O grande mestre de São Tomás de Aquino

tomasMons. João S. Clá Dias, EP

Ensina-nos Santiago na sua epístola que “se alguém necessita de sabedoria, peça-a a Deus – que a todos dá liberalmente, com simplicidade e sem recriminação – e ser-lhe-á dada” (Tg 1, 5). Assim o fez São Tomás.

Seu grande e insuperável Mestre foi o Santíssimo Sacramento, diante do qual passava rezando horas inteiras, dia e noite. Frequentemente, no momento auge da celebração da Santa Missa, ou seja, na hora da Consagração do pão e do vinho, não só o milagre da transubstanciação se realizava em suas mãos, como também, sua face se transfigurava. Chegou ele a afirmar ter aprendido muito mais junto ao Santíssimo Sacramento do que em todos os seus estudos.1

Guilherme de Tocco, o seu primeiro e principal biógrafo, insiste em dizer que Tomás adquirira o hábito de rezar demoradamente quando tinha de vencer um obstáculo, de intervir num debate importante, de ensinar qualquer matéria mais árdua. Ele confessava assim encontrar a solução dos problemas que o torturavam. Quanto ao tempo que o comum dos homens costumam dedicar ao descanso, Tomás o reduziu a quase nada para prolongar este “Sacrum Convivium” com Jesus Eucarístico.2

O Padre Santiago Ramirez (1975), baseando-se no processo de canonização de Santo Tomás em Nápoles, explica na sua biografia sobre o Aquinate que “Ele era o primeiro a se levantar pela noite, e ia prosternar-se diante do Santíssimo Sacramento. E quando tocavam as Matinas, antes que os religiosos formassem fila para ir ao coro, ele voltava sigilosamente para a sua cela para que ninguém notasse”.3

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1 “Sua alma entrava num comércio íntimo com Deus. Seu corpo se tornava imóvel, suas lágrimas corriam em abundância, e diversas vezes o vimos elevado da terra vários cúbitos. Era o momento no qual São Tomás adquiria os mais altos conhecimentos, encontrava infalivelmente a solução de suas dificuldades, a compreensão dos textos da Escritura, e as decisões teológicas das quais tinha necessidade. Ele mesmo confidenciou a Frei Reginaldo, seu confessor, ter aprendido mais através de suas meditações, na igreja, diante do Santíssimo Sacramento, ou em sua cela aos pés do Crucifixo, que em todos os livros por ele consultados.” JOYAU, Charles-Anatole, O. P., Saint Thomas d’Aquin, Lyon: Librairie Générale Catholique et Classique, 1895. Tradução nossa.

2 Cf. AMEAL, João. São Tomás de Aquino. Iniciação ao estudo da sua figura e da sua obra. 3ª ed. Porto: Tavares Martins, 1947, p. 131.

3 RAMÍREZ, S.: Introducción a Tomás de Aquino, Madrid, BAC. 1975­, p. 83-84­.

Por amor, obediente até à morte

Mons. João S. Clá Dias, EPVitral-CrucifixiónPquia-ND-L'Epine_img_0086

Para São Tomás, a essência do oferecimento de Jesus, como vítima na Cruz, encontra seu verdadeiro valor espiritual não só na paciência com que suportou a Paixão, ou no auge da dor moral e física a que foi submetido. Ele chama a atenção para a obediência suprema da Divina Vítima, disposta a sofrer o auge de humilhação e dor, até à morte. Com efeito, abdicando de Sua vontade humana — “não seja feito como Eu quero, mas como Tu queres” (Mt 26, 39) — contradiz a soberba do homem pecador (cf. Rm 5, 19), conferindo assim méritos infinitos a Seus sofrimentos e morte (cf. Super Philip. cap. 2, lec. 2.).

É notória, como ressalta o próprio Doutor Angélico, a ligação íntima entre a obediência de Cristo e Sua ardente caridade. Sua obediência exímia “procedia da dileção que possuía pelo Pai e por nós” (Super Rom. cap. 1, lec. 5.). Ao mesmo tempo, por atingir o extremo de submissão e humilhação, mostrou-nos “a largura, o comprimento, a altura e a profundidade” de Seu amor “que ultrapassa todo o conhecimento” (Ef 3, 18-19).

Ao provar no artigo 2 da questão 22 que Cristo foi sacerdote e vítima ao mesmo tempo, São Tomás dá como principal argumento as palavras do Apóstolo: “Cristo nos amou e Se entregou a Deus por nós em oblação, como vítima agradável” (Ef 5, 2). Parece depreender-se daí que o amor de Jesus por nós foi a causa de Sua total entrega em holocausto (cf. Super Eph. cap. 3, lec. 5.).

São Tomás e o hilemorfismo

Ms. Antônio Chaves Sobrinho (IFAT)tomas

São Tomás aceita e desenvolve a doutrina aristotélica da matéria e da forma, do ato e da potência. Aperfeiçoa e aprofunda esses conceitos, tirando deles ensinamentos que se perpetuaram na Escolástica até nossos dias. Mais ainda, ele sublima a doutrina hilemórfica e chega a alturas não sonhadas por Aristóteles. Através da multiplicidade das formas chega àquelas que são puras e se identificam com as substancias angélicas. Fala de formas independentes da matéria que são inteligências, substâncias espirituais puras, quididades simples e perfeitas. Ele afirma:

[…] o relacionamento da matéria e da forma é tal que a forma dá ser à matéria e, deste modo, é impossível que haja matéria sem alguma forma; no entanto, não é impossível haver alguma forma sem matéria. Mas se se encontram algumas formas, que não podem ser senão na matéria, isto lhes advém na medida em que estão distanciadas do primeiro princípio que é o ato primeiro e puro. Donde, aquelas formas, que estão próximas ao máximo do primeiro princípio, serem formas substanciais por si, sem matéria. De fato, a forma, de acordo com a totalidade de seu gênero, não necessita da matéria, como foi dito. Tais formas são inteligência e, por isso, não é preciso que as essências ou quididades destas substâncias sejam algo de outro que a própria forma (AQUINO, n. 48).

A partir desses conceitos São Tomás explicita um ponto fundamental da filosofia escolástica que é o da essência e da existência. São princípios ontológicos distintos, mas inseparáveis, cuja composição explica a estrutura metafísica profunda do ser.

No plano da criatura, antes do ser, não há nem essência, nem existência, entidades que, por outro lado, são absolutamente incapazes de existir independentemente uma da outra. Nem a essência nem a existência existem isoladamente; somente o ser que elas compõem: são dois princípios correlativos que só têm realidade enquanto se completam (GARDEIL, 1967, p. 121).

