São Tomás e o hilemorfismo

Ms. Antônio Chaves Sobrinho (IFAT)tomas

São Tomás aceita e desenvolve a doutrina aristotélica da matéria e da forma, do ato e da potência. Aperfeiçoa e aprofunda esses conceitos, tirando deles ensinamentos que se perpetuaram na Escolástica até nossos dias. Mais ainda, ele sublima a doutrina hilemórfica e chega a alturas não sonhadas por Aristóteles. Através da multiplicidade das formas chega àquelas que são puras e se identificam com as substancias angélicas. Fala de formas independentes da matéria que são inteligências, substâncias espirituais puras, quididades simples e perfeitas. Ele afirma:

[…] o relacionamento da matéria e da forma é tal que a forma dá ser à matéria e, deste modo, é impossível que haja matéria sem alguma forma; no entanto, não é impossível haver alguma forma sem matéria. Mas se se encontram algumas formas, que não podem ser senão na matéria, isto lhes advém na medida em que estão distanciadas do primeiro princípio que é o ato primeiro e puro. Donde, aquelas formas, que estão próximas ao máximo do primeiro princípio, serem formas substanciais por si, sem matéria. De fato, a forma, de acordo com a totalidade de seu gênero, não necessita da matéria, como foi dito. Tais formas são inteligência e, por isso, não é preciso que as essências ou quididades destas substâncias sejam algo de outro que a própria forma (AQUINO, n. 48).

A partir desses conceitos São Tomás explicita um ponto fundamental da filosofia escolástica que é o da essência e da existência. São princípios ontológicos distintos, mas inseparáveis, cuja composição explica a estrutura metafísica profunda do ser.

No plano da criatura, antes do ser, não há nem essência, nem existência, entidades que, por outro lado, são absolutamente incapazes de existir independentemente uma da outra. Nem a essência nem a existência existem isoladamente; somente o ser que elas compõem: são dois princípios correlativos que só têm realidade enquanto se completam (GARDEIL, 1967, p. 121).

A essência é aquilo que faz com que um ser seja ele mesmo e não outro. É o que define cada ente, diz o que é uma realidade, está no íntimo de cada ser e o caracteriza. Ela responde à pergunta: o que é isto ou aquilo (quid sit)?

A existência é a última atualização da essência, é o ato ou a perfeição essencial de cada ente. Ela responde à pergunta: isto ou aquilo é (an sit)? De fato, “a existência é sempre dada, como atualidade de uma essência determinada tanto que essência e existência, se são realmente distinguíveis, são necessariamente inseparáveis em um ser dado” (JOLIVET, 1972, p. 229). O esse ou existência desempenha a função de ato e a essência a de potência. Nessa análise que São Tomás faz do ser ele opera uma profunda transformação e elevação da ontologia de Aristóteles. A partir da existência como última perfeição dos entes ele chega ao “Ipsum esse subsistens.” O ser é, para ele, tanto em Deus quanto nas criaturas, existência por excelência. Estes dois princípios, que nas criaturas são distintos mas inseparáveis, no Criador se identificam em sua pura simplicidade. Nele, essência e existência são, pois, uma só coisa. Como se vê, o Doutor comum chega à mais alta concepção do ser, à sua noção e constituição essencial. O ser é ato que engloba todas as perfeições, pois o ato de ser é o fundamento da realidade de tudo quanto existe. O ser é ato em sentido pleno porque não inclui nenhuma limitação. Indo além dos universais, ele considera o ser sobretudo como transcendental. O Doutor Angélico voa do visível para o invisível, do finito para o infinito a fim de chegar à mais alta concepção do “esse” que tem sua fonte em Deus. Portanto, o ato de ser é o núcleo de sua metafísica, enquanto a composição essência-existência constitui, em sua filosofia, a estrutura fundamental dos entes criados (cf. SOBRINHO, 2007, p. 49-52).

A essência ou quididade é o objeto da primeira operação de nossos espíritos, é uma aptidão para existir, para o ser, em função do qual é medida e definida como uma autêntica essência. “Ens e essência se divisam como ‘aquilo’ que, primeiro, o intelecto concebe” (AQUINO, 2005, p. 7).

É, portanto, penetrando em sua essência que a inteligência se adequa aos seres e os conhece. Ela como que se torna um com eles e os ilumina como um farol. Etiene Gilson afirma que a corporeidade ou a matéria limita o ser, mas o que ele contém de espiritual tem por efeito amplificá-lo (cf. p. 293). E Maritan, discorrendo sobre o mistério do ser, afirma que ele é rico demais em inteligibilidade, puro demais para nossa inteligência, em se tratando das coisas espirituais. Ao mesmo tempo ele comporta certa resistência inteligível quando se trata do não ser ou da potência (cf. p. 15).

A existência ou ato de ser (actus essendi), é, portanto, o termo do pensamento, o objeto para o qual, primeiramente e por si, se orienta a inteligência. E é por isto que Santo Tomás afirma que é na segunda operação do espírito (juízo) que propriamente se realiza a apreensão do ser, porque é pelo juízo que a existência é apreendida, não mais, somente, como significada ou indicada ao espírito (o que é o caso do conceito), mas, como exercida, atual e “possivelmente por um sujeito. Assim, também, devemos dizer que é no juízo que se completa o conhecimento, enquanto está orientada (sic) para a apreensão do ser (JOLIVET, 1972, p. 197-198).

Como se vê, o conceito transcendental do ser, a essência e a existência ou ato de ser, sendo esta a última atualização daquela, são pontos fundamentais da ontologia tomista, que estavam vagamente esboçados ou sugeridos no hilemorfismo aristotélico e em sua teoria do ato e da potência. São Tomás via com os olhos da razão e entrevia com os da fé. Quem tem visão sobrenatural vai ao coração das coisas.

Em sua hierarquia ontológica ou graus de perfeição dos seres visíveis e invisíveis ele ultrapassa também Platão. As ideias deste, consideradas independentes e existentes por si mesmas, são concebidas por São Tomás na Mente Divina, tendo uma realidade lógica que passa a ser ontológica, se a vontade de Deus as concretiza. Esses possíveis são infinitos em Sua mente, alguns dos quais, concretizados, constituem o universo criado. Também as formas puras de São Tomás, correspondentes ao mundo angélico, vão além da pluralidade de motores imóveis sugerida por Aristóteles. Mais ainda, se o estagirita considera esses motores independentes do Ato Puro, que é o Motor Imóvel por excelência, o Doutor Angélico subordina todos os anjos a Deus. Estes guardam os homens, regem os astros e governam os demais seres criados por ordem de seu Criador. E cada ente, nessa hierarquia, desempenha a função de mestre, regente, modelo e guia em relação a seu inferior. Deste modo, toda a obra da criação realiza, na ordem do ser, uma “servitudo ex caritate”, atraída pelo divino amor.

O grande mestre da escolástica trata também da natureza humana, bem como da angélica, em sua substância. O homem é um composto hilemórfico de corpo e alma, matéria e espírito, constituindo, assim, um elemento de ligação entre o mundo material — minerais, vegetais e animais — e o mundo espiritual — os anjos. Estes dois elementos — matéria e espírito — estão de tal modo unidos, no ser humano, que formam uma só substância composta. A essência do homem abarca a forma e a matéria, ou seja, a alma e o corpo. Ele é um animal racional. Os anjos, pelo contrário, são substâncias simples ou formas puras.

