A Filosofia Jusnaturalista de São Tomás

tomasPe. Jorge Filipe Teixeira Lopes, EP

Tendo como fundo de quadro a concepção filosófica que antecedeu os tempos modernos, poder-se-á entender melhor o fundamento daquilo a que se poderia chamar de uma antropologia medieval, a qual tinha como premissa maior a noção bíblica do homem enquanto ser criado à imagem e semelhança de Deus. Ademais, cumpre entender que a concepção tomista de lei e direito natural não é senão a mesma que durante séculos foi sustentada pela Igreja e pelos Padres da Igreja; e que antes disso já na antiguidade os Estóicos, Cícero, e até os poetas gregos como Sófocles, defendiam a sua existência denominando-a como lei não escrita[1]. S. Tomás de Aquino teve o privilégio de condensar o pensamento e consolidá-lo nas questões da Suma Teológica que dizem respeito à lei.

1.2.1 A lei natural como decorrência da lei divina.  O doutor angélico fundamenta as suas teses sobre lei e direitos naturais pressupondo três categorias de leis: lei eterna, lei natural e lei humana. No que diz respeito à lei natural, para o aquinate ela não é senão a participação da lei eterna na criatura racional, ou seja, a lei eterna que é a ordem divina, promulgada no homem por meio da razão natural. Deus ao criar o homem e todo o universo colocou uma ordem em cada natureza, através do que cada ser age de acordo com o fim da sua natureza e, portanto qualquer homem ao nascer está sujeito à lei e deve agir conforme ela[2]. Assim se exprime também S. Agostinho quando afirma que: “A razão é que d’Ele (Deus) receberam a categoria de naturezas, e tornam-se defeituosas na medida em que se afastam da sua ideia-arquétipo, pela qual foram produzidas”[3]. Segundo Étienne Gilson, no pensamento medieval a ideia de lei natural está subjacente à razão divina e à lei eterna, pois esta se confunde com a vontade ou a razão de Deus. O princípio analógico de que a lei natural está para a lei eterna assim como o ser está para o Ser, vale indistintamente para toda a ordem de criaturas. Deus “[…]“concriou” a lei natural aos seres que ele chamava à existência e como o facto de existirem se dá por uma participação analógica com o ser divino, assim também analogicamente participam da Sua lei eterna, pois a regra da sua actividade está inscrita na própria essência e estrutura do seu ser”[4]. Esse é um ponto sobre o qual todos os Padres da Igreja e todos os filósofos estão de acordo, aparte os detalhes técnicos do problema.

1.2.2. Natureza, razão e lei natural.  Maritain começa por salientar que para se ter uma noção clara dos pontos de divergência entre a concepção de lei natural tomista e as modernas, é necessário analisar três pontos: quais são, para S. Tomás, as noções de natureza, de razão e de lei natural, em contraposição às concepções modernas[5].

Para o doutor angélico, a palavra natureza designa a essência humana, o que quer dizer que não se refere somente à percepção sensorial, num sentido empírico da observação, mas a uma certa essência inteligível destacada da experiência. A natureza humana tem uma capacidade própria da sua natureza de conhecer o mundo que a rodeia, transcendendo-o, entretanto, pela sua inteligibilidade e abstracção. Por outro lado, as exigências da natureza têm uma força de lei em razão da lei eterna, pois é a razão divina a única criadora da lei natural e reguladora dessa lei na razão humana, donde se poder compreender o carácter sagrado dessa mesma lei.

Como segundo ponto, para S. Tomás a razão é uma razão exclusivamente humana; o homem é um animal racional, um indivíduo sem nenhuma mescla de uma razão abstracta superior. Assim, e sob esse aspecto, os preceitos da lei natural, ao contrário dos vários modos da razão humana de conceituar ou racionalizar – dedução, demonstração ou silogismo – são lhe conhecidos através de uma inclinação ou conaturalidade. E por lhe serem assim conhecidos, a razão humana não intervém na sua idealização, pois ela, a lei natural, tem por sua única razão de existência a razão divina[6].

Como terceiro ponto, podemos notar que quando consideramos a lei natural do ponto de vista gnoseológico[7]- diferentemente do sentido ontológico ou do que a lei natural é e contém – parece fundamental que ela seja conhecida por inclinação, o que significa a bem dizer que ela pode ser conhecida e por consequência pode ser uma medida efectiva da razão prática humana. Ela, apesar de não ser escrita pelos homens, é-lhes conhecida em diferentes graus, e é da sua recusa que se originam os erros que por vezes se dão entre os homens. O princípio básico, evidente em si, e infalivelmente comum a todos os homens e que é intelectualmente percebido em virtude dos conceitos em jogo, é a noção de que é preciso fazer o bem e evitar o mal. É este o primeiro princípio da lei natural conhecido por todos os homens[8].

1.2.3. O conhecimento por conaturalidade.  A lei natural é o conjunto de coisas que o homem sabe que deve ou não fazer e que defluem necessariamente deste princípio, o qual não se regula teoricamente como um teorema de geometria. Quando S. Tomás diz que a razão humana descobre os regulamentos da lei natural sobre a conduta das inclinações da natureza humana, Maritain afirma que ele quer dizer que o modo segundo o qual a razão humana conhece a lei natural, não é o modo do conhecimento racional mas um modo próprio do conhecimento por inclinação: conhecimento por simpatia ou conaturalidade[9].

A conaturalidade é uma espécie de conhecimento, não totalmente claro como os que se obtêm por via dos conceitos ou do julgar conceptual, mas é um conhecimento não sistemático, vital, a modo de instinto, de simpatia, através do qual o intelecto forma os seus julgamentos e que, ao modo de uma melodia, produz uma vibração nas tendências profundas do sujeito, tornando-as conscientes e em concordância com as suas inclinações. Em S. Tomás, todas as coisas perante as quais o homem tem uma inclinação natural são tomadas pela razão como naturalmente boas, e é nesse naturalmente que se apoia o conhecimento por conaturalidade da lei natural[10].

A definição de conaturalidade explica o porque Maritain, ao abordar o terceiro ponto que diz respeito especificamente à lei natural, faz notar que a lei natural é essencialmente uma lei não escrita, se bem que acidentalmente os seus preceitos possam obviamente escrever-se como um código de conduta humano ou divino, como são os Mandamentos. De qualquer forma, ela não obriga mais do que um direito natural ou um código jurídico virtual[11]. Sob esse aspecto, a lei natural aplica-se no campo prático do seguinte modo: sendo o homem um animal político, a ideia de sociedade política natural tem a sua constituição na vontade que os homens têm de viver em comunidade, aliada pela razão e pela virtude. Nesse contexto, em razão das exigências da vida política, há um apelo ao ser humano para que se constitua conforme aquilo que a sua natureza lhe indica, pelo que a lei natural pode ser determinada e precisada numa lei positiva que cada circunstância social ou determinada época histórica suscitam. Fica claro que essa contingência e precisão a que é sujeita a lei natural não pode de forma alguma sujeitá-la a ponto de distorcer a razão do seu fundamento. Uma lei positiva que não lhe seja conforme nunca poderá ter o estatuto de lei[12].

TEIXEIRA LOPES, Jorge Filipe. Fundamentação dos direitos humanos na Lei Natural. Universidad Pontificia Bolivariana – Escuela de Teologia, Filosofia y Humanidades. Licenciatura Canónica em Filosofia. Medellin, 2009. p. 22-27.