A essência é aquilo que faz com que um ser seja ele mesmo e não outro. É o que define cada ente, diz o que é uma realidade, está no íntimo de cada ser e o caracteriza. Ela responde à pergunta: o que é isto ou aquilo (quid sit)?

A existência é a última atualização da essência, é o ato ou a perfeição essencial de cada ente. Ela responde à pergunta: isto ou aquilo é (an sit)? De fato, “a existência é sempre dada, como atualidade de uma essência determinada tanto que essência e existência, se são realmente distinguíveis, são necessariamente inseparáveis em um ser dado” (JOLIVET, 1972, p. 229). O esse ou existência desempenha a função de ato e a essência a de potência. Nessa análise que São Tomás faz do ser ele opera uma profunda transformação e elevação da ontologia de Aristóteles. A partir da existência como última perfeição dos entes ele chega ao “Ipsum esse subsistens.” O ser é, para ele, tanto em Deus quanto nas criaturas, existência por excelência. Estes dois princípios, que nas criaturas são distintos mas inseparáveis, no Criador se identificam em sua pura simplicidade. Nele, essência e existência são, pois, uma só coisa. Como se vê, o Doutor comum chega à mais alta concepção do ser, à sua noção e constituição essencial. O ser é ato que engloba todas as perfeições, pois o ato de ser é o fundamento da realidade de tudo quanto existe. O ser é ato em sentido pleno porque não inclui nenhuma limitação. Indo além dos universais, ele considera o ser sobretudo como transcendental. O Doutor Angélico voa do visível para o invisível, do finito para o infinito a fim de chegar à mais alta concepção do “esse” que tem sua fonte em Deus. Portanto, o ato de ser é o núcleo de sua metafísica, enquanto a composição essência-existência constitui, em sua filosofia, a estrutura fundamental dos entes criados (cf. SOBRINHO, 2007, p. 49-52).

A essência ou quididade é o objeto da primeira operação de nossos espíritos, é uma aptidão para existir, para o ser, em função do qual é medida e definida como uma autêntica essência. “Ens e essência se divisam como ‘aquilo’ que, primeiro, o intelecto concebe” (AQUINO, 2005, p. 7).

É, portanto, penetrando em sua essência que a inteligência se adequa aos seres e os conhece. Ela como que se torna um com eles e os ilumina como um farol. Etiene Gilson afirma que a corporeidade ou a matéria limita o ser, mas o que ele contém de espiritual tem por efeito amplificá-lo (cf. p. 293). E Maritan, discorrendo sobre o mistério do ser, afirma que ele é rico demais em inteligibilidade, puro demais para nossa inteligência, em se tratando das coisas espirituais. Ao mesmo tempo ele comporta certa resistência inteligível quando se trata do não ser ou da potência (cf. p. 15).

A existência ou ato de ser (actus essendi), é, portanto, o termo do pensamento, o objeto para o qual, primeiramente e por si, se orienta a inteligência. E é por isto que Santo Tomás afirma que é na segunda operação do espírito (juízo) que propriamente se realiza a apreensão do ser, porque é pelo juízo que a existência é apreendida, não mais, somente, como significada ou indicada ao espírito (o que é o caso do conceito), mas, como exercida, atual e “possivelmente por um sujeito. Assim, também, devemos dizer que é no juízo que se completa o conhecimento, enquanto está orientada (sic) para a apreensão do ser (JOLIVET, 1972, p. 197-198).

Como se vê, o conceito transcendental do ser, a essência e a existência ou ato de ser, sendo esta a última atualização daquela, são pontos fundamentais da ontologia tomista, que estavam vagamente esboçados ou sugeridos no hilemorfismo aristotélico e em sua teoria do ato e da potência. São Tomás via com os olhos da razão e entrevia com os da fé. Quem tem visão sobrenatural vai ao coração das coisas.

Em sua hierarquia ontológica ou graus de perfeição dos seres visíveis e invisíveis ele ultrapassa também Platão. As ideias deste, consideradas independentes e existentes por si mesmas, são concebidas por São Tomás na Mente Divina, tendo uma realidade lógica que passa a ser ontológica, se a vontade de Deus as concretiza. Esses possíveis são infinitos em Sua mente, alguns dos quais, concretizados, constituem o universo criado. Também as formas puras de São Tomás, correspondentes ao mundo angélico, vão além da pluralidade de motores imóveis sugerida por Aristóteles. Mais ainda, se o estagirita considera esses motores independentes do Ato Puro, que é o Motor Imóvel por excelência, o Doutor Angélico subordina todos os anjos a Deus. Estes guardam os homens, regem os astros e governam os demais seres criados por ordem de seu Criador. E cada ente, nessa hierarquia, desempenha a função de mestre, regente, modelo e guia em relação a seu inferior. Deste modo, toda a obra da criação realiza, na ordem do ser, uma “servitudo ex caritate”, atraída pelo divino amor.

O grande mestre da escolástica trata também da natureza humana, bem como da angélica, em sua substância. O homem é um composto hilemórfico de corpo e alma, matéria e espírito, constituindo, assim, um elemento de ligação entre o mundo material — minerais, vegetais e animais — e o mundo espiritual — os anjos. Estes dois elementos — matéria e espírito — estão de tal modo unidos, no ser humano, que formam uma só substância composta. A essência do homem abarca a forma e a matéria, ou seja, a alma e o corpo. Ele é um animal racional. Os anjos, pelo contrário, são substâncias simples ou formas puras.

“Portanto, a essência da substância composta e da substância simples diferem nisto que a essência da substância composta não é apenas a forma, mas abarca a forma e a matéria; no entanto, a essência da substância simples é apenas forma”. (AQUINO, n. 49)

Entretanto “tais substâncias, embora sejam apenas formas sem matéria, não há nelas uma simplicidade completa nem são ato puro, mas têm uma mistura de potência” (Idem, 52). Mesmo não sendo ato puro, a substância simples é forma e ser, pois “tem o ser a partir do ente primeiro que é apenas ser; e este é a causa primeira que é Deus.” (Idem, n. 55).

