A vida contemplativa

Diac. Inácio Almeida, EP

Ao analisarmos as imensas obras levadas a cabo por São Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Alberto Magno e outros grandes santos, concluímos que esses homens, apesar de suas atividades quase incessantes, mantiveram-se na mais constante união com Deus, pois foi pela contemplação das coisas divinas que eles hauriram sua amplíssima capacidade de ação.

Para São Tomás[1], aqueles que são chamados às obras da vida ativa, erram se julgam que este dever os dispensa da vida contemplativa. Tal dever é um acréscimo desta vida e não lhe diminui a intensidade. Desta forma, “as duas vidas, longe de se excluírem, reclamam-se, supõem-se, misturam-se, completam-se mutuamente; e, se por alguma circunstância, tivermos que preferir uma à outra, é sem dúvida a vida contemplativa que se deve escolher, pois é a mais perfeita e a mais necessária” (CHAUTARD, 1962, p. 54).

Em geral, o homem moderno tem uma errônea concepção do que seja propriamente a vida contemplativa, e desconhece a importância da contemplação como elemento propulsor da ação, pois os verdadeiros místicos ou contemplativos

“são homens de senso prático e de ação, não (só) de raciocínio e teoria. Têm o espírito da organização, o dom do comando, e revelam-se muito bem dotados para os negócios. As obras que fundam, oferecem condições de vida e duração; em conceber e dirigir as suas empresas dão prova de prudência e arrojo, e dessa justa apreciação das possibilidades que caracteriza o bom senso. E, de feito, o bom senso parece ser a sua qualidade principal: um bom senso que não é perturbado por exaltação alguma doentia ou imaginação desordenada, e a que anda junto o mais raro poder de penetração” (MONTMORAND citado por TANQUEREY (1955, p. 62).

Chautard (1962) nos adverte que: “a ação, para ser fecunda, carece da contemplação; quando esta atinge certo grau de intensidade, difunde sobre a primeira algum tanto do seu excedente e, por meio dela, a alma vai haurir diretamente no coração de Deus as graças que a ação se encarrega de distribuir”.

O mesmo autor também afirma que na alma dos santos, a ação e a contemplação se unem formando uma perfeita harmonia. Por esta razão se pode afirmar que São Tomás foi ao mesmo tempo um contemplativo, bem como um dos homens mais ativos de seu século. A vida contemplativa vivifica as ocupações exteriores; só ela é capaz de comunicar simultaneamente o caráter sobrenatural e a real utilidade das coisas. A união das duas vidas, contemplativa e ativa, constitui o verdadeiro apostolado.

“O apostolado supõe almas capazes de estuar de entusiasmo por uma idéia, de se consagrar ao triunfo de um princípio. Sobrenaturalize-se a realização desse ideal pelo espírito interior […], e logo teremos a vida mais perfeita em si mesma, a vida por excelência, visto como os teólogos a preferem à simples contemplação: Praefertur simplici contemplationi” (CHAUTARD, p. 56).

É desta ação brotada na contemplação que fez com que São Tomás de Aquino e outros grandes santos fossem ao mesmo tempo ardentes contemplativos e apóstolos valorosos. Podemos até dar tréguas a nossos trabalhos exteriores; mas, pelo contrário, nunca devemos diminuir nossa aplicação às coisas espirituais.

Pois de acordo com Chautard(1962, p. 57):

“Bom é contemplar a verdade; porém, melhor ainda é comunicá-la aos outros. Refletir a luz é algo mais que recebê-la. Iluminar vale mais que luzir debaixo do alqueire. Pela contemplação, a alma alimenta-se; pelo apostolado, dá-se (Sicut majus est illuminare quam lucere solum, ita majus est contemplata aliis tradere, quam solum contemplare).[2]


[1] Recorda-se aqui a afirmação de São Tomás: “Quem é chamado da vida contemplativa para a ativa, não sofre uma subtração, mas deve fazer antes uma adição” (Cum aliquis a contemplativa vita ad activam vocatur, non fit per modum substractionis, sed per modum additionis, Suma Teológica, 2, 2.ae, q. 182, a. 1).

[2] “Pois, assim como é mais o iluminar do que somente luzir, assim, é mais transmitir aos outros o fruto da contemplação do que somente contemplar”. (Suma Teológica, IIa IIae, q. 188, a. 6)

Os professores do seminário conforme o Código de Direito Canônico

Pe. Carlos Adriano, EP

Entre os que devem compor o seminário, encontram-se os que se destinam a ministrar a formação doutrinal aos seminaristas, de acordo com a prescrição do cânon 239 § 1:

 Cân. 239 § 1. Em cada seminário haja o reitor que o presida, e, se for o caso o vice-reitor, o ecônomo e, se os alunos fazem os estudos no próprio seminário, também professores que ensinem as diversas disciplinas coordenando-as entre si.

Segundo o que nos explica Davide Cito (2002, p. 232 – tradução minha) a respeito dessa prescrição, “o cânon descreve os principais ofícios destinados a dirigir a vida do seminário. Os titulares destes ofícios se apresentam como os colaboradores mais diretos do bispo na tarefa de formar o clero de sua diocese”. É verdade que o cânon menciona os professores que desenvolvem seu ofício dentro dos próprios seminários. O que não quer dizer que os demais não atuem também como longa manus do bispo no que tange à formação doutrinal. Ao menos, é o que se pode concluir de um dos trechos da Pastores dabo vobis, 67:

“Todos quantos introduzem e acompanham os futuros sacerdotes na sacra doutrina, por meio do ensino da teologia, assumem uma particular responsabilidade educativa, que a experiência demonstra ser muitas vezes mais decisiva, no desenvolvimento da personalidade presbiteral, que a dos outros educadores”.