“Portanto, a essência da substância composta e da substância simples diferem nisto que a essência da substância composta não é apenas a forma, mas abarca a forma e a matéria; no entanto, a essência da substância simples é apenas forma”. (AQUINO, n. 49)

Entretanto “tais substâncias, embora sejam apenas formas sem matéria, não há nelas uma simplicidade completa nem são ato puro, mas têm uma mistura de potência” (Idem, 52). Mesmo não sendo ato puro, a substância simples é forma e ser, pois “tem o ser a partir do ente primeiro que é apenas ser; e este é a causa primeira que é Deus.” (Idem, n. 55).

Tendo matéria em sua composição, cada homem não pode esgotar as perfeições de sua espécie. Daí a necessidade da pluralidade de indivíduos. O anjo, contrariamente, esgota as perfeições de sua espécie e, por isso, esta não comporta multiplicidade. Cada anjo é uma espécie diferente. Conforme a Introdução à Suma Teológica de Marie-Joseph Nicolas:

“A natureza humana só se realiza numa pluralidade, em si ilimitada, de indivíduos. Cada natureza angélica, ao contrário, é única. Toda multiplicidade no mundo dos puros espíritos é uma multiplicidade entre essências diversas, e a singularidade se identifica com a especificidade” (p. 49).

Estes são alguns reflexos do hilemorfismo aristotélico que, incidindo sobre a mente cristalina de São Tomás de Aquino, como uma luz ultrapassando um belo vitral, saem do outro lado purificados, sublimados e multicoloridos.

Corrimãos da escada da vida

caminhoMons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

A teologia moral de Santo Agostinho, tanto como a ética de Aristóteles, foram as fontes das doutrinas escolásticas sobre a razão moral. Em De Libero Arbitrio, o bispo de Hipona afirmara que a moralidade exige da vontade humana sua conformidade com as prescrições da lei imutável e eterna, impressa na nossa mente. Tal lei, chamada de summa ratio (“razão suprema”), deve ser sempre obedecida. Por seus padrões é que são julgados os bons e os maus.1

Concorde com a tese agostiniana,2 São Tomás procura definir meticulosamente a lei eterna acentuando de início que ela “não é senão a razão da sabedoria divina, na medida em que ela dirige todos os atos e movimentos”.3 Essa lei — que se identifica com a Providência Divina — é, portanto, o princípio ordenador de todo o universo criado: “Toda a comunidade do universo é governada pela razão divina. E assim a própria razão do governo das coisas em Deus, como príncipe do universo, tem razão de lei”.4 Assim, a suprema lei é o próprio Deus, sendo eterna como Ele é eterno; é a Sabedoria de Deus “que move todas as coisas para seu devido fim”.5 E todas as coisas são avaliadas segundo a lei eterna, seguindo-se daí que dela todas participam de algum modo, e suas propensões para seus atos e fins próprios vêm da impressão em si dessa lei.

Nas questões 90 a 108 da Suma Teológica, parte I-II, São Tomás se estende genialmente sobre o significado e o alcance da lei eterna e sobre as outras leis que dela derivam: a lei natural, a lei divina e a lei humana.

Começando pela lei natural, ele a define como “a participação da lei eterna na criatura racional”, sendo proporcionada pela “luz do intelecto posta em nós por Deus, através da qual conhecemos o que devemos fazer e o que devemos evitar”,6 por ser uma norma imperativa para dirigir os atos livres do homem.

Noutro lugar, São Tomás descreve a lei natural como os primeiros princípios da atividade moral humana, evidentes de si, não demonstráveis.7

Ninguém pode, com sinceridade e no uso normal de suas faculdades mentais,8  negar a existência dessa lei natural, segundo a qual há obras boas e outras más por sua própria natureza. São Tomás afirma que todos os homens conhecem pelo menos os princípios comuns da lei natural.9 Diz ele ainda que, “quanto aos princípios comuns da razão quer especulativa, quer prática, a verdade ou retidão é a mesma em todos, e igualmente conhecida”.10 Quer dizer, não há quem não conheça a distinção entre bem e mal, e nossa obrigação de optar pelo primeiro e rejeitar o segundo se apresenta à inteligência com força de lei.

Também a lei humana positiva tem a obrigação de se conformar com a Sabedoria de Deus. É a ela que o Aquinate se refere quando afirma que, como “o fim último da vida humana é a felicidade ou bem-aventurança […] é necessário que a lei vise maximamente à ordem que é para a bem-aventurança”.11 A lei temporal não pode colidir com a lei eterna, mas deve secundá-la.

A lei divina — consolidada nos Dez Mandamentos — mostra ao homem o caminho a seguir para praticar o bem e atingir seu fim. São Tomás se pergunta se, havendo já a lei natural e as leis humanas, é preciso também haver uma lei divina positiva. Ele inicia sua resposta lembrando que a bem-aventurança eterna, para a qual o homem foi criado, “excede a proporção da potência natural humana”. Assim faz-se necessário que, “acima da lei natural e humana, fosse dirigido também a seu fim pela lei divinamente dada”.12

Todas essas leis são como que corrimãos numa longa e difícil trajetória, numa escada colocada sobre um abismo. Pode ser que esses corrimãos pareçam limitações absurdas à liberdade. Na realidade, são anteparos que Deus nos concedeu para proteger a verdadeira liberdade e para nos auxiliar na ascensão até Ele.

Como estão equivocadas certas correntes de educação que procuram instilar na criança e no jovem a ideia de que os princípios morais são frios e cruéis! O certo, afirmam elas, seria optar por uma moral “amiga”, relativa, dependente apenas das circunstâncias, dos casos particulares, e esquecer tais princípios.

É supérfluo realçar a nocividade de tal doutrina para o tesouro acumulado a partir do primeiro olhar sobre o ser. E que resultados funestos trazem para a sociedade como um todo. Basta olharmos para o que vai se passando à nossa volta…

1 De Libero Arbitrio, I, 1.6.15.48-49; 51: “Illa lex quae summa ratio nominatur cui semper obtemperandum est et per quam mali miseram, boni beatam vitam merentur […], potestne cuipiam intellegenti non incommutabilis aeternaque videri? An potest aliquando iniustum esse, ut mali miseri, boni autem beati sint? […] Ut igitur breviter aeternae legis notionem, quae impressa nobis est, quantum valeo, verbis explicem, ea est, qua iustum est, ut omnia sint ordinatissima”.

2 Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 1: “Sed contra est quod Augustinus dicit quod lex aeterna est summa ratio, cui semper obtemperandum est”.

3 S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Nihil aliud est quam ratio divinae sapientiae, secundum quod est directiva omnium actuum et motionum”.

4 S. Th. I-II, q. 91, a. 1: “Tota communitas universi gubernatur ratione divina. Et ideo ipsa gubernationis rerum in Deo sicut in principe universitatis existens, legis habet rationem”.

5 S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Moventis omnia ad debitum finem”.

6 Collationes in decem praeceptis, Proœmium: “Lex naturae […] nihil aliud est nisi lumen intellectus insitum nobis a Deo, per quod cognoscimus quid agendum et quid vitandum”.

7 Cf. S. Th. I-II, q. 94, a. 2. “Sunt quaedam principia per se nota”.

8 “Alguma pessoa dotada de inteligência”, dizia Santo Agostinho (op. cit. 1.6.15.48).

9 Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 2.

10 S. Th. I-II, q. 94, a. 4. “Quantum ad communia principia rationis sive speculativae sive practicae, est eadem veritas seu rectitudo apud omnes, et aequaliter nota”.