Tendo matéria em sua composição, cada homem não pode esgotar as perfeições de sua espécie. Daí a necessidade da pluralidade de indivíduos. O anjo, contrariamente, esgota as perfeições de sua espécie e, por isso, esta não comporta multiplicidade. Cada anjo é uma espécie diferente. Conforme a Introdução à Suma Teológica de Marie-Joseph Nicolas:

“A natureza humana só se realiza numa pluralidade, em si ilimitada, de indivíduos. Cada natureza angélica, ao contrário, é única. Toda multiplicidade no mundo dos puros espíritos é uma multiplicidade entre essências diversas, e a singularidade se identifica com a especificidade” (p. 49).

Estes são alguns reflexos do hilemorfismo aristotélico que, incidindo sobre a mente cristalina de São Tomás de Aquino, como uma luz ultrapassando um belo vitral, saem do outro lado purificados, sublimados e multicoloridos.

A verdadeira felicidade

caminhoThiago de Oliveira Geraldo

Mesmo entre as diversas opiniões existentes na atualidade, a ordem moral prevalece sobre todas as demais relacionadas com o operar humano, pois diz respeito ao homem enquanto tal, e as outras ao homem em face a fins particulares.1

Para São Tomás, a moral não se restringe ao âmbito dos religiosos e muito menos a uma atitude particular, mas sustenta ele que o ato humano praticado afeta o ser humano no seu conjunto — “o homem enquanto homem e enquanto moral”.2

Entretanto, o ser humano não é inerte, mas movimenta-se em direção à felicidade que é própria à sua natureza, ou seja, a bem-aventurança. Portanto, o homem percorre uma caminhada neste mundo a fim de atingir a meta de plena felicidade — apesar de não a alcançar por inteiro nesta vida.3

Se a moral tomista, portanto, nos coloca diante da perspectiva da unidade do ser humano enquanto praticante do ato e desejoso da felicidade com vistas a um fim último, pode-se dizer que uma força intrínseca move o homem à prática do bem.4

A expressão “força intrínseca” ressalta o papel criador de Deus, que opera por meio das três Pessoas da Santíssima Trindade. Isto incorre em que o homem contém em si certas verdades estabelecidas por Deus, não com o intuito de aprisioná-lo numa moral cruel, mas de libertá-lo para a verdadeira felicidade que consiste em praticar os atos moralmente bons e, com isto, assemelhar-se mais a Ele.5

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1 Cf. JOÃO PAULO II. La perenne validità dell’etica tomista. In: Doctor Comunnis. Roma, 1992, ano XLV, n. 1, p. 4.

2 S Th I-II, q. 21, a. 2.

3 Cf. PIEPER, Josef. Felicidade e contemplação, lazer e culto. São Paulo: Herder, 1969, p. 17-18.

4 Cf. Veritatis Splendor, n. 7.

5 Cf. LAUAND, Luiz Jean. Tomás de Aquino, hoje. Curitiba: Champagnat, 1993, p. 41.

Princípios da lei natural

Pe. Leopoldo Werner, EPtomas-de-aquino

1 Primeiro princípio da lei natural: “Fazer o bem e evitar o mal”

Como vimos, este princípio governa, enquanto primeiro princípio, toda a vida moral; e pode ser formulado de maneira simples, de fácil compreensão: é necessário fazer o bem e evitar o mal. Assim argumenta São Tomás:

Assim como o ente é o primeiro que decai na apreensão de modo absoluto, assim o bem é o primeiro que cai na apreensão da razão prática, que se ordena à obra: todo agente, com efeito, age por causa de um fim, que tem a razão de bem. E assim o primeiro princípio na razão prática é o que se funda sobre a razão de bem que é “Bem é aquilo que todas as coisas desejam”. Este é, pois, o primeiro princípio da lei, que o bem deve ser feito e procurado, e o mal, evitado. E sobre isso se fundam todos os outros preceitos da lei da natureza, como, por exemplo, todas aquelas coisas que devem ser feitas ou evitadas pertencem aos preceitos da lei de natureza, que a razão prática naturalmente aprende serem bens humanos (AQUINO, 2005, Vol. IV: 562).

E continua o Doutor Angélico:

Donde, ao dizer Graciano que ‘o direito natural é o que se contém na Lei e no Evangelho’, imediatamente acrescentou: ‘pelo qual cada um é ordenado a fazer aos outros o que quer que seja feito a ele’ (AQUINO, 2005, Vol. IV: 568).

2 Outros princípios da lei natural

São basicamente quatro os princípios que informam a lei natural, a saber: conservação da existência; a reprodução; o conhecimento da verdade e necessidade da vida em sociedade. A partir desses princípios, um conjunto de normas deles deflui, deve ser codificado pelas leis positivas, sem contrariar a lei natural.

Assim, vemos que a lei Moral Natural contempla os seguintes princípios: a existência da família como sociedade natural, o direito à constituição de família pelo indivíduo, o respeito aos pais e aos mais velhos, o respeito ao próximo e a seus direitos; a existência do Estado, que é a mais perfeita das instituições naturais. O Estado tem a obrigação de zelar pela paz, promover a justiça, a moral e o bem comum; o direito à vida de pessoa humana; o direito à propriedade; o direito de professar fé religiosa. Tem também a função de defender e proteger seus cidadãos das agressões e violações de direitos individuais e coletivos; deve zelar para que as autoridades civis sejam respeitadas, haja ordem na sociedade e reine a paz.

O sacerdócio comum dos fiéis

Mons. João S. Clá Dias, EP

Fim ano sacerdotalAo se tratar da Eucaristia como Sacramento de unidade da Igreja, não se pode deixar de falar do sacerdócio comum dos fiéis, o qual, embora essencialmente distinto, é inteiramente real, participando também do sacerdócio de Cristo. Os fiéis exercem-no “na recepção dos Sacramentos, na oração e ação de graças, no testemunho da santidade de vida, na abnegação e na caridade operosa” (LG 10). A constituição dogmática Lumen Gentium especifica ainda o modo pelo qual os fiéis leigos exercem o sacerdócio comum na Eucaristia: pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, oferecem a vítima divina e a si mesmos a Deus; assim, quer pela oblação quer pela sagrada comunhão, não indiscriminadamente, mas cada um a seu modo, todos tomam parte na ação litúrgica (cf. LG 11).

São Tomás define com precisão os limites do sacerdócio comum dos fiéis, antecipando de algum modo o conceito explicitado e definido no já mencionado documento conciliar:

O leigo justo une-se a Cristo pela fé e caridade em uma união espiritual e não pelo poder sacramental. Por isso, tem o sacerdócio espiritual para oferecer hóstias espirituais de que se fala no Salmo: ‘O sacrifício que Deus quer é um espírito contrito’. E também na Carta aos Romanos: ‘Oferecei-vos a vós mesmos em sacrifício vivo’. Daí, a palavra de Pedro sobre ‘a santa comunidade sacerdotal para oferecer sacrifícios espirituais’ (S. Th. III, q. 82, a. 1, ad 2).