[1] Ibid., p. 65. Veja-se a célebre citação de Cícero acerca da lei natural: “A razão recta, conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo senado; não há que encontrar para ela outro comentador nem intérprete; não é uma lei em Roma e outra em Atenas, – uma antes e outra depois, mas una, sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os tempos;” (Ver CÍCERO. De Republica. Livro III. XVII).

[2] AQUINO, São Tomás. Suma Teológica. I-II. Q. 91. a.2.  São Paulo: Loyola, 2005. p. 530-532.

[3] SANTO AGOSTINHO. O livre arbítrio. Braga: Faculdade de Filosofia da UCP, 1998. p. 42.

[4] GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 407-409.

[5] MARITAIN, Jacques. La loi naturelle ou loi non écrite. Fribourg: Éditions Universitaires, 1986. p. 83. O autor faz um quadro sinóptico bastante elucidativo das concepções tomista, racionalista e empirista de lei natural.

[6] Ibid., p. 83-84.

[7] Ibid., p. 20-35.  Maritain distingue os aspectos ontológicos e gnoseológicos no primeiro capítulo da sua obra. Sob o ponto de vista ontológico, o homem tem na sua natureza inteligente tudo o que pode proporcionar a sua realização enquanto ser humano e, portanto, tem fins que correspondem necessariamente à sua constituição essencial e que são os mesmos para todos. Nesse sentido, tem uma ordem, uma disposição interna que a razão deve descobrir e inclinar a vontade a agir de acordo com esses fins essenciais e necessários do ser humano. Sob o aspecto gnoseológico, pode-se conceber a lei natural não em si, mas como a medida dos actos humanos. Então, e por ser uma lei não escrita, ela vai crescendo no processo de conhecimento do homem, à medida que se desenvolve a sua consciência moral. A lei natural não é conhecida conceptualmente pela razão humana mas por uma inclinação para a qual tende a natureza humana. Como primeira regra, a natureza humana busca para si tudo o que lhe parece um bem e ao qual a natureza propende, o que denota que há uma série de regulamentos morais que antecedem a razão. Nesse sentido, é o princípio da própria lei natural sob o aspecto de que por ela o homem tem uma ideia daquilo que deve e daquilo que não deve fazer.

[8] Ibid., p. 27.

[9] Ibid., p. 28. São Tomás desenvolve bastante este tema na S. Th. II-II, Q. 45, a. 2. Para Abelardo Lobato, há um apetite natural que é manifestado na lex naturalis do homem como uma participação da lei eterna. “Tomás de Aquino colocou em relevo de muitos modos, tudo o que é conatural ao homem. A natureza compreende a totalidade, é determinada pela espécie, e tem um peso ontológico que se inclina para os bens convenientes a ela, com anterioridade aos dinamismos das potências. Na esfera do conhecer há que se admitir conhecimentos por conaturalidade e por instinto, que brotam espontaneamente do espírito do homem”. Por se tratar de um conhecimento instintivo prévio, o conhecimento por conaturalidade reveste-se de uma suma primazia na determinação dos actos humanos. Por isso, esse apetite natural tende para o bem de modo determinado e seguro. (Cfr. LOBATO, Abelardo. El hombre en cuerpo y alma. Valencia: Edicep, 1994. p. 212-213).

[10] Ibid., p. 28-30.

[11] Ibid., p. 85. Há um aspecto aparentemente difícil de compreender e que diz respeito à dificuldade em reconhecer a universalidade e, sobretudo, a cognoscibilidade da lei natural. Se ela é cognoscível por todos os homens, como se explica que o infanticídio era expediente comummente utilizado na Ásia na época da dinastia Ming, segundo os relatos de Marco Polo, assim como era também entre os Gregos e Romanos? Ou que no Egipto Antigo, a profissão de ladrão tivesse sido reconhecida pelo Estado? Ou que, em certos reinos orientais, houvesse o costume de, a determinada altura da vida do suserano, este ser cegado? Se é verdade que à lei natural carecem as objectividades normativas, pois não se pode extrair dela um regulamento específico para cada situação concreta, para S. Tomás a lei e o direito naturais são inter-dependentes da lei moral, ou seja, ela está enraizada na natureza humana, sob o aspecto moral, reflectindo tendências humanas universais. De qualquer forma, a aplicação do ponto de vista prático, será tanto mais diferente quanto diferentes forem os aspectos culturais de cada povo. É preciso em primeiro lugar distinguir duas coisas: primeiro, que há preceitos primeiros e segundos da lei natural, sendo os primeiros mais evidentes que os segundos; segundo, que há aspectos etnológicos e históricos que proporcionam uma maior ou menor capacidade de um povo seguir a lei moral natural. Sobre estes pontos ver (MARITAIN, La loi naturelle ou loi non écrite. Op. Cit., p. 7-9). De qualquer forma, é de se notar que quanto mais bárbaro um povo, mais afastado dos primeiros princípios de fazer o bem e agir de acordo com a razão – vejam-se os povos em cujos rituais alucinantes se buscava a divindade através da perda da razão, e relacione-se isso com a poligamia, sacrifícios humanos, canibalismo, etc. Num indivíduo acontece algo de semelhante no que diz respeito à perda do senso moral: qualquer criança sabe perfeitamente que a mentira é má; entretanto, na primeira mentira, as barreiras morais, psicológicas e até operacionais que a natureza tem na sua rectidão primeira, caem. Mentindo uma segunda vez, fá-lo-á mais desembaraçadamente e, no final, o problema não será vencer os obstáculos da mentira, mas sim vencer os obstáculos para não mentir. Sob esse aspecto, os povos ficam também atolados nos seus erros, à força de tanto os praticar, podendo-se entender a expressão da Escritura quando afirma que o pecador torna-se escravo do seu pecado. Os vícios de um povo toldam a límpida visão das coisas que a lei moral, naturalmente, proporciona, pelo que Maritain entende como uma concepção tomista que o conhecimento da lei natural pelo homem cresce na medida em que este progride na sua experiência moral.

[12] Ibid., p. 86.

O Sacerdócio em São Tomás

Pe. Mário Sérgio Sperche, EP

Para São Tomás, o termo sacerdote proveniente de sacra dans, “o que dá o sagrado”, define a essência presbiteral, por se coadunar com suas duas funções principais: “primeiro, tem por missão comunicar ao povo as coisas sagradas que recebe de Deus, portanto, exercer a função de oráculo transmitindo a Palavra de Deus; segundo, sua própria pessoa está dedicada “à mais sagrada de todas as coisas, o culto divino”. O

 Doutor Angélico considera-o como “instrumento da misericórdia e da justiça divina, às vezes, das leis humanas”. Onde se entrevê o seu aspecto real. E acrescenta: “Os sacerdotes são os embaixadores e intérpretes para todas as instruções doutrinárias e morais, que apraz a Deus comunicar aos homens”[1]. Dir-se-ia que o sacerdote em seus três ministérios, está fundamentado embora não explicitamente nesta afirmação tomista.

O sacerdote age in persona Christi capitis, pois, como foi dito, no novo Testamento existe apenas um sacerdote: Jesus Cristo, o agente principal dos sacramentos e do culto cristão. Daí procede toda a dignidade sacerdotal. Dir-se-ia que o sacerdote empresta sua laringe para Cristo perdoar os pecados e consagrar a hóstia na Missa, supremo ato sacrifical[2].

O Ministro principal, o Ministro de Excelência da Igreja é o próprio Cristo. Jesus Cristo é o único sacerdote, e, portanto, todas as cerimônias do Antigo Testamento cederam lugar aos ritos instituídos e operados por Ele através do ministro secundário[3].