É tal a importância que se deve dar ao cargo de professores das disciplinas filosóficas, teológicas e jurídicas em um seminário, que cabe aos bispos interessados a nomeação deles. Ademais, todos eles devem ser doutores, ou ao menos licenciados em alguma universidade, ou faculdade, aprovada pela Santa Sé:

Cân. 253 § 1. Para o encargo de professor nas disciplinas filosóficas, teológicas e jurídicas, sejam nomeados pelo bispo ou pelos bispos interessados somente os que, eminentes em virtudes, tenham conseguido doutorado ou licença numa universidade ou faculdade reconhecida pela Santa Sé.

Nas explicitações que a esse respeito desenvolve Gianfranco Ghirlanda (2007), afirma-se a necessidade de consulta ao reitor e ao colégio de professores já existente, para a nomeação dos professores de um seminário, bem como a possibilidade de proposta de candidatos por parte desses. E ainda acrescenta:

“O código não diz nada se esses professores devem ser só clérigos, ou se podem ser também leigos, mas a RFIS 33 determina que para o ensino das disciplinas sagradas estes sejam normalmente sacerdotes. Portanto, excepcionalmente para ensinar essas matérias, podem ser nomeados leigos”.

As normativas atuais se distinguem inteiramente do que definia o cânon 1360 § 1 do Código de 1917, que preceituava a obrigatoriedade da condição sacerdotal para os professores. Entretanto, os professores leigos não deixam de estar submetidos à autoridade eclesiástica.

Para delimitar o alcance do cânon [253] é preciso observar com caráter preliminar que, ao ser o seminário uma estrutura pública própria da organização eclesiástica, ainda que o cânon contemple diretamente os professores de disciplinas filosóficas, teológicas ou jurídicas, coloca também os professores de outras matérias em uma situação de particular dependência da autoridade eclesiástica e, portanto, a eles se aplica analogamente a normativa prevista para os docentes das disciplinas sagradas.

É preciso dizer, em segundo lugar, que o fato de os alunos do seminário realizarem em outro lugar os estudos filosófico-teológicos não míngua a responsabilidade de vigilância que tem o bispo e os superiores sobre a qualidade do ensino ministrada aos seus próprios seminaristas, e ainda que não possuam o poder de remoção indicado no § 3, têm o dever de informar as autoridades acadêmicas sobre as eventuais irregularidades que se verifiquem nos professores (CITO, 2002, p. 271).

Outro requisito que aparece no cânon 253 para a nomeação dos professores de um seminário, é que estes sejam eminentes em virtudes:

“Em particular, a especificidade e o êxito formativo dos professores de teologia mede-se pelo fato de eles serem, antes de mais, homens de fé e cheios de amor pela Igreja, convencidos de que o sujeito adequado do conhecimento do mistério cristão continua a ser a Igreja enquanto tal, persuadindo-se, portanto, de que a sua tarefa de ensinar é um autêntico ministério eclesial, serem ricos de sentido pastoral para discernir não só os conteúdos mas também as formas adequadas para o exercício deste ministério. Particularmente se requer dos professores a fidelidade plena ao Magistério. De fato, ensinam em nome da Igreja e por isso são testemunhas da fé” (PDV 67).

Por isso, os professores devem estar compenetrados da grande responsabilidade a eles distinguida, de serem formadores, nada mais, nada menos, de futuros ministros sagrados.

 Essa consciência deve ser mostrada em seu sensus Eclesiae e no obséquio para com o magistério. É verdade que os professores devem ter a peito o progresso doutrinal, gozando da devida liberdade de pesquisa. Mas, levando em conta os diversos graus de certeza teológica, devem claramente ensinar aquilo que deve ser aceito como doutrina de fé, e distinguir disso o que é opinião de outros autores ou até pessoais (GHIRLANDA, 2007, p.138).

Podemos encontrar sólidas sustentações para essas explicitações de Ghirlanda na Instrução publicada pela Congregação para a doutrina da fé, Donun Veritatis:

 “A vontade de apresentar fielmente os ensinamentos do Magistério sobre as questões de per si irreformáveis deve ser a regra. No entanto, um teólogo pode, conforme a situação, levantar questões sobre a atualidade, a forma, ou até mesmo o conteúdo das intervenções magisteriais. Neste caso, o teólogo vai precisar, em primeiro lugar, avaliar com precisão a autoridade dos ensinamentos expressos, de acordo com a natureza dos documentos, a insistência com que a doutrina é repetida, e a maneira como foi expressa” (Donun Veritatis, 24 de maio de 1990, n. 24, in AAS 82, 1990, 1550-1570 − tradução minha).

Concluindo, podemos sintetizar os requisitos de caráter pessoal que devem constar nos professores dos seminários basicamente em três: reta doutrina, testemunho de vida cristã e capacidade pedagógica (CITO, 2002). Desta maneira, torna-se mais clara a prescrição do cânon 833, 6º, de que os professores de filosofia e teologia estejam obrigados a emitir a profissão de fé e juramento de fidelidade na presença do Ordinário do lugar ou um representante seu. Também se pode compreender melhor o § 3 do cânon 253, que, em consonância com o cânon 810, § 1, prescreve a remoção do ofício de professor pela autoridade competente, para aqueles que faltem gravemente ao seu dever: “Can, 253 § 3. Magister qui a munere suo graviter deficiat, ab auctoritate, de qua in § 1, amoveatur.[1]

A respeito do quadro de professores que deve compor a formação dos seminaristas, o § 2 do mesmo cânon parece reforçar as determinações do Código anterior, cânon 1366, pois também prescrevia distintos professores para cada uma das disciplinas fundamentais.