11 S. Th. I-II, q. 90, a. 2. “Oportet quod lex maxime respiciat ordinem qui est in beatitudinem”.

12 S. Th. I-II, q. 91, a. 4. “Excedit proportionem naturalis facultatis humanae. Ut supra legem naturalem et humanam, dirigeretur etiam ad suum finem lege divinitus data”.

Princípios da lei natural

Pe. Leopoldo Werner, EPtomas-de-aquino

1 Primeiro princípio da lei natural: “Fazer o bem e evitar o mal”

Como vimos, este princípio governa, enquanto primeiro princípio, toda a vida moral; e pode ser formulado de maneira simples, de fácil compreensão: é necessário fazer o bem e evitar o mal. Assim argumenta São Tomás:

Assim como o ente é o primeiro que decai na apreensão de modo absoluto, assim o bem é o primeiro que cai na apreensão da razão prática, que se ordena à obra: todo agente, com efeito, age por causa de um fim, que tem a razão de bem. E assim o primeiro princípio na razão prática é o que se funda sobre a razão de bem que é “Bem é aquilo que todas as coisas desejam”. Este é, pois, o primeiro princípio da lei, que o bem deve ser feito e procurado, e o mal, evitado. E sobre isso se fundam todos os outros preceitos da lei da natureza, como, por exemplo, todas aquelas coisas que devem ser feitas ou evitadas pertencem aos preceitos da lei de natureza, que a razão prática naturalmente aprende serem bens humanos (AQUINO, 2005, Vol. IV: 562).

E continua o Doutor Angélico:

Donde, ao dizer Graciano que ‘o direito natural é o que se contém na Lei e no Evangelho’, imediatamente acrescentou: ‘pelo qual cada um é ordenado a fazer aos outros o que quer que seja feito a ele’ (AQUINO, 2005, Vol. IV: 568).

2 Outros princípios da lei natural

São basicamente quatro os princípios que informam a lei natural, a saber: conservação da existência; a reprodução; o conhecimento da verdade e necessidade da vida em sociedade. A partir desses princípios, um conjunto de normas deles deflui, deve ser codificado pelas leis positivas, sem contrariar a lei natural.

Assim, vemos que a lei Moral Natural contempla os seguintes princípios: a existência da família como sociedade natural, o direito à constituição de família pelo indivíduo, o respeito aos pais e aos mais velhos, o respeito ao próximo e a seus direitos; a existência do Estado, que é a mais perfeita das instituições naturais. O Estado tem a obrigação de zelar pela paz, promover a justiça, a moral e o bem comum; o direito à vida de pessoa humana; o direito à propriedade; o direito de professar fé religiosa. Tem também a função de defender e proteger seus cidadãos das agressões e violações de direitos individuais e coletivos; deve zelar para que as autoridades civis sejam respeitadas, haja ordem na sociedade e reine a paz.

Um dos mais belos encontros da História

batismo-jesusMons. João S. Clá Dias, EP

“O semelhante se alegra com seu semelhante”, diz um antigo provérbio latino, e de fato é esse um princípio intrínseco a todos os seres com vida, na medida em que sejam passíveis de felicidade. Deus assim nos criou e fez uns dependerem dos outros, aperfeiçoando-nos com o mais entranhado dos instintos, o de sociabilidade. Se para um pássaro constitui motivo de gáudio o encontrar-se com outro da mesma espécie, para nós, esse fenômeno é mais intenso. Ora, se grande é o júbilo de duas crianças afins ao se encontrarem pela primeira vez no colégio, qual não terá sido a reação dos dois maiores homens de todos os tempos, ao se contemplarem face a face?

Assim se realizou um dos mais belos encontros da História, João Batista diante de Jesus; para melhor compreendê-lo, analisemos as analogias entre um e outro.

Apesar de serem duas pessoas infinitamente distantes entre si pela natureza — João é mero homem, Jesus é a Segunda Pessoa da Trindade Santíssima — numerosos traços de semelhança os unem.

Jesus é o alfa e o ômega da História. João é o começo do Evangelho e o fim da antiga Lei (1). Assim o afirma o próprio Nosso Senhor: “Com efeito, todos os profetas e a Lei profetizaram até João” (Mt 11, 13-14).

Segundo Tertuliano, João Batista é uma “figura única na História, adornada em vida de um prestígio sobre-humano, que se levanta misteriosa e solene nos confins de ambos os Testamentos” (2). Dele afirma Jesus: “Na verdade vos digo que entre os nascidos de mulher, não veio ao mundo outro maior que João Batista” (Mt 11, 11).

Além do mais, a concepção de ambos, de Jesus e de João, é precedida pelo anúncio do mesmo embaixador São Gabriel Arcanjo (Lc 1, 11-19 e 26-34). As mensagens não diferem muito, em seus termos, uma da outra. Os nomes de Jesus e de João foram designados por Deus (Lc 1,13 e 31).

No próprio ato de anunciar o nascimento, o Mensageiro celeste profetiza também o futuro tanto do Precursor (Lc 1,13-17) quanto do Messias (Lc 1,31-33).

Sobre Jesus, se fôssemos analisar as grandezas de suas qualidades e de suas obras, “nem todo o mundo poderia conter os livros que seria preciso escrever” (Jo 21, 25).

No Batista, tudo é sui generis, a começar pela profecia de sua vinda, proferida por Isaías e Malaquias: “Uma voz exclama: Abri no deserto um caminho para o Senhor, traçai na estepe uma pista para nosso Deus” (Is 40, 3); “Vou mandar meu mensageiro para preparar o meu caminho” (Mal 3, 1).

Mais impressionante ainda é a sua santificação no seio materno operada pela Santíssima Virgem: “Porque, logo que a voz de tua saudação chegou aos meus ouvidos, o menino saltou de alegria no meu ventre” (Lc 1, 44).

A grandeza de sua missão é profetizada pelo próprio pai: “E tu, menino, serás chamado o profeta do Altíssimo, porque irás à frente do Senhor, a preparar os seus caminhos; para dar ao seu povo o conhecimento da salvação” (Lc 1, 76-77).

A rudeza da forma de vida escolhida pelo Batista lhe confere uma aura de austeridade ímpar: “Ora o menino crescia e se fortificava no espírito. E habitou nos desertos até o dia da sua manifestação a Israel” (Lc 1, 80). “Andava João vestido de pêlo de camelo, () e alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre” (Mc 1, 6).

Ao iniciar suas pregações, foi acolhido pela opinião pública da época com enorme prestígio, pois, já ao seu nascimento, “o temor se apoderou de todos os seus vizinhos, e divulgaram-se todas essas maravilhas por todas as montanhas da Judéia. Todos os que as ouviram as ponderavam no seu coração dizendo: ‘Que virá a ser este menino?’ Porque a mão do Senhor estava com ele” (Lc 1, 65-66). Logo de início, João atraiu multidões: “E iam ter com ele toda a região da Judéia e todos os habitantes de Jerusalém” (Mc 1, 5), “porque todos tinham a João como verdadeiro profeta” (Mc 11, 32).

Os soldados, os publicanos e as multidões lhe perguntavam “Mestre, que devemos fazer?” (Lc 3, 10-14). O próprio Herodes, querendo matá-lo “teve medo do povo, porque este o considerava como um profeta” (Mt 14, 5). Essa grande fama se estendeu até após sua morte: “porque todos tinham João como um profeta” (Mt 21, 26).