Em São Tomás a mediação se dá não somente no sacrifício, mas também na Palavra como “oráculo transmitindo a Palavra de Deus”, ou ainda como “embaixadores e intérpretes” das leis divinas. Esta é a essência do sacerdócio católico. Hugo Rahner recorda que esta “mediação”, que é “essência do sacerdócio”, se ordena tanto ao culto quanto à pregação[4]. Frei Antonio Royo Marín ressalta que estas funções estão fundamentadas no sacramento da ordem, pois, “o presbiterado constitui um verdadeiro sacramento, que imprime na alma um caráter indelével”[5].


[1] S. Th. 3, q.22, a.1, a.2 In: AQUINAS.

[2] S. Th. 3, q.82, a. 1. Resp.

[3] S. Th. 3, q. 71, a. 4.

[4] RAHNER, Teología dela pregación. Buenos Aires: Plantin, 1950, p. 225.

[5] ROYO MARÍN, Antonio. Teología moral para seglares.  Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1994, p. 528.

Obediência: O exemplo de São Tomás de Aquino

Diác. Inácio de Almeida, EP

Um dos hábitos pessoais de São Tomás era o de caminhar em torno do claustro. Andava depressa, com ímpeto e de cabeça erguida. Chesterton dizia que este modo de proceder do Angélico era uma “ação muito própria dos homens que travam as suas batalhas na inteligência”.1

Provavelmente foi numa dessas suas caminhadas que ocorreu o seguinte fato: um jovem frade do convento de Bolonha, necessitando fazer algumas compras, solicitou ao superior que lhe designasse alguém para acompanhá-lo até a cidade. Foi-lhe respondido que o primeiro frade que encontrasse pelo caminho deveria ser o seu acompanhante. Naquela ocasião, Tomás ali se encontrava apenas de passagem e, como de costume, passeava a passos largos em torno do claustro, certamente em altas meditações. Os dois acabaram se encontrando, ocasião em que o jovem frade se dirigiu ao Aquinate com as seguintes palavras: “Meu bom irmão, o superior lhe ordena que venha comigo”.2

Então Frei Tomás, com um gesto de cabeça, assentiu ao chamado e seguiu-o sem nada dizer. Como o outro religioso era mais jovem e caminhava ainda mais depressa, o Mestre Tomás ia ficando para trás, sendo constantemente repreendido pelo companheiro por isso. O santo desculpava-se humildemente e esforçava-se em segui-lo. Por outro lado, alguns cidadãos de Bolonha, que conheciam Frei Tomás, ficaram admirados por vê-lo seguir com tanta dificuldade um frade de pouca idade. Intuíram então que se tratava de algum engano, aproximaram-se do noviço e informaram-lhe quem era o ilustre acompanhante. Assustado, o bom frade se voltou para São Tomás pedindo perdão, o qual foi imediatamente concedido. O povo, por sua vez, dirigindo-se ao mestre, perguntou o motivo daquele modo de agir, ao que o Angélico respondeu: “A obediência é a perfeição da vida religiosa, pela qual o homem se submete ao homem por Deus, como Deus obedeceu ao homem em favor do homem”.3

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1) Chesterton, G.K. Santo Tomás de Aquino. Santo Tomás de Aquino: Biografia. Trad. Carlos Ancêde Nougué. São Paulo: LTr, 2003, p. 109.

2) Guilelmus de Tocco. Ystoria sancti Thome de Aquino. Ed. intr. e notas: Claire Le Brun-Gouanvic. Toronto: PIMS, 1996, cap. 25, p. 148: “Bone Frater, prior mandat quod veniatis mecum”.

3) Loc. cit.: “Quod in obedientia perficitur omnis religio, qua homo homini propter Deum subicit, sicut Deus homini propter hominem obediuit”.

A vida contemplativa de São Tomás

Diác. Inácio de Araújo Almeida, EP

Ao tratar sobre a vida contemplativa de São Tomás, Maritain afirmou que “se a sua santidade foi a santidade da inteligência, é porque nele a vida de inteligência era inteiramente sustentada e iluminada pelo fogo da contemplação infusa e pelos dons do Espírito Santo”.1 Esse autor francês também nos recorda que o Angélico “rezava continuamente, chorava, jejuava, desejava. Cada um dos seus silogismos é como um coagular-se da sua oração e das suas lágrimas. E a graça da lúcida serenidade que a sua palavra nos causa, provém indubitavelmente do fato de que também o menor dos seus textos permanece invisivelmente impregnado do seu desejo e da força pura do mais ardente amor. A obra-prima da intelectualidade pura e rigorosa transborda de um coração possuído de caridade”.2

São Tomás tinha bem presente que a vida acadêmica distanciada de sua finalidade sobrenatural pode trazer desastrosas consequências. Na Suma Teológica explica que o estudo é, em si mesmo, ordenado à aquisição da ciência, mas quando se almeja a ciência “sem a caridade, esta incha e produz dissensões”.3 De modo contrário, quando a ciência é acompanhada pela caridade, edifica e gera a concórdia. Em seu primeiro período de docência em Paris, alguns dos professores seculares levantaram a objeção de que o ensino universitário seria incompatível com a vida religiosa. São Tomás logo procurou refutar essa teoria, e é certamente por esse motivo que na Suma Teológica se argumenta que o estudo é próprio ao estado religioso por três razões: a primeira delas, por favorecer diretamente a contemplação, iluminando o entendimento. A segunda, porque aparta os obstáculos à contemplação, ou seja, os erros que são frequentes por parte daqueles que desconhecem as Escrituras. Em terceiro lugar, porque o estudo nos afasta da concupiscência da carne e, além do mais, é útil para adquirir a virtude da obediência.4

Quando o Angélico escrevia, tinha como intenção primordial o louvor a Deus e o bem das almas. Ele trabalhava incansavelmente a fim de que Cristo fosse cada vez mais conhecido e amado. Por essa razão, Innos Biffi, comentando as obras de São Tomás, dizia que a Suma Teológica era “acima de tudo uma iniciativa de amor; não uma arrogante pretensão de exaurir a insondabilidade de Deus, mas, sim, o reconhecimento de sua transcendência, que, entretanto, é pela graça que realmente é comunicada ao homem. Para amar se deseja saber, e nada é mais digno de ser amado que Deus. E é este amor e esta paixão que sentimos circular nos infinitos e surpreendentes trechos das partes, das questões e dos intermináveis artigos da Suma Teológica de São Tomás, que foi um dos mais altos místicos da cristandade”. 5

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1) Maritain, Jacques. Le docteur angélique. Fribourg: Éditions Universitaires; Paris: Saint Paul, 1983, p. 51.

2) Loc. cit.

3) Summa Theologiae, II-II, q. 188, a. 5, ad 2.

4) Summa Theologiae, II-II, q. 188, a. 5, co.

5) Biffi, Inos. Cattedrali della teologia, Le pietre e le idee. L’Osservatore Romano, 1 maio 2010.

A eficácia do ministério sacerdotal

Mons. João S. Clá Dias, EP

A santidade de vida do sacerdote, como exemplo para os fiéis de Cristo, é possante elemento para conduzi-los à perfeição. Bem ressalta Dom Chautard que a um sacerdote santo corresponde um povo fervoroso; a um sacerdote fervoroso, um povo piedoso; a um sacerdote piedoso, um povo honesto; a um sacerdote honesto, um povo ímpio.[1] Grande é, pois, o papel da virtude do ministro, para o êxito de seu ministério.

