À porta da Quaresma

Bento2Gaudium Press

Leia a seguir uma homilia de Bento XVI sobre a Quarta-feira de Cinzas editada pelos articulistas de Gaudium para a Festa deste ano.

“Ao receber daqui a pouco as cinzas sobre a cabeça, ouviremos mais uma vez um claro convite à conversão que pode expressar-se numa fórmula dupla: “Convertei-vos e acreditai no evangelho”, ou: “Recorda-te que és pó e em pó te hás-de tornar”.

Precisamente devido à riqueza dos símbolos e dos textos bíblicos, a Quarta-Feira de Cinzas é considerada a “porta” da Quaresma. De fato, a hodierna liturgia e os gestos que a distinguem formam um conjunto que antecipa de modo sintético a própria fisionomia de todo o período quaresmal. Na sua tradição, a Igreja não se limita a oferecer-nos a temática litúrgica e espiritual do itinerário quaresmal, mas indica-nos também os instrumentos ascéticos e práticos para o percorrer frutuosamente.

“Convertei-vos a mim de todo o vosso coração com jejuns, com lágrimas, com gemidos”. (Joel 2,12). Os sofrimentos, as calamidades que afligiam naquele tempo a terra de Judá estimulam o autor sagrado a encorajar o povo eleito à conversão, isto é, a voltar com confiança filial ao Senhor dilacerando o seu coração e não as vestes. De fato, recorda o profeta, ele “é clemente e compassivo, paciente e rico em misericórdia e se compadece da desgraça” (2, 13). O convite que Joel dirige aos seus ouvintes também é válido para nós.

Não hesitemos em reencontrar a amizade de Deus perdida com o pecado; encontrando o Senhor experimentamos a alegria do seu perdão. E assim, quase respondendo às palavras do profeta, fizemos nossa a invocação do refrão do Salmo 50: “Perdoai-nos Senhor, porque pecamos”. Proclamando, o grande Salmo penitencial, apelamo-nos à misericórdia divina; pedimos ao Senhor que o poder do seu amor nos volte a dar a alegria de sermos salvos. Com este espírito, iniciamos o tempo favorável da Quaresma, como nos recordou São Paulo: “Aquele que não havia conhecido o pecado, diz ele, Deus o fez pecado por nós, para que nos tornássemos, nele, justiça de Deus” (2 Cor 5, 21), para nos deixarmos reconciliar com Deus em Cristo Jesus. O Apóstolo apresenta-se como embaixador de Cristo e mostra claramente como precisamente através d’Ele, seja oferecida ao pecador, isto é a cada um de nós, a possibilidade de uma reconciliação autêntica.

Só Cristo pode transformar qualquer situação de pecado em novidade de graça. Eis por que assume um forte impacto espiritual a exortação que Paulo dirige aos cristãos de Corinto: “Em nome de Cristo suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus”; e ainda: “Este é o tempo favorável, é este o dia da salvação” (5, 20; 6, 2). Enquanto Joel falava do futuro dia do Senhor como de um dia de terrível juízo, São Paulo, referindo-se às palavras do profeta Isaías, fala de “momento favorável”, de “dia da salvação”. O futuro dia do Senhor tornou-se o “hoje”. O dia terrível transformou-se na Cruz e na Ressurreição de Cristo, no dia da salvação. E este dia é agora, como nos diz o Canto ao Evangelho: “Hoje não endureçais os vossos corações, mas ouvi a voz do Senhor”. O apelo à conversão, à penitência ressoa hoje com toda a sua força, para que o seu eco nos acompanhe em cada momento da vida.

A liturgia da Quarta-Feira de Cinzas indica assim na conversão do coração a Deus a dimensão fundamental do tempo quaresmal. Esta é a chamada muito sugestiva que nos vem do tradicional rito da imposição das cinzas, que daqui a pouco renovaremos. Rito que assume um dúplice significado: o primeiro relativo à mudança interior, à conversão e à penitência, enquanto o segundo recorda a precariedade da condição humana, como é fácil compreender das duas fórmulas diversas que acompanham o gesto.

Amados irmãos e irmãs, temos quarenta dias para aprofundar esta extraordinária experiência ascética e espiritual. No Evangelho (cf. Mt 6, 1-6.16-18), Jesus indica quais são os instrumentos úteis para realizar a autêntica renovação interior e comunitária: as obras de caridade (a esmola), a oração e a penitência (o jejum). São as três práticas fundamentais queridas também à tradição hebraica, porque contribuem para purificar o homem aos olhos de Deus.

Estes gestos exteriores, que devem ser realizados para agradar a Deus e não para obter a aprovação e o consenso dos homens, são por Ele aceites se expressam a determinação do coração a servi-l’O, com simplicidade e generosidade. Recorda-nos isto também um dos Prefácios quaresmais onde, em relação ao jejum, lemos esta singular expressão: “ieiunio… mentem elevas: com o jejum elevas o espírito” (Prefácio IV).

O jejum, ao qual a Igreja nos convida neste tempo forte, certamente não nasce de motivações de ordem física ou estética, mas brota da exigência que o homem tem de uma purificação interior que o desintoxique da poluição do pecado e do mal; que o eduque para aquelas renúncias saudáveis que libertam o crente da escravidão do próprio eu; que o torne mais atento e disponível à escuta de Deus e ao serviço dos irmãos. Por esta razão o jejum e as outras práticas quaresmais são consideradas pela tradição cristã “armas” espirituais para combater o mal, as paixões negativas e os vícios.

A este propósito, apraz-me ouvir de novo convosco um breve comentário de São João Crisóstomo. “Como no findar do Inverno escreve ele volta a estação do Verão e o navegante arrasta para o mar a nave, o soldado limpa as armas e treina o cavalo para a luta, o agricultor lima a foice, o viandante revigorado prepara-se para a longa viagem e o atleta depõe as vestes e prepara-se para as competições; assim também nós, no início deste jejum, quase no regresso de uma Primavera espiritual forjamos as armas como os soldados, limamos a foice como os agricultores, e como timoneiros reorganizamos a nave do nosso espírito para enfrentar as ondas das paixões. Como viandantes retomamos a viagem rumo ao céu e como atletas preparamo-nos para a luta com o despojamento de tudo” (Homilias ao povo antioqueno, 3).

Na mensagem para a Quaresma, convidei a viver estes quarenta dias de especial graça como um tempo “eucarístico”. Haurindo daquela fonte inexaurível de amor que é a Eucaristia, na qual Cristo renova o sacrifício redentor da Cruz, cada cristão pode perseverar no itinerário que hoje empreendemos solenemente. As obras de caridade (a esmola), a oração, o jejum juntamente com qualquer outro esforço sincero de conversão encontram o seu significado mais alto e valor na Eucaristia, centro e ápice da vida da Igreja e da história da salvação. “Este sacramento que recebemos, ó Pai assim rezamos no final da Santa Missa nos ampare no caminho quaresmal, santifique o nosso jejum e o torne eficaz para a cura do nosso espírito”.

Pedimos a Maria que nos acompanhe para que, no final da Quaresma, possamos contemplar o Senhor ressuscitado, interiormente renovados e reconciliados com Deus e com os irmãos. Amém!”

Adaptação da Homilia do Papa Bento XVI – Quarta-feira de Cinzas, 21 de Fevereiro de 2007 – Basílica de Santa Sabina no Aventino.

Comentário ao Evangelho de Quarta-Feira de Cinzas

Mons. João Clá Dias, EP

O CENTRO DEVE ESTAR SEMPRE OCUPADO POR DEUSliriocruz

 No jejum, na oração ou na prática de qualquer boa obra, não se pode erigir como fim último o benefício que daí possa nos advir, mas sim a glória d’Aquele que nos criou. Pois tudo quanto é nosso — exceção feita das imperfeições, misérias e pecados — pertence a Deus.

1 “Guardai-vos de fazer as boas obras diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles. Do contrário, não tereis direito à recompensa do vosso Pai que está nos Céus. Quando, pois, dás esmola, não faças tocar a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. Mas, quando dás esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita, para que a tua esmola fique em segredo, e teu Pai, que vê o que fazes em segredo, te pagará.

Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, a fim de serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, ora a teu Pai; e teu Pai, que vê o que se passa em segredo, te dará a recompensa.

16 Quando jejuardes, não vos mostreis tristes como os hipócritas, que desfiguram o rosto para mostrar aos homens que jejuam. Na verdade vos digo que já receberam a sua recompensa. 17 Mas tu, quando jejuares, unge a tua cabeça e lava o teu rosto, 18 a fim de que não pareça aos homens que jejuas, mas sim a teu Pai, que está presente no oculto, e teu Pai, que vê no oculto, te dará a recompensa” (Mt 6, 1-6.16-18).

I – Tempo de penitência e reconciliação

Por meio do Ciclo Litúrgico, com sabedoria e didática, rememora a Igreja ao longo do ano os mais importantes episódios da existência terrena do Verbo Encarnado. As solenidades da Anunciação e do Natal, as comemorações do Tríduo Pascal e da Ascensão de Nosso Senhor aos Céus, entre outras, compõem um variado caleidoscópio, apresentando à piedade dos fiéis diferentes aspectos da infinita perfeição de nosso Redentor. As graças dispensadas pela Providência em cada um desses momentos históricos revivem, de certo modo, e se derramam sobre aqueles que devotamente participam dessas festividades.

Precedendo as solenidades mais importantes — o Nascimento do Salvador e sua Paixão, Morte e Ressurreição — a Igreja destina dois períodos de preparação: o Advento e a Quaresma, pois convém que, para celebrar tão elevados e sublimes mistérios, os fiéis purifiquem suas almas das misérias e apegos, tornando-as mais aptas a receber as dádivas celestes.

Na Quarta-Feira de Cinzas têm início os quarenta dias que antecedem a Semana Santa. As três leituras desse dia — uma passagem do Profeta Joel, um trecho de uma epístola de São Paulo e outro do Evangelho — nos falam da necessidade do jejum e da penitência como meios de melhor combater os vícios, pela mortificação do corpo, e propiciar a elevação da mente a Deus. Pois, segundo nos ensina o Papa São Leão Magno, “nós nos mortificamos para extinguir em nós a concupiscência. E o resultado da mortificação deve ser o abandono das ações desonestas e dos desejos injustos”.1

Como mais adiante veremos, os textos litúrgicos em questão fazem referência, sobretudo, a um tipo de penitência que agrada especialmente a Deus e que é essencial para nossa vida espiritual. Trata-se de evitar os exageros do amor próprio, procurando não atrair as atenções dos outros sobre si mesmo, de maneira que a alma, limpa e ornada da virtude da humildade, ofereça ao Senhor um sacrifício de agradável perfume.

“Lembra-te, homem, de que és pó”

De forma cogente, a liturgia da Quarta-Feira de Cinzas recorda-nos também nossa condição de mortais: “Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris — Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó hás de voltar”, diz, de modo categórico, uma das duas fórmulas usadas pela Igreja para a imposição das cinzas.2 Após a cerimônia, a fronte dos fiéis fica marcada por um traço escuro cujo aspecto trágico e carente de beleza parece proclamar:  “De uma hora para outra, podemos ser levados pela morte, retornando ao pó!”.

A consideração da árdua passagem desta vida para a eternidade muitas vezes nos inquieta. Entretanto, tal pensamento é altamente benfazejo para compenetrar-nos da necessidade de evitar o pecado que, sem o arrependimento e o imerecido perdão, poderá fechar-nos, para sempre, as portas do Céu: “Lembra-te de teu fim, e jamais pecarás” (Eclo 7, 40). A esse propósito, com propriedade, Dom Próspero Gueranger recomenda: “Se quisermos perseverar no bem, onde a graça de Deus nos restabeleceu, sejamos humildes, aceitemos a sentença, e não consideremos a vida senão como uma caminhada mais ou menos longa que termina no túmulo”.3

“Deixai-vos reconciliar com Deus”

Na própria primeira leitura de hoje, incentiva-nos São Paulo a vivermos na graça de Deus: “Em nome de Cristo, vos rogamos: reconciliai-vos com Deus!” (II Cor, 5, 20). E com toda razão, pois o pecado nos afasta de Deus, tornando necessária a  reconciliação. A Doutrina Católica nos ensina que nem mesmo os incomensuráveis méritos de Nossa Senhora somados aos dos Anjos e dos Bem-aventurados, e aos de todos aqueles que poderiam ter sido criados e não o foram, seriam suficientes para reparar a ofensa de um só pecado venial. Quanto mais em se tratando de uma falta grave!

Só mesmo o Adorabilíssimo Sangue de Deus teria mérito infinito para redimir as ofensas cometidas pelos homens, desde Adão e Eva, como, com a elevação de linguagem de sempre, mostra-nos São Paulo: “Aquele que não conheceu o pecado, Deus O fez pecado por nós, para que n’Ele nós nos tornássemos justiça de Deus” (II Cor 5, 21). A Encarnação da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, com sua Paixão e Morte na cruz, foi o meio escolhido para restituir à humanidade transviada a plena amizade com Deus. E, por serem insuperáveis as operações divinas, tal foi a superabundância de graça conquistada pelo sacrifício do Calvário que, mesmo a soma de todas as possíveis faltas dos homens jamais tornará insuficientes os méritos infinitos do Preciosíssimo Sangue de Cristo.4

Se Jesus não tivesse assumido sobre Si a dívida contraída por nossos primeiros pais, por meio da oblação de seu Corpo, impossível seria nossa reconciliação com Deus5 e teríamos para sempre fechadas as portas do Céu.