As repercussões sobre sua figura, palavras e obras ecoaram entre os vales e os montes da Terra Prometida, a ponto de o povo chegar a pensar “que talvez João fosse o Cristo” (Lc 3, 15).

Pois bem, fixemos em nossa lembrança essa gloriosa projeção alcançada em vida por São João Batista e abramos um parênteses para considerar a principal de suas virtudes: a da restituição, a qual consiste essencialmente em atribuir a Deus os dons d’Ele recebidos.

A ambição é uma paixão tão universal quanto o é a vida humana. Quase se poderia dizer que ela se instala na alma antes mesmo do uso da razão, sendo facilmente discernível no modo de a criança agarrar seu brinquedo ou na ânsia de ser protegida. Ao tomar consciência de si e das coisas, os impulsos primeiros de seu ser convidá-la-ão a chamar a atenção sobre sua pessoa e, se ela cede, ter-se-á iniciado o processo da ambição. O desejo de ser conhecida e estimada é a primeira paixão que macula a inocência batismal. Quantos de nós não nos lançamos nos abismos da ambição, da inveja e da cobiça já nos primeiros anos de nossa infância? Essas provavelmente foram as raízes dos ressentimentos que tenhamos tido a propósito da glória dos outros. Sim, pelo fato de desejarmos a estima de todos, por nos crermos no direito à glória e ao louvor dos nossos circunstantes, constitui para nós uma ofensa o sucesso dos outros. Por isso São Tomás define a inveja como sendo “a tristeza do bem alheio enquanto se considera como mal próprio, porque diminui a própria glória ou excelência” (3).

Há paixões que se mantêm letárgicas até a adolescência, assim não o é a inveja; ela se manifesta já na infância e acompanha o homem até a hora de sua morte. Não será difícil aos pais observar os sinais desse vício, em seus pequenos. Irmãos ou irmãs, entre si, não poucas vezes terão problemas por se imaginarem eclipsados pelas qualidades ou privilégios de seus mais próximos. Quantas vezes não acontece de ser necessário separar-se irmãos, ou irmãs, na tentativa de corrigir essas rivalidades que podem chegar a extremos inimagináveis, tal qual se deu entre os primeiros filhos de Eva, Caim e Abel?

A ambição e a inveja são mais universais do que parece à primeira vista; poucos se vêem livres de suas garras. Elas se levantam e tomam corpo em relação aos que nos são mais próximos, como afirma São Tomás: “A inveja é do bem alheio enquanto diminui o nosso. Portanto, somente se suscita a respeito daqueles que se quer igualar ou superar. Isto não sucede em pessoas que diferem muito de nós em tempo, espaço e lugar, senão nas que nos estão próximas” (4).

Assim, ao sábio será mais difícil invejar o general, e vice-versa, ou, uma médica a uma costureira; mas dentro da mesma profissão, quanto mais relacionadas forem as pessoas entre si, mais intensa se manifestará essa paixão.

Em conseqüência, poder-se-ia dizer que jamais se excitaria esse mau pendor nas almas dos contemporâneos de Jesus face a suas qualidades, pois a diferença entre Ele e qualquer pessoa deste mundo é simplesmente infinita. De fato, esse seria o normal relacionamento dos outros com o Redentor, se seu nascimento e vida fossem refulgentes de poder e de glória. Mas Ele veio ao mundo numa gruta em Belém, foi envolto em panos e depositado na manjedoura sobre palha, viveu em Nazaré exercendo a profissão de carpinteiro para auxiliar seu pai. Assim, só mesmo um forte olhar de fé poderia discernir nesse Menino uma Pessoa de Deus. E essas aparências contrárias à sua divindade chegaram a ser tão extremas que Jesus conferiu o título de bem-aventurado a quem não se envergonhasse de segui-lO (Mt 11, 6). Se Ele tivesse manifestado todo o fulgor da infinita distância existente entre a natureza divina de sua Pessoa e a nossa humana, não haveria quase mérito na restituição dos bens que d’Ele recebemos.

É justamente em função das primeiras palavras pronunciadas por Maria em seu cântico de ação de graças, ouvidas com alegria por João Batista no seio materno, que toma brilho a mais alta virtude do Precursor: “A minha alma glorifica o Senhor; e o meu espírito exulta de alegria em Deus meu Salvador porque olhou para a humildade de sua serva” (Lc 1, 46-48). Essa foi a formação recebida pelo menino-profeta ao longo dos meses durante os quais Maria viveu em casa de Isabel: humildade e servidão. Como teria sido de um valor inestimável se os pontífices e fariseus do Sinédrio houvessem sido educados na mesma escola de João! Certamente não se teriam reunido depois da ressurreição de Lázaro, para decretar a morte de Jesus (Jo 11, 47-53).

Lei natural: um fundamento perene e universal

tomas-de-aquinoPe. Jorge Filipe Teixeira Lopes, EP

Ensina São Tomás de que a lei natural é a noção que o homem tem de praticar o bem e evitar o mal.1 Na ordem prática, estes dois princípios evidentes em si mesmos e universais, constituem a base de todos os juízos morais.2 São estes princípios reguladores descobertos pela razão à medida em que nela vai progredindo a consciência moral.

Essa noção de existência de uma lei natural inata no homem é herdada de uma tradição muito antiga. Muito antes de São Tomás, os Padres da Igreja e, antes deles, na antiguidade, os estóicos, Cícero, e até os poetas gregos como Sófocles, defendiam a sua existência, denominando-a como lei não escrita. Foi, contudo, o Doutor Angélico quem melhor soube fundamentar as teses sobre lei e direitos naturais, pressupondo três categorias de leis: lei eterna, lei natural e lei humana. No que diz respeito à lei natural, para o Aquinate ela não é senão a participação da criatura racional na lei eterna, ou seja, a lei eterna, que é a própria razão divina e o fundamento moral de toda a lei (Cf. S. Th. q. 93. a.6), está como que decalcada na razão humana. Deus ao criar o homem e todo o universo colocou uma ordem em cada natureza, através da qual cada ser age de acordo com o fim da sua natureza. Qualquer homem ao nascer está sujeito à lei e deve agir conforme ela.3

São Tomás segue a tradição de todos os Padres da Igreja. Já no século V, Santo Agostinho sublinhara a existência de várias naturezas, cada qual com leis próprias, às quais se submetem os seres criados: “A razão é que d’Ele (Deus) receberam a categoria de naturezas, e tornam-se defeituosas na medida em que se afastam da sua ideia-arquétipo, pela qual foram produzidas”.4

Segundo Étienne Gilson, no pensamento medieval a ideia de lei natural está subjacente à razão divina e à lei eterna, pois esta se confunde com a vontade ou a razão de Deus. O princípio analógico de que a lei natural está para a lei eterna assim como o ser está para o Ser, vale indistintamente para toda a ordem de criaturas. Deus

[…] concriou a lei natural aos seres que ele chamava à existência e como o facto de existirem se dá por uma participação analógica com o ser divino, assim também analogicamente participam da Sua lei eterna, pois a regra da sua actividade está inscrita na própria essência e estrutura do seu ser .5

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1 Cf. AQUINO. S. Th. I-II. q. 91. a. 2. “[…] quasi lumen rationis naturalis, quo discernimus quid sit bonum et malum, quod pertinet ad naturalem legem, nihil aliud sit quam impressio divini luminis in nobis”.