No que respeita à aplicação do valor da Santa Missa, com finalidade propiciatória, é que se pode falar de sua eficácia subjetiva, dependente das disposições de quem a celebra e daqueles aos quais ela é aplicada, como explica São Tomás:

“Na satisfação atende-se mais à disposição de quem oferece do que à quantidade da oferenda. Por isso, o Senhor observou, a respeito da viúva que oferecia duas moedinhas, que ela ‘depositou mais que todos os outros’. Ainda que a oferenda da Eucaristia, quanto à sua quantidade, seja suficiente para satisfazer por toda a pena, contudo ela tem valor de satisfação para quem ela é oferecida ou para quem a oferece, conforme a medida de sua devoção, e não pela pena inteira”.[2]

A respeito deste trecho do Doutor Angélico, Robert Raulin faz o seguinte comentário: “Seria perniciosa ilusão acreditar que o ofertante está dispensado do fervor, sob pretexto de que Cristo, oferecendo-Se na Missa, satisfez plenamente por todos os pecados do mundo”.[3]

Outro argumento, ainda, apresenta o Aquinate, para vincular a eficácia da Eucaristia à devoção dos que se beneficiam do valor infinito deste augusto Sacramento:

“A Paixão de Cristo traz proveito a todos para a remissão da culpa, a obtenção da graça e da glória, mas o efeito só é produzido naqueles que se unem à Paixão de Cristo pela fé e caridade. Assim, também este Sacrifício, que é o memorial da Paixão do Senhor, só produz efeito naqueles que se unem a este Sacramento pela fé e caridade. […] Aproveitam, no entanto, mais ou menos, segundo a medida de sua devoção”.[4]

A especial obrigação dos sacerdotes em trilhar o caminho da santidade é reafirmada no decreto Presbyterorum ordinis: “Estão, porém, obrigados por especial razão, a buscar essa mesma perfeição visto que, consagrados de modo particular a Deus pela recepção da Ordem, se tornaram instrumentos vivos do sacerdócio eterno de Cristo”.[5] E de seu aperfeiçoamento pessoal, ensina o mencionado documento conciliar, decorrerá maior ou menor abundância de frutos de sua ação pastoral:

“A santidade dos presbíteros muito concorre para o desempenho frutuoso do seu ministério; ainda que a graça de Deus possa realizar a obra da salvação por ministros indignos, todavia, por lei ordinária, prefere Deus manifestar as suas maravilhas por meio daqueles que, dóceis ao impulso e direção do Espírito Santo, pela sua íntima união com Cristo e santidade de vida, podem dizer com o Apóstolo: ‘Se vivo, já não sou eu, é Cristo que vive em mim’” (Gl 2, 20).[6]

Ante esta realidade, o sacerdote tem dois grandes deveres. Um para consigo mesmo e outro para com o povo, pois ambos se beneficiam dos frutos da Santa Missa, especialmente o celebrante, conforme o grau de fervor ou devoção.[7]

Segundo alguns teólogos, este fruto especialíssimo da Santa Missa, destinado ao sacerdote, é maior do que o destinado aos demais participantes do Sacrifício Eucarístico, ou àqueles aos quais se aplica o seu valor. É neste manancial inesgotável da misericórdia de Deus que cada ministro ordenado deve ir buscar as melhores graças para a sua santificação, assim como a daqueles que lhe estão confiados:

“Por causa do poder do Espírito Santo, que pela unidade da caridade comunica os bens dos membros de Cristo entre si, acontece que o bem particular presente na Missa de um bom sacerdote se torna frutuoso para outras pessoas”.[8]

Dessa maneira, corresponderá ele à altíssima dignidade de seu ministério, segundo dizia o Santo Cura d’Ars:

“Sem o sacramento da Ordem, não teríamos o Senhor. Quem O colocou ali naquele sacrário? O sacerdote. Quem acolheu a vossa alma no primeiro momento do ingresso na vida? O sacerdote. Quem a alimenta para lhe dar a força de realizar a sua peregrinação? O sacerdote. Quem há de prepará-la para comparecer diante de Deus, lavando-a pela última vez no sangue de Jesus Cristo? O sacerdote, sempre o sacerdote. E se esta alma chega a morrer [pelo pecado], quem a ressuscitará, quem lhe restituirá a serenidade e a paz? Ainda o sacerdote. […] Depois de Deus, o sacerdote é tudo! […] Ele próprio não se entenderá bem a si mesmo, senão no Céu”.[9]


[1] Cf. CHAUTARD, OCSO, Jean-Baptiste. A Alma de todo o apostolado. Porto: Civilização, 2001, p. 34-35.

[2] S Th III, q. 79, a. 5, Resp.

[3] In: AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2006, v. 9, p. 358.

[4] S Th III q. 79, a. 7, ad 2.

[5] PO, n. 12.

[6] Idem.

[7] Cf. ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología Moral para Seglares. Madrid: BAC, 1994, v. 2, p. 158.

[8] S Th III q. 82, a. 6, ad 3.

[9] Palavras de São João Maria Vianney, citadas pelo Papa Bento XVI na Carta para Proclamação do Ano Sacerdotal, 16 jun. 2009.

A Eucaristia nutre a vida sobrenatural

Todo efeito que o alimento produz na vida corporal, a Eucaristia produz na vida sobrenatural”, ensina São Tomás. Vejamos como um famoso teólogo, Frei Ferdinand- Doratien Joret OP, discípulo do Doutor Angélico, desenvolve esta belíssima verdade de fé.

No discurso feito após a multiplicação dos pães, Nosso Senhor afirma com insistência que Ele é o Pão da Vida: “Vossos pais, no deserto, comeram o maná e morreram. Este é o pão que desceu do céu (…) Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão, que eu hei de dar, é a minha carne para a salvação do mundo. (…) Minha carne é verdadeiramente uma comida” (Jo 6,49-55).
E o Doutor Angélico, numa fórmula que depois o Concílio de Florença consagrou, disse: “Todo efeito que o alimento produz na vida do corpo, a Eucaristia produz na vida sobrenatural; quer dizer, ela a conserva, desenvolve, restaura e deleita” (III, q. 79, a. 1).

A Eucaristia conserva a vida sobrenatural
Ela a conserva, preservando-a da morte. Nosso Senhor garante que quem comer desse pão jamais morrerá. Evidentemente, não se trata aqui da vida do corpo, mas da vida da graça na alma, e da morte sobrenatural ocasionada pelo pecado, por isso mesmo chamado de mortal. É dessa morte que a Eucaristia preserva a alma. O Concílio de Trento afirma isso em termos precisos.A Eucaristia não torna essa morte totalmente impossível. Não! O alimento corporal tampouco nos assegura a vida corporal contra todo acidente.
Como diz São Tomás, “o efeito da Eucaristia se adapta à condição do homem que a recebe. A matéria sobre a qual se exerce a ação sempre condiciona o efeito produzido nela pela ação. No entanto, a condição do homem nesta vida é tal que seu livre arbítrio pode se inclinar para o bem ou para o mal. Assim sendo, por mais que esse Sacramento tenha, de si, a potencialidade suficiente para preservar o homem de todo pecado, nem por isso quem o recebe deixará de ser livre para pecar, se quiser, e assim morrer sobrenaturalmente”.
Contudo, notemos bem essa capacidade do Sacramento, em si mesmo, de preservar de todo pecado. Nos alimentos corporais, nada há que se possa comparar à Eucaristia. Os alimentos jamais puderam evitar a morte.
Por outro lado, na Eucaristia, é Cristo que, em pessoa, sob as aparências de pão e vinho, dá-Se a nós como alimento. De onde pode nos vir a morte? De uma afeição interna ou de uma ferida exterior. Pelos alimentos e remédios se evitam as enfermidades internas, e pelas armas a pessoa se previne contra os possíveis ataques externos. A Eucaristia cumpre perfeitamente esses dois requisitos. Cristo mesmo, intimamente unido a nosso coração, Se faz nosso alimento e remédio que nos dá vigor e previne contra todo agente morboso de corrupções internas. E revestido, como aqui se encontra, do simbolismo de sua Paixão, por meio da qual o demônio ficou definitivamente vencido, amedronta-o e afasta de nós seus diabólicos ataques. Por isso diz São João Crisóstomo que, à maneira de leões que exalam fogo e chamas pela boca, aterrorizamos os demônios quando recebemos a divina Eucaristia.