Cân. 253 § 2. Cuide-se que sejam nomeados professores distintos para o ensino da Sagrada Escritura, teologia dogmática, teologia moral, liturgia, filosofia, direito canônico, história eclesiástica e de outras disciplinas que devem ser dadas segundo método próprio.

Por fim, convém ressaltar o quanto todos os componentes da equipe de formação dos seminários, incluindo os professores, são solidariamente responsáveis para que se observem fielmente as normativas prescritas para tal finalidade.

O professor de teologia, como qualquer outro educador, deve permanecer em comunhão e colaborar cordialmente com todas as outras pessoas empenhadas na formação dos futuros sacerdotes e apresentar com rigor científico, generosidade, humildade e paixão, o seu contributo original e qualificado, que não é apenas a simples comunicação de uma doutrina — mesmo sendo a sacra doctrina —, mas é sobretudo a oferta da perspectiva que unifica no desígnio de Deus, os diversos conhecimentos humanos e as várias expressões de vida (PDV 61).

É o que se depreende do cânon 261 § 1:

“O reitor do seminário e também, sob sua autoridade os moderadores e professores, na parte que lhes compete, cuidem que os alunos observem fielmente as normas prescritas pelas Diretrizes básicas da formação sacerdotal e pelo regulamento do seminário”.


[1] Tradução: Cân. 253 § 3. O professor que faltar gravemente em seu ofício, seja destituído pela autoridade mencionada no § 1.

O Filho de Deus com a Sua encarnação uniu-se, de certo modo, a todo o homem

Diác. Francisco Berrizbeitia, EP

Trata-se aqui de um antigo ensinamento enraizado no Novo Testamento[1] e que o Concílio Vaticano II propõe: “O Filho de Deus com a encarnação uniu-se, de certo modo, a todo o Homem.” Isto nos esclarece que, por um lado, a união hipostática só a fez Cristo uma vez com a Encarnação na Sua humanidade em concreto e, portanto, essa hipóstase está completa nEle e não com a humanidade.

Podemos dizer também que graças a esse “certo modo” que se deu com a Encarnação, a união com toda a humanidade se fez no plano salvífico, pois constitui a base pela qual Cristo elevou o homem de sua miséria fazendo-o partícipe de Sua vida divina. Por isso, a Igreja ao proclamar na sua liturgia “O félix culpa[2], canta a alegria do Povo de Deus por, ao pecarem nossos primeiros pais, o Verbo fazer-se carne e resgatar o gênero humano com sua morte e ressurreição e nos conceder o dom do Espírito. Uma coisa está clara e é o mistério, a grandeza e a beleza a qual Cristo elevou o homem de sua prostração a participar de um convívio com a Trindade, a uma comunio com ela. Sem falar da promessa da Sua presença diária na Eucaristia. Jesus não se deixa vencer em graça e generosidade para com o homem.

A tradição dos primeiros padres da Igreja quis explicar-nos o contexto na figura do Bom Pastor e da ovelha perdida como símbolo de toda a humanidade pecadora. Assim o descreve Gregório de Nisa (contra Apoliarem XVI):[3]

Esta oveja somos nosotros, los hombres. Que nos hemos separado con el pecado de las cien ovejas razonables. El Salvador carga sobre las espaldas la oveja toda entera.  Porque no se ha perdido solo una parte, sino porque se había perdido toda entera, por eso toda entera ha sido acompañada. El pastor la lleva en sus espaldas, o sea en su divinidad. Por esta asunción llega a ser una sola cosa con Él.

É interessante constatar como esta idéia de Cristo estava enraizada profundamente na Igreja, de tal forma que as interpretações mais antigas na arte paleocristã, que se conhece de Cristo, pintam-no ou esculpem-no como o Bom Pastor, levando sobre os seus ombros a ovelha. Também na Liturgia está assinalado o quarto domingo depois da Páscoa, justamente como a festividade do Bom Pastor.

Santo Agostinho comenta o fato, também resgatado da tradição de que:

Cuando ora el cuerpo del Hijo no se separe de sí a su Cabeza, de tal manera que ésta sea un solo salvador de su cuerpo, nuestro Señor Jesucristo Hijo de Dios, que ora por nosotros, ora en nosotros y es invocado por nosotros.[4]

Esta constitui a misteriosa conexão que se estabeleceu na Encarnação de Cristo, como cabeça que salva o corpo e que, sendo cabeça, ficou indissoluvelmente unida ao corpo, de tal maneira que a plenitude deste último, causada pela cabeça, constitui a salvação do mesmo Cristo, já não pensável sem o corpo da sua Igreja. Portanto, temos dois movimentos: um da cabeça ao corpo e outro do corpo à cabeça. Nada do que ocorre na cabeça é alheio ao corpo e vice-versa.

Conclui-se com um pensamento do teólogo, hoje Papa Bento XVI, em 1968, sobre a GS 22:

Pela primeira vez num documento da Igreja temos uma versão completamente nova da teologia cristocêntrica. Sobre a base de Cristo, esta ousa apresentar a teologia como antropologia e se mostra radicalmente teológica pelo fato de ter incluído o homem no discurso de Deus por meio de Cristo, manifestando deste modo a profunda unidade da teologia.[5]


[1] Ver Jo 1, 12-14; Fl 2, 5-7; 4, 4-7; Ef 4, 20-23; Hb 2, 17; 1Jo 15, 19.

[2] O félix culpa, quae talem et tantum meruit habere redemptorem (Precónio da Vigília Pascal).

[3] LADARIA L.,  “Jesucristo, salvación de todos”, San Pablo-U.Comillas, Madrid 2007, p. 105.

[4] Idem, p. 106.