2 Cf. AQUINO. S. Th. I-II. q. 94. a. 4. “Sic igitur patet quod, quantum ad communia principia rationis sive speculative sive praticae, est eadem veritas seu rectitudo apud omnes, et aequaliter nota. […] Sic igitur dicendum est quod lex naturae, quantum ad prima principia communia, est eadem apud omnes et secundum rectitudinem, et secundum notitiam”.

3 Cf. AQUINO. S. Th. I-II. q. 91. a. 2. “Unde cum omnia quae divinae providentiae subduntur, a rege aeterna regulentur et mensurentur […]. Inter cetera autem rationalis creatura excellentiori quodam modo divinae providentiae subiacet […]. Unde et in ipsa participatur ratio aeterna, per quam habet naturalem inclinationem ad debitum actum et finem”.

4 AGOSTINHO. O livre arbítrio. Braga: Faculdade de Filosofia da UCP, 1998. p. 42.

5 GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 407-409.

Uma longa e persistente indagação

Mons. João Scognamigliopescador Clá Dias, EP

Perguntar por que alguma coisa é, ou existe, é uma questão instigante para o pensamento humano desde o tempo em que os gregos, caminhando pelas sendas nevadas das montanhas da Hélade, sentados diante de colunas dóricas tendo ao fundo um belo bosque, ou navegando em frágeis barquinhos por entre as ilhas do Egeu sob o luminoso sol de outono, ruminavam sobre a essência das coisas.

Por sua própria natureza, o homem é um animal metafísico.[1] Nos últimos 25 ou 26 séculos, uma longa plêiade de pensadores tentou penetrar o mais recôndito fundamento do ser.

Platão, Aristóteles e São Tomás foram aqueles que mais perto chegaram da pura experiência filosófica, conforme mostra Gilson ao longo de sua famosa obra sobre a “unidade da experiência filosófica”. Eles entenderam que só em torno da metafísica do ser se pode fazer filosofia.

Se os pensadores se desviam desses trilhos, e tentam descrever o todo da humanidade por outras vias, o ceticismo cresce, a dúvida triunfa, o subjetivismo se estabelece. Negligenciando-se o ser, perde-se o princípio unificador da filosofia. É a situação na qual nos encontramos hoje.

Por isso, do lado da cultura moderna, o primeiro olhar não encontra ambiente favorável. A ele se vê negada qualquer objetividade e capacidade de captar a realidade das coisas.

O processo que nos trouxe até essa situação tem profundas raízes históricas e ideológicas. Sua gênese remonta às teses de Guilherme de Ockham, no século XIV, e mais ainda à doutrina do cogito, de Descartes. O turvo rio do pensamento ocidental, brotado dessas fontes, redundou em um oceano de incertezas e subjetividade, todo hostil ao ser e, consequentemente, contra o primeiro olhar.

O passo radical e decisivo para o obscurecimento do ser foi dado por Kant, com sua revolução copernicana do pensamento. Ele mesmo qualificou assim sua gnoseologia, no prefácio para a segunda edição da Crítica da razão pura. Semelhantemente ao sucedido na astronomia com a teoria de Nicolau Copérnico, a mente humana (o sol) não mais gravita em torno do objeto (a terra), mas, ao contrário, são “os objetos” que “devem se regular segundo nosso conhecimento … no que diz respeito à intuição dos objetos”, afirma Kant. Era preciso revirar os conceitos adquiridos pela filosofia perene.

Como observa Abelardo Lobato, “o homem toma o lugar que antes era ocupado pelo ser e havia sido reservado na história para Deus ou a physis”.[2] Com o homem colocado assim no centro do processo cognoscitivo, a experiência subjetiva toma o poder e praticamente empurra de lado o conhecimento metafísico, fazendo cessar o longo primado da ontologia. A metafísica, a moral e a religião são transformadas por Kant em meras servidoras da antropologia. É destronado o ser, e até Deus, e em seu lugar é elevado o “eu pensante”.

A partir de então, a percepção do mundo palpável que nos rodeia vai depender não mais da realidade, mas do desejo humano.[3] Daí poder-se falar apropriadamente do esquecimento do ser como um dos maiores desastres da história do pensamento ocidental — para usar expressão de Heidegger, embora aplicando-a a uma quadra histórica diferente e rejeitando o sentido obscuro e hostil à metafísica que ele lhe dava.

Às filosofias alheias à realidade do mundo cabe bem a crítica do italiano vivaz e observador: “La filosofia è quella cosa con la quale e senza la quale il mondo va tale e quale”.

Fato é que, apesar de todos os equívocos e erros falaciosos ao longo da história, os homens nunca abandonaram a indagação sobre o âmago do ser. De fato, conforme observou Gilson, em todas as doutrinas metafísicas, verifica-se esta nota constante: “Por mais divergentes que possam ser, elas concordam na necessidade de descobrir a primeira causa de tudo o que é” .[4]

Aquele que foi descrito como o mais sábio dos santos, e o mais santo dos sábios — São Tomás de Aquino —, foi quem levou mais longe e mais alto essa inquirição metafísica, partindo do menor e mais humilde ser material, concreto, até deparar com o próprio Ser.

A partir das coisas — que são imediatamente dadas à intuição sensitiva —, passa-se, por meio da atuação da inteligência, ao conhecimento do ser ou sua essência imaterial, para em seguida alcançar, a partir desse ser material, a essência e existência dos seres espirituais, da alma humana, em primeiro lugar, e finalmente a Existência em si, o Esse per se subsistens, fundamento último — Causa primeira eficiente e Causa final suprema — de todo ser.[5]

A filosofia de São Tomás está toda fundada e articulada sobre o ser. Todo o pensamento “razoável” do Ocidente, a partir do fim do século XIII, é devedor à grande obra realizada por quem merecidamente recebeu o título de Doutor Comum — da filosofia e da teologia também. Obra comparável, em grandeza, ousadia, harmonia e pulcritude, à arquitetura gótica que lhe foi contemporânea.

In: Lumen Veritatis, nº12, jun./set. 2010.


[1] GILSON, Étienne. The Unity of Philosophical Experience. New York: Charles Scribner’s Sons, 1937. p. 307.

[2] LOBATO, Abelardo. El hombre en cuerpo y alma. Tratado I: El cuerpo humano. In: El Pensamiento de Tomás de Aquino para el hombre de Hoy. vol. 1. Valencia: Edicep, 1994. p. 78.

[3] A filosofia de Max Scheler, que ambicionava aprofundar a antropologia kantiana, “não só deixava de lado o ser”, mas “não tinha uma adequada concepção da função da inteligência na compreensão do real”, e “diluía o espírito do homem em uma nebulosa com o espírito absoluto, cuja característica era a impotência e a debilidade” (LOBATO, Abelardo. Ibidem, p. 79).

[4] GILSON, Étienne. Op. Cit. p. 306.

[5] DERISI, Octavio Nicolás. Tratado de Teología Natural. Buenos Aires: Educa, [s.d.]. p. 134.

A ordem do universo e os anjos

anjosPe. Edwaldo Marques, EP

Quem trata da ordem do universo não pode deixar de dizer uma palavra sobre o papel dos anjos na manutenção da ordem criada por Deus; igualmente, não pode deixar de considerar o papel do anjo da guarda na sua constante ação sobre cada homem em particular.

Evidentemente, Deus com seu poder infinito, não necessitaria do auxílio dos anjos para manter a ordem da criação por Ele estabelecida; porém, é inegável que o poder d’Ele tem um colorido de especial beleza porque é exercido através de toda uma hierarquia de seres espirituais, pois quanto mais é o número de intermediários  e de funções. tanto mais Deus pode manifestar a sua glória.