II – Amor próprio, oração e jejum

Na passagem do Evangelho que hoje analisamos, vemos o Divino Mestre tomar como exemplo didático uma cena característica daqueles tempos. Sob uma perspectiva histórica, Ele censura uma atitude corrente, sobretudo entre os fariseus. Mas, sendo eterna a palavra de Deus, contém ela uma lição para os homens de todos os séculos.

O principal sorvedouro por onde se escoam os méritos

1 “Guardai-vos de fazer as boas obras diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles. Do contrário não tereis direito à recompensa do vosso Pai que está nos Céus”.

Difícil era fariseus serem alheios à hipocrisia. Levados por um supino orgulho, voltavam-se para si mesmos a ponto de se esquecer de Deus, fazendo suas boas obras com o intuito de angariar prestígio “diante dos homens”.

O defeito apontado por Nosso Senhor neste versículo era comum entre eles, e infelizmente não é raro também em nossos dias. Trasbordam das Sagradas Escrituras conselhos sobre esse pecado capital, raiz de muitos vícios, principalmente no livro do Eclesiastes: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Ecl 1, 2). É essa a preocupação do Divino Mestre.

A respeito dos atos humanos podemos afirmar que alguns são neutros, como por exemplo, cantar ou pintar. A substância e o mérito lhes advêm da intenção e da finalidade com as quais os executamos. Outros são bons de per se, por estarem ordenados pela razão a um objetivo honesto. Mas, segundo o Doutor Angélico, “pode acontecer que um ato em si mesmo virtuoso se torne, eventualmente, vicioso, devido a certas circunstâncias”.6

Ora, a vaidade macula muitas vezes nossos atos de virtude e nos rouba os méritos. Pois, como sublinha o Cardeal Gomá, ela é “um perniciosíssimo inimigo das boas obras: praticá-las com o escopo de ser visto e admirado pelos outros, é perder a recompensa que lhes corresponde quando são feitas com reta intenção”.7

Afirmam os mestres da vida espiritual ser a vaidade um vício tão arraigado no homem que, por assim dizer, somente o abandona meia hora depois de sua morte. Para vencê-lo, requer-se muita oração, paciência e esforço. Oração, porque por meio dela se obtêm as graças para combatê-lo. Paciência e esforço, porque devemos lutar contra ele dia e noite, impedindo-o de instalar-se em nossa alma, como recomenda São João Crisóstomo: “É necessário prestar muita atenção em sua entrada, do mesmo modo como alguém põe-se em guarda contra uma fera prestes a atacar quem não está vigilante”.8

Poderíamos, então, usar uma expressão forte, mas muito verdadeira: a vaidade é o principal sorvedouro por onde se escoam os méritos das nossas orações e boas obras. Ela é também um veneno para a alma, porque a deixa desprovida de forças para enfrentar as tentações e, portanto, exposta a toda espécie de fraquezas e capitulações.

Convém notar, de outro lado, que ao dizer-nos: “Guardai-vos de fazer as boas obras diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles”, não nos convida o Mestre a sempre nos ocultarmos para fazer o bem, pois praticar a justiça diante dos homens pode ser motivo de edificação para o próximo e de glória para o Criador, como sublinha o grande Bossuet: “Ele não nos proíbe de praticar a justiça cristã em todas as oportunidades, para edificação do próximo; pelo contrário, disse Ele: ‘Brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos Céus’. […] Edificai o próximo, por vossas ações externas, e tudo em vós, até mesmo um piscar de olhos, seja ordenado, mas tudo se faça com naturalidade e simplicidade, visando dar glória a Deus”.9

Dar esmola visando o aplauso

2 “Quando, pois, dás esmola, não faças tocar a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa”.

Não tendo recebido ainda a seiva regeneradora do Cristianismo, na humanidade daquela época imperava de tal modo o egoísmo, que o dar esmola era prática incomum. Quem o fazia, julgava-se merecedor do aplauso dos demais, por sua pretensa bondade. Daí ser costume dar esmola “com muita ostentação”.10

Mais ainda: “Parece que, para excitar a generosidade, estabeleceu-se o hábito de proclamar o nome dos doadores […] e chegava-se mesmo a honrá-los, oferecendo-lhes os primeiros lugares na sinagoga”.11

Ora, ensina Nosso Senhor, nesta passagem do Evangelho, que quem dá esmola para obter a aprovação dos outros pode considerar-se bem pago pelos elogios assim obtidos. Não lhe cabe esperar um prêmio sobrenatural, pois, conforme acentua o padre Tuya, “Deus recompensa em justiça sobrenatural somente aquilo que se faz sobrenaturalmente por amor a Ele, assim como repugna-Lhe esse censurável procedimento que é a hipocrisia farisaica”.12

Quem, entretanto, dá esmola discretamente, apenas diante de Deus e por amor a Deus, este sim, d’Ele receberá a recompensa.

O prêmio, devemos esperá-lo apenas de Deus

3 “Mas, quando dás esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita, 4 para que a tua esmola fique em segredo, e teu Pai, que vê o que fazes em segredo, te pagará”.

No versículo anterior, Nosso Senhor recrimina aqueles que visam a vanglória na prática da esmola; neste, censura-nos o comprazimento vaidoso ao realizarmos as boas obras. Para combater esse defeito, precisamos esforçar-nos para não deter nossa atenção naquilo que fazemos de bom. “Se fosse possível — comenta Bossuet —, seria necessário esconder de vós mesmos o bem que fazeis; procurai ocultar a vossos olhos pelo menos o seu mérito; […] empenhai-vos na prática da boa obra a ponto de jamais vos preocupar com o que dela vos resultará: deixai tudo por conta de Deus, assim só Ele vos verá, vos ocultareis de vós mesmos”.13

Na mesma linha opina o Cardeal Gomá: “Se possível fosse, até nós deveríamos ignorar nossas esmolas. A recompensa, devemos esperá-la somente de Deus”.14

Complementando essas afirmações, esclarece Maldonado: “Não há culpa em ser visto pelos outros quando se faz o bem, mas sim em desejar ser visto. Também não há culpa em querer ser visto, desde que não seja para conseguir o elogio dos homens. ‘Brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos Céus’”.15

É vã a oração de quem visa as exterioridades

5 “Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, a fim de serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa”.

Naquela época, era dever de todo varão judeu rezar três vezes por dia: de manhã, coincidindo com o sacrifício matutino, ao meio-dia e na hora do sacrifício vespertino. As preces eram feitas geralmente de pé, com os braços erguidos para o Céu, como a simbolizar o dom que se esperava receber.16

As pessoas costumavam orar no interior das próprias casas. Os fariseus, porém, escolhiam para tal os lugares mais visíveis nas sinagogas ou nas praças públicas. Ali gesticulavam e repetiam de cor grande número de orações, de forma a impressionar quem por lá passava. Inútil dizer que eram vãs essas preces, pois eles já tinham obtido o que almejavam: o aplauso dos transeuntes.

Não caiamos, entretanto, no erro de pensar que Nosso Senhor condena toda oração feita em público. O Divino Mestre recrimina neste versículo apenas a preocupação com as exterioridades, tão frequente nos homens daquele tempo, e a atitude genérica das pessoas que rezam com ostentação ou procurando unicamente o louvor dos semelhantes.

Na nossa vida de piedade, devemos procurar ser discretos

6 “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, ora a teu Pai; e teu Pai, que vê o que se passa em segredo, te dará a recompensa”.

A essência da oração, ensina o Catecismo, é a “elevação da mente a Deus”.17 Assim, é possível a qualquer um permanecer em oração inclusive durante os atos comuns da vida, realizando-os com o espírito voltado para o Céu.

Portanto, para rezar não é preciso tomar a atitude espalhafatosa dos fariseus. Devemos, pelo contrário, ser discretos nas manifestações externas de nossa piedade particular, evitando gestos ou palavras que ponham em realce nossa própria pessoa.

Mas se, apesar disso, nossa devoção for notada pelos outros, não devemos nos perturbar, tranquilizemo-nos com este ensinamento de Santo Agostinho: “Não há pecado em ser visto pelos homens, mas sim em proceder com a finalidade de por eles ser visto”.18

O jejum transformado em um ato de caráter social

16 “Quando jejuardes, não vos mostreis tristes como os hipócritas, que desfiguram o rosto para mostrar aos homens que jejuam. Na verdade vos digo que já receberam a sua recompensa”.

O espírito oriental, em sua riqueza de expressividade, é propenso a atitudes dramáticas, por vezes bonitas, mas que, nas práticas religiosas, podem extrapolar os padrões normais. Assim acontecia com os fariseus que, ao jejuar, colocavam cinza na cabeça, não penteavam a barba e até pintavam o rosto para dar ideia de tristeza, ostentando uma fisionomia de tragédia.19 Tinham transformado o jejum em um ato de caráter social, uma encenação, para convencer os outros de sua pretendida virtude. E não receavam recorrer a todos os meios disponíveis para atingir esse objetivo.

Uma vez mais, Nosso Senhor os reprova por se servirem da aparência de justiça para impressionar os outros, e afirma terem sido já recompensados pelo seu jejum.

A propósito deste versículo, cabe uma aplicação a nós: ao fazermos algo difícil, nunca procuremos atrair a atenção dos demais, mendigando alguns elogios. Assim procediam muitos santos que, ao praticar severos jejuns, mortificações e austeridades assustadoras, apresentavam-se, por meio de uma santa dissimulação, com uma aparência exterior alegre e jovial.

Alegria e asseio ao praticar a virtude

17 “Mas tu, quando jejuares, unge a tua cabeça e lava o teu rosto, 18 a fim de que não pareça aos homens que jejuas, mas sim a teu Pai, que está presente no oculto, e teu Pai, que vê no oculto, te dará a recompensa”.

Além de tornar claro o quanto todas as nossas ações devem ser realizadas em função de Deus, Jesus ressalta aqui a fundamental importância da limpeza para a criatura humana. Devemos primar pelo asseio corporal como reflexo da pureza que desejamos para nosso espírito.  E aliando uma apresentação impecável às boas ações, ajudaremos a manifestar que a verdadeira felicidade se encontra na prática da virtude.

Quanto ao conselho de ungir a cabeça, explica São Jerônimo: “Trata-se aqui do costume que havia na Palestina, de se ungir a cabeça nos dias de festa”. E acrescenta que assim, “o Senhor nos ordena que nos manifestemos contentes e alegres quando jejuarmos”.20

III – A quaresma nos convida a crescer em humildade

O Evangelho da Quarta-Feira de Cinzas nos apresenta o espírito com que se deve viver a Quaresma: não fazer boas obras com vistas a obter a aprovação dos outros, não ceder ao orgulho nem à vaidade, mas procurar em tudo agradar somente a Deus.

No jejum, na oração ou na prática de qualquer boa obra, não se pode erigir como fim último o benefício que daí possa nos advir, mas sim a glória d’Aquele que nos criou. Pois tudo quanto é nosso — exceção feita das imperfeições, misérias e pecados — pertence a Deus. E também nossos méritos, pois é o próprio Jesus quem afirma: “Sem Mim, nada podeis fazer”! (Jo 15, 5).

Assim, se tivermos a graça de praticar um ato bom, devemos imediatamente reportá-lo ao Criador, restituindo-Lhe os méritos, pois estes Lhe pertencem, e não a nós. “Quem se gloria, glorie-se no Senhor” (I Cor 1, 31), adverte-nos o Apóstolo.

Pelo sacerdócio comum a todos os batizados,21 cada fiel é chamado, em determinadas circunstâncias, a atuar como mediador das graças que vêm de Deus para benefício dos outros, e dos louvores que deles se elevam ao trono do Altíssimo. Nessa ocasião, cuidemos de não nos apropriarmos de nada, pois tudo quanto possuí­mos de virtude, bondade ou beleza — tanto as faculdades da alma quanto as qualidades corporais e o desenvolvimento de nosso ser físico, intelectual e moral —, tudo isso provém de Deus.

Santa Teresa de Jesus assim define a humildade: “Deus é a suma verdade, e a humildade consiste em andar na verdade, pois de grande importância é não ver coisa boa em si mesmo, mas sim a miséria e o nada”.22

Reconheçamos os benefícios que Deus nos dá e por eles rendamos-Lhe graças, não nos colocando jamais como objeto desse louvor, julgando sermos nós a fonte de qualquer virtude ou qualidade.

Neste início de Quaresma, procuremos, mais ainda do que a mortificação corporal, aceitar o convite que a Liturgia sabiamente nos faz, combatendo o amor próprio com todas as nossas forças. “Procurai o mérito, procurai a causa, procurai a justiça; e vede se encontrais outra coisa que não seja a graça de Deus”.23

Só estarão à direita de Nosso Senhor Jesus Cristo, no dia do Juízo Final, aqueles que tiverem vencido o orgulho e o egocentrismo, reconhecendo que “todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto” (Tg 1, 17). Pois o homem tem diante de si apenas dois caminhos: ou amar a Deus sobre todas as coisas, até o esquecimento de si; ou amar-se a si próprio sobre todas as coisas, até o esquecimento de Deus.24 Não existe um terceiro amor.

Saibamos, portanto, aproveitar este Tempo da Quaresma para crescermos na humildade e tomarmos consciência clara da nossa limitação, uma vez que “o homem não pode receber coisa alguma, se não lhe for dada do Céu” (Jo 3, 27).