[5] GALLAGHER M., “Ludici per il corso TFC004”7, PUG, Roma 200, p. 10. (tradução nossa)

O mistério da Santíssima Trindade

Mons. João S. Clá Dias, EP

O mistério da Santíssima Trindade é o principal de nossa fé. Essencialmente se concentra num mistério de conhecimento e de amor. O primeiro precede o segundo, não por anterioridade de tempo mas, por pura lógica. Em face disto, podemos afirmar que a primeira atividade de Deus é a de conhecer. O Filho é gerado pelo Pai por via do conhecimento. Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado, revela-nos algumas maravilhas desse íntimo conhecimento no seio da Trindade Santíssima: “Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece o Filho senão o Pai; nem alguém conhece o Pai senão o Filho” (Mt 11, 27). “Em verdade, em verdade vos digo: O Filho não pode de si mesmo fazer coisa alguma, mas somente o que vir fazer o Pai; porque tudo o que fizer o Pai, o faz igualmente o Filho. Porque o Pai ama o Filho, e mostra-lhe tudo o que ele faz” (Jo 5, 19-20).

Quem melhor nos revelaria o Pai, do que Jesus, Seu Unigênito? Ele nos torna possível penetrar nos segredos da vida íntima de Deus, através dessa virtude teologal, não como no enunciado de um teorema abstrato, mas de maneira toda divina e sobrenatural: “Nós agora vemos [a Deus] como por um espelho, um enigma; mas então [O veremos] face a face. Agora conheço-O em parte; mas então hei de conhecê-Lo como eu mesmo sou [dele] conhecido” (1 Cor 13, 12-13).

É por essa mesma virtude que cremos na Revelação sobre a procedência, por via de amor, da terceira pessoa, o Espírito Santo. E ademais, permite-nos ela abarcar todos os mistérios da salvação.

In: Lumen Veritatis, n. 4.

Haverá esperança para uma cultura centrada na mera ciência?

Pe. François Bandet, EP

A fim de melhorar o entendimento da ciência quotidiana, é necessário tomar em conta duas características da ciência que influenciam tremendamente: a sua refletividade e a sua tecnicalidade.

Por refletividade, entendemos o meio de integração da dimensão da consciência no campo da ciência e, a partir daí, atingindo uma dimensão filosófica.

Pela sua tecnicalidade, a ciência distancia-se de toda a teoria e torna-se exclusivamente a técnica. Os dados tornam-se o mais importante e no seu caminho tentam “possuir” as leis da natureza.

Como a ciência sempre desejou “transformar” o mundo, está ligada à humanidade no seu ato de ser, no seu corpo e no seu espírito, tocando atualmente em problemas políticos, éticos e colocando em questão a própria humanidade.

Surge então um dilema para a humanidade: seguir a mentalidade lógica e técnica da ciência, olhando por cima de todas as considerações éticas, criando tensões e conflitos e concentrando-se na expansão e no desenvolvimento da “transformação” do mundo; ou encontrar (ou inventar) uma nova moralidade ética para justificar as novas conquistas.

Através da sua capacidade de transformar o mundo, a ciência criou novos problemas para a humanidade. Considerada, formalmente, um elemento de unificação, tornou-se hoje muito controversa devido aos excessos que produziu. Pense-se, por exemplo, nos atuais problemas e desastres ecológicos.

O futuro do homem e a sua existência parecem encontrar-se totalmente e irreparavelmente ligados à ciência e à tecnologia de amanhã. Por isso se deve desenvolver uma nova relação com a Fé, que deve ser respeitada e encorajada.

O conflito que surge pode ser encontrado ao nível do homem, da sua existência e da urgência de submeter a ciência aos valores morais humanos. Por outro lado, a Fé não deve mostrar um completo desinteresse em relação à ciência; poderá até tornar-se uma forte fonte de inspiração para ajudar a encontrar um senso de moralidade que irá fazer com que se produzam abundantes frutos de diálogo e unidade no mundo.

A ambiguidade da ciência moderna reside no fato de ter contribuído para o progresso da humanidade, mas que também está na origem de várias tensões, aberrações e desastres.

Cada vez se torna mais evidente que não é possível lidar com o problema do significado da vida, com questões éticas, e com um sistema de valores, no contexto de uma cultura centrada apenas na ciência.

Tradução de Pe. José Manuel Victorino de Andrade do original em inglês para Lumen Veritatis, n. 6, 2009.

As associações privadas de fiéis

Mons. João S. Clá Dias, EP

O Código atual traz a auspiciosa novidade das associações privadas de fiéis. Os cânones 298 a 329 tratam das associações de fiéis, dividindo os textos legislativos em quatro capítulos. No primeiro, expõe as “normas comuns” (cân. 298-311); no segundo, prescreve normas sobre associações públicas de fiéis (cân. 312-320); o terceiro (cân. 321-326) trata das associações privadas de fiéis; por fim, no quarto (cân. 327-329), introduz algumas “normas especiais para as associações de leigos”.

As associações de fiéis — sejam elas integradas por clérigos e leigos, ou só por clérigos, ou só por leigos — são distintas dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica. Sua finalidade é, mediante o esforço em conjunto de seus membros, fomentar uma vida mais perfeita, promover o culto público, ensinar a doutrina cristã, além de outras obras de apostolado, isto é, iniciativas de evangelização, exercício de obras de piedade e caridade, e animação da ordem temporal com o espírito cristão (cf. cân. 298). As associações privadas não podem, obviamente, incluir entre suas finalidades o exercício de atividades que, por sua natureza, são exclusivas da autoridade eclesiástica (cf. cân. 301). Essa restrição, porém, não empana sua natureza eclesial.[1]

Como já foi referido, o cânone 215 garante a todos os fiéis o direito de fundar e dirigir associações. O cânone 299, § 1, reitera esse direito, especificando: “Por acordo privado, os fiéis têm o direito de constituir associações, para obtenção dos fins mencionados no cân. 298, § 1, salva a prescrição do cân. 301, § 1”. E acrescenta no § 2: “Essas associações, mesmo se louvadas ou recomendadas pela autoridade eclesiástica, denominam-se privadas”. E o cânone 321 garante aos fiéis o direito de dirigir e governar as associações privadas, nos termos de seus estatutos.