Como os anjos exercem suas funções em relação à ordem do universo?

Dom Vonier, na sua interessantíssima obra LES ANGES, baseada em São Tomás, nos ensina que o mundo físico está totalmente confiado à guarda dos anjos.

Afirma ele, em inteiro acordo com a maioria dos comentadores de São Tomas, que o universo mantém-se ordenado porque está assistido por anjos ordenadores. Assim, o incomensurável número de astros que circulam continuamente nos espaços celestes, obedecem a leis estabelecidas por Deus, porém, essas leis são continuamente tuteladas por guardiães celestes, porque Ele, na sua finita sabedoria, assim o quis (VORNIER, 1938, p. 54).

É muito de acordo com a arquitetura e a beleza que Deus coloca em tudo o que faz, essa consideração sobre o papel dos anjos na regência e na conservação da ordem universal.

Conforta-nos saber — e é muito conforme a natureza humana — estar o universo regido por uma tal estrutura.  Embora Deus, a rigor, não necessite de outros seres para governar e ordenar, Ele, na sua infinita sabedoria, determinou que as coisas assim fossem por ser mais conforme os planos estabelecidos por Ele, e mais de acordo com a natureza angélica e humana como Ele as criou.

São Tomás, na Suma Teológica, a propósito do tema faz as seguintes considerações, citando os santos Padres, Santo Agostinho, Damasceno e Orígenes:)

Os santos Padres, por sua vez, afirmaram, como os platônicos, que cada uma das diversas coisas corpóreas está sob a presidência de correspondentes substâncias espirituais.  Assim, por exemplo, Agostinho, afirma: “Cada uma das coisas visíveis deste mundo é confiada a um poder angélico”. — E Damasceno diz: “O diabo fazia parte dessas potências angélicas que presidiam à ordem terrestre”. — Orígenes, ao comentar a passagem do livro dos Números que diz “a jumenta viu o anjo”, diz que “o mundo precisa de anjos que governem os animais, dirijam o nascimento dos animais, o crescimento dos arbustos e plantações e de todas as outras coisas”.  Contudo, isso não deve ser afirmado, porque alguns anjos estão habilitados por sua natureza a presidir os animais, e outros as plantas, posto que qualquer anjo, mesmo o menor, tem uma potência mais elevada e mais universal que um gênero de coisas corporais.  Mas é por ordem da divina sabedoria, a qual prepôs diferentes dirigentes a diferentes coisas (AQUINO, 2002, Vol. II, questão 110, artigo I, p. 793-794).

A ordem material, alcançável pelos nossos sentidos, está, pois intimamente ligada com a ordem dos seres espirituais, ordem essa que só se pode conhecer pela revelação divina.

A ordem do universo, para ser perfeita, exige necessariamente que todos os seres formem um só conjunto, capaz de refletir nas suas partes e no seu todo, a excelência e a grandeza do Criador.

Todos os homens, individualmente considerados, serão julgados após a morte e receberão um prêmio ou um castigo eternos. O mesmo não se verifica no que diz respeito às nações; como tais, elas têm apenas existência terrena, não passarão para a eternidade.  O prêmio ou o castigo das nações se dá nesta terra.

No que diz respeito à ordem do universo, as nações têm um papel fundamental. A correspondência ou incorrespondência dos povos à graça divina, afeta de modo marcante, num sentido bom ou mau, a harmonia que Deus — para o bem dos homens — quer que exista na humanidade, e por conseqüência, em todo o conjunto do ser criado.

Também no âmbito das nações, está presente a ação dos anjos, pois todas as nações têm um anjo protetor para ajudá-las a andar nos caminhos de Deus.

A Sagrada Escritura nos traz a esse propósito várias ilustrações.

Quando chegou a ocasião, determinada por Deus, para os judeus exilados na Pérsia deixarem o cativeiro, travou-se uma polêmica entre os anjos tutelares da Pérsia e de Israel.

O anjo da Pérsia queria que os judeus permanecessem por mais tempo para benefício dos persas que estariam assim em contato com a religião verdadeira; o  anjo dos judeus argumentava em sentido oposto, pois era necessário que os israelitas voltassem para a terra que Deus lhes havia destinado.

O profeta Daniel, numa visão, teve conhecimento disso, deixando no seu livro o seguinte relato:

O príncipe do reino persa resistiu‑me durante vinte e um dias; porém Miguel, um dos primeiros príncipes, veio em meu socorro. Permaneci assim ao lado dos reis da Pérsia.

Aqui estou para fazer‑te compreender o que deve acontecer a teu povo nos últimos dias; pois essa visão diz respeito a tempos longínquos.

Enquanto assim me falava, eu mantinha meus olhos fixos no chão e permanecia mudo.

De repente, um ser de forma humana tocou‑me nos lábios. Abri a boca e falei; disse ao personagem que estava perto de mim: Meu senhor, essa visão transtornou‑me, e estou sem forças.

Como poderia o servo de meu senhor conversar com seu senhor, quando está sem forças e sem fôlego?

Então o ser em forma humana tocou‑me novamente e me reanimou.

Não temas nada, homem de predileção! Que a paz esteja contigo! Coragem, coragem! Enquanto ele me falava senti‑me reanimado. Fala, meu senhor, disse, pois tu me restituíste as minhas forças.

Sabes bem, prosseguiu ele, porque vim a ti? Vou voltar agora para lutar contra o príncipe da Pérsia, e no momento em que eu partir virá o príncipe de Javã (Grécia).

Mas (antes), far‑te‑ei conhecer o que está escrito no livro da verdade.

Contra esses adversários não há ninguém que me defenda a não ser Miguel, vosso príncipe [Dan 10,13-20s]. (Bíblia Sagrada, 1964, p. 1226).

Naquele tempo, surgirá Miguel, o grande príncipe, o protetor dos filhos do seu povo. Será uma época de tal desolação, como jamais houve igual desde que as nações existem até aquele momento. Então, entre os filhos de teu povo, serão salvos todos aqueles que se acharem inscritos no livro [Dan 12,1] (Bíblia Sagrada, 1964, p.1229).

 O Eclesiástico nos revela que Deus “pôs um príncipe (um anjo) à testa de cada povo”  [Eclo, 17,14] (op. cit., p. 901).

* * *

 

Além dos anjos tutelares das nações, existem outros que Deus encarrega de determinadas missões para intervir em favor dos povos ou de pessoas.

Como, por exemplo, entre outros, a Sagrada Escritura apresenta os seguintes:

Josué encontrava‑se nas proximidades de Jericó. Levantando os olhos, viu diante de si um homem de pé, com uma espada desembainhada na mão. Josué foi contra ele: És dos nossos, disse ele, ou dos nossos inimigos?

Ele respondeu: Não; venho como chefe do exército do Senhor.

Josué prostrou‑se com o rosto por terra, e disse‑lhe: Que ordena o meu Senhor a seu servo?

E o chefe do exército do Senhor respondeu: Tira o calçado de teus pés, porque o lugar em que te encontras é santo. Assim fez Josué. [Jos 5, 13] (op. cit., p 262).

                                                     * * *

 Logo, porém, que Macabeu e os que estavam com ele souberam que Lísias sitiava suas fortalezas, rogaram ao Senhor, juntamente com o povo, entre gemidos e lágrimas, para que ele se dignasse enviar um bom anjo para salvar Israel [2Mac 11,6] (op. cit., p. 611).