Sirvam-nos de estímulo estas confortadoras palavras de um célebre guia espiritual, o padre Reginald Garrigou-Lagrange, OP: “Quanto mais nossa alma progredir na vida divina da graça, mais ela será uma imagem viva da Santíssima Trindade. No início de nossa existência, o egoísmo nos faz pensar especialmente em nós e a nos amarmos, atribuindo tudo a nós. Se, porém, formos dóceis às inspirações do Alto, chegará o dia em que pensaremos sobretudo, não em nós mesmos, mas em Deus, e em que, a propósito de todas as coisas, agradáveis ou penosas, O amaremos mais do que a nós e quereremos constantemente levar as almas para Ele”.25

in: Revista Arautos do Evangelho, n. 98.

1 SÃO LEÃO MAGNO. In sermone 6 de Quadragesima, 2.

2 Missale Romanum. 3.ed. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2002, p.198.

3 GUERANGER, Prosper. L’Année liturgique. Le temps de la Septuagésime. Tours: Maison Alfred Mame et fils, 1921, p.240.

4 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, III, q.48, a.2.

5 Cf. Idem, q.1, a.2, ad 2.

6 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q.147, a.1, ad.1.

7 GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.II, p.185.

8 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homiliae in Matthaeum. Hom. 19,1.

9 BOSSUET, Jácques-Bénigne. Œuvres Choisies de Bossuet. Versailles: Lebel, 1821, v.II, p.47-48.

10 TUYA, OP, Manuel de. Biblia comentada. Madrid: BAC, 1964, v.II, p.127. 

11 Idem, ibidem. 

12 Idem, p.126. 

13 BOSSUET, op. cit., p.48.

14 GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.186.

15 MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios – I Evangelio de San Mateo. Madrid: BAC, 1950, p.282.

16 Cf. TUYA, OP, op. cit., p.129. Muito interessante é a proposta que fazem os professores de Salamanca, de traduzir a palavra grega hestótes por “com pose” (em lugar de “de pé”), observando, acertadamente, que “com pose” estaria mais de acordo com o contexto desta passagem.

17 Catecismo da Igreja Católica, n.2559.

18 SANTO AGOSTINHO. De sermone Domini, 2, 3.

19 Cf. TUYA, OP, op. cit., p.151-152; GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.191.

20 SÃO JERONIMO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea.

21 Pelo Batismo, participamos “do sacerdócio de Cristo, de sua missão profética e régia” (Catecismo da Igreja Católica, n.1268).

22 Cf. SANTA TERESA DE JESUS. Las Moradas. Morada sexta, c.10, § 6-7.

23 SANTO AGOSTINHO. Sermo 185: PL 38,999. In: Liturgia das Horas I. Segunda Leitura do dia 24 de dezembro.

24 SANTO AGOSTINHO. De Civitate Dei, XIV, 28: “Dois amores geraram duas cidades: a terrena, o amor de si até ao desprezo de Deus; a celeste, o amor de Deus até ao desprezo de si”.

25 Garrigou-Lagrange, OP, Reginald. La Sainte Trinité et le don de soi. In: Vie Spirituelle n.265, maio, 1942.

A história do sacerdócio no contexto bíblico

Thiago de Oliveira Geraldo, EPlivro

Antes mesmo da instituição do sacerdócio na Bíblia, outros povos exerciam esta função, formando uma hierarquia organizada e hereditária; assim descreve George (1972, p. 924) esse aspecto:

Entre os povos civilizados que cercam Israel, a função sacerdotal é muitas vezes exercida pelo rei, notadamente na Mesopotâmia e no Egito; o rei é então assistido por um clero hierarquizado, no mais das vezes hereditário, que constitui uma verdadeira casta. Não há nada disso entre os patriarcas. Não existe então nem templo, nem sacerdotes especializados do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó.[1]

No Antigo Testamento as fontes sacerdotais são de dois tipos: de forma narrativa e de leis.[2] Numa primeira visualização acerca do sacerdócio no contexto bíblico, não se encontra o aspecto sacrifical ― que depois veio a ser exercido ―, mas o serviço da adivinhação[3] e a instrução sobre a Torá.[4] Segundo Monloubou (2003, p. 704): “Tanto quanto os profetas, os sacerdotes são moralistas que ensinam o povo a se dispor ao culto e a prolongar os efeitos por uma conduta digna”.[5]Ademais, os chefes de cada família tinham o poder de sacrificar;[6] aliás, como foi o caso do próprio Jetro ― sogro de Moisés ― que ofereceu holocausto e sacrifício no Sinai, depois comeu com Aarão e os anciãos de Israel.[7]

A origem levítica provavelmente remonta a um ramo sacerdotal oriundo de Cades, com os quais Moisés mantinha relações firmes.[8] Eles alegavam possuir a origem sacerdotal exclusiva.[9] Juridicamente não possuíam terras,[10] por serem da tribo escolhida, mas zelavam pela tradição das leis sagradas dentro do povo.[11] A pessoa de Moisés era considerada levita.[12]

Sobre a origem levítica de Aarão ocorrem controvérsias. Em Ex 4, 13-16 ele é considerado levita e irmão de Moisés; no entanto, ora se torna intercessor junto a Moisés (Nm 12, 11-12), ora assume a condição de sacerdote de um bezerro de ouro idolátrico (Ex 32, 1-5). Este fato ligado à contenda entre Roboão e Jeroboão faz com que Aarão seja uma espécie de precursor do sacerdócio em Betel, pois Jeroboão também construiu um bezerro de ouro em Betel e outro em Dã e estabeleceu sacerdotes do meio do povo que não eram levitas.[13]

Num período pré-monárquico em que ainda não havia rei, cada qual fazia o que lhe parecia melhor; foi assim que Mica, da montanha de Efraim, convidou um levita para tornar-se seu sacerdote, após a fundição de um ídolo com 200 moedas de prata encomendado por sua mãe.[14] A imagem fundida com as 200 moedas e o sacerdote levita foram mais tarde sequestrados pela tribo de Dã, que queria estabelecer-se na cidade de Laís. O levita alegrou-se por se tornar como que pai e sacerdote de uma tribo em vez de uma família. Jônatas, filho de Gerson, filho de Manassés, constituiu-se, juntamente com seus filhos, sacerdote da tribo de Dã até o dia do cativeiro. O que tem como intento a legitimidade do sacerdócio, remontando-o até Moisés. Isto se passou enquanto a casa de Deus estava em Silo,[15] onde Eli desempenhava o ofício sacerdotal por meio de sacrifícios e holocaustos.[16] Após o declínio da família de Eli, tem-se notícia de uma cidade sacerdotal em Nobe. O chefe desta família, o sacerdote Aquimelec, dá alimento a Davi e seus companheiros. Por esse motivo, Saul determina que toda sua família seja exterminada, exceto Abiatar que se refugia com Davi.[17]

Entrando no período monárquico, o sacerdócio ganha estruturação e a partir daí o culto no Templo torna-se vigoroso.[18] Salomão organiza a estrutura de seu reino e com isso o culto fica centralizado no Templo em Jerusalém.[19] No entanto, com o cisma samaritano os cultos locais ganham novamente realce.[20] Nessa época o sacerdócio e a monarquia tinham uma firme aliança, como mostra o massacre dos filhos de Acab, no qual Jeú extermina a todos, inclusive os sacerdotes que serviam o rei.[21] Isto não se passava somente em Israel, mas também em Judá, como o caso do refugiado Joás, que ficou seis anos escondido no Templo e depois, com a conspiração do sacerdote Jojada, torna-se rei.[22]

As classes sacerdotais formadas em comunhão com a monarquia foram respectivamente deportadas pelos conquistadores de seus reinos. Israel caiu com a invasão assíria e colonos se estabeleceram na Samaria.[23] Algum tempo depois, sacerdotes são trazidos da deportação para ensinar a religião aos colonos,[24] Judá é conquistada por Nabucodonosor e Sedecias, deportado para a Babilônia.[25] Inclusive o sumo sacerdote Saraías e Sofonias, segundo sacerdote, são levados para o cativeiro.[26]

Um passo importante para o sacerdócio de Judá, ocorrido antes da deportação para a Babilônia, deu-se com a descoberta do livro da aliança no Templo, pelo sumo sacerdote Helcias. Após as palavras da profetisa Holda, o rei Josias promoveu uma reforma geral no culto: renovando a aliança com Deus, ele ordenou a Helcias, aos sacerdotes de segunda ordem e aos porteiros que limpassem o Templo de todos os objetos idolátricos que lá havia; despediu os sacerdotes idólatras e os que adoravam os astros do céu e mandou profanar os lugares que tinham sido objeto de culto idolátrico, unificando, dessa forma, o culto ao Deus verdadeiro no templo de Jerusalém.[27]

Na época exílica, com a condensação da lei sacerdotal levítica, ficou assegurado que a tribo sacerdotal por excelência seria a de Levi,[28] e mesmo assim nem todos os levitas seriam sacerdotes.[29] A Aarão e seus filhos ficou reservada a função de sumo sacerdote.[30] No entanto, Ezequiel, ao divisar o “novo Israel” (capítulos 40-48) recorda que os levitas abandonaram o culto verdadeiro para seguir a ídolos, por isso, apenas teriam funções menores dentro do Templo.[31] Os cargos mais importantes, inclusive o de sumo sacerdote, estão reservados aos levitas descendentes de Sadoc, que permaneceram fiéis ao santuário enquanto os israelitas se afastavam.[32] Sadoc foi sacerdote pré-davídico da linhagem de Eleazar, filho de Aarão.[33] Segundo Born (2004, p. 1352):

Sob Davi aparece uma nova família, a de Sadoc, de origem obscura, mas na tradição sacerdotal ligada com Eleazar, filho mais velho de Aarão. Essa família suplantou a de Eli (1 Sm 2, 27-36) e outras que eram consideradas como descendentes do terceiro e do quarto filhos de Aarão, Nadab e Abiu, e obteve afinal a hegemonia em Jerusalém.

A reconstrução pós-exílica levou em conta esta declaração de Ezequiel, o que tornou os sadoquitas sacerdotes principais, enquanto à descendência de Arão coube a parte do sacerdócio comum e os genitores levitas ficaram sendo os servos do Templo.[34] Além da restauração e centralização do culto no Templo, a leitura e explicação da lei passou a ter um realce cada vez maior. Agora não só o aspecto sacrifical era preponderante, mas a especialização legalista das Escrituras Sagradas se torna cada vez mais relevante.[35] Essa concepção legalista mais tarde ultrapassa a própria dignidade sacerdotal.

À época do Messias, os sacerdotes já estavam categorizados segundo normas anteriores. Para os sacerdotes comuns havia 24 divisões de serviços,[36] os quais poderiam exercer outras funções no tempo vago.[37] Geralmente faziam as leituras e explicações da Torá nas sinagogas e eram encarregados das questões de pureza ritual.[38] A hierarquia estabelecida funcionava de forma hereditária. Portanto, a separação entre os sacerdotes principais e os sacerdotes comuns era bem acentuada. Os levitas dessa época que deveriam viver em cidades levíticas,[39] tinham como funções a de cantores[40] e demais serviços do Templo.[41]

4. O sacerdócio no Novo Testamento

No Novo Testamento o substantivo hiereus (sacerdote) é empregado 31 vezes, das quais 14 na carta aos Hebreus. Marcos a emprega duas vezes, Mateus três e Lucas oito vezes (cinco no Evangelho e três em Atos). No Evangelho de João encontra-se apenas uma vez (1, 19) e três no Apocalipse. Note-se que nas cartas do Novo Testamento a única que leva esse termo é em Hebreus, as demais não o utilizam. Quando se fala em sacerdote no Novo Testamento, pode-se estar referindo aos pagãos (At 14, 13) ou aos sacerdotes judeus.[42]

Os contatos de Jesus com sacerdotes não eram frequentes; ocorriam quando mandava aqueles a quem havia curado mostrarem-se a eles,[43] devido aos conceitos de purificação ritual, os quais declaravam a pessoa isenta de impurezas e apta a frequentar novamente a sociedade. Ao mesmo tempo isto servia para a afirmação da autoridade de Jesus.[44]

A parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37) apresenta uma crítica aos sacerdotes (v. 31) que promoviam simplesmente um culto externo. O evangelho de Mateus (12, 4), com seu paralelo em Marcos 2, 26 e Lucas 6, 4, mostra como o rei David comeu os pães da proposição ― que lhes era proibido ― e Mateus aproveita para afirmar o senhorio de Jesus sobre o sábado e o Templo, alegando que os sacerdotes também rompem o sábado para exercer suas funções. Para essa afirmação de Jesus é dado como argumento a própria Sagrada Escritura.[45] A relação positiva de Jesus com os sacerdotes e levitas em relação ao acontecimento da salvação somente se verifica em Lucas (1, 5.8) e Atos (6, 7).[46]

Nos Evangelhos sinóticos Jesus nunca atribui a Si mesmo o título de sacerdote, preferindo utilizar a expressão “Filho” ou “Filho do Homem”; desta forma, faz uma distinção clara entre Sua missão e a dos sacerdotes aarônico e levítico. No entanto, Sua missão está envolta de conceitos sacerdotais.[47]

O fato mais esclarecedor da ação sacerdotal implícita e figurada de Jesus encontra-se na Sua morte. Segundo George (1972, p. 928-929):

 Para seus inimigos, esta é o castigo dum blasfemo; para seus discípulos, um fracasso escandaloso. Para ele, ela é um sacrifício que ele descreve com as figuras do Antigo Testamento: compara-a ora com o sacrifício expiatório do Servo de Deus (Mc 10, 45; 14, 24; cf. Is 53), ora com o sacrifício de Aliança de Moisés ao pé do Sinai (Mc 14, 24; cf. Ex 24, 8); e o sangue que ele dá no tempo da Páscoa evoca o do cordeiro pascal (Mc 14, 24; cf. Ex 12, 7.13.22s). Essa morte que lhe infligem é por ele aceita; ele próprio a oferece como o sacerdote oferece a vítima; e é por isso que ele dela espera a expiação dos pecados, a instauração da nova Aliança, a salvação de seu povo. Numa palavra, ele é o sacerdote de seu próprio sacrifício.