Em seu Dicionário de Direito Canônico, Salvador (1997, p. 65) designa as finalidades das associações como sendo “as mesmas da missão de Cristo e da Igreja”, da qual todo fiel participa em virtude do Batismo. Têm elas, portanto, fins religiosos.

Chiapetta (1994, p. 67) corrobora essa opinião, afirmando que do cân. 298, § 1 resulta claramente que as associações de fiéis “tendem a fins religiosos, correspondentes ou conexos com a missão da Igreja”. E acrescenta: “As associações cujos objetivos são profanos e temporais (econômicos, sindicais, políticos, profissionais, culturais etc.) não se enquadram nesse dispositivo e, como tais, são estranhas ao ordenamento canônico. Delas se ocupa a legislação civil”.

Em razão do ato fundacional algumas distinções e características se apresentam. Assim, dependendo de quem promova e efetive a fundação, a associação, esta será pública, se foi erigida por a autoridade eclesiástica competente, e privada, se por iniciativa dos fiéis.

Ainda com relação à iniciativa fundacional, cabe destacar que, segundo o cânone 301, § 1, somente a “autoridade eclesiástica competente” pode erigir associações que tenham por objetivo promover o culto público, ensinar a doutrina cristã em nome da Igreja ou alguma outra finalidade cuja obtenção esteja reservada, por sua natureza, à autoridade eclesiástica.

Outro tipo de associação é o caracterizado pelo cânone 302, o qual denomina “clericais” aquelas que satisfazem três condições: “São dirigidas por clérigos, assumem o exercício de ordem sagrada e são reconhecidas como tais pela autoridade competente”. Segundo Ferrer Ortiz (1991, p. 210), essas associações são sempre públicas e o termo “clerical” refere-se não só aos clérigos que as dirigem e ao fato de o ato constitutivo emanar da autoridade eclesiástica, mas também “a uma modalidade de exercício do ministério sagrado por seus membros”.[2]

Ghirlanda (2007, p. 269) chega a uma definição sintética de associação privada nos seguintes termos:

Associação privada é a que, surgida por iniciativa dos fiéis, leigos, clérigos ou religiosos, governada por eles segundo os estatutos próprios, estando sempre em relação com a autoridade eclesiástica que pode também erigi-la em pessoa jurídica privada, se propõe finalidades religiosas ou caritativas, exceto aquelas cuja obtenção é reservada somente à autoridade eclesiástica. A natureza privada da associação não diminui de nenhum modo sua eclesialidade.

O cânone 304 prescreve que todas as associações de fiéis — públicas ou privadas — precisam ter seus estatutos nos quais se determinem sua finalidade, sede, governo, regras para admissão de sócios etc. Os estatutos das associações privadas devem ter pelo menos o reconhecimento, recognitio, da autoridade eclesiástica.

Sem embargo, autores como Chiapetta entendem como legítima a existência de entidades privadas com fins religiosos, sem o reconhecimento dos estatutos. Navarro (2002, p. 431-432) opina no mesmo sentido, mencionando diversos doutrinadores, e afirma ser essa a posição adotada por “algumas Conferências Episcopais”. Entre estas, a Conferência Episcopal Italiana e a Francesa, as quais tratam do assunto em documentos por ele colecionados.

Não só isso: segundo ele, as referidas Conferências Episcopais tomam em consideração até associações que não têm estatutos, ou nem cheguem a ter propriamente estrutura e organização, mas cuja existência seria legítima, em decorrência dos direitos de associação e de reunião.

Consignemos também que as associações privadas podem possuir ou não personalidade jurídica na Igreja. Esta se adquire por um decreto formal da autoridade eclesiástica competente, à qual compete aprovar previamente os estatutos. Em síntese, pode-se dizer que existem três espécies de associações privadas distintas na atual legislação canônica:

– Associações de fato, baseadas exclusivamente na livre vontade dos seus componentes e sem qualquer reconhecimento, aprovação ou ereção por parte da autoridade eclesiástica.

– Associações com estatutos apenas reconhecidos, isto é, sem um decreto formal de aprovação.

– Associações com personalidade jurídica e estatutos aprovados, por meio de decreto formal da autoridade competente.

No que se refere aos efeitos do reconhecimento, só podem ser sujeitos de obrigações e de direitos as associações dotadas de personalidade jurídica (cf. cân. 310).

In: Lumen Veritatis, n. 6.



[1] Fuentes (2002, p. 514) trata de uma delicada distinção entre as associações civis, que tendam a fins “que afetam mais ou menos diretamente à Igreja”, e as associações eclesiais. Para não alongar demasiadamente o presente estudo e desviar o foco que são propriamente as associações privadas de fiéis, deixamos de tratar do interessante assunto aqui e recomendamos a quem nele deseje se aprofundar que consulte o próprio texto de Fuentes.

[2] Diz o autor: “[O Código de Direito Canônico] denomina clericais àquelas associações de fiéis que estão sob a direção de clérigos, fazem seu o exercício da ordem sagrada e são reconhecidas como tais pela autoridade competente (cân. 302). Emprega o termo clerical em sentido técnico-jurídico, fazendo referência não só a quem dirige a associação e ao ato constitutivo da mesma pela autoridade eclesiástica — que lhe confere o caráter de pública — senão também a uma modalidade no exercício do ministério sagrado por parte de seus membros. Por esta razão, uma associação formada exclusivamente por clérigos e destinada a fomentar entre seus sócios uma forma concreta de espiritualidade sacerdotal, no exercício do ministério e sob a dependência do próprio Ordinário, não terá a condição de clerical, será uma associação comum de fiéis e poderá ser tanto pública como privada (Gutiérrez)” (FERRER ORTIZ, 1991, p. 210).