                                                     * * *

 Quando tu oravas com lágrimas e enterravas os mortos, quando deixavas a tua refeição e ias ocultar os mortos em tua casa durante o dia, para sepultá‑los quando viesse a noite, eu apresentava as tuas orações ao Senhor.

Mas porque eras agradável ao Senhor, foi preciso que a tentação te provasse.

Agora o Senhor enviou‑me para curar‑te e livrar do demônio Sara, mulher de teu filho.

Eu sou o anjo Rafael, um dos sete que assistimos na presença do Senhor [Tob 12, 12-15] (op. cit., p. 534).

 

                                          * * *

Meu Deus enviou seu anjo e fechou a boca dos leões; eles não me fizeram mal algum, porque a seus olhos eu era inocente e porque contra ti também, ó rei, não cometi falta alguma [Dan 6,23] (op. cit., p. 1220).

                             * * *

 

O Novo Testamento também é pródigo em exemplos: “A fumaça dos perfumes subiu da mão do anjo com as orações dos santos, diante de Deus” [Apc 8,4] (op. cit. , p. 1588).

                                                            * * *

“Não são todos os anjos, espíritos ao serviço de Deus, que lhes confia missões para o bem daqueles que devem herdar a salvação?” [Hbr 1,14] (op. cit., p. 1551).

                                                            * * *

Depois de sua partida, um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e disse: Levanta‑te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito; fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar.

José levantou‑se durante a noite, tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egito [Mt 2,13] (op. cit., p.1308).

 

                                                             * * *

“Em seguida, o demônio o deixou (Nosso Senhor Jesus Cristo), e os anjos aproximaram‑se dele para servi‑lo” [Mt  4,11] (op. cit., p. 1309).

                                                             * * *

“Mas um anjo do Senhor abriu de noite as portas do cárcere e, conduzindo‑os para fora, disse‑lhes: ‘Ide e apresentai‑vos no templo e pregai ao povo as palavras desta vida’”  [At 5,19] (op. cit., p. 1440).

                                                              * * *

Um anjo do Senhor dirigiu‑se a Filipe e disse: Levanta‑te e vai para o sul, em direção do caminho que desce de Jerusalém a Gaza, a Deserta.

Filipe levantou‑se e partiu. Ora, um etíope, eunuco, ministro da rainha Candace, da Etiópia, e superintendente de todos os seus tesouros, tinha ido a Jerusalém para adorar [At 8,26] (op. cit., p. ).

 

                            * * *

De repente, apresentou‑se um anjo do Senhor, e uma luz brilhou no recinto. Tocando no lado de Pedro, o anjo despertou‑o: Levanta‑te depressa, disse ele. Caíram‑lhe as cadeias das mãos.

O anjo ordenou: Cinge‑te e calça as tuas sandálias. Ele assim o fez. O anjo acrescentou: Cobre‑te com a tua capa e segue‑me.

Pedro saiu e seguiu‑o, sem saber se era real o que se fazia por meio do anjo. Julgava estar sonhando.

Passaram o primeiro e o segundo postos da guarda. Chegaram ao portão de ferro, que dá para a cidade, o qual se lhes abriu por si mesmo. Saíram e tomaram juntos uma rua. Em seguida, de súbito, o anjo desapareceu.

Então Pedro tornou a si e disse: Agora vejo que o Senhor mandou verdadeiramente o seu anjo e me livrou da mão de Herodes e de tudo o que esperava o povo dos judeus [At 12,7] (op. cit.,  p. 1449).

 

                                          * * *

 

Revelação de Jesus Cristo, que lhe foi confiada por Deus para manifestar aos seus servos o que deve acontecer em breve. Ele, por sua vez, por intermédio de seu anjo, comunicou ao seu servo João [Apc 1,1] (op. cit., p. 1580).

 

                                          * * *

Eu, Jesus, enviei o meu anjo para vos atestar estas coisas a respeito das igrejas. Eu sou a raiz e o descendente de Davi, a estrela radiosa da manhã. [Apc 22,16] (op. cit., p. 1601)

 

                                          * * *

Refletiu um momento e dirigiu‑se para a casa de Maria, mãe de João, que tem por sobrenome Marcos, onde muitos se tinham reunido e faziam oração. Quando bateu à porta de entrada, uma criada, chamada Rode, adiantou-se para escutar. Mal reconheceu a voz de Pedro, de tanta alegria não abriu a porta, mas correndo para dentro, foi anunciar que era Pedro que estava à porta.  Disseram-lhe: Estás louca! Mas ela persistia em afirmar que era verdade. Diziam eles: Então é o seu anjo [At 12,15] (op. cit., p. 1450).

 

                                          * * *

Eu vi também, na mão direita do que estava assentado no trono, um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos.

Vi então um anjo poderoso, que clamava em alta voz: Quem é digno de abrir o livro e desatar os seus selos? [Apc 5,1-2] (op. cit., p. 1584-1585).

 

                                                                               * * *

 

Considerar a intercomunicação e interpenetração das duas ordens de seres — os que são puros espíritos, como os anjos, e os que são compostos de espírito e matéria (os homens) — é altamente enriquecedor para a alma humana. tira-nos de uma visão terra-à-terra do que nos cerca, e transporta-nos para uma clave muito mais alta, na qual nos sentimos muito mais perto de Deus.

   

MARQUES, Edwaldo. A Ordem do Universo: Estudo e considerações a respeito da Ordem do Universo nas suas relações com a criação divina, com base na doutrina católica sobre o assunto. Centro Universitário Italo Brasileiro: Curso de Pós-Graduação em Teologia Tomista. São Paulo, 2007. p. 28-34.

Como as almas separadas do corpo conhecem?

Guy de Ridderalmas

Após a morte, a inteligência subsiste e passa a ter um modo de se exercer bastante diferente daqui na terra, pois que ela é chamada a contemplar em sua essência as realidades imateriais como Deus. Convém-lhe assim conhecer vendo o que de si é inteligível, da mesma maneira que as substâncias separadas. Deus infunde espécies na alma da mesma maneira que o faz com os anjos. A alma tem parte nelas, embora de modo menos elevado. Por meio destas espécies a alma conhece o que lhe convém de maneira direta e intuitiva. Este conhecimento ultrapassa em qualidade e em segurança tudo que existe na terra, tanto por causa da superioridade da luz divina, quanto por causa da ausência de possibilidade de erro oriunda dos fantasmas da imaginação.

À guisa de ilustração, imaginemos alguém que, em virtude de acidente, perde os olhos. Deixará imediatamente de enxergar. No entanto, a capacidade virtual de poder ver, nele subsiste. E subsiste na alma, não no corpo, obviamente. Se por algum prodígio da medicina, puder ser-lhe restaurada a vista, passará novamente a enxergar, pois a potência virtual da vista reencontrará o elemento corporal que lhe permite exercer-se, que são os olhos.

4.1 Parece que a inteligência humana conhecerá sempre por imagens

Uma dificuldade surge, entretanto a este respeito.

É próprio da inteligência humana conhecer as realidades espirituais a partir de suas imagens sensíveis. Não é esta inteligência, entretanto da mesma natureza que a inteligência dos anjos, os quais não estando unidos naturalmente a um corpo, conhecem diretamente a essência das coisas por meio das formas inteligíveis infusas no momento em que são criados. Ora, Deus move cada natureza segundo seu próprio modo de ser. Assim sendo, parece que a inteligência humana conhecerá sempre com base em imagens.