Embora os leigos exerçam um sacerdócio real, é preciso não confundi-lo com o ministerial nem diminuir a este último seu verdadeiro alcance, pois o sacerdote do Novo Testamento exerce o insubstituível papel de mediador, em Cristo, entre Deus e os homens, ao mesmo tempo em que coopera na construção da unidade da Igreja, pela celebração da Eucaristia.

As outras funções sacerdotais, inclusive a de absolver os pecados, são compreendidas por São Tomás como ordenadas a guiar os fiéis para a Mesa da Salvação, onde também oferecerão o sacrifício eucarístico, em união com o sacerdote ministerial, e participarão do banquete celestial do Corpo e Sangue do Senhor.

Ao se tratar da Eucaristia como Sacramento de unidade da Igreja, não se pode deixar de falar do sacerdócio comum dos fiéis, o qual, embora essencialmente distinto, é inteiramente real, participando também do sacerdócio de Cristo. Os fiéis exercem-no “na recepção dos Sacramentos, na oração e ação de graças, no testemunho da santidade de vida, na abnegação e na caridade operosa”.

São Tomás define com precisão os limites do sacerdócio comum dos fiéis, antecipando de algum modo o conceito explicitado e definido no já mencionado documento conciliar:

O leigo justo une-se a Cristo pela fé e caridade em uma união espiritual e não pelo poder sacramental. Por isso, tem o sacerdócio espiritual para oferecer hóstias espirituais de que se fala no Salmo: ‘O sacrifício que Deus quer é um espírito contrito’. E também na Carta aos Romanos: ‘Oferecei-vos a vós mesmos em sacrifício vivo’. Daí, a palavra de Pedro sobre ‘a santa comunidade sacerdotal para oferecer sacrifícios espirituais’.

Embora os leigos exerçam um sacerdócio real, é preciso não confundi-lo com o ministerial nem diminuir a este último seu verdadeiro alcance, pois o sacerdote do Novo Testamento exerce o insubstituível papel de mediador, em Cristo, entre Deus e os homens, ao mesmo tempo em que coopera na construção da unidade da Igreja, pela celebração da Eucaristia.

As outras funções sacerdotais, inclusive a de absolver os pecados, são compreendidas por São Tomás como ordenadas a guiar os fiéis para a Mesa da Salvação, onde também oferecerão o sacrifício eucarístico, em união com o sacerdote ministerial, e participarão do banquete celestial do Corpo e Sangue do Senhor.

Lei natural: um fundamento perene e universal

tomas-de-aquinoPe. Jorge Filipe Teixeira Lopes, EP

Ensina São Tomás de que a lei natural é a noção que o homem tem de praticar o bem e evitar o mal.1 Na ordem prática, estes dois princípios evidentes em si mesmos e universais, constituem a base de todos os juízos morais.2 São estes princípios reguladores descobertos pela razão à medida em que nela vai progredindo a consciência moral.

Essa noção de existência de uma lei natural inata no homem é herdada de uma tradição muito antiga. Muito antes de São Tomás, os Padres da Igreja e, antes deles, na antiguidade, os estóicos, Cícero, e até os poetas gregos como Sófocles, defendiam a sua existência, denominando-a como lei não escrita. Foi, contudo, o Doutor Angélico quem melhor soube fundamentar as teses sobre lei e direitos naturais, pressupondo três categorias de leis: lei eterna, lei natural e lei humana. No que diz respeito à lei natural, para o Aquinate ela não é senão a participação da criatura racional na lei eterna, ou seja, a lei eterna, que é a própria razão divina e o fundamento moral de toda a lei (Cf. S. Th. q. 93. a.6), está como que decalcada na razão humana. Deus ao criar o homem e todo o universo colocou uma ordem em cada natureza, através da qual cada ser age de acordo com o fim da sua natureza. Qualquer homem ao nascer está sujeito à lei e deve agir conforme ela.3

São Tomás segue a tradição de todos os Padres da Igreja. Já no século V, Santo Agostinho sublinhara a existência de várias naturezas, cada qual com leis próprias, às quais se submetem os seres criados: “A razão é que d’Ele (Deus) receberam a categoria de naturezas, e tornam-se defeituosas na medida em que se afastam da sua ideia-arquétipo, pela qual foram produzidas”.4

Segundo Étienne Gilson, no pensamento medieval a ideia de lei natural está subjacente à razão divina e à lei eterna, pois esta se confunde com a vontade ou a razão de Deus. O princípio analógico de que a lei natural está para a lei eterna assim como o ser está para o Ser, vale indistintamente para toda a ordem de criaturas. Deus

[…] concriou a lei natural aos seres que ele chamava à existência e como o facto de existirem se dá por uma participação analógica com o ser divino, assim também analogicamente participam da Sua lei eterna, pois a regra da sua actividade está inscrita na própria essência e estrutura do seu ser .5

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1 Cf. AQUINO. S. Th. I-II. q. 91. a. 2. “[…] quasi lumen rationis naturalis, quo discernimus quid sit bonum et malum, quod pertinet ad naturalem legem, nihil aliud sit quam impressio divini luminis in nobis”.

2 Cf. AQUINO. S. Th. I-II. q. 94. a. 4. “Sic igitur patet quod, quantum ad communia principia rationis sive speculative sive praticae, est eadem veritas seu rectitudo apud omnes, et aequaliter nota. […] Sic igitur dicendum est quod lex naturae, quantum ad prima principia communia, est eadem apud omnes et secundum rectitudinem, et secundum notitiam”.

3 Cf. AQUINO. S. Th. I-II. q. 91. a. 2. “Unde cum omnia quae divinae providentiae subduntur, a rege aeterna regulentur et mensurentur […]. Inter cetera autem rationalis creatura excellentiori quodam modo divinae providentiae subiacet […]. Unde et in ipsa participatur ratio aeterna, per quam habet naturalem inclinationem ad debitum actum et finem”.