Desenvolve e aumenta
O alimento faz mais que conservar a vida, ele a aumenta. Na vida corporal, esse crescimento é limitado. Contudo, a vida espiritual tem o privilégio de crescer indefinidamente, cada vez mais, pela influência do Pão Eucarístico.

Claro que todos os sacramentos de vivos, pelo simples fato de aumentarem a graça, desenvolvem a vida sobrenatural na alma. Mas fazem-no com outro fim específico.

A Confirmação dá vigor à alma para poder lutar contra os inimigos externos; a Unção dos Enfermos a sustenta na enfermidade que a priva dos recursos normais na hora mais crítica da vida. A Ordem e o Matrimônio dão a quem os recebe a capacidade de concorrer para o bem geral da Igreja, cada qual em seu estado. Entretanto, a Eucaristia desenvolve a vida sobrenatural por si mesma, a fim de que cresçam cada vez mais em nós as energias divinas e cheguemos à perfeição espiritual pela união com Deus.

Na união com Deus, nosso último fim, encontramos a perfeição de nosso ser. Essa união terá sua consumada realização na glória celeste, na qual gozaremos da felicidade eterna. Para ela nos encaminha em linha reta a Eucaristia. “Ó Sagrado Banquete, no qual nos alimentamos de Cristo, recorda-se sua Paixão, a alma se enche de graça e nos é dado o penhor da glória futura!” – canta a Igreja. A Paixão, representada ao vivo na Eucaristia, abriu-nos as portas do Céu. A Comunhão nos aplica a virtude reparadora e regeneradora da Paixão, dando-nos forças para subir o caminho da Cruz, que lentamente conduz o membro de Cristo à glória celeste.

Com muita razão damos o nome de viático à Eucaristia, e ela está bem representada por aquele pão que deu ao profeta Elias o vigor necessário para chegar ao cume da montanha de Deus.

A Eucaristia é mais que um viático.
Nesse penhor da vida futura temos já um antegozo da felicidade celestial.
Ainda que misteriosamente, sem dúvida, pela Comunhão temos já em nós o objeto de nossa felicidade eterna, e comemos aquele manjar do qual falava o Anjo Rafael a Tobias: “Eu me nutro de um alimento que vós não conheceis” (Tb 12,19). O Pão dos Anjos veio para ser alimento dos homens, e estes o comem já nesta terra, real, se bem que imperfeitamente, enquanto esperam chegar ao Céu, quando Deus lhes aparecerá e, passando um por um, os irá servindo, sentados todos eles no banquete que faz a felicidade das Três Pessoas Divinas.
Nosso próprio corpo ressuscitará para participar também de Cristo, que lhe terá dado um título especial para a vida futura e depositado nele o fermento da imortalidade. Nosso Senhor prometeu formalmente que ressuscitará no último dia todo aquele que tiver comido da sua Carne e bebido do seu Sangue.

Restaura
Um terceiro efeito da nutrição além de conservar e desenvolver a vida, é o de restaurá-la, reparando as forças que incessantemente vão se gastando.
O Pão Eucarístico nos restaura também, perdoando os pecados veniais. É o seu antídoto, afirma o Concílio de Trento. Assim, convém comungar com a maior freqüência possível.

Dá bem-estar espiritual
Em quarto e último lugar, quem come desse Pão experimenta em sua alma um bem-estar análogo ao que costuma proporcionar ao corpo uma boa comida.
É um fato comprovado pela experiência. Quantas almas oprimidas pelos trabalhos e sofrimentos tiram da Comunhão matinal a resignação, a serenidade e a alegria!

(Revista Arautos do Evangelho, Dez/2005, n. 48, p. 22 e 23)

Os efeitos do sacrifício de Cristo

Mons. João S. Clá Dias, EP

Afirma São Tomás ter o homem necessidade do sacrifício por três motivos: para obter a remissão dos pecados, a graça necessária à santificação e a união perfeita do espírito com Deus, o que se verificará, sobretudo, na glória eterna.[1] O sacrifício de Cristo produziu os efeitos mencionados:

“Ora, tudo isso chegou até nós mediante a humanidade de Cristo. Em primeiro lugar, porque os nossos pecados foram apagados: ‘Foi entregue pelos nossos pecados’, diz a Carta aos Romanos. Em segundo lugar, porque por ele recebemos a graça que nos salva: ‘Ele se tornou causa de salvação eterna para todos aqueles que lhe obedecem’, diz a Carta aos Hebreus. Em terceiro lugar, por ele alcançamos a perfeição da glória, como nos diz a Carta aos Hebreus: ‘Temos confiança, pelo sangue de Jesus, de entrar no santuário’, isto é, na glória celeste”.[2]

Assim, ao Se encarnar o Verbo e assumir a natureza humana, pode enquanto homem ser o mediador sumamente agradável a Deus. Por Seu sacerdócio, por Sua oferenda como vítima de expiação, sela com Seu Sangue a nova e definitiva aliança, da qual todas as anteriores eram uma mera figura: “Jesus se tornou o fiador de uma aliança melhor” (Hb 7, 22). É diante deste mistério de amor com o qual se opera nossa redenção, que o Apóstolo exclama: “Tal é precisamente o sacerdote que nos convinha: santo, inocente, sem mancha, separado dos pecadores e elevado acima dos céus” (Hb 7, 26). Para São Tomás, essas cinco características de Cristo sacerdote marcam a diferença entre o novo sacerdócio e o da Lei Antiga, o qual era figurativo daquele que viria.

Com efeito, explica o Aquinate,[3] Jesus, no respeitante à santidade “reunia as perfeitas condições”, porque “foi consagrado a Deus desde o início de Sua concepção: ‘Por isso mesmo, o Santo que há de nascer de Ti será chamado Filho de Deus’” (Lc 1, 35); Sua inocência foi suma, “visto que Ele não cometeu pecado”; não teve mancha, como muito bem é simbolizado pelo cordeiro sem defeito da Antiga Lei (Êx 12, 5); “foi de maneira absoluta a peccatoribus segregatus — separado dos pecadores”, pois embora tenha vivido entre eles, jamais trilhou suas vias (cf. Sb 2, 15); e, por fim, “está sentado à direita da majestade de Deus” (Hb 1, 3), ou seja, acima de todas as criaturas celestes; “n’Ele a natureza humana é sublimada”, e havendo Se sentado à direita de Deus (cf. Hb 1, 3), “é um sacerdote extremamente adequado”.