Acerca da segunda função sacerdotal do Antigo Testamento, o serviço da Torá; Jesus não veio bani-la, mas aperfeiçoá-la (Mt 5, 17s). Ele supera a letra, mostrando no primeiro e segundo mandamentos seu valor mais profundo (Mt 22, 34-40). Com isso, manifesta o prolongamento do sacerdócio do Antigo Testamento ao mesmo tempo em que torna evidente sua superação pela definitiva revelação do Evangelho da salvação e realização da Lei.[48]

Em João, no capítulo 17, destaca-se a chamada “oração sacerdotal”, em que Jesus pede por Si (v. 1-5), pelos discípulos (v. 6-19) e pela unidade dos futuros cristãos (v. 20-26). Esse capítulo não traz o termo “sacerdote”, mas pode ser comparado ao dia da Expiação (Lv 16, 17), pelo fato de Jesus estar se preparando para a morte.

Ao falar sobre a morte de Jesus, São Paulo evoca as figuras do cordeiro pascal (1 Cor 5, 7), da humilhação do Servo (Fl 2, 6-11), do dia da Expiação (Rm 3, 24ss). A morte de Cristo significa para o Apóstolo o sacrifício supremo, que Ele mesmo ofereceu; assim se encontram termos como a comunhão do sangue de Cristo (1 Cor 10, 16-22) e da redenção por meio dele (Rm 5, 9; Cl 1, 20; Ef 1, 7). Também em Romanos 3, 25, outra expressão do culto sacrifical é utilizada por São Paulo: “Deus o destinou para ser, pelo seu sangue, vítima de propiciação mediante a fé”. Acerca da oblação sacrifical de Cristo, o Apóstolo a descreve em Ef 5, 2 e Gl 2, 20. Da mesma forma como o próprio Jesus não Se intitulou sacerdote, São Paulo também não o faz.[49] Somente na carta aos Hebreus é que isto ocorre.

Em Hebreus 4, 14, Cristo recebe o título de Sumo Sacerdote. O pontífice é escolhido não para si mesmo, mas em favor dos homens (5, 1). Sendo mediador, ele não o é por escolha própria, senão por meio de um chamado, como no caso de Aarão (5, 4). “Assim também Cristo não se atribuiu a si mesmo a glória de ser pontífice. Esta lhe foi dada por aquele que lhe disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei (Sl 2, 7)” (Hb 5, 5). No entanto, Cristo não está na condição pontifical da linhagem aarônica, pois sendo o autor da salvação, “Deus o proclamou sacerdote segundo a ordem de Melquisedec” (Hb 5, 10). Melquisedec aparece na História sem uma origem definida, “sem pai, sem mãe, sem genealogia, a sua vida não tem começo nem fim; comparável sob todos os pontos ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre” (Hb 7, 3).

Abraão é posto como inferior a Melquisedec, pois “é o inferior que recebe a bênção do que é superior” (Hb 7, 7). Nessa perspectiva a mudança trazida pelo novo sacerdócio ― da ordem de Aarão para Melquisedec ― obriga o aperfeiçoamento da Lei (Hb 7, 11-12). De outra forma, a Lei já teria atingido sua plenitude na linhagem levítica.

Para São Tomás, o motivo pelo qual Cristo é da ordem de Melquisedec e não da linhagem levítica se dá por dois motivos, como explana (S. Th. III, q. 22, a. 6, resp.):

 Já foi dito que o sacerdócio da lei era a prefiguração do sacerdócio de Cristo, não de maneira adequada à verdade, mas de maneira muito deficiente. Por duas razões: quer porque o sacerdócio da lei não purificava os pecados, quer porque não era eterno, como o sacerdócio de Cristo. Ora, a superioridade do sacerdócio de Cristo, com relação ao sacerdócio levítico, estava prefigurada no sacerdócio de Melquisedec que recebeu o dízimo de Abraão, de quem, de alguma forma, o sacerdócio levítico dependia. Por causa desta superioridade do verdadeiro sacerdócio com relação ao sacerdócio prefigurativo da lei, se diz que o sacerdócio de Cristo é segundo a ordem de Melquisedec.

A aliança feita por Cristo é mais excelente e perfeita que a antiga (Hb 8, 6). Ela tem como base o próprio sangue de Cristo (Hb 9, 14); “por isso ele é mediador do novo testamento” (Hb 9, 15). A Lei antiga era apenas sombra dos bens que viriam, pois os sacrifícios eram renovados indefinidamente (Hb 10, 1), mas agora uma só oblação ― por meio de Cristo ― realizou a perfeição definitiva (Hb 10, 14).

Cristo é ao mesmo tempo a pedra viva ― rejeitada pelos homens, mas escolhida por Deus ― desse edifício espiritual (1 Pd 2, 4-5). Assim, se encontrará na carta de São Pedro a relação do sacerdócio de Cristo como um novo povo adquirido por Deus e ao qual santificou, tirando das trevas para a luz, denominado “sacerdócio régio” (1 Pd 2, 9). Esta é a expressão do pensamento contido em Êxodo 19, 6. O sacerdócio é visto aqui como acesso ao conhecimento de Deus, e o seu papel profético consiste em proclamar essa visão íntima. Agora, o sacerdócio cristão toma o lugar do judaico; no entanto, expressões fundamentais do ritual levítico, passam para a igreja primitiva e são utilizados pelos cristãos, tais como: aspergido, lavado, primogênito, altar etc.[50]

Em Apocalipse (1, 6; 5, 10; 20, 6) também está expressada a ideia do reino sacerdotal de Êxodo 19, 6. A comunidade se beneficia da dignidade sacerdotal como parte da dignidade real concedida por Deus, por meio de Seu Cristo. Esse sentido sacerdotal não se deve à relação com o Templo, pois este não existirá na Jerusalém Celeste (Ap 21,22), mas o próprio Deus e o Cordeiro irão assumir a função de Templo.[51]

No Novo Testamento Jesus nunca denomina qualquer de seus seguidores com o título de sacerdote, mas da mesma forma que no Antigo Testamento, somente são Seus ministros aqueles a quem Deus chama. O chamamento dos doze, a transmissão de poderes (Mt 10, 8.40; 18, 18) e a entrega da Eucaristia (Lc 22, 19) já se torna uma participação específica do sacerdócio.[52]

As explicações ulteriores da tradição tomam como base a compreensão dos apóstolos acerca do ministério sagrado, que ao mesmo tempo não prejudica o sacerdócio de Cristo nem o dos fiéis.[53] Assim descreve este pensamento George (1972, p. 931):

Os Apóstolos o compreendem. Eles estabelecem por sua vez responsáveis para prolongar sua própria ação. Alguns destes últimos trazem o título de Anciãos, que é a origem do nome atual dos sacerdotes (presbíteros: At 14, 23; 20, 17; Tt 1, 5). A reflexão de Paulo sobre o apostolado e os carismas já se orienta para o sacerdócio dos ministros da Igreja. Aos responsáveis pelas comunidades ele dá títulos sacerdotais: “administradores dos mistérios de Deus” (1 Cor 4, 1s), “ministros da nova Aliança” (2 Cor 3, 6); ele define a pregação apostólica como um serviço litúrgico (Rm 1, 9; 15, 15s). Aí está o ponto de partida das ulteriores explicações da tradição sobre o sacerdócio ministerial. Este não constitui, portanto, uma casta de privilegiados. Não significa prejuízo nem para o sacerdócio único de Cristo nem para o sacerdócio dos fiéis. Mas, a serviço dum e de outro, ele é uma das mediações que garantem o serviço do povo de Deus.

No Novo Testamento tem-se, portanto, uma inter-relação do sacerdócio instituído com o sacerdócio de Cristo (expressão da plenitude sacerdotal) e com o sacerdócio régio da comunidade. Essa relação constante e efetiva entre o divino e o humano é o resultado da mediação sacerdotal levada à perfeição.

GERALDO, Thiago de Oliveira. O sacerdócio levítico no contexto histórico-bíblico. in: LUMEN VERITATIS. São Paulo: Associação Colégio Arautos do Evangelho. n. 9, Out-Dez 2009. p. 71-80.


[1] DUFOUR, Xavier Leon S. J. Vocabulário de teologia bíblica. Tradução de Frei Simão Voigt O.F.M. Petrópolis: Vozes, 1972.

[2] Cf. BORN, op. cit., p. 1351.

[3] Cf. Jz 17,5; 18,5-6; 1 Sm 14,36-42.

[4] Cf. Dt 27,9-10; 31,10-13.

[5] MONLOUBOU, L.; DU BUIT, F. M. Dicionário Bíblico Universal.. Tradução de Gentil TITTON et al. 2. ed. Petrópolis: Santuário, 2003.

[6] Cf. Gn 8, 20; 31,54.

[7] Cf. Ex 18,12.

[8] Cf. BROWN, op. cit., p. 287-288.

[9] Cf. Ex 32, 25-28; Dt 33, 8-11.

[10] Cf. Dt 10, 9.

[11] Cf. Dt 27, 14-26; 31, 24-28.

[12] Cf. Ex 2, 1-2.

[13] Cf. 1 Rs 12, 28-33.

[14] Cf. Jz 17.

[15] Cf. Jz 18.

[16] Cf. 1 Sm 1, 3.

[17] Cf. 1 Sm 22, 6-23.

[18] Cf. BROWN, op. cit., p. 288.

[19] Cf. 1 Rs 4, 1-6.

[20] Cf. 1 Rs 12, 25-33.

[21] Cf. 2 Rs 10, 11.

[22] Cf. 2 Rs 11.

[23] Cf. 2 Rs 17, 23.

[24] Cf. 2 Rs 17, 27-28.

[25] Cf. 2 Rs 25, 7.

[26] Cf. 2 Rs 25, 18.

[27] Cf. 2 Rs 22;23, 1-28.

[28] Cf. Nm 18, 1-7.

[29] Cf. 1Cr 23 ,2.

[30] Cf. Ex 29, 29-30.

[31] Cf. Ez 44, 10-14.

[32] Cf. Ez 44, 15-16.

[33] Cf. 1 Cr 24, 1-3.

[34] Cf. BROWN, op. cit. p. 288.

[35] Cf. Ne 8.

[36] Cf. 1 Cr 24.

[37] Segundo SÁNCHEZ (1997, p. 185): “Todos eles viviam do templo e constituíam o partido saduceu”.

[38] Cf. Lv 11-15.

[39] Cf. Lv 21.

[40] Cf. 1 Cr 6, 16-17.

[41] Cf. 1 Cr 6, 33-34.

[42] Cf. BALZ, Horst e SCHNEIDER, Gerhard. Diccionario Exegético del nuevo testamento. 3 ed. Vol. I. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2002. p. 1953.

[43] Cf. Mt 8,4 paralelo com Mc 1, 14; Lc 5, 14; 17, 14.

[44] Cf. BROWN, op. cit. p. 291.

[45] Cf. Os 6,6.

[46] Cf. BALZ e SCHNEIDER, op. cit. p. 1954.

[47] Cf. TERRA, op. cit. p. 64.

[48] Cf. DUFOUR, op. cit. p. 929.

[49] Cf. TERRA, op. cit. p. 65.

[50] Cf. BROWN, op. cit. p. 292.

[51] Cf. BALZ e SCHNEIDER, op. cit. p. 1955.

[52] Cf. DUFOUR, op. cit. p. 931.

[53] No sentido explicado acima (sacerdócio régio).

O encontro de São João Batista com Jesus

batistaMons. João Clá Dias, EP

I – UM DOS MAIS BELOS ENCONTROS DA HISTÓRIA

            “O semelhante se alegra com seu semelhante”, diz um antigo provérbio latino, e de fato é esse um princípio intrínseco a todos os seres com vida, na medida em que sejam passíveis de felicidade. Deus assim nos criou e fez uns dependerem dos outros, aperfeiçoando- nos com o mais entranhado dos instintos, o de sociabilidade. Se para um pássaro constitui motivo de gáudio o encontrar-se com outro da mesma espécie, para nós, esse fenômeno é mais intenso. Ora, se grande é o júbilo de duas crianças afins ao se encontrarem pela primeira vez no colégio, qual não terá sido a reação dos dois maiores homens de todos os tempos, ao se contemplarem face a face?
            Assim se realizou um dos mais belos encontros da História, João Batista diante de Jesus; para melhor compreendê- lo, analisemos as analogias entre um e outro.

Traços de semelhança entre Jesus e João

 
 
 

            Apesar de serem duas pessoas infinitamente distantes entre si pela natureza – João é mero homem, Jesus é a Segunda Pessoa da Trindade Santíssima – numerosos traços de semelhança os unem.

            Jesus é o alfa e o ômega da História. João é o começo do Evangelho e o fim da antiga Lei (1). Assim o afirma o próprio Nosso Senhor: “Com efeito, todos os profetas e a Lei profetizaram até João” (Mt 11, 13-14).