4 AGOSTINHO. O livre arbítrio. Braga: Faculdade de Filosofia da UCP, 1998. p. 42.

5 GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 407-409.

O conceito autêntico da Paz

Diác. Leonardo Barraza Aranda, EPliriocruz

O que é a ordem? Com base na doutrina tomista podemos dizer que a ordem é a reta disposição das coisas segundo sua natureza e finalidade. Assim, um corpo humano, vai estar em ordem, quando os membros que o compõem estão dispostos de tal maneira que cumprem com o objetivo para o qual existem. Logo, tranqüilidade e ordem são duas condições fundamentais para a existência da paz. Mas deixemos ao próprio Santo Agostinho (1964, p.169) em sua obra “A Cidade de Deus ” que exponha a sua doutrina:

A paz do corpo é a ordenada complexão de suas partes; a da alma irracional, a ordenada calma de suas apetências. A paz da alma racional é a ordenada harmonia entre o conhecimento e a ação, a paz do corpo e da alma, a vida bem ordenada e a saúde do animal. A paz entre o homem mortal e Deus é a obediência ordenada pela fé sob a lei eterna. A paz dos homens entre si, sua ordenada concórdia. A paz de casa é a ordenada concórdia ente os que mandam e os que obedecem nela; a paz da cidade a ordenada concórdia entre governantes e governados. A paz da cidade celeste é a ordenadíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, ao mesmo tempo,em Deus. A paz de todas as coisas, a tranqüilidade da ordem.

Em síntese, para o Santo Doutor, a paz em quanto belo dom de Deus “é o mais consolador, o mais desejável e o mais excelente de todos”. 34

“A paz na terra, anseio profundo de todos os homens de todos os tempos, não se pode estabelecer nem consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus.” (JOÃO XXIII, 1962, n.1)

Com estas palavras, o Beato João XXIII, iniciou sua Encíclica Pacem in Terris dedicada ao tema da paz. Depois de expor a doutrina católica a respeito da ordem que Deus imprimiu na criação, passa a deplorar que dita ordem não prevaleça no relacionamento entre os seres humanos. Em outras palavras, a paz só se estabelecerá quando a humanidade respeitar a harmonia que Deus instituiu na criação e na alma do homem como um reflexo de suas infinitas perfeições.

Com efeito, João XXIII, (1962, n.4) afirma: “Contrasta clamorosamente com essa perfeita ordem universal a desordem que reina entre indivíduos e povos, como se as suas mútuas relações não pudessem ser reguladas senão pela força.” E seguindo sua linha de argumentos, o Santo Padre expõe a doutrina católica a propósito da existência no íntimo do ser humano de uma ordem, que a consciência deste se manifesta e obriga peremptoriamente a observar: “mostram a obra da lei gravada em seus corações, dando disto testemunho a sua consciência e seus pensamentos” (Rm 2, 15).

O reconhecimento da existência de uma lei moral que regule as relações entre os homens e o respeito por ela, é uma das claves apontadas por João XXIII para a sustentação da paz. Principio que os pontífices posteriores não deixaram de repetir.

Com efeito, o Papa Bento XVI (2007, n.3), em seu discurso para o Dia Mundial da Paz, relembrou esta doutrina:

O meu venerado predecessor João Paulo II, dirigindo-se à Assembléia Geral das Nações Unidas no dia 5 de Outubro de 1995, teve a ocasião de dizer que nós « não vivemos num mundo irracional ou sem sentido, mas […] existe uma lógica moral que ilumina a existência humana e torna possível o diálogo entre os homens e os povos ». A “gramática” transcendente, ou seja, o conjunto de regras da acção individual e do recíproco relacionamento entre as pessoas de acordo com a justiça e a solidariedade, está inscrita nas consciências, nas quais se reflecte o sábio projecto de Deus. Como recentemente quis reafirmar, « nós cremos que na origem está o Verbo eterno, a Razão e não a Irracionalidade ».A paz é, portanto, também uma tarefa que compromete cada indivíduo a uma resposta pessoal coerente com o plano divino. O critério que deve inspirar esta resposta não pode ser senão o respeito pela “gramática” escrita no coração do homem pelo seu divino Criador.

A procura pelo respeito desta “gramática” a qual aludem os recentes Pontífices, guarda uma relação íntima com a prática da virtude, em contraste com o pecado. O termo justiça significa nas Sagradas Escrituras a observância plena dos mandamentos da lei de Deus e a prática das virtudes, ou seja, a santidade da vida. Por isso, Nosso Senhor Jesus Cristo diz: ” Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça” (Mt 5, 6). A Paz e a justiça são inseparáveis.

Já os padres do Concilio Vaticano II na Constituição Pastoral Gaudium et

Spes (1965, n.78) haviam destacado esta importante verdade da doutrina católica:

A paz não é ausência de guerra; nem se reduz ao estabelecimento do equilíbrio entre as forças adversas, nem resulta duma dominação despótica. Com toda a exactidão e propriedade ela é chamada «obra da justiça» (Is. 32, 7). É um fruto da ordem que o divino Criador estabeleceu para a sociedade humana, e que deve ser realizada pelos homens, sempre anelantes por uma mais perfeita justiça.

E ao mesmo tempo reiteram que o cuidado da paz demanda um domínio para evitar o pecado:

Com efeito, o bem comum do género humano é regido, primária e fundamentalmente, pela lei eterna; mas, quanto às suas exigências concretas, está sujeito a constantes mudanças, com o decorrer do tempo. Por esta razão, a paz nunca se alcança duma vez para sempre, antes deve estar constantemente a ser edificada. Além disso, como a vontade humana é fraca e ferida pelo pecado, a busca da paz exige o constante domínio das paixões de cada um e a vigilância da autoridade legítima.

Analisando estes ensinamentos, podemos concluir que a paz não é possível sem um espírito e uma mentalidade que tenham como fundamento uma harmonia no interior do ser humano. Na verdade, a raiz mais profunda da discórdia e desentendimentos surgem no coração do homem. Só o amor autentico a um bem supremo, a saber, Deus, ao qual todos reconheçam e respeitem como legislador, pode conseguir o respeito mútuo e a fraternidade entre os homens e os povos. É por isso que os Pontífices Romanos são categóricos ao afirmar que nunca haverá verdadeira e duradoura paz na terra sem a prática das virtudes cristãs.