Em Cristo é eliminado tudo quanto era imperfeito no sacerdócio do Antigo Testamento. A Lei constituía no sacerdócio homens frágeis e de vida breve (cf. Sb 9, 5) que deviam, com frequência, oferecer sacrifícios por seus próprios pecados e pelos do povo (cf. Lv 16, 5-7), enquanto que “contra a Sabedoria, o mal não prevalece” (Sb 7, 30), pois Cristo não teve de oferecer por Si,[4] devido à sua inocência e santidade. “O Seu único sacrifício bastou para apagar os pecados de todo o gênero humano”.[5]


[1] Cf. S Th III, q. 22, a. 2.

[2] S Th III, q. 22, a. 2, resp.

[3] Super Heb. cap. 7, lec. 4.

[4] “A prefiguração não se pode equiparar à verdade. Por isso, o sacerdócio prefigurativo da antiga lei não podia atingir um grau tal de perfeição que não precisasse mais do sacrifício de satisfação. Ora, Cristo não teve essa necessidade; portanto, a razão não é a mesma para ambos. É o que diz o Apóstolo: ‘A lei estabeleceu, como sacerdotes, homens sujeitos à fraqueza, mas a palavra do juramento, posterior à lei, estabeleceu o Filho perfeito para sempre’(Hb 7,28)” (S Th III q. 22, a. 4, ad 3).

[5] Super Heb. cap. 7, lec. 4.

Quando a lei se corrompe

 Pe. José Victorino de Andrade, EP

A mentalidade contemporânea ao desprezar a natureza humana e a lei revelada, nega a existência de uma verdade absoluta e relativiza a moral, insistindo numa legislação desprovida de valores eternos que gera consequências funestas para a pessoa, a família e a sociedade. No seu discurso aos membros da Comissão Teológica Internacional em 5 de Outubro de 2007, Bento XVI consciencializou os presentes sobre esta matéria de modo magistral:

Hoje, em não poucos pensadores parece predominar uma concepção positivista do direito. Segundo eles, a humanidade ou a sociedade, ou de fato a maioria dos cidadãos, torna-se a fonte derradeira da lei civil. […] Na raiz desta tendência está o relativismo ético, no qual alguns vêem uma das principais condições da democracia, porque o relativismo garantiria a tolerância e o respeito recíproco das pessoas. Mas se fosse assim, a maioria de um momento tornar-se-ia a última fonte do direito. A história demonstra com grande clareza que as maiorias podem errar. […] Quando estão em jogo as exigências fundamentais da dignidade da pessoa humana, da sua vida, da instituição familiar, da equidade do ordenamento social, isto é, os direitos fundamentais do homem, nenhuma lei feita pelos homens pode subverter a norma escrita pelo Criador no coração humano, sem que a própria sociedade seja dramaticamente golpeada naquilo que constitui a sua base irrenunciável.[1]

Importa-nos dissertar sobre alguns aspectos dos elementos que validam a lei, os quais são enumerados por São Tomás de Aquino ao citar Santo Isidoro. [2] Assim sendo, é requisito necessário que a lei positiva humana seja honesta, justa e possível:

1. Deve ser honesta, isto é, não pode ser contrária a outra lei superior, natural ou positiva;

2. Deve ser justa em relação ao fim, que deve ser o bem da comunidade; em relação ao autor, que deve ser o superior legítimo e em relação à forma, de modo que a divisão dos deveres seja proporcionada às condições de cada um;

3. Deve ser possível na medida em que não pode ser demasiadamente difícil ou gravosa.

Sem estes elementos pode redundar ao homem a impossibilidade ou a não obrigatoriedade do cumprimento da lei e a sua objeção de consciência quando agride a moral, ou mesmo os sãos valores da ética. A discriminação em relação às minorias ou a todo um povo, a agressão de valores exponenciais como a vida, a perseguição à Fé e à Religião, constituem uma grave transgressão das competências legais de um Estado e da instância legisladora humana. Infelizmente, a História está coalhada de exemplos de Estados que extravasaram suas competências invadindo um campo que não lhes pertence e entrando em conflito com a lei emanada pelo próprio Deus, e de regimes que nos trazem à memória um profundo desrespeito pela liberdade e dignidade humana.

O Papa João Paulo II, na sua Evangelium Vitæ, relembrava a atualidade da encíclica Pacem in Terris de João XXIII, ao citá-la abundantemente e elucidar a respeito da validade das leis:

Se a autoridade não reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser como também as suas disposições estão privadas de qualquer valor jurídico. […] A autoridade é exigência da ordem moral e promana de Deus. Por isso, se os governantes legislarem ou prescreverem algo contra essa ordem e, portanto, contra a vontade de Deus, essas leis e essas prescrições não podem obrigar a consciência dos cidadãos. Neste caso, a própria autoridade deixa de existir, degenerando em abuso do poder. O mesmo ensinamento aparece claramente em São Tomás de Aquino, que escreve: ‘A lei humana tem valor de lei enquanto está de acordo com a reta razão, derivando, portanto, da lei eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor, mas é um ato de violência’. E ainda: ‘Toda a lei constituída pelos homens tem força de lei só na medida em que deriva da lei natural. Se, ao contrário, em alguma coisa está em contraste com a lei natural, então não é lei, mas sim corrupção da lei’ (n. 71-72).[3]

É preciso ter em conta que a lei eterna e natural é anterior a qualquer lei positiva criada pelo homem e pela sua inviolabilidade, universalidade e imutabilidade necessitam reconhecimento e respeito. Os próprios direitos humanos perdem o seu sentido mais profundo se se ignora que eles pertencem à natureza humana e são inerentes à pessoa por força do ato criador do qual ela se origina.[4]


[1] Presso non pochi pensatori sembra oggi dominare una concezione positivista del diritto. Secondo costoro, l’umanità, o la società, o di fatto la maggioranza dei cittadini, diventa la fonte ultima della legge civile. […] Alla radice di questa tendenza vi è il relativismo etico, in cui alcuni vedono addirittura una delle condizioni principali della democrazia, perché il relativismo garantirebbe la tolleranza e il rispetto reciproco delle persone. Ma se fosse così, la maggioranza di un momento diventerebbe l’ultima fonte del diritto. La storia dimostra con grande chiarezza che le maggioranze possono sbagliare. […] Quando sono in gioco le esigenze fondamentali della dignità della persona umana, della sua vita, dell’istituzione familiare, dell’equità dell’ordinamento sociale, cioè i diritti fondamentali dell’uomo, nessuna legge fatta dagli uomini può sovvertire la norma scritta dal Creatore nel cuore dell’uomo, senza che la società stessa venga drammaticamente colpita in ciò che costituisce la sua base irrinunciabile”. (Insegnamenti, III, 2 (2007). p. 420-421. Tradução minha).

[2] Cf. S. Th. I-II, q. 6 a. 3.

[3] In: AAS 87 (1995) 5.

[4]Cf. BENEDETTO XVI. Ai membri della Commissione Teologica Internazionale, Giovedì 1º dicembre. In: Insegnamenti, I (2005). p. 914.

As desigualdades são injustas?