Caráter das inteligências elevadas: notável doutrina de São Tomás de Aquino

 Por que certas verdades simples não se apresentam a todas as inteligências? Como o gênero humano acaba admirando um homem tido por extraordinário, se soube ver certas coisas que o mundo inteiro (ao menos assim parece) poderia ter visto como ele? Isto é perguntar a razão de um segredo da Providência, é questionar por que o Criador concede a alguns espíritos de elite uma grande força de intuição, ou, por assim dizer, uma visão intelectual imediata, recusada ao maior número (de pessoas).

São Tomás expõe sobre esse fato particular uma admirável doutrina. Segundo o santo doutor, o raciocínio é uma marca da fraqueza de nosso espírito. A faculdade de desenvolver as ideias nos foi dada para superar essa debilidade. Os anjos compreendem, mas não raciocinam. Quanto mais uma inteligência é elevada, mais o número de suas ideias diminui, porque ela encerra, num pequeno número desse tipo de coisas, aquilo que as inteligências de um grau inferior repartem em número maior. Assim, os anjos do mais alto grau abraçam, com a ajuda de algumas ideias apenas, um círculo imenso de conhecimentos. O número de ideias vai-se reduzindo sempre nas inteligências criadas, à medida que elas se aproximam do Criador. E Ele, a Ideia por excelência, o Ser infinito, a Inteligência infinita, quer tudo numa mesma ideia, simples, única, imensa, ideia que não é outra que a sua essência. Que sublime teoria. Ela revela um conhecimento admirável dos segredos do espírito e nos sugere inumeráveis aplicações relativamente às faculdades do homem.

De fato, os espíritos de elite não se distinguem pela quantidade de suas ideias. Eles não possuem senão um pequeno número, no qual eles envolvem o mundo. A ave das planícies se fadiga de rasar a terra; ela passa e repassa pelos mesmos lugares, não passando jamais as sinuosidades e os limites do vale onde nasceu. A águia, em seu voo majestoso, sobe, sobe sempre, não se detém antes dos mais altos cumes, e de lá seu olhar acurado contempla as montanhas, os cursos dos rios, as vastas planícies cobertas de cidades populosas, as verdes pradarias e as ricas pastagens.

Há em todas essas questões um ponto de vista culminante, em que se posiciona o gênio. Desta feita, o seu olhar domina e envolve as coisas. Se ele não é dado ao comum dos homens de se elevar até lá numa primeira volta, ao menos ele deve tender para isso sem cessar. Os resultados pagam o esforço ao cêntuplo. Como se pode observar, toda a questão, ou mesmo toda a ciência, resume-se em um pequeno número de princípios essenciais, dos quais todos os outros decolam. Devem-se compreender esses princípios e o resto se tornará simples e fácil, e não nos deteremos mais em detalhes (escusados).

Apresente ao espírito o objeto simplificado o mais possível e desembaraçado por assim dizer, de toda a folhagem inútil. A sua singeleza exige. Para obter que ele multiplique sua atenção, evite exigir muito dele. Trate de circunscrevê-lo. Esse método lhe facilita a compreensão das coisas, dá às suas percepções a exatidão e a lucidez, e ajuda possantemente a memória.

Traduzido do Francês. BALMES, Jaime. Art d’arriver au vrai: Philosophie pratique. Paris: Auguste Vaton, 1850. p. 129-140 (Capítulo XVI), por Pe. José Victorino de Andrade, EP. In: Lumen Veritatis, n. 7, 2009.

O agir e o contemplar no ensinamento de São Tomás

Diác. Inácio de Almeida, EP

Diversos são os trechos da obra de São Tomás em que ele versa sobre a Contemplação, como o IV artigo do opúsculo De Magistro (questões Discutidas sobre a Verdade, XI) que tem por título: “Se ensinar é ato da vida contemplativa ou ativa”. O Angélico também abordou esse tema em seus Comentários ao III Livro das Sentenças de Pedro Lombardo (Distinção XXV, Q. I, A. 2) quando analisava se a vida contemplativa consistia somente num ato do entendimento. Entretanto, foram nas questões 179 a 182 da II- IIa, da Suma Teológica, que ele tratou mais largamente desta temática.

Convém recordar que, de acordo com Camello (2000, p. 18), quando São Tomás escrevia sobre a natureza ativa ou contemplativa do ensino, tinha bem presente a polêmica suscitada pelos mestres seculares da Universidade de Paris, que discutiam sobre a verdadeira natureza do ensino, e se o magistério convinha somente aos homens de vida ativa ou também àqueles de vida contemplativa ia se desenvolvendo um surdo conflito entre professores do clero secular e os mestres que provinham das ordens religiosas. O que se há de preferir: a vida ativa ou a vida contemplativa? A quem está reservada uma e outra? Ensinar é missão de ativos ou de contemplativos? Não parece inadequado que se pense nos desdobramentos teóricos do conflito político-universitário, como fazendo pano de fundo para o texto de São Tomás.

 No Doutor Angélico, o ensino e a pregação, a transmissão daquilo que se contemplou passará a fazer parte da vida contemplativa. O ideal da vida cristã será uma vida na qual o contemplativo, movido pelo dinamismo suscitado pela própria contemplação, é capaz de deixar “a Deus por Deus”, ou seja, para servi-Lo nos irmãos. A vida ativa, na concepção tomista, é ordenada para o bem do próximo, sendo mais perfeitamente levada à luz da contemplação quando se procura a verdade suprema que é Deus.