Que é o homem, e para que serve? (Eclo 18, 8)

Diác. José Victorino de Andrade, EP

O que é o ser humano? Esta é uma pergunta que ocupa o pensamento dos filósofos há séculos. Ela semprepensadores importou, pois toca diretamente em nós, a nossa origem, o nosso destino, em suma: o nosso ser e sua complexidade, questão desde sempre particularmente difícil. Sócrates pretendia conhecer o homem a partir de si mesmo, Platão e Aristóteles arriscaram algumas definições, de certa forma incompletas. Diógenes procurava-o ironicamente, de lamparina na mão, mesmo à luz do dia, mostrando-se ávido de um encontro que o esclarecesse verdadeiramente.[1] O livro do Eclesiástico transmite-nos esta demanda, mesmo entre o Povo Eleito: “Que é o homem, e para que serve?” (Eclo 18, 8).

Apesar da Antropologia Filosófica se ter firmado apenas no início do século passado, numerosos foram os aportes que os pensadores cristãos propuseram, desde a Patrística aos nossos dias, partindo a maior parte das vezes da Revelação. A linguagem filosófica, enquanto ferramenta para suas doutrinas, nunca esteve excluída. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino fizeram-no de modo muito especial. Mais tarde, outros filósofos como Descartes, Kant e Heiddegger esforçar-se-iam por dar uma visão que acabou por marcar, de certa forma, a pós-modernidade.

Entretanto, em nossos dias, a questão continua em aberto. Talvez pela insaciabilidade humana, característica que tem marcado o homem de todos os tempos, e com a presente crise metafísica, quanto mais ele pensa ter encontrado uma resposta, mais esta lhe parece levar a contradições, a novas perguntas, e a perder-se em um emaranhado de suposições. Conforme a Gaudium et Spes, “a natureza espiritual da pessoa humana encontra e deve encontrar a sua perfeição na Sabedoria, que suavemente atrai o espírito do homem à busca e ao amor da verdade e do bem, e graças à qual ele é levado por meio das coisas visíveis até as invisíveis” (n. 15).

Atenta e maternal, a Igreja continua a apontar para o absoluto do qual dimana o relativo, para um criador e um fim último, para o invisível que se fez visível, para uma felicidade possível, não plena, mas de peregrinos a caminho de uma “pátria melhor, isto é, a pátria celeste” (Hb 11, 16). Ensina-nos, enfim, que há uma Razão por detrás de tudo, ao contrário da irrisão e do acaso.[2]

Para caracterizar o homem com precisão, Mondin sugere uma análise da própria vida humana, a fim de se chegar com autenticidade a uma compreensão do seu ser, pois uma característica do homo vivens é “uma vida consciente de si mesma”. Entretanto, “seu verdadeiro significado pode ser colhido apenas descobrindo a finalidade para a qual é orientada”, portanto, a “finalidade última da vida humana”.[3] Ora, São Tomás de Aquino pensou o homem, neste âmbito, talvez como nenhum outro. Na Suma Teológica, não só situa o homem no vasto conjunto do Universo, como trata da relação de Deus com a criação: os Anjos enquanto criaturas puramente espirituais; o Mundo, criatura puramente corporal e, finalmente, o homem, ao mesmo tempo espiritual e corporal, criatura singular que reúne em si a totalidade do universo.[4]

Por que abordar este tema do ponto de vista do Aquinense? Não haveria em outras culturas e, sobretudo, em nosso tempo, autores de maior discernimento e precisão ao pensar o homem inserido no mundo em que vivemos? Afinal, não terá o homem evoluído? Será válida uma consideração com mais de 500 anos? Paulo VI, dirigindo-se ao Pe. Aniceto Fernandez — Mestre Geral da Ordem dos Dominicanos, em 1964 — parece responder-nos a estas questões:

Nos trabalhos de São Tomás de Aquino podem ser encontrados um compêndio das verdades universais e fundamentais, expressas de forma mais clara e persuasiva. Por esta razão, seu ensinamento constitui um tesouro de inestimável valor, não apenas para a Ordem Religiosa na qual ele é um grande luminar, mas para toda a Igreja, e para todas as mentes sedentas de verdade.

Não é sem razão que ele tem sido apelidado como «o homem de todos os tempos». O seu conhecimento filosófico, o qual reflete as essências das coisas realmente existentes na sua certa e imutável verdade, nem é medieval, nem próprio a alguma nação particular; transcende o tempo e o espaço, e não é menos válido para toda a humanidade em nosso tempo.[5]


[1] Reale parte deste episódio para interpretar a procura do filósofo: Diógenes não visava um homem comum e qualquer, até porque se locomovia nas ruas movimentadas de Atenas, mas sim aquele que vivesse conforme a “sua mais autêntica essência”, e em conformidade com “sua natureza mais genuina”. REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2006. Vol. III. p. 24.

[2] Quanto a esta temática, o então Cardeal Ratzinger deixou-nos vários aportes em numerosas conferências. Ver, por exemplo, alguns de seus pronunciamentos, como as versões originais em alemão: Wer ist das eigentlich – Gott?, hgrs. Von H.J. Schulz, München 1969, S.240f. Também em Dogma und Verkündigung, 4. Aufl. Donauwörth, S. 152-156. Em português ver, por exemplo, Fé Verdade Tolerância: O Cristianismo e as grandes religiões do Mundo. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2009. p. 164-166. Também um compêndio de várias alocuções sobre este assunto no Prefácio da obra Criação e Evolução: Uma Jornada com o Papa Bento XVI em Castel Gandolfo. Lisboa: UCE, 2007.

[3] Para estas e outras considerações importantes do autor, recomendamos a leitura de MONDIN. Battista. O homem. Quem é ele?: Elementos de Antropologia Filosófica. 13. ed. São Paulo: Paulus, 2008. As citações presentes no texto estão nas páginas 60 e 61.

[4] Cf. TORREL, Jean-Pierre. Santo Tomás de Aquino: Mestre Espiritual. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2008. p. 304-305. Aconselhamos a leitura do capítulo que nestas páginas se inicia, intitulado: “O homem em discussão”.

[5] Indeed, in the works of Saint Thomas can be found a compendium of the universal and fundamental truths, expressed in the clearest and most persuasive form. Por this reason, his teaching constitutes a treasure of inestimable value, not only for the Religious Order of which he is the greatest luminary, but for the entire Church, and for all minds thirsting for truth. Not without reason has he been hailed as «the man of every hour». His philosophical knowledge, which reflects the essences of really existing things in their certain and unchanging truth, is neither medieval nor proper to any particular nation; it transcends time and space, and is no less valid for all humanity in our day. PAULO VI. Feast of Saint Thomas Aquinas, March 7, 1964. AAS 56 [1964] p. 303-304

O que os anjos vêem: natureza e graça

Pe. Colombo Pires, EPanjos Tradução do Original Pe. Romanus Cessario, O.P.