            Segundo Tertuliano, João Batista é uma “figura única na História, adornada em vida de um prestígio sobre-humano, que se levanta misteriosa e solene nos confins de ambos os Testamentos” (2). Dele afirma Jesus: “Na verdade vos digo que entre os nascidos de mulher, não veio ao mundo outro maior que João Batista” (Mt 11, 11).
Além do mais, a concepção de ambos, de Jesus e de João, é precedida pelo anúncio do mesmo embaixador São Gabriel Arcanjo (Lc 1, 11-19 e 26- 34). As mensagens não diferem muito, em seus termos, uma da outra. Os nomes de Jesus e de João foram designados por Deus (Lc 1,13 e 31).

            No próprio ato de anunciar o nascimento, o Mensageiro celeste profetiza também o futuro tanto do Precursor (Lc 1,13-17) quanto do Messias (Lc 1,31-33).

O perfil do Precursor

            Sobre Jesus, se fôssemos analisar as grandezas de suas qualidades e de suas obras, “nem todo o mundo poderia conter os livros que seria preciso escrever” (Jo 21, 25).
            No Batista, tudo é sui generis, a começar pela profecia de sua vinda, proferida por Isaías e Malaquias: “Uma voz exclama: Abri no deserto um caminho para o Senhor, traçai na estepe uma pista para nosso Deus” (Is 40, 3); “Vou mandar meu mensageiro para preparar o meu caminho” (Mal 3, 1).

            Mais impressionante ainda é a sua santificação no seio materno operada pela Santíssima Virgem: “Porque, logo que a voz de tua saudação chegou aos meus ouvidos, o menino saltou de alegria no meu ventre” (Lc 1, 44).

            A grandeza de sua missão é profetizada pelo próprio pai: “E tu, menino, serás chamado o profeta do Altíssimo, porque irás à frente do Senhor, a preparar os seus caminhos; para dar ao seu povo o conhecimento da salvação” (Lc 1, 76-77).
A rudeza da forma de vida escolhida pelo Batista lhe confere uma aura de austeridade ímpar: “Ora o menino crescia e se fortificava no espírito. E habitou nos desertos até o dia da sua manifestação a Israel” (Lc 1, 80). “Andava João vestido de pêlo de camelo, (…) e alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre” (Mc 1, 6).

            Ao iniciar suas pregações, foi acolhido pela opinião pública da época com enorme prestígio, pois, já ao seu nascimento, “o temor se apoderou de todos os seus vizinhos, e divulgaram-se todas essas maravilhas por todas as montanhas da Judéia. Todos os que as ouviram as ponderavam no seu coração dizendo: ‘Que virá a ser este menino?’ Porque a mão do Senhor estava com ele” (Lc 1, 65-66). Logo de início, João atraiu multidões: “E iam ter com ele toda a região da Judéia e todos os habitantes de Jerusalém” (Mc 1, 5), “porque todos tinham a João como verdadeiro profeta” (Mc 11, 32).
            Os soldados, os publicanos e as multidões lhe perguntavam “Mestre, que devemos fazer?” (Lc 3, 10-14). O próprio Herodes, querendo matá-lo “teve medo do povo, porque este o considerava como um profeta” (Mt 14, 5). Essa grande fama se estendeu até após sua morte:
“porque todos tinham João como um profeta” (Mt 21, 26).
As repercussões sobre sua figura, palavras e obras ecoaram entre os vales e os montes da Terra Prometida, a ponto de o povo chegar a pensar “que talvez João fosse o Cristo” (Lc 3, 15).

Pois bem, fixemos em nossa lembrança essa gloriosa projeção alcançada em vida por São João Batista e abramos um parênteses para considerar a principal de suas virtudes: a da restituição, a qual consiste essencialmente em atribuir a Deus os dons d’Ele recebidos.

II – INVEJA E AMBIÇÃO, VÍCIOS UNIVERSAIS

            A ambição é uma paixão tão universal quanto o é a vida humana. Quase se poderia dizer que ela se instala na alma antes mesmo do uso da razão, sendo facilmente discernível no modo de a criança agarrar seu brinquedo ou na ânsia de ser protegida. Ao tomar consciência de si e das coisas, os impulsos primeiros de seu ser convidá-la-ão a chamar a atenção sobre sua pessoa e, se ela cede, ter-se-á iniciado o processo da ambição. O desejo de ser conhecida e estimada é a primeira paixão que macula a inocência batismal. Quantos de nós não nos lançamos nos abismos da ambição, da inveja e da cobiça já nos primeiros anos de nossa infância? Essas provavelmente foram as raízes dos ressentimentos que tenhamos tido a propósito da glória dos outros. Sim, pelo fato de desejarmos a estima de todos, por nos crermos no direito à glória e ao louvor dos nossos circunstantes, constitui para nós uma ofensa o sucesso dos outros. Por isso São Tomás define a inveja como sendo “a tristeza do bem alheio enquanto se considera como mal próprio, porque diminui a própria glória ou excelência” (3).
Há paixões que se mantêm letárgicas até a adolescência, assim não o é a inveja; ela se manifesta já na infância e acompanha o homem até a hora de sua morte. Não será difícil aos pais observar os sinais desse vício, em seus pequenos. Irmãos ou irmãs, entre si, não poucas vezes terão problemas por se imaginarem eclipsados pelas qualidades ou privilégios de seus mais próximos. Quantas vezes não acontece de ser necessário separar-se irmãos, ou irmãs, na tentativa de corrigir essas rivalidades que podem chegar a extremos inimagináveis, tal qual se deu entre os primeiros filhos de Eva, Caim e Abel?

            A ambição e a inveja são mais universais do que parece à primeira vista; poucos se vêem livres de suas garras. Elas se levantam e tomam corpo em relação aos que nos são mais próximos, como afirma São Tomás: “A inveja é do bem alheio enquanto diminui o nosso. Portanto, somente se suscita a respeito daqueles que se quer igualar ou superar. Isto não sucede em pessoas que diferem muito de nós em tempo, espaço e lugar, senão nas que nos estão próximas” (4).

            Assim, ao sábio será mais difícil invejar o general, e vice- versa, ou, uma médica a uma costureira; mas dentro da mesma profissão, quanto mais relacionadas forem as pessoas entre si, mais intensa se manifestará essa paixão.

            Em conseqüência, poder-se-ia dizer que jamais se excitaria esse mau pendor nas almas dos contemporâneos de Jesus face a suas qualidades, pois a diferença entre Ele e qualquer pessoa deste mundo é simplesmente infinita. De fato, esse seria o normal relacionamento dos outros com o Redentor, se seu nascimento e vida fossem refulgentes de poder e de glória. Mas Ele veio ao mundo numa gruta em Belém, foi envolto em panos e depositado na manjedoura sobre palha, viveu em Nazaré exercendo a profissão de carpinteiro para auxiliar seu pai. Assim, só mesmo um forte olhar de fé poderia discernir nesse Menino uma Pessoa de Deus. E essas aparências contrárias à sua divindade chegaram a ser tão extremas que Jesus conferiu o título de bem-aventurado a quem não se envergonhasse de segui-lO (Mt 11, 6). Se Ele tivesse manifestado todo o fulgor da infinita distância existente entre a natureza divina de sua Pessoa e a nossa humana, não haveria quase mérito na restituição dos bens que d’Ele recebemos.
            É justamente em função das primeiras palavras pronunciadas por Maria em seu cântico de ação de graças, ouvidas com alegria por João Batista no seio materno, que toma brilho a mais alta virtude do Precursor: “A minha alma glorifica o Senhor; e o meu espírito exulta de alegria em Deus meu Salvador porque olhou para a humildade de sua serva” (Lc 1, 46-48). Essa foi a formação recebida pelo menino-profeta ao longo dos meses durante os quais Maria viveu em casa de Isabel: humildade e servidão. Como teria sido de um valor inestimável se os pontífices e fariseus do Sinédrio houvessem sido educados na mesma escola de João! Certamente não se teriam reunido depois da ressurreição de Lázaro, para decretar a morte de Jesus (Jo 11, 47-53).

III – SÃO JOÃO BATISTA E A VIRTUDE DA RESTITUIÇÃO

            Aproximemo-nos de João nas margens do rio Jordão e analisemos seu prestígio de pregador. Profeta como igual nunca houve em Israel, fundador e chefe de uma escola, todo o povo o procura. Entretanto, seu renome está condenado a uma lenta morte, sua instituição deverá dissolver-se paulatinamente, sobre a glória de sua obra far-se-á um grande eclipse, pois um valor mais alto se aproxima. Esse era o momento do ressentimento, da ambição ferida e talvez até da inveja. Muito pelo contrário, a reação de João foi de heróica humildade e ilimitada servidão, como encontramos narrado no Evangelho de hoje.

29 No dia seguinte João viu Jesus, que vinha ter com ele …           

Assim como Maria foi à sua prima Santa Isabel, é Jesus quem se dirige a João, e agora pela segunda vez. O discípulo amado não nos relata o Batismo de Jesus como o faz Mateus (3, 13-17) e, segundo São João Crisóstomo, Jesus volta a encontrar-se com o Batista para desfazer o equívoco de que, na primeira vez, Ele tivesse ido procurá-lo tal qual o faziam todos, ou seja, para confessar seus pecados ou para obter a purificação dos mesmos pelas águas do Jordão.

  … e disse: “Eis o Cordeiro de Deus, eis O que tira o pecado mundo”.

            Assim como hoje nossa fé se robustece em méritos ao contemplar uma Hóstia consagrada e crer na Presença Real de Jesus Eucarístico, também naqueles dias era indispensável, para benefício de todos, o Redentor apresentar- Se sob osvéus de nossa natureza. Jesus, desde o nascimento até essa ocasião, era um homem comum e corrente em todas as suas aparências. Tornava- se necessário ir descerrando pouco a pouco esses véus, a fim de introduzir o povo na verdadeira perspectiva debaixo da qual fosse possível prestar- Lhe um culto de latria. Excelente meio escolheu o Salvador: suscitou um varão que havia comovido toda Israel por sua figura constituída de mistério, profetismo e santidade, saído de dentro de uma vida feita de ascese e penitência, o Precursor.
            Era chegado o momento de os judeus ouvirem, de lábios dignos da máxima credibilidade, a proclamação da grandeza do Messias ali presente. A preparação dos corações estava concluída, o caminho do Senhor já se encontrava endireitado, a voz ecoara pelo deserto, o Filho de Deus precisava ser conhecido e, para tal, era indispensável muita clareza na comunicação: “Eis o Cordeiro de Deus”.
            O conhecimento de Deus é bem diferente do nosso. Vivemos no tempo, e a cronologia é fundamental em nosso processo intelectivo. Para Deus tudo é presente e, ao criar, fez Ele depender uns seres de outros. No pináculo da criação, colocou Cristo como Causa, Modelo, Regente e Guia, e, tendo em vista o pecado e o Redentor, criou o cordeiro para simbolizar este grandioso aspecto de seu Unigênito Encarnado, o de vítima expiatória, numa clara referência ao “cordeiro pascal” (Ex 12, 3-6), ou quiçá, ao duplo sacrifício diário oferecido no Templo (Ex 29, 38), ou como comenta Orígenes: “Porque Ele, tomando sobre si nossas aflições e tirando os pecados de todo mundo, recebeu a morte como batismo” (5).

            O cordeiro é um animal pacífico e pacificador. Solto no pasto ou posto na baia, ele tranqüiliza os corcéis fogosos, evitando-lhes ferimentos inúteis.
            A afirmação de João é feita no presente do indicativo -“Aquele que tira” – para indicar a perpetuidade do ato redentor.


30 Este é Aquele de quem eu disse: Depois de mim vem um homem que é superior a mim, porque era antes de mim, …


            É patente tratar-se aqui de um Homem de corpo e alma. Embora tenha nascido depois do Batista, este último confessa publicamente não só que Jesus lhe é superior, mas também que já existia antes dele. E é real, pois, enquanto Verbo de Deus, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Ele é eterno. Assim, neste versículo, o Precursor proclama a Humanidade unida à Divindade, numa só Pessoa. É a revelação do mistério da Encarnação.


31 … e eu não O conhecia, mas vim batizar em água, para Ele ser reconhecido em Israel.

            João quis evitar o equívoco da parte do povo, o qual poderia julgar serem suas afirmações sobre Jesus feitas com base no parentesco existente entre ambos. E realmente, o Batista se retirara ao deserto ainda menino e não estivera com Ele antes. Portanto, suas declarações eram fruto de um discernimento essencialmente profético, como também é profética sua missão, pois torna claro o objetivo de seu batismo: o reconhecimento do Messias, da parte do povo.


32 João deu este testemunho: “Vi o Espírito descer do Céu em forma de pomba e repousou sobre ele”.


            O mistério da Santíssima Trindade não havia sido revelado até então; entretanto, de dentro da Teologia como é hoje conhecida, torna-se patente a presença das Três Pessoas nessa proclamação de João Batista.

            A pomba é inocente por sua natureza e, ao contrário das aves de rapina, não se alimenta de carnes mortas, mas sim de sementes da terra. Gemem quando estão enamoradas. Eis um belo símbolo do Espírito Santo, a Inocência que nos instrui, ilumina e santifica com gemidos inefáveis dentro de nós.


33 Eu não O conhecia, mas O que me mandou batizar em água, disseme: Aquele sobre quem vires descer e repousar o Espírito, esse é O que batiza no Espírito Santo.

            Reafirma São João Batista não ter antes conhecido Jesus. Compreende-se sua insistência a esse respeito, pois os laços familiares eram vigorosos naqueles tempos e havia o risco de interpretarem as palavras do Precursor sob um prisma meramente humano.
            Era indispensável fixar a atenção de todos na origem divina de suas proclamações, daí a referência Àquele que o havia mandado batizar.