Pe. Luís Francisco, EP

Barrenechea apresenta o ponto chave da objeção às desigualdades, oriundas da vontade divina:

Não só a distinção entre os seres, mas também sua diferença e desigualdade procede de Deus. A dificuldade de atribuir a Deus a causa da multiplicidade – e portanto da desigualdade – é agravada agora por um prejuízo que vê na desigualdade uma certa forma de injustiça. (BARRENECHEA, Madrid, 2001, p. 434)

Sto. Tomás coloca em relevo que a diversidade formal das essências foram queridas por Deus para representá-lo adequadamente.  E, por sua vez, essa diversidade formal traz  consigo uma gradação de perfeição entre os seres que compõem o Universo. Portanto, as desigualdades essenciais foram expressamente criadas por Deus, sendo fundamentalmente boas (Cfr. BARRENECHEA, Madrid, 2001, p. 435). Conclui-se não existir injustiça na diversidade dos graus de perfeição  (AQUINO, Suma Contra os Gentios, L. II, q. 44, Caxias do Sul, 1990, Vol. I, p. 241), e até, muito pelo contrário, há um verdadeiro enriquecimento da semelhança de Deus na criação, o fazer-se ela por muitas criaturas.

É curioso notar que essa ideia de que a desigualdade é necessariamente injusta existia já nos primeiros séculos da História da Igreja. Depara-mo-nos aqui com uma tendência, sempre presente no homem desde o início de sua existência na Terra, de se colocar no centro e de interpretar todo o acontecer humano, sem tomar em consideração que Deus – e não o homem! – é que ocupa verdadeiramente o papel central, em função do qual devem ser amorosamente considerados, tanto os fatos, como os próprios desígnios divinos.  É por este motivo que a mesma ideia, hoje tão difundida, de que a desigualdade é contrária à bondade e constitui uma injustiça, moveu no Séc. III um Orígenes a se desviar e a cair em heresia. Assim, a vinculação das desigualdades a prêmios ou castigos em face de atitudes morais, e como dizia Orígenes, por exemplo, que a criação material se deveu a pecados de homens que não corresponderam e foram infiéis, bem poderia ser a afirmação dos igualitários atuais, que vêm na desigualdade um atentado às regras da justiça. Ora, segundo Sto. Tomás, nenhuma realidade nascida do poder divino deve sua existência ao castigo, pois toda realidade em si é manifestação da essência de Deus, e portanto não pode ser injusta. A isso se aplicam, tanto as desigualdades de nascimento, quanto de capacidades, quanto até mesmo de dons e virtudes sobrenaturais (Cfr. op. Cit., pp. 238 a 241).

Esse erro involucra uma crítica à divina Sabedoria que criou com vistas à sua maior glória seres desigualmente perfeitos, a fim de constituírem um todo ordenado e perfeito. Dessa falsa doutrina decorre a tendência a um trato vulgar, que procura, senão ignorar, ao menos disfarçar ao máximo todas as diversidades harmônicas e proporcionais que constituem a maravilhosa melodia de adoração e louvor, constantemente a Deus entoada, pelas criaturas. Em outras palavras, querer nivelar é querer destruir o magnífico espelho das divinas perfeições… é odiar a Deus! A perfeição da Ordem que faz com que as criaturas se harmonizem formando conjuntos e que estes, por sua vez se disponham ordenadamente constituindo um todo, desigual e hierarquizado, nada mais é do que um imenso vitral a refletir em sua maior perfeição os infinitos atributos divinos1.

Aduz Sto. Tomás, ao refutar a ideia de que a desigualdade dos graus de perfeição é uma injustiça:

Parece que Orígenes não ponderou que quando concedemos algo, não por débito, mas por liberdade, não é contrário à justiça darmos sem igualdade […]. Deus… produziu as coisas no ser não devido a mérito algum, mas por pura liberalidade. Donde a diversidade das criaturas não pressupor a diversidade dos méritos. (AQUINO, Suma Contra os Gentios, L. II, q. 44, Caxias do Sul, 1990, Vol. I, p. 241)

Ademais, Orígenes coloca-se numa atitude que desconsidera a liberdade de Deus na Obra da Criação e associa o poder divino a uma “pretensão igualitária”. “O igualitarismo moral tem seu campo em determinadas facetas da vida humana, mas não na atividade divina, prévia a todo mérito”, ressalta Barrenechea. Este autor acentua um aspecto que não fará senão ampliar as desigualdades, sem prejuízo de uma igualdade fundamental:

A postura tomista recolhe, ademais, uma inspiração básica do cristianismo, segundo a qual Deus outorga o ser  e a comunicação sobrenatural de sua vida de modo gratuito, o que não impede que seus dons sejam ulteriormente o ponto de partida das ações meritórias ou demeritórias dos seres livres. (BARRENECHEA,  Madrid, 2001, p. 435)


1 Cfr. AQUINO, Santo Tomás. Suma Teológica, P. I, Q. 47, São Paulo: Loyola, 2005, pp. 76 a 83.

Três aspectos do banquete pascal

Pe. Alex Barbosa de Brito, EP

O Banquete Eucarístico é, ao mesmo tempo, Banquete de Sacrifício e Convívio, Banquete de Ação de Graças e Banquete da Nova Aliança.

A ideia do banquete nos remete ao convívio estreito, familiar e amigo de uma mesa igualmente farta de guloseimas e caridade fraterna, propriamente um ágape[1].

À mesa é que as amizades se consolidam, rendem-se graças por benefícios recebidos, decreta-se a paz, selam-se concordatas, decide-se o destino de povos ou simplesmente se solidifica a união familiar. Não raros acontecimentos sagrados se atualizam de alguma forma pela lembrança viva da festa que se celebra. No Antigo e no Novo Testamento encontram-se comovedoras passagens nesse sentido. Recorde-se Jetro, que desejando agradecer o defensor de suas filhas e rebanhos, convida o anônimo benfeitor para “que coma alguma coisa” (Ex 2,20), refeição que uniu e comprometeu, pois Moisés aceitou e ficou na casa, casando-se com a filha do pastor de Madiã. (Ex 2,21).

Abraão não ofereceu aos três misteriosos mensageiros um repasto com perfume sacrifical, pão para lhes restaurar as forças? (Gn 18, 3-5) E eles comeram. Outra vez é um mensageiro celeste que vem em socorro do fatigado e ígneo profeta do Carmelo, Elias, o qual recupera suas forças depois de comer um pão angelical sub cineribus[2]. (II Rs 19,6). Anjos comendo alimentos humanos, homens comendo alimentos angélicos. O que une naturezas tão diversas? O alimento.

Noutra passagem, encontramos o costume anual em que familiares e vizinhos se juntam a estrangeiros, suspendem temporariamente distâncias, rixas ou desavenças, para comerem juntos amargas ervas, celebrando as dores passadas, pães ázimos, para recordar aqueles cuja pressa da fuga não lhes deu tempo para fermentar; e o suave cordeiro, memorial da passagem (páscoa) da escravidão à liberdade. Ceia ritual que recorda o passado, edifica o presente e lança para o futuro a esperança de tempos melhores (Ex. 12).

E quando faltou alimento, um delicado pão cai do alto (Ex. 16) para alimentar murmuradores […] com sabores tão variados que podiam contentar a todos os caprichos dos filhos ingratos: omne delectamentum in se habentem – “contendo em si todas as delicias e adaptando-se a todos os gostos” (Sb 16, 20).

A Eucaristia, sem deixar de ser sacrifício, é também banquete sacrifical[3] “Ceia e cruz, Mesa e altar. Altar que é mesa. Mesa que é altar”. (SARAIVA MARTINS, 2005, p. 233). Por isso o Angélico doutor nos ensina que Cristo entregou à Igreja, sua esposa, a memória da sua morte sob a forma de banquete: “tertio consideratur effectus huius sacramenti ex modo quo traditur hoc sacramentum, quod traditur per modum cibus et potus”[4]. (Suma III q. 79 a. 1 ad resp).