Forment (2005) afirma que a supremacia da contemplação apresenta-se como fundamental no pensamento de São Tomás. Seu ideal de perfeição se baseia na primazia da contemplação sobre a ação, embora reconhecendo que esta última é necessária, porque o homem não é só espírito e deve adquirir sua perfeição como homem.

Sem embargo, a ação não se revela como oposta à contemplação, senão que é um instrumento seu, sua preparação, ou até mesmo um de seus efeitos. Por isso, São Tomás declara que quando as necessidades nos levam por um momento a deixar a contemplação, não quer dizer que devemos abandoná-la por completo:

Às vezes, premidos pelas necessidades, temos de deixar a contemplação para nos darmos às obras da vida ativa; mas não de modo que devamos abandonar completamente a contemplação. Por isso diz Agostinho: O amor da verdade deseja um santo repouso. Mas, a caridade, se for preciso, faz-nos aceitar um justo trabalho, isto é, o da vida ativa. Se ninguém, contudo, nos impuser essa carga entreguemo-nos ao estudo e à contemplação da verdade. Mas, sendo-nos ela imposta, a caridade mesmo nos impõe a necessidade de aceitá-la. Nem por isso, contudo, devemos abandonar de todo a doce contemplação da verdade, não seja que, privados dessa suavidade, sintamos a opressão da necessidade. Por onde é claro que quem é chamado da vida contemplativa para a ativa, não sofre uma subtração, mas deve fazer antes uma adição (q. 182 II-IIa, a.1).

Com base nesta compreensão da contemplação, se entende a defesa que o Angélico faz do ideal de vida inaugurado por São Domingos e continuado pelos frades Dominicanos. Assim, São Tomás citado por Velasco (2003, p. 95) falando desse centro da vida espiritual que é o amor, escreverá que:

No amor devem-se levar em conta estes três graus. É a Deus a quem devemos amar por si mesmo. Mas há muitos que com gosto e sem grande pesar se afastam da contemplação de Deus, para seguir atrás dos negócios terrenos. Nestes só se torna presente um pequeno amor. Outros, em compensação, sentem na contemplação de Deus uma alegria tal que não podem abandonar nem para ocupar-se do serviço de Deus para a salvação do próximo. Finalmente, há outros que conseguem um grau tão alto de amor que, embora sintam sua alegria maior na contemplação de Deus, deixam-na para servir a Deus no cuidado pela salvação do próximo. Esta foi a perfeição de Paulo. Esta é a perfeição própria dos prelados e pregadores.

Tomás “viveu a vida de um mestre e com toda a entrega que era capaz” (PIEPER, 2005). Na Suma Contra os Gentios se encontra uma discreta indicação do que ele considerava como a principal tarefa de sua vida, fazendo suas as palavras de Santo Hilário: “Sou consciente de que o principal dever de minha vida para com Deus é esforçar-me para que minhas palavras e todos meus sentidos falem dele” (2007, p. 40). Aquela perfeita união que havia em São Tomás entre a vida de oração e a vida do estudo era “o segredo de sua santidade”:

Eis aqui o segredo do singular esplendor de seu magistério. O magistério — nos ensina ele mesmo — é uma obra da vida ativa e é preciso confessar bem alto que às vezes não se encontram nele mais que as cargas e os estorvos próprios da ação, se oculta também ali um perigo para a vida do espírito, na pesada revolta dos conceitos que constitui o labor pedagógico e que está sempre exposta, se não se a vigia constantemente, a fazer-se material e mecânica. “São Tomás foi um professor completo, porque foi mais que um simples professor, já que nele o discurso descendia por inteiro dos simplíssimos cumes da contemplação” (MARITAIN, 1942, p. 98-99).

São João da Cruz diz algo semelhante quando trata daqueles que têm a função de ensinar. Este autor afirma que a grande força de quem é mestre não está propriamente nas palavras, mas sim na vida interior, porque o ensinar é um exercício mais espiritual do que propriamente vocal, já que embora seja exercido por meio da palavra, não teria verdadeira força nem eficácia se não viesse da vida interior. São João da Cruz (1984) conclui dizendo

Por mais alta que seja a doutrina, de si não causa ordinariamente mais proveito do que o que tiver de espírito. Por isso que se diz: “Tal mestre, tal discípulo”. E é por isso que vemos geralmente, pelo menos tanto quanto podemos julgar neste mundo, que quanto melhor é a vida (dos que ensinam), tanto maior é o fruto que tiram; (quanto aos demais), embora tenham dito maravilhas, logo são esquecidos (Subida do Monte Carmelo; L. III, C. 45).

Desta forma é que se entende melhor toda a eficácia do ensino de São Tomás, pois de acordo com Grabmann (apud AMEAL, 1947, p. 130) “a figura científica de São Tomás não se pode separar da grandeza ético-religiosa de sua alma; em Tomás, não se pode compreender o investigador da verdade sem o Santo”. Para o Angélico, embora a contemplação de Deus nesta vida seja imperfeita se comparada com a celeste, contudo, é mais agradável que qualquer outra contemplação por causa da excelência do objeto contemplado, e citando Aristóteles, diz que:

As nossas teorias são fracas relativamente a essas nobres e divinas substâncias: mas, embora o que delas conhecemos seja pouco, contudo, a elevação mesma desse conhecimento nos causa um prazer maior que tudo o mais que ele possa abranger. E o mesmo ensina Gregório: “A vida contemplativa é muito amável e cheia de doçura, eleva a alma acima de si mesma, abre-nos os tesouros celestes e torna patente o mundo espiritual aos olhos da alma” (II-IIa q.180 a.7).