Apesar da inteligência humana e angélica possuírem uma performance diferente, a distinção clássica entre a visão matutina e vespertina dos anjos sugere uma verdade importante acerca do conhecimento disponível a todos que vivem na Fé de Jesus Cristo. A noção que os anjos possuem dois tipos de visão aparece inicialmente nos comentários de Santo Agostinho acerca da criação na Bíblia, o De Genesi ad litteram, Book IV, chapters 22-31 onde o Doutor da Graça fala de um amanhecer e de um anoitecer no conhecimento dos Anjos. A tradição teológica subsequente alargou essa distinção, pois, como Hugo de São Vítor observa, “ há muitas questões acerca da natureza angélica, as quais a curiosidade da mente humana não foi capaz de descobrir”.1 Então, na sua Summa theologiae, não surpreende descobrir que São Tomás de Aquino estende a intuição do conhecimento angélico de Agostinho.

O Santo de Hipona inventou as expressões conhecimento “matutino” e “vespertino” como parte da sua interpretação dos seis dias da criação presentes no Gênesis… (Ele) chamou “matutino” ao conhecimento angélico das coisas no seu primordial começo, precisamente como existem no Mundo; e “vespertino” ao seu conhecimento da realidade criada enquanto existindo na sua própria natureza.2

Porque a “escuridão da noite” caracteriza, mais propriamente, o conhecimento dos anjos decaídos que se fixaram na realidade criada, o Aquinate rejeita esse ponto de vista. Ele defende que como o amanhecer e o anoitecer estão conotadas com a luz do dia, “ambos os tipos de conhecimento expressados por estes termos pertencem aos anjos que estão na luz”.3

Nenhum teólogo contestaria que o que os anjos vêem na manhã, nomeadamente, tudo como existe no divino mundo da criação, forma a única base para a genuína reflexão teológica. O próprio São Paulo testemunha a centralidade desse tipo de conhecimento quando ele lembra aos Colossenses que Cristo “é a imagem de Deus invisível, o primogênito de toda a criação; Por Ele todas as coisas foram criadas, no céu e na terra, visíveis e invisíveis” (Col 1, 15-16).

Enquanto nós frequentemente associamos a teologia com a realidade de Deus e os Seus feitos, com mistérios como a Trindade, a Ressurreição de Cristo, e a Imaculada Conceição da Virgem Maria, a reflexão teológica estende-a apropriadamente ao que os homens e as mulheres fazem. Por outras palavras, a fé do cristão determina a questão ética. Também as virtudes da vida cristã estão entre aquelas realidades visíveis que encontram a sua realização em Cristo. De fato, Orígenes, autor do II século, afirma esta verdade quando escreve: “Não se surpreendam ao falarmos das virtudes do amado Cristo, porque em outros casos nós estamos afeitos a olhar o próprio Cristo como a substância daquelas muitas virtudes”.4

Pelo fato de Cristo permanecer a fonte de todo o bem moral para a pessoa que aceita a mensagem do Evangelho, a Igreja afirma que o ensino da moral cristã possui uma distinta especificidade. Numa variedade de maneiras, os teólogos contemporâneos enfatizam a importante ligação entre a reta conduta Cristã e a autêntica crença cristã.

Hans Urs von Balthasar, por exemplo, identifica Cristo como a “norma pessoal e concreta”5 da vida moral. Isto quer dizer, entre outros, que sem uma efetiva união com Cristo, nenhuma pessoa humana pode, na prática, atingir a perfeição da vida moral que conduz à beatífica companhia com a Trindade, os anjos e os santos. Para mais, “é Cristo, o novo Adão, que plenamente desvenda a própria humanidade e desdobra o Seu nobre chamado revelando o mistério do Pai e do amor do Pai”.6

Por outras palavras, apenas a pessoa que abraça uma vida cristã de virtudes vive inteiramente de acordo com a norma da verdade moral que Cristo, a “imagem do Deus invisível,” comunica ao mundo, e em Cristo realiza a perfeição da natureza humana.

Por um lado, devido à sua inteligência superior, os anjos conhecem os divinos mistérios do mundo com grande clareza. Nós, por outro lado, conhecemos as verdades da fé sombriamente, isto é, apenas pela crença na Palavra de Deus, Primeira Verdade.7 E por causa da escuridão moral que caracteriza o pecado no mundo, as verdades da fé acerca da conduta humana parecem por vezes obscuras para a pessoa que ainda deve aprender a apreciar a medida espiritual que Cristo estabelece para vida humana. Certamente, uma ponderação contemplativa mais profunda da verdade revelada — um esforço na fé para ver mais claramente o que os anjos bons vêem na “manhã” quando tudo aparece na “imagem perfeita” — forma a característica básica do dinamismo da vida Cristã. Significa isto, então, que o conhecimento da fé apenas pode fornecer instrução moral para o crente Cristão? Tradicionalmente, a Igreja dá uma resposta negativa a essa questão. A razão humana — a que está inerente a capacidade e o objeto próprio — não está abrogada pelo dom da fé. O ser humano, alumiado pela fé em Cristo continua a englobar o mundo com a sua capacidade racional de inteligência. E para que se possa compreender plenamente o esplendor da vida Cristã, é importante conhecer as razões porque o conhecimento humano autêntico ajuda a crença Cristã, especialmente em matérias que concernem a própria conduta da vida humana.

O fato de a razão preservar todo o seu vigor no contexto da vida cristã indica um papel genuíno para a filosofia dentro de uma compreensão cristã do mundo e da pessoa humana. Nas suas Gifford Lectures (1931-32), Étienne Gilson levantou a questão da filosofia Cristã: “Eu chamo Cristã a toda a filosofia que, apesar de manter as duas ordens formalmente distintas, considera a revelação Cristã um auxiliar indispensável para a razão”.8 Quer nós aceitemos ou não esta proposta especifica, Gilson deixa ao menos uma noção de como a crença Cristã pode considerar o esse rerum, o ser das coisas, de um ponto de vista formalmente distinto daquele da fé divina. E se essa procura pessoal por sabedoria se desenvolve num inquérito intelectual, nós podemos justamente chamar à pessoa que o pratica um filósofo Cristão. O conhecimento filosófico demanda esse rerum quod in propria natura habent, isto é, busca desvendar as naturezas próprias que as coisas têm nelas mesmas. Apesar da filosofia poder apenas conseguir um conhecimento limitado da natureza das coisas, o ensinamento filosófico ainda representa um esforço discursivo da parte da pessoa humana a fim de obter o que os anjos vêm ao escurecer, um “conhecimento da realidade criada enquanto existente na sua própria natureza.” A Igreja, cada vez mais, incentiva este esforço, e ela fá-lo baseada em São Paulo: “Com efeito, o que é invisível nele — o seu eterno poder e divindade — tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras” (Rm 1, 20).