34 Eu O vi, e dei testemunho de que Ele é o Filho de Deus.


            Sim, Jesus é o Unigênito do Pai. Enquanto os outros todos – inclusive a Santíssima Virgem – somos filhos adotivos, Jesus é gerado e não criado, desde toda a eternidade. João já havia declarado ser o Messias o Cordeiro de Deus, que batizaria no Espírito Santo. Porém, esta é a primeira vez que declara tratar-se especificamente do Filho de Deus.


IV – CONCLUSÃO: CASTIGO DA AMBIÇÃO E DA INVEJA

            O castigo de Deus à ambição e à inveja se faz presente não só na eternidade, mas também nesta vida. Quem se deixa arrastar por esses vícios, perde a noção do verdadeiro repouso e passa a viver constantemente na preocupação, na inquietude e na ansiedade. Sempre estará atormentado pelo pavor de ficar à margem, de ser esquecido, igualado ou superado. Sua existência será um inferno antecipado e essas paixões se constituirão em seus próprios carrascos.

            Pelo contrário, quanta felicidade, paz e doçura têm as almas que são despretensiosas, reconhecedoras dos bens e das qualidades alheias, restituidoras a Deus dos dons por Ele concedidos.

            Entremos na escola de Maria, e d’Ela aprendamos a restituir a Deus nosso ser, nossa família e todos os nossos haveres. Ela nos ensinará a glorificar ao Senhor por ter contemplado o nosso nada e, como resultado, nosso espírito exultará de alegria (Lc 1, 47), a exemplo de seu primeiro discípulo, São João Batista.

1 ) Suma Teológica III, q. 38, a. 1 ad. 2.

2 ) Cf. Adversus Marcionem, IV, 33: PL 2, 471.
3 ) Suma Teológica II-II, q. 36, a. 1.

4 ) Suma Teológica II-II, q. 36, a.1, ad. 2.

5 ) Apud Catena Áurea, in Jo I, 29.

(Revista Arautos do Evangelho, Jan/2005, n. 37, p. 6 à 11)

 Ver também: http://presbiteros.blog.arautos.org/2010/01/07/pregacao-de-joao-e-batismo-de-jesus/

 

O menino que reverteu a História e a visita dos pastores

adoracao            Mons. João Clá Dias, EP

            Entremos numa certa gruta e ali veremos um Menino adorado por sua Mãe Santíssima e São José, reunidos em família, oferecendo mais glória a Deus do que toda a humanidade idólatra, e até mesmo mais do que os próprios anjos do Céu em sua totalidade. Já em seu nascimento, numa singela manjedoura, aquele Divino Infante reparava os delírios de glória egoísta sofregamente procurada pelos pecadores. Ele se encarnava para fazer a vontade do Pai e, assim, dar-nos o perfeitíssimo exemplo de vida.

            Nenhum pensamento, desejo, palavra ou ação surgida de sua alma divinamente santa terá outro fim que não seja o de glorificar o Pai, a quem tudo consagrou desde o primeiro instante.

            Não tardarão muitos séculos, depois daquele natal, para os altares dos falsos deuses serem arrasados, os ídolos quebrados, os templos pagãos destruídos – ou convertidos em santuários – e os próprios demônios se calarem. Sim, aquele Menino nascido numa gruta reverterá o trabalho realizado por Satanás durante milênios, e a Roma pagã será a sede do Cristianismo; transformada na Cidade Eterna, dentro de suas muralhas, sobre uma pedra inabalável, se estabelecerá até o fim dos tempos uma infalível cátedra da moral e da verdade.

            Mas, por outro lado, onde encontrariam os anjos, homens dignos de serem convidados para adorar o Menino? Na própria Belém, o berço de Isaí (1 Sm 16, 1) e de seu filho Davi, o humilde e jovem pastor “louro e de formosos olhos” (1 Sm 16, 12). Nos campos daquelas regiões, escolheram os anjos os destinatários do grande anúncio, pessoas pertencentes à mesma condição social do Rei e Profeta: os pastores de ovelhas. Assim, dois cortesãos do mais nobre sangue – Maria e José -, junto com os pastores de condição humilde e a própria Corte Celeste constituiriam os adoradores do Menino- Deus recém-nascido. Do Templo, nenhum representante.

            Os escribas e fariseus desprezavam aquela classe de homens que, dia e noite, no verão ou no inverno, guardavam os rebanhos naquelas pastagens de Belém. Pelo seu teor de vida, os pastores não se enquadravam nas minuciosas práticas e abluções religiosas dos cerimoniais farisaicos.

            Os terrenos por eles ocupados não eram suficientemente irrigados e, por isso, não lhes assistia um escrupuloso asseio. Ademais, a instrução era por eles acolhida diretamente na própria natureza que não lhes ensinava o uso de vasilhas, a escolha dos alimentos puros etc. Formavam eles uma comunidade à margem da sociedade, que vivia do pasto e no pasto, portanto um povo da terra, totalmente desprezado pelos fariseus. Além disso, eram excluídos do normal procedimento dos tribunais, sendo considerados inválidos seus testemunhos em juízo. Paradoxalmente, os excluídos dos pleitos farisaicos são agora convidados, pelos anjos do Supremo Juiz, a penetrar na corte de um príncipe herdeiro do trono de Davi.

            Quando os anjos se retiraram deles para o Céu, os pastores diziam entre si: ‘Vamos até Belém e vejamos o que é que lá aconteceu e o que é que o Senhor nos manifestou’. A flexibilidade de alma daqueles pastores era plena, submissa e toda feita de prontidão. O anjo lhes dissera para não temerem (cf. Lc 2, 10) e não consta nesse relato de Lucas que tenham passado por algum espanto ao longo do contato com aqueles puros espíritos. Ora, sabemos pela História o quanto os judeus se amedrontavam com as aparições angélicas, julgando que a morte com certeza se lhes seguiria (cf. Jz 6, 22-23; Jz 13, 20-22; Tb 12, 16-17). Mas esses pastores, apesar de homens de pouquíssimo conhecimento, intuíram rapidamente que, por fim, nascera o Messias.

            Sem conhecer as amplas e profundas explicações doutrinárias dos fariseus, eles como todo e qualquer judeu, sabiam da promessa feita por Deus e anunciada pelos profetas aos antigos sobre o futuro aparecimento de um Salvador. Não seria quiçá esse o tema de suas conversas durante as noites de pastoreio? Restou-nos apenas uma síntese das palavras do anjo a eles. Entretanto não será exagerado crer que ele lhes tenha esclarecido qual deveria ser o lugar e o caminho de acesso à gruta, tanto mais que lhes indicou os sinais distintivos: “Encontrareis um Menino envolto em panos e posto no Presépio” (Lc 2, 12).

            As grutas da região lhes deviam ser muito familiares, pois eram os locais de refúgio onde buscavam proteção contra as intempéries. Tampouco se pode descartar a hipótese de ter havido antecedentes de partos ocorridos em circunstâncias análogas às do Natal. O certo é que em nenhum momento lhes passa pela alma a menor dúvida e, por isso, comentam entre si, em meio a muita alegria, o fato narrado pelo anjo, e convictamente concluem e decidem empreender a caminhada rumo ao “que o Senhor nos manifestou” (v. 15).

            “Foram a toda pressa, e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura”.

            O amor não admite lentidão. A pressa dos pastores comprova o grande fervor com que receberam a boa nova. Como não conheciam o emaranhado conceitual dos fariseus, não se levantou em suas almas a menor objeção sobre a realidade do Messias que se lhes manifestava diante de todos e de cada um. Trinta e poucos anos mais tarde, a cega doutrina dos escribas e fariseus se uniria aos conceitos dos saduceus e herodianos – sem excluir os do próprio Sinédrio – para se opor ao senso comum e sobrenatural dos humildes de espírito e assim, com entranhado ódio, empregar todos os recursos com vistas à condenação do “Salvador, que é Cristo e Senhor, [nascido] na cidade de Davi” (v. 11).

            Ali na gruta, naquele momento, estavam presentes o Pai Eterno e o Divino Espírito Santo, que viam naquele tenro, delicado e ao mesmo tempo grandioso Menino, a realização de um plano idealizado desde todo o sempre: “Tu és meu filho muito amado, em quem coloco todas as minhas complacências” (cf. Lc 4, 22 e Mc 1, 11). Como também Maria Santíssima, que através de seus altíssimos dons, de maneira inigualável penetrava os mistérios daquele Nascimento. José a acompanhava muito de perto. Abismados ambos pela incomensurável humildade de Deus em fazer- se homem –  à diferença da soberba dos demônios -, concentravam-se para adorar o Divino Infante.

            Lá chegam agora também os pastores, em simplicidade e pobreza, atraídos e amados por Deus devido a seu espírito de obediência, e por serem contemplativos. Não era a pobreza material que os tornava diletos de Deus, pois pobres os havia em situação ainda mais deficiente e em maior número. Ademais, não podemos nos esquecer de que essa não era a condição social dos Reis Magos, que paralelamente estavam se pondo a caminho para adorar o Divino Infante. Por outro lado, seria outro erro querer atribuir ao portentoso milagre da aparição dos anjos, durante a noite, o fator decisivo para a crença daqueles homens toscos e talvez iletrados.

            Quão maiores e incontáveis seriam os milagres operados por aquele Menino em sua vida pública! Entretanto, muitos judeus não creram. O fator decisivo foi um especial dom de fé que lhes foi concedido. A Teologia nos ensina que há uma fé que se poderia denominar puramente intelectual: a pessoa crê em Deus, mas chega a odiá-Lo e temê- Lo como fazem os demônios e os precitos. Há, ainda, os que crêem, mas não traduzem em obras sua fé.

            Os fatos, como nos são narrados por Lucas, fazem-nos concluir que os pastores possuíam uma fé flexível e obediente, colocando em prática tudo aquilo em que acreditaram. Sem perda de tempo, submeteram todo o seu entendimento e vontade ao que lhes anunciou o sobrenatural. É naquela noite que, diante do Presépio, encontramos os primeiros cristãos adorando a Cristo, o Absoluto abnegado, despido das manifestações da glória que Lhe é devida. Os pastores, ao serem capazes de adorá-Lo na manjedoura, não teriam dificuldade de fazê-lo no Calvário, tal como Maria o fez de modo tão sublime.

            Nós também, nos dias atuais, temos o nosso presépio. O mesmo Unigênito Filho de Deus, reclinado sobre as palhas no interior da gruta em Belém, está presente debaixo das Espécies Eucarísticas. Será que igualmente nos movemos “apressadamente” em busca do Salvador, como o fizeram os pastores?

Ceux qui ne croient pas au miracle

cura-bartimeuC’est un fait prouvé par l’expérience de tous les jours et de tous les temps que les miracles les plus avérés, les plus authentiques, miracles qui produisent tout leur effet sur un certain nombre d’âmes, sont, pour d’autres, nuls et non avenus; bien plus se convertissent pour elles en prétextes d’incrédulité.

Ces deux phénomènes absolument contradictoires supposent-ils, dans les uns ou les autres, des états de conscience insolites, anormaux, quelque maladie mentale ou autre, l’absence de quelque faculté naturelle? Nullement: le chrétien qui croit, comme Bossuet, a toute sa raison; l’incrédule, qui nie, comme Voltaire, peut être doué des plus riches facultés : entre le croyant et l’incroyant on ne saurait saisir ni physiologiquement, ni intellectuellement, aucune différence de nature.

Si étrange qu’elle paraisse cette contradiction n’étonne aucun chrétien : car elle a été littéralement prévue, prédite et décrite dans l’Évangile. Le même Sauveur qui a dit : «Si je n’avais pas fait des signes comme personne n’en a fait, il n’y aurait point de péché à refuser de me reconnaître comme fils de Dieu», a dit aussi, avec l’insistance la plus explicite : « Mais maintenant ET ils ont vu mes œuvres ET ils me haïssent moi et mon père » (Joan., xv, 24). Dans la parabole du mauvais riche, nous entendons l’infortuné, du sein des tourments, dire à Abraham:

« Je vous en conjure, mon père, envoyez Lazare dans la maison de mon père; car j’ai cinq frères, et il leur rendra témoignage de la vérité, afin qu’ils ne viennent pas à tomber un jour, eux aussi,, dans ce lieu de tourments. » Et Abraham lui dit : « Ils ont Moïse et les prophètes, qu’ils les écoutent; alors le mauvais riche : Non, ô père Abraham, mais si quelqu’un des morts va les trouver, ils feront pénitence. Non, répond Abraham, s’ils n’écoutent ni Moïse, ni les prophètes, ils ne croiront pas davantage à un mort ressuscité » (Luc, xvi, 27-31).

Ce phénomène d’incrédulité, ainsi prévu et prédit, se réalise en acte dans l’Évangile même. Les Pharisiens voient Lazare ressuscité, et ce miracle, dit l’Évangile, provoque la foi d’un grand nombre. Du fait, certainement miraculeux, qu’Us ont sous les yeux, les Pharisiens concluent- ils pour eux l’obligation de croire? En aucune façon : dans ce fait même ils trouvent la raison décisive qu’ils cherchaient pour mettre à mort celui qui a ressuscité Lazare:

« Que ferons-nous? se disent-ils. Voilà un homme qui fait beaucoup de miracles. Si nous le laissons libre, tout le monde va croire en lui ; et les Romains viendront et c’en sera fait de notre ville et de noire nation. Ils ne pensaient donc plus, depuis ce jour-là, qu’à trouver un moyen de le faire mourir » (Joan., xi, 47-53).