Por isso, cumprindo os antigos ritos estabelecidos por Moisés, perto do primeiro dia dos ázimos, os discípulos perguntaram a Nosso Senhor onde deveriam fazer os preparativos para comer a Páscoa. (Mt 26,17). Aquela seria uma Páscoa diferente das outras, o sacrifício da Cruz se tornaria presente mediante dois alimentos simples e cotidianos. Nada mais íntimo entre amigos do que comer juntos à mesma mesa; nada mais simples do que aqueles dois alimentos: pão de trigo e vinho de uva; sobretudo, nada mais comovedor do que o afeto de Cristo: “tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa” (Lc 22,15).

O Senhor Jesus, que quis ficar presente nos sinais do pão e do vinho, também convidou os discípulos dizendo: “Tomai e comei, tomai e bebei”. Foi na previsão desse sublime momento que Ele disse desejar ardentemente comer essa Páscoa com seus discípulos (Cf. Lc. 22,15).

A gratidão é talvez a mais frágil das virtudes. São Lucas, ao narrar a cura de dez leprosos, recorda que apenas um retornou para agradecer. Se é verdade que os Evangelhos não registram nenhuma queixa de Nosso Senhor por tudo quanto passou nesta terra, entretanto, diante da ingratidão ululante, seus lábios divinos deixam entrever uma suave censura: “Onde estão os outros nove? Não se achou senão esse estrangeiro que voltasse para agradecer a Deus?” (Lc 17,17-18). Jesus conhecia bem essa debilidade humana.

Em sentido oposto, convidado Levi para o discipulado, a gratidão se fez sentir imediata e com largueza. Abandonando tudo, “deu-Lhe um grande banquete em sua casa” (Lc 5,29), ele quis marcar com aquela refeição, a sua mudança de vida, a gratidão pelo chamado de Jesus.

Também o Divino Mestre, tomando os pães, “rendeu graças”[5] e os distribuiu milagrosamente multiplicados. (Jo 6,11), e quando próximo de ser entregue pelos homens, tomando o cálice, “deu graças” [6] (Lc 22,17).

Assim se exprime eminente teólogo dominicano: “o sacrifício do altar é sacrifício eucarístico por antonomásia, porque é o mesmo Cristo quem se imola por nós e oferece a seu Eterno Pai um sacrifício de ação de graças que iguala, e até supera, os benefícios imensos que d’Ele temos recebido.” (ROYO MARIN, 1994, p. 176-177).

“Per ipsum, et cum ipso et in ipso”: é toda a ordem criada que dá louvor, honra e glória ao Pai. João Paulo II, na Encíclica Ecclesia de Eucharistia, recorda que “o Filho de Deus, fez-se homem para, num supremo ato de louvor, devolver toda a criação Àquele que a fez surgir do nada” (EE 8), sendo em verdade este o “Mysterium fidei que se realiza na Eucaristia: o mundo saído das mãos de Deus criador volta a ele redimido por Cristo”. (Ibidem).

A Teologia, inclusive a ciência moderna, assumiu os valores da tipologia bíblica (tipoV = figura), por onde todo o Antigo Testamento deve ser visto na sua perspectiva futura, como nos explica São Paulo a propósito dos exemplos dos castigos sofridos por Israel (1 Cor, 10,6 e 11; cf. PIOLANTE, 1983, p. 52).

É nessa perspectiva que devemos compreender a Aliança estabelecida entre Deus e o Povo de Israel, cuja principal festa era a Páscoa, a imolação do cordeiro, a festa dos ázimos, as ervas amargas… “Viram a Deus, depois comeram e beberam” (Ex 24,11)[7]. (Cf. Ibidem).

O termo berith, de origem hebraica, significa um pacto estabelecido entre duas pessoas, sancionado por um juramento ritual. No início consistia na troca de sangue entre as duas partes contraentes, significando “comunhão de vida e de interesses”. Com o tempo esse sacrifício foi substituído por memoriais erigidos para formalizar o acordo. (Cf. PIOLANTE, 1983, p. 61).

As duas partes contraentes na Antiga Aliança eram Deus e do outro lado as doze tribos de Israel. No Sacrifico ritual, Deus era representado pelo Altar e o Povo pelas doze pedras que se colocavam em derredor do mesmo. (Ibidem, p. 62)

Ora, quando o Senhor Jesus celebrou a Páscoa com os seus apóstolos, eram eles as doze pedras fundamentais do novo Povo, e Ele, o altar e a vítima, o pão oferecido e o cordeiro que seria imolado de modo cruento no Calvário. Diz-se Nova Aliança porque, na última ceia, Cristo, ao dizer: “isto é o meu sangue da nova aliança”, ab-rogou a aliança do Sinai estabelecida entre Deus e Moisés: “eis o sangue da aliança, que o Senhor concluiu convosco”. (Ex 24).

Na Missa, o sacerdote, ao consagrar o cálice, “anuncia o sacrifício redentor de Cristo e renova a aliança selada com o seu sangue”. (SARAIVA MARTINS, 2005, p. 248), à imagem do que se fazia na antiga aliança, quando se comemorava, todos os anos, a ceia do cordeiro pascal, sacrificado e comido pelos hebreus em banquete. Completa o ilustre Cardeal:

A Eucaristia é vista também nesta ótica, que é essencial para se ter uma ideia exata da sua verdadeira natureza. Nela não só Cristo se imola sacramentalmente e o povo cristão dá graças pelo inefável dom da salvação, mas, além disso, é renovada a nova e eterna aliança instituída na última ceia. (Id ibidem).


[1] Ágape –(agaph) é o amor próprio de Deus (1 Jo 4-8 – agaph tou Theou) Trata-se portanto de um amor desinteressado, pleno de solicitudes (Cf. DCE 3 e 7), pode ter o significado de refeição fraterna e, na concepção Cristã, o termo se tornou também nome da Eucaristia; “nesta o ágape de Deus vem corporalmente a nós, para continuar a sua ação em nós e através de nós”. (DCE, 14).

[2] Sub cineribus é o pão cozido sob as cinzas com algumas brasas vivas, não necessariamente em forno, pois no deserto não os havia, como no tempo de Abraão, que era nómade.

[3] São João Crisóstomo exortava, comovido, que se venerasse “esta mesa, na qual participam os crentes em Cristo morto por nós, sacrifício colocado sobre esta mesa”. (PG 34, 704).

[4] “A partir do fato de que ele nos é dado em forma de comida e bebida”.

[5] A grande consideração atribuída à refeição em comum continuou no hebraísmo antigo. Mas acrescentou-se lhe um elemento completamente novo: a oração antes e depois da refeição. O pai tomava o pão, levantando-o de modo que todos o pudessem ver e, em nome de todos os presentes, pronunciava sobre ele uma doxologia: “Louvor a vós, Senhor, nosso Deus, rei do mundo, que fazeis nascer o pão da terra”. Depois da refeição se recitava a oração de agradecimento [o dono ou um hóspede a quem ele quisesse fazer uma deferência] […] em seguida, com a mão direita levantava o “cálice da bênção”(1 Cor 10,16) um palmo acima da mesa e, com os olhos voltados para ele, recitava a oração final. (JEREMIAS, 2006, p. 244 e 245).

[6] “Deu graças” (eucaristein= eucaristein)

[7] A Páscoa judaica era ordinariamente comemorada todos os anos, no dia 14 de Nisã, que corresponde às luas do meses de março e abril, no período da primavera.