O Cristão sabe que há limites para os “princípios e as causas” que os filósofos procuram. A “filosofia primordial” de Aristóteles, na realidade, convida-nos a contemplar a existência da mais alta verdade, embora os poços que alcançaram esta meta obtiveram apenas um oblíquo, inferencial conhecimento deste último princípio; isto é, um conhecimento da dependência dos seres criados de uma única, fonte que todas as pessoas chamam Deus.9 Devido a ter explorado extensivamente a diferença entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, São Tomás de Aquino oferece uma nota incaracteristicamente acabrunhada acerca daquelas pessoas que se apóiam apenas na razão para descobrir a verdade acerca da existência humana.

Porque Aristóteles viu que não há nenhum outro conhecimento humano nesta vida exceto através das ciências especulativas, ele sustentou que o homem não pode atingir uma completa, mas apenas uma relativa felicidade. Com isto fica claro o que o nobre gênio entre os filósofos experienciou no curso do seu tempo.10

Mas enquanto o Cristão escapa a esse triste estado, ele ou ela precisam experimentar alguma frustração dos filósofos. Como um teólogo aponta, “se o homem não estabelece um contato definitivo com Deus a um ponto que não é graça (no sentido teológico da palavra), então o Deus que se revela não se pode endereçar ao homem de modo significante. Daí, a solene declaração da Igreja que a existência de Deus pode ser naturalmente conhecida (Dz 3004, 3026) e que a alma humana é imortal (Dz 1440)”.11

Quando a Igreja defende a dignidade do chamado humano e restaura a esperança para aqueles desconsolados de qualquer destino mais alto, ela reconhece que a sua mensagem atingiu o mais profundo do coração humano. Ao mesmo tempo, por causa do sobrenatural senso de fé, o Povo de Deus recebe uma verdade que excede a capacidade do conhecimento humano, a verdade que os liberta (Cf. Jo 8, 32).

Retornemos à distinção que Santo Agostinho e São Tomás de Aquino fizeram entre o conhecimento matutino e vespertino dos anjos — o seu cognitio matutina e vespertina — a fim de ver que aplicação pode ter na ética teológica. O Aquinate explica a base para distinguir os dois tipos de conhecimento angélico da seguinte maneira: Para o ser das coisas deflui do Mundo como de um primeiro (ou primordial) princípio, e esta efusão termina no ser das coisas o que elas possuem em sua própria natureza.

São Tomás fala de um “defluir” que se espalha da fonte criativa de todas as coisas em Deus e termina na variedade de naturezas criadas que existem no mundo.12 A expressão da verdade divina assemelha-se a este fluir do ser. No ponto de vista do Aquinate, encontra-se a inesperada compleição da metafísica na revelação Cristã. Através da revelação divina, Deus comunica um conhecimento da realidade como ela existe no Seu Filho, mesmo apesar de os crentes ainda gozarem da capacidade de adquirir um conhecimento das coisas reais como elas existem nelas próprias.

O filósofo americano vai ainda tão longe de afirmar que “a teologia revelada promete uma visão dos princípios que o metafísico busca, e até mesmo deseja”.13

In: Lumen Veritatis, nº5.

Este texto foi publicado com a gentil permissão do corpo editorial da AMATECA series of Handbooks of Catholic Theology e foi traduzido pelo Pe. Colombo Pires E.P. da edição inglesa do Father Cessario’s Le Virtù (Milan 1994).

[Romanus Cessario, O.P. The Virtues, Or the Examined Life (London/New York: Continuum, 2002)].

1 De Sacramentis Bk 1, chap. 5, no. 19 (PL 176: 254).
2 Summa theologiae Ia q. 58, a. 6.
3 Ibidem.
4 Origen, Commentary on the Song of Songs, Bk 1, in Origen, The Song of Songs: Commentary, trans. R. P. Lawson (Ancient Christian Writers, vol. 26; Westminster, MD and London, 1957), p. 89.
5 Hans Urs von Balthasar, “Nine Theses in Christian Ethics”, in International Theological Commission: Texts and Documents 1969-1985, ed, Michael Sharkey (San Francisco, 1989), p. 108.
6 Gaudium et spes, nº. 22.
7 O Aquinate chega a especular se os anjos possuem essa claridade acerca das verdades da fé mesmo antes da sua confirmação na glória (ver Summa theologiae IIa-IIae q. 5, a. 1). Em qualquer caso, a distinção de Santo Agostinho refere-se ao que os anjos conhecem após a sua irreversível escolha de amor a Deus.
8 The Spirit of Medieval Philosophy (New York, 1940), p. 37.
9 Cf. In De Trinitate Bk 5, chap. 4.
10 Contra gentiles Bk III, c. 48.
11 Edward Schillebeeckx, Revelation and Theology, vol. 1 (New York, 1967), pp. 154, 155.
12 Porque ele afirma firmemente a total implicação da doutrina Cristã da criação ex nihilo, São Tomás reconhece que toda a natureza criada possui mas nunca extingue o seu próprio ato de ser. A grande contingência dos seres criados deriva da tênue afirmação que têm na existência, onde quer que a divina omnipotência e infinitude repousem na identidade da essência e existência que pertence unicamente a Deus. Por outras palavras, a explicação do Aquinate acerca do “defluir” permanece livre de emanacionismo ou outra conotação panteísta.

13 Mark D. Jordan, Ordering Wisdom:The Hierarchy of Philosophical Discourses in Aquinas (Notre Dame, IN, 1986), p. 178. Jordan explica mais tarde esta conexão: “Se há uma diferença metodológica entre metafísica e teologia, não haveria então uma segregação material delas nos textos (de São Tomás). O discurso da metafísica não está encerrado em algum ponto abaixo da teologia na hierarquia das ciências. O leitor passa imperceptivelmente de um discurso para outro. De fato, não é como se estivéssemos a passar ao lado da metafísica, mesmo se alguém sabe que a metafísica, enquanto ela mesma, não pode prover a necessidade de um estágio mais alto. Pelo contrário, encontra-se a inesperada compleição da metafísica na revelação” (p. 177).