Déjà, plus d’une fois, témoins de miracles éclatants, par exemple de l’expulsion de quelques démons, ils avaient soutenu que ce n’était pas par la vertu de Dieu présente en lui, mais par l’action supérieure du prince des démons lui-même, que Jésus chassait les mauvais esprits, et la réponse péremptoire du Sauveur ne les avait pas convaincus. Enfin, lorsque le plus grand des miracles éclate, quand Jésus est sorti victorieux du tombeau, les pharisiens ne se tiennent pas pour battus. Ils savaient que Jésus avait prédit sa résurrection, et, en présence des affirmations de Madeleine et des Apôtres, leur devoir semblait indique : faire une enquête sérieuse pour savoir si ce fait unique, surnaturel entre tous, mais si formellement attesté, avait quelque fondement dans la réalité. Rien de tout cela : ils ne veulent pas avoir le démenti de ce qu’ils se sont promis, de ce qu’ils ont annoncé, et c’est fort cher, sans compter, pecuniam copiosam, dit S. Matthieu (xxviii, 12), qu’ils paieront les soldats pour répandre le bruit que les disciples de Jésus sont venus la nuit, pour enlever son corps. Résumons ici, pour plus de clarté, tout ce que dit l’Évangile sur les miracles, leur existence, leur nécessité, la foi qui leur est due, l’accueil qu’ils rencontrent parmi les hommes.

I. — Bien qu’au témoignage de Jésus lui-même, l’excellence de sa doctrine suffise à en manifester la divinité aune âme de bonne volonté, cependant le même Jésus nous dit que, s’il n’avait pas fait de miracles, il n’y aurait pas de péché à ne pas croire a sa mission divine.

II — Il y a des miracles extérieurs, authentiques, auxquels le devoir de la foi est attaché, sous peine de salut.

III. — Ce sont ces miracles qui, d’ordinaire, avec laide de la grâce, convertissent ceux qui viennent à la foi.

IV. — Enfin il y en a qui voient ces miracles aussi bien que les premiers, et qui, néanmoins, persévèrent et même s’endurcissent dans leur incrédulité.

Cherchez maintenant les raisons de cette incrédulité. Ces raisons, Notre-Seigneur les indique avec précision dans l’Évangile; on les voit souvent signalées dans de nombreux passages du Nouveau, comme de l’Ancien Testament; tous les philosophes chrétiens, en étudiant, dans l’âme humaine, les procédés de la raison et le mystère de la liberté, s’accordent à montrer toujours l’homme, et jamais Dieu responsable de cette incrédulité qui entraîne la perte des âmes, et s’oppose irrémédiablement au salut. Enfin les faits sont là, innombrables, évidents, quotidiens, qui nous font assister à ce drame si douloureux pour une âme chrétienne : d’autres âmes qui nous sont chères, très richement douées parfois du côté des dons naturels, visitées par les mêmes grâces qui nous ont convertis nous-mêmes, tombant, orgueilleuses et satisfaites d’elles-mêmes, dans le gouffre mortel de l’incrédulité.

L’Évangile n’est pas un traité de philosophie; c’est sans doute, de l’aveu de tous, un trésor de doctrine où, depuis sa promulgation, tout esprit pensant est venu puiser, et d’où est sortie manifestement la civilisation moderne. Mais (les Pharisiens l’avaient déjà remarqué) jamais le divin docteur ne parle comme un homme qui annonce une doctrine imaginée par lui-même ou apprise d’un autre homme, un système soumis à la discussion. C’est un maître qui affirme au nom de Dieu, qui promulgue les lois de Dieu son père, auquel il est consubstantiel : « ego et pater unum sumus ». A ce titre il connaît à fond l’homme, sa créature, et rien n’est caché à ses yeux. Aussi nous le voyons devinant les pensées secrètes de ses disciples, de ses ennemis. «Jésus, dit S. Jean, ne se fiait pas à eux, car il les connaissait tous, et il n’avait pas besoin que personne lui rendît témoignage de l’homme, car il savait ce qui était dans l’homme.»[1] Qui donc oserait contredire le maître divin lorsque, témoin et juge sévère de l’incrédulité des scribes et des Pharisiens, il leur dit : « Eh! comment pourriez-vous croire vous qui recherchez la gloire que vous vous donnez les uns aux autres, et non la gloire qui vient de Dieu seul? » (Joan., v, 44).

Cet oracle divin n’est-il pas une observation psychologique d’une absolue justesse, aux yeux de tout homme sincère?

Supposez, en effet, ce cas si ordinaire : un homme qui, pour but de son activité intellectuelle, morale ou physique, se propose exclusivement sa propre satisfaction personnelle, le triomphe de son orgueil, le succès de son ambition, l’accroissement de son bien-être : n’est-il pas clair qu’un tel homme éprouvera une répugnance invincible, un préjugé insurmontable, à l’égard de toute doctrine qui viendra contredire la passion qui le domine? Une vérité pure, austère, sollicite mon adhésion : la condition essentielle pour que je la lui donne, c’est que je sois disposé à l’accepter pour cette seule raison qu’elle est la vérité, la vérité qui est le reflet de Dieu, et, pour parler comme l’Évangile, « une gloire qui émane de Dieu seul ». Les Pharisiens n’en sont pas là. Ils sentent leur pouvoir menacé par l’enseignement de Jésus, c’est assez : sa doctrine est condamnée d’avance. Jésus les renvoie à Moïse et aux Écritures : ils ne les ouvrent pas. Jésus les rend témoins de ses miracles : ils s’en scandalisent. Les miracles qu’ils voient ne leur suffisent pas, ils en réclament d’autres qu’ils savent d’avance qu’on leur refusera. Quand Jésus a ressuscité Lazare, épouvantés de la popularité que ce miracle lui assure, ils se disent sans hésiter : « Hâtons-nous de le faire mourir, car tout le monde va croire en lui. » Quand ils le voient sur la croix ils se figurent enfin tenir leur triomphe définitif: « s’il est vraiment fils de Dieu qu’il descende de la croix et nous croirons en lui! » Jésus fait mieux, il se laisse mourir, ensevelir, mettre au tombeau et il en sort vivant le troisième jour. Ce miracle même, dont la renommée arrive aux Pharisiens, ne les émeut pas : ils refusent de regarder. Comment pourraient-ils voir?

Or, je le demande à toute âme droite, qu’est-ce qu’une incrédulité de cette sorte peut prouver contre la réalité du miracle? Mais aussi qui ne voit, dans l’état d’âme de ces Pharisiens, le type le plus expressif, le plus vrai, de nombre de ceux qui se font gloire de ne pas croire aux miracles? Les savants incrédules sont-ils moins que les Pharisiens préoccupés de la crainte de perdre leur crédit, si la foi venait à prévaloir? Et que dire de la masse des ambitieux, des voluptueux, des riches sans conscience? Qu’y a-t-il de commun entre leur façon d’entendre et de pratiquer la vie, et la sévérité de l’Évangile? Si l’Évangile a raison, ils se sentent perdus; il faut donc que l’Évangile ait tort. S. Paul comparaît devant le proconsul Félix qui s’intéresse fort à tout ce que l’Apôtre lui dit de la foi en Jésus-Christ :

« Mais, comme Paul lui parlait de la justice, de la chasteté et du jugement à venir, Félix en fut effrayé et lui dit : C’est assez pour cette fois, retirez-vous ; quand j’aurai le temps je vous ferai venir, et parce qu’il espérait que Paul lui donnerait de l’argent, il l’envoyait quérir souvent et s’entretenait avec lui » (Act., xxiv, 25-26).

Paul fit-il quelques miracles devant Félix? L’histoire ne le dit pas, et la chose n’est pas probable. Un miracle, en effet, ne l’aurait pas converti; il n’aurait pu qu’accroître la culpabilité d’un homme justement aveugle parce qu’il était injuste impudique et avare: son incrédulité eût été une faute de plus à porter à ce tribunal de Dieu, dont la pensée l’effrayait sans le toucher. Autre exemple: le même S. Paul est conduit devant l’Aréopage par des philosophes épicuriens et stoïciens, curieux d’entendre celui qu’ils prennent pour un de ces parleurs de philosophie dont ils amusent leur loisir. Qui ne prévoit le succès, sur de telles gens, de la prédication de l’Apôtre? Parler de la résurrection à des philosophes dont les uns ne croient qu’à la matière, dont les autres sont de purs panthéistes, n’est-ce pas aller au-devant d’un échec certain? Aussi les uns se mettent à rire, les autres haussent les épaules; ils renvoient l’Apôtre aune autre fois. Un miracle les eût-il convertis? Nullement. Quelques-uns cependant, un juge et une simple ouvrière, croient à sa parole. Pourquoi? C’est qu’ils n’avaient, eux, aucun système à défendre, et que leur coeur droit, dans la vérité, ne cherchait que la vérité, c’est-à-dire « la gloire qui vient de Dieu seul ».

L’histoire des Pharisiens de l’Évangile, des Épicuriens et des Stoïciens, des Actes des apôtres, se poursuit à travers les siècles, toujours identique à elle-même. Pour admettre le surnaturel, pour se rendre à un miracle même évident, une préparation morale est nécessaire. Qu’entre le fait le plus concluant et l’adhésion à la doctrine que ce fait suppose, il se trouve l’écran d’une passion, d’un intérêt, d’un système, d’un préjugé scientifique, aussitôt nous voyons se réaliser, dans sa plus stricte littéralité, le mot tant répété dans nos saints livres : « Ils ont des yeux et ils ne voient pas; des oreilles et ils n’entendent pas, ils refusent de comprendre de peur d’être forcés d’agir » conformément à la vérité qu’ils ont entrevue. Et, en sens inverse, se vérifie la grande parole de Notre-Seigneur en S. Jean : « Qui facit veritatem venit ad lucem. Celui-là vient à la lumière qui fait la vérité », c’est-à-dire qui aime la vérité, qui la cherche avec conscience, qui pratique tous les devoirs qu’elle lui impose, dans la mesure même où il les connaît.

R. P. LESCOEUR. Faits surnaturels contemporains les vrais et les faux miracles. 12 ed. Paris: A. Roger et F. Chernoviz, 1900. Chapitre XII p. 167-173.

[1] Joan., a, 23; Malth., ix, 4 ; XII, 25; Luc, vi, 8; ix, 47; xi, 17.


Il “Simone della storia” e il “Pietro della fede”

pedroPe. Eduardo Caballero, EP

 

            Gli studi attuali vedono due tappe nell’immagine neotestamentaria di Simon Pietro e del suo ministero: il “Simone della Storia” e il “Pietro della Fede”.[1]

            Durante la prima tappa (il “Simone della Storia”), che si svolge durante il ministero di Gesù, l’immagine di Simon Pietro appare con quattro grandi tratti caratteristici. Simone è stato uno dei primi discepoli di Gesù ad essere chiamato, o sulla riva del Mar di Galilea insieme ad Andrea, Giacomo e Giovanni, secondo la tradizione sinottica, o nella valle del Giordano dopo Andrea e un altro discepolo, secondo la tradizione giovannea. Ha avuto anche un ruolo preminente tra i primi discepoli di Gesù, essendo frequentemente associato a Giovanni e Giacomo secondo i Sinottici, e/o al discepolo prediletto nella letteratura giovannea. In più, con tutta probabilità, fece una certa confessione messianica di Gesù, nel senso di “tu sei il Messia” nella linea di quella contenuta sostanzialmente in Mc 8,29 (= Mt 16,16 = Lc 9,20, e il suo riflesso in Gv 6,68s.), la cui autenticità è confermata dal fatto di non essere stata accettata da Gesù. Infine, è anche molto probabile che Simone non abbia capito Gesù, almeno in parte. L’invettiva di Gesù chiamandolo Satana; le sue negazioni attestano questo incompleto intendimento di Gesù da parte de Simone.