Contudo, quando se fala da visão do Criador, ao menos no que concerne esta visão direta e face a face que chamamos de visão beatífica, é preciso render-se à evidência de que nenhuma imagem sensível pode permitir ao homem conhecer sua inteligibilidade. Deus se torna inteligível, sem o concurso de qualquer ser intermediário criado. Trata-se de um modo novo de conhecer onde parece que o intelecto não tem lugar.

4.2 Funções e influências da alma separada

Quais as funções que a alma neste estado de separação pode, portanto, exercer e que influências pode sofrer?

4.2.1 Funções que pode exercer.

A alma continua viva. A Igreja já condenou a hipótese da inconsciência da alma após a morte ([1]).

Na outra vida, antes da ressurreição a vida da alma é parecida com a do Anjo, embora com diferenças. O anjo, por exemplo, se move “instantaneamente”; o homem, não. O homem não pode seguir o vôo de seu pensamento, nem de sua vontade, como o faz o espírito angélico. Algo disso, no entanto pode fazer. Por concessão de Deus também.

4.2.2 Atividades sensitivas

Atividades que requeiram as potências sensitivas externas (corpo), não as pode ter a alma separada do corpo. Com a morte, a alma só conserva em raiz, virtualmente ([2]) as potências sensitivas, pois que operam a partir de seu corpo (sentidos). Por exemplo, não poderá mais conhecer uma árvore concreta já vista em sua peregrinação terrena ou ainda a conhecer depois. Só pode ter noção da idéia universal de árvore (aplicável, portanto, a todas as árvores do mundo). 

4.2.3 Atividades espirituais

Outro aspecto entretanto é no tocante à atividade espiritual, ou funcionamento psicológico, que veremos a seguir.

 

5. Funções intelectivas da alma separada

 5.1. Conhecimentos já havidos ou acrescidos

a) A alma separada do corpo conserva todos os conhecimentos intelectuais adquiridos anteriormente durante sua vida neste mundo ([3])

b) Vê-se e conhece-se a si mesma de modo perfeito ([4]). Conhecimento com alegria superabundante para as almas justas.

c) Conhece perfeitamente as demais almas separadas, o que lhe era vedado enquanto unida a seu corpo. Tudo por conhecimento natural ([5]).

Conhece também aos anjos, no entanto, não por conhecê-los por alguma espécie inteligível abstrata, pois que eles são superiores (mais “simples”). O conhecimento que a alma tem dos anjos lhe advém, sim, do conhecimento de semelhanças impressas na alma por Deus, acessíveis às almas separadas ([6]).

d) Em virtude das espécies inteligíveis infundidas naturalmente por Deus, têm as almas separadas um conhecimento natural, embora imperfeito e geral, de todas as coisas naturais. Isto traz um aumento enorme do que se poderia chamar das ciências naturais da alma separada ([7]).

e) Em virtude destas mesmas espécies naturais infundidas por Deus, pode a alma separada conhecer um enorme número de coisas. Não todas, mas aquelas com as quais tiver determinado relacionamento, por algum modo, seja por ter delas conhecimento anterior (ciência), por afeto (amigo, parente), seja por inclinação natural (semelhança de vocação) etc. Tudo, por determinação divina ([8]).

f) O conjunto todo destes conhecimentos proporciona à alma separada, além das idéias infundidas por Deus uma altíssima idéia de Deus enquanto Autor da ordem natural, pois grande número de perfeições divinas reflete-se na própria substância das almas separadas, além das demais coisas que conhece naturalmente por infusão divina.

─ Todos estes conhecimentos dizem respeito tanto às almas dos justos, quanto à dos precitos. Nenhum deles transcende a ordem puramente natural (naquele estado), sendo algo que pede e exige psicologicamente o estado próprio da separação. Para as almas boas será motivo de regozijo; para as outras, ocasiões suplementares de tormentos e decepções.

5.2. Ciência adquirida permanece na alma separada?

Baseando-se em São Jerônimo: “Aprendamos na terra aquilo cujo conhecimento persevere em nós até o céu” ([9]), S. Tomás declara que a ciência, na medida em que está no intelecto (e ele demonstra que está principalmente nele), permanece na alma separada.

5.3. Dificuldade levantada por S. Tomás: se assim for, um homem não tão bom poderá saber mais do que um mais virtuoso. Responde ([10]): Pode ser, assim como poderá haver maus de estatura maiores que bons; mas, diz ele, isso quase não tem importância, em comparação com as outras prerrogativas que os mais virtuosos terão.

5.4. Almas separadas conhecem o que se passa na terra?

Podem as almas separadas do corpo conhecer o que se passa na terra?

São Tomás começa, a priori, negando esta hipótese. Cita S. Gregório: “Os mortos não sabem como está organizada a vida daqueles que, depois deles, vivem na carne; a vida do espírito é bem diferente da vida da carne. Assim como as coisas corpóreas e as incorpóreas diferem em gênero, também se distinguem pelo conhecimento ([11])”.

No tocante aos bem-aventurados, no entanto, S. Gregório realça ([12]) que “Não se deve pensar a mesma coisa a respeito da alma dos santos. Para aquelas, com efeito, que vêem por dentro a claridade de Deus todo-poderoso, não se deve absolutamente acreditar que reste fora alguma coisa que ignorem”.

Opinião também contestada por Santo Agostinho [“Minha mãe que tanto fez por mim na terra, depois não me apareceu nunca mais”], reproduzida por São Tomás ([13]).

São Tomás, no entanto, acaba concluindo  que “parece mais provável que as almas dos santos, que vêem Deus, conheçam tudo o que aqui acontece”.

Ele enuncia três observações que enriquecem o tema ([14]):

5.4.1 Falecidos podem preocupar-se com coisas do mundo?

Os mortos podem preocupar-se das coisas do mundo, ainda que as ignorem concretamente. Da mesma maneira que quando rezamos pela alma de um falecido, sem saber se está efetivamente no purgatório ou não;

5.4.2. Conhecimento por informações recebidas

Podem tomar conhecimento das coisas deste mundo por informações que lhes cheguem seja pelos anjos, seja pelos demônios ou ainda por divina revelação, especialmente por algum fato que lhes diga mais especialmente respeito (conhecidos, familiares);

5.4.3. Conhecimento por aparições

Por especial permissão divina podem auferir conhecimento por outras almas, diretamente ou por meio de anjos.

RIDDER, Guy de. O conhecimento da alma separada do corpo. Centro Universitário Italo Brasileiro – Curso de Pós-Graduação em Teologia Tomista. São Paulo, 2007. p.9-11.


[1] Cf DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, São Paulo: Paulinas/Loyola, 2007, p. 1238.

[2] Cf  AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,77,7 – 89,5; e Suplemento 70,I-2 em ROYO MARIN, O.P., Antonio. Teologia de la Salvación. Madri: BAC,  1965, p. 178

[3] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89-5-6

[4] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,88,I c; e I,89,2; SCG III,42-46; De anima, a.16 em ROYO MARIN, O.P., Antonio. Teologia de la Salvación. Madri: BAC,  1965, p. 180

[5] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,2

[6] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,1,3; 2,2;3

[7] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,3,c e 4

[8] Cf. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,4; 57,2

[9] Cf Epístolas, 53, al.103, em AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89, 5, 2

[10] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89,6,2

[11] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,8

[12] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89,8,3

[13] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I, 89,8,3

[14] Cf AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Loyola, 2002, I,89,8,3