que alguns teóricos consideravam como “varridos” pelos ventos da História.