            Nella seconda tappa della sua vita (il “Pietro della Fede”), che fa parte della storia della Chiesa Primitiva, si possono individuare anche altre quattro caratteristiche salienti. Simone finì per essere conosciuto come Cefa, proba bilmente perché lo stesso Gesù gli aveva dato questo nome secondo la narrazione trasmessa in tre contesti diversi.[2] Gli fu concessa, tra i Dodici, la prima apparizioni di Gesù risorto,[3] fatto in seguito al quale Pietro fui il più importante dei Dodici in Gerusalemme e dintorni.[4] Pietro, poi, svolse un’attività missionaria soprattutto tra i giudei, ma anche tra i gentili.[5] Infine, la sua posizione teologica fu intermedia tra quella di Giacomo e quella di Paolo.[6]    Ci sono, inoltre, sei immagini di Pietro nel pensiero neotestamentario. Oltre che primo testimone di Gesù risorto, di portavoce dei Dodici e di missionario, si sviluppa l’immagine di grande pescatore-missionario (Lc 5) che deve confermare i suoi fratelli con la sua continua predicazione missionaria.[7] Emerge, inoltre, l’immagine del pastore,[8] che esercita l’autorità pastorale in virtù delle chiavi del regno e del legare e sciogliere che Gesù gli ha affidato (Mt 16,19). Poiché è buon pastore, dà la vita per le sue pecore (Gv 10,11; 13,36), e diventa martire cristiano a Roma verso gli anni 60 come “testimone delle sofferenze di Cristo” (1Pt 5,1). Ha una speciale rilevanza l’immagine di Pietro come ricettore di rivelazione propria, sia della risurrezione (1Cor 15,5), sia della scena che la annuncia: la trasfigurazione (Mc 9,2-10), una visione che viene usata per giustificare la sua autorità petrina successiva (2Pt 1, 16-18). Si narrano ugualmente altre tre rivelazioni riservate a lui: la prima, quando viene scoperto l’inganno di Anania e Zaffira, (At 5,1-11); la seconda, che giustifica il battesimo del romano pagano Cornelio (At 10,9-16) e la terza, per essere liberato dalla prigione (At 12,7-9). Prevalentemente, Pietro si manifesta come confessore della vera fede cristiana nel testo di Mt 16,16-19 (e della sua scena vicina di Gv 6,66-69), dove prende corpo in modo germinale una rivelazione di Dio sulla identità di Gesù: è il Messia e il Figlio del Dio vivo. Alla luce degli eventi post-pastquali si rende patente per la comunità cristiana che Pietro è realmente la roccia sulla quale Gesù ha fondato la sua Chiesa, contro la quale non prevarranno le porte dell’Inferno. E nella 2Pt, Pietro appare come il custode della fede contro il falso insegnamento nella interpretazione sia delle Scritture (1,20s.) sia degli altri apostoli (3.15s). Infine, tutta questa visione non impedisce che Pietro sia visto anche come debole e peccatore. Infatti, non capisce le parole e le intenzioni di Gesù,[9] viene rimproverato da Gesù, e addirittura chiamato “Satana”,[10] ed anche criticato da Paolo (Gal 2,11ss.). Rinnega Gesù (Lc 14,66-72) ma si pente e viene riabilitato, come fa capire l’apparizione di Gesù risorto (Gv 21,15-17). Anche l’uomo di poca fede è salvato da Gesù mentre affonda (Mt 14,28-31); il pescatore indegno e peccatore riceve da Gesù poteri spirituali (Gv 5,8-10) e una volta ravveduto, diventa sorgente di forza credente per i suoi fratelli (Lc 22,32).  

CABALLERO, Eduardo. Radicamento biblico del Ministero Petrino. Pontificia Università Gregoriana. Roma, 7 maggio 2009. p. 5-7.

[1] Cf S. PIÉ-NINOT, Eclesiologia. La sacramentalità della comunità cristiana, Brescia

2008, 457s.

[2] Cf Mc 3,16; Mt 16,18; Gv 1,42.

[3] Cf 1Cor 15,5; Lc 24,34; e Mc 16,7.

[4] Cf Gal 1,18; At 3,1s.; 4,1s.; 8,14.

[5] Cf At 10; 1Cor 1,12; 1Pt 1,1.

[6] “Tutti d’accordo”: At 15,25; differenze con Giacomo: Gal 2,12; differenze con Paolo:

Gal 2,11, e la testimonianza globale di 2Pt.

[7] Cf Lc 22,32: “conferma i tuoi fratelli”.

[8] Cf Gv 21; 1Pt 5.

[9] Cf Mc 9,5s.; Gv 13,6-11; 18,10s.

[10] Cf Mc 8,33; Mt 16,23.


A cultura levada à plenitude pelo Evangelho

Diác. José Victorino de Andrade, EP

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  O Evangelho assumiu desde sempre um papel fundamental na cultural ocidental. Entende-se aqui por cultura no seu sentido mais elevado, que na Grécia parecia chamar-se paideia, no sentido de educação, aquilo que plasma aos homens um modo de pensar, sentir e agir. É neste âmbito que se insere o Evangelho, modelando a sociedade, ou seja, o ser humano, enquanto participe de uma comunidade – o que é inerente à cultura – identificando-se desta forma na formação coletiva que revela modos de vida criados, adquiridos e transmitidos de uma geração para a outra. As almas impregnadas do espírito verdadeiramente cristão e do mandamento novo trazido por Cristo foram desde sempre especialmente chamadas a ser exemplo na construção de uma sociedade mais justa e próspera É inegável que encontramos estas frondosas raízes na sociedade Européia e nos países por ela evangelizados e que devem o que são hoje – sua cultura – a valores e conceitos indeléveis e que lhes foram oferecidos pelo catolicismo. Apesar das múltiplas tentativas de hoje em desassociar a cultura hodierna do fenômeno religioso, eis que o mundo ocidental parece voltar a ser terra de evangelização e os fiéis leigos têm de assumir um papel preponderante e fundamental na consecratio mundi, através da cultura, conforme a exortação Christifidelis Laici:

 

Perante o progresso de uma cultura que aparece divorciada não só da fé cristã mas até dos próprios valores humanos, bem como perante uma certa cultura científica e tecnológica incapaz de dar resposta à premente procura de verdade e de bem que arde no coração dos homens, a Igreja tem plena consciência da urgência pastoral de se dar à cultura uma atenção toda especial. Por isso, a Igreja pede aos fiéis leigos que estejam presentes, em nome da coragem e da criatividade intelectual, nos lugares privilegiados da cultura, como são o mundo da escola e da universidade, os ambientes da investigação científica e técnica, os lugares da criação artística e da reflexão humanística. Tal presença tem como finalidade não só o reconhecimento e a eventual purificação dos elementos da cultura existente, criticamente avaliados, mas também a sua elevação, graças ao contributo das originais riquezas do Evangelho e da fé cristã (n. 44).

 

            Desta forma, o Evangelho e a tradição cristã pode e deve oferecer aos homens de hoje um enriquecimento impar, que marque o campo da cultura, do ensino e das artes, entre tantos outros, de tal forma que possa levar aos homens um testemunho d’Aquele que é a Bondade, a Verdade, e a Beleza. E neste contributo deve empenhar-se todo o cristão.

 

VICTORINO DE ANDRADE, José. A Igreja e o Verdadeiro Progresso: Sacralização e Pleno Desenvolvimento no mundo contemporâneo. 17 f. Trabalho (Mestrado em Teologia Moral) – UPB, 2009. p. 12.

 

Parallelismo tra fede teologale e «fede scientifica»

Pe. Eduardo Caballero, EPimag

 

La distinzione classica tra fides quae creditur (l’aspetto materiale della fede teologale: comprendere i singoli articoli di fede, il contenuto di ciò che crediamo) e fides qua creditur (l’aspetto formale della fede: l’atto stesso del credere) si può ritrovare nella fede scientifica. Il suo aspetto materiale sarebbero i contenuti specifici che lo scienziato accetta come veri pur non avendo una esperienza diretta della sua veracità. Ad esempio, solitamente nessun scienziato mette in dubbio la veracità della seconda legge della termodinamica. E questo anche se lui stesso non ne ha avuto l’evidenza empirica: semplicemente si accetta la legge come valida. Tale accettazione sarebbe proprio l’aspetto formale di questa fede scientifica. In modo analogo, possiamo evidenziare in essa un aspetto «noetico», richiamato da Einstein, come abbiamo visto, che sarebbe l’accettazione intuitiva da parte del singolo scienziato dei presupposti della scienza universalmente riconosciuti dalla «comunità scientifica» (corrispondente al concetto di fides nel caso della fede teologale: è necessario anzitutto accettare la verità della Parola e della promessa di Dio, cioè credere che egli è vero in quanto dice), così come pure un aspetto «etico», che implica un certo modo di comportarsi dello scienziato nella sua ricerca scientifica in accordo con delle regole stabilite da altri o dal metodo scientifico stesso (corrispondente al concetto di mores nell’ambito della fede teologale: aderire alla Parola di Dio, alla sua fedeltà essendo fedele il credente come lo è Dio stesso).

Se diamo uno sguardo veloce, e per forza molto superficiale, ai cenni biblici sull’idea di fede, la «ubbidienza» e la «fiducia», che richiamano fortemente la fede teologale, sono elementi altrimenti presenti nel discorso che uno scienziato fa quando si sottomette docilmente ai principi che regolano il lavoro scientifico e si fida dei risultati altrui per arrivare a conclusioni più elaborate. Negli Atti degli Apostoli resta chiaro che la fede teologale è qualcosa che si riceve non soltanto per grazia divina, ma anche dalla Chiesa, per mezzo della Chiesa. Nel caso della fede scientifica, non è facile individuare un correlato divino che concede la fede come dono, ma sì un correlato comunitario alla Chiesa, e cioè, la comunità scientifica, che garante la veracità dei contenuti “creduti”. In questo senso, ci sembra significativa la conclusione di F. Ardusso:

 

Nelle scienze, la dimensione antropologica della fiducia e dell’affidamento si riconosce sia perché l’accesso a buona parte delle conoscenze poggia su tradizioni intellettuali precedenti, recuperando, pur senza rinunciare al vaglio critico dell’esperienza, i risultati già raggiunti ed accolti in un clima di fiducia costruttiva (cfr. Fides et ratio, 31-32), sia perché l’attività delle scienze riposa su presupposti prescientifici che coinvolgono il modo con cui il soggetto si pone dibfronte a quel reale che cerca di studiare, sulla cui intelligibilità e ragionevolezza «gli scienziati si appoggiano fiduciosi» (ibidem, 34). Dal canto suo, la fede reli giosa non si esaurisce in un’adesione estrinseca e acritica a contenuti conoscitivi che sorpassano la ragione, ma rappresenta un’opzione di tutta la persona, e dunque implica anch’essa un modo di porsi di fronte ad un reale la cui verità e senso ultimi si accetta di conoscere non come frutto della propria investigazione, ma come ascolto di una Parola che rivela ed interpreta, e dalla quale ci si lascia interpretare.[1]

 

Nelle lettere di Paolo appare la novità di un «assenso intellettuale» alla fede. Lui non ha creduto in modo cieco; sa a Chi ha dato la sua fiducia, la sua fede; non è un affare puramente emotivo, affettivo, senza un coinvolgimento intellettuale. Nella lettera agli Efesini, e soprattuto in Giovanni, si parla di una fede che sorpassa ogni conoscenza; essa è un tipo di conoscenza in se stessa, un modo di percepire la realtà. E tutto questo costituisce un altro e importante punto di contatto con la fede scientifica.

Sempre in rapporto con l’ambito biblico, la discussione scientifica sulla razionalità del cosmo ci sembra di richiamare la contenda tra fede e incredulità che si può rilevare ad esempio nel Libro dell’Esodo, a proposito della storia di Mosè e del popolo eletto dopo l’uscita dall’Egitto. È una successione di fede e sfiducia, di assensi e dissensi mentre una certa corrente cammina verso la desiderata “terra promessa” in cui – dicono i scientisti – sarà possibile dare una spiegazione coerente e globale di tutti gli aspetti della realtà con base nella “sola scienza”. Isaia è conosciuto come il «profeta della fede», che richiama spesso il rapporto fra fede e sicurezza: l’unica potenza che conta veramente è quella di Dio. Ebbene, il positivismo ha anche suscitato negli ultimi secoli diversi suoi “profeti” che hanno auspicato un futuro migliore sulle basi dello scientismo, come se dicessero: se non crederete nella scienza, non avrete stabilità.[2]

 

CABALLERO, Eduardo. Fede teologale e «fede scientifica»: Cenni su alcune correlazioni epistemologiche. Pontificia Università Gregoriana. Roma, 2009. p. 8-10.


[1] F. ARDUSSO, «Fede», DISF, I, 623-624.

[2] «Se non crederete, non avrete stabilità» (Is 7,9).

Luz y bueno, verdadero y pulcro

luzPaulo Francisco Martos

Dios es Luz, con L mayúscula, y conforme el hombre siga o se aleja del Creador su alma estará en la luz o en las tinieblas. La luz creada está íntimamente, diríamos mejor, esencialmente, relacionada con los tres trascendentales: bueno, verdadero y bello. Consecuentemente, las tinieblas son afines con el mal, el error y lo feo. Siendo los trascendentales reversibles, evidentemente estas distinciones son meramente didácticas. San Juan Evangelista hace esta aproximación entre luz y verdad; tinieblas y mal: 

 “La luz ha venido al mundo, y los hombres amaron más las tinieblas que la luz, porque sus obras eran malas. Porque todo aquel que hace el mal aborrece la luz (…) Pero aquel que practica la verdad, se aproxima de la luz, a fin de que sus obras sean manifiestas, porque son hechas según Dios”.[1]

 

Conviene aclarar que la palabra “tinieblas” no debe ser entendida como lo malo en cuanto ser, porque es precisamente este el error del dualismo. A este propósito, explica el entonces Cardenal Ratzinger, actual Papa Benedicto XVI:

 

“Tinieblas en S. Juan no significan, como en el gnosticismo, una sustancia eterna y contraria a Dios; sino es un acto histórico, o sea, la revuelta que sobrepasa toda la historia del hombre contra el apelo de la palabra divina y el cerrarse del hombre en si mismo”.[2]

 

En esta misma línea doctrinal, San Pablo, en su epístola a los Colosenses, enseña:

 

“Sed contentos y agradecidos al Padre, que vos hizo dignos de participar de la herencia de los santos en la luz. Él nos arrancó del poder de las tinieblas y nos introdujo en el Reino de su Hijo muy amado”.[3]

 

FRANCISCO MARTOS, Paulo. Pedagogía de la belleza – Visión del universo: un modo de ser. Maestría en Ciencias de la Educación. Universidad Metropolitana de Asunción. Paraguay, 2009. p. 42.

 

 


 

[1] Jo 3, 19-21 – Biblia Sagrada, 2002, p. 1387

[2] Ratzinger, 1987, vol. III, p. 207

[3]Cl 1, 12 – 13 – Biblia Sagrada, 2002, p. 1507 – 1508