São Tomás faz suas as palavras de Santo Agostinho, quando este explica o trecho do Evangelho de Lucas que narra a visita de Jesus à casa de Marta e Maria:

‘No princípio era o Verbo’ a quem Maria ouvia. ‘O Verbo se fez carne’ a quem Marta servia. […] Escolham para si a melhor parte, isto é, da vida contemplativa; exerçam a palavra, abeberem-se da doce doutrina, cultivem a ciência da salvação… (Marta), tu não escolheste algo de mal, entretanto, (Maria) escolheu a melhor”.

 E citando São Gregório conclui: “Passada esta vida, com ela desaparece a vida ativa; ao contrário, começada nesta vida, a vida contemplativa se consuma na pátria celeste” (II, II, q. 181, a. 4).

Dado o que acima foi dito, pode-se concluir que São Tomás foi eminentemente contemplativo e que sua obra contém numerosos ensinamentos sobre a prática da oração e da contemplação. Por isso, seu ideal de vida bem poderia ser formulado num lema que resume o exercício e a compreensão da contemplação: Contemplata aliis tradere[1], transmitir aos outros as realidades que se contemplam.

In: Lumen Veritatis, n. 5, 2008.


[1] Suma Teológica, IIa IIae, q. 188, a. 6.

O homem deve ter razões para viver e para morrer, e não será a ciência a dá-lo a ele

Florença - Galileu GalileiPe. François Bandet, EP

“O homem deve ter razões para viver e para morrer, e não será a ciência a dá-lo a ele”, afirmou o prêmio Nobel para a Medicina, François Jacob. 1

A missão da Igreja é oferecer um compromisso ético aos modernos cientistas para o bem da humanidade. É uma questão de dignidade e respeito para a existência humana.

A cristandade — e especialmente a Fé católica — é a religião que dá o verdadeiro significado ao mundo material porque é a religião que é baseada na criação e na encarnação, na qual o mundo é entendido como fruto de um Deus inteligente e pessoal. “Aquele que conservar a vida para si há de perdê-la; aquele que perder a sua vida por causa de mim há de salvá-la” (Mt 10, 39). Perder a vida na procura de Deus significa o abandono à Verdade. A Revelação cristã, embora sobrenatural, não paralisa o crente, mas o encoraja à procura pela Verdade, pelo uso da razão iluminada pela Fé. A missão da teologia é manter o espaço do transcendente aberto num mundo cada vez mais pragmático e materialista. A pior coisa que poderia acontecer seria o cientificismo poder fechar a possibilidade do transcendente e a redução da realidade ao que apenas pode ser mensurado e observado.

A teologia deve promover o diálogo com a ciência a fim de não perder o seu lugar na conquista pelo entendimento. A revolução científica é insuficiente para mostrar o significado da vida e incutir uma esperança concreta. Após o escurecer da consciência, o homem necessita entender o seu lugar na criação para não cair em desespero. A teologia e a Fé podem providenciar uma realista e razoável explicação para o lugar do homem na terra. Porque há uma realidade na vida do homem que não é sujeito a ser mesurado ou verificado: o mundo das ideias, afeições, amizade e amor.

Muitos anos atrás, Santo Anselmo (†1109) descreveu a pesquisa teológica como fides quaerens intellectum,2 a Fé procurando entender. Acreditando em Deus, nós aprofundamos o nosso correto entendimento da realidade tal como nos é apresentada. A experiência é realidade, e ambas, Fé e ciência, podem trabalhar juntas para melhorar o entendimento, mas apenas se souberem respeitar-se mutuamente.

Traduzido do original em inglês por José Victorino de Andrade  com autorização e revisão do autor.

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1 Cf. Apud B. Matteucci, Scienza, Fede e Ideologie, in Scienza e Fede, 1983, n. 9. 39.

2 St. Anselm of Canterbury, Proslogion, Prooemium, in ALAMEDA,  J., ed., Obras completas de San Anselmo. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1952. 82.

O principal direito do ser humano

viewPe. Leopoldo Werner, EP

Enquanto ser vivo, o homem deve respeitar o ser que recebeu de Deus, o que o obriga a zelar pela manutenção de sua vida e de sua saúde e o proíbe matar-se.

Como corolário desta lei, não está em nosso poder o matar ou ferir nossos semelhantes, a não ser em legítima defesa, em determinadas condições. Este direito à vida está fundamentado na dignidade da pessoa humana, e ele se estende desde a concepção até sua morte natural. Esta dignidade diz respeito, por sua vez, aos bens do espírito tanto quanto aos bens do corpo, pois enquanto se está nesta vida eles são inseparáveis.

O direito à vida tem seus corolários: tudo o que se opõe à vida, à sua integridade física e moral, sua dignidade como pessoa humana, constituem violações que prejudicam gravemente o progresso da civilização, degradam os costumes e as instituições humanas e ofendem gravemente a honra devida ao Criador.

O mesmo Concílio Vaticano II, no quadro do devido respeito pela pessoa humana, oferece uma ampla exemplificação de tais atos: ‘Tudo quanto se opõe à vida, como são todas as espécies de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador’ (JOÃO PAULO II, 1993: 80).

Estes mesmos conceitos são também defendidos por homens de vários campos do saber. É como explica o conhecido jurísta brasileiro Ives Gandra:

“É evidente que o direito à vida implica outros direitos que lhe permitam ser exercido, que também são de direito natural, como o direito à educação, à liberdade de associação, ao trabalho, à saúde, à dignidade pertinente ao ser humano, à intimidade, a não ser afastado da convivência social, senão se lhe trouxer mal superior, a partir dos indícios de sua atuação pregressa.

O direito à vida é o principal direito do ser humano. Cabe ao Estado preservá-lo, desde a sua concepção, e preservá-lo tanto mais quanto mais insuficiente for o titular deste direito. Nenhum egoísmo ou interesse estatal pode superá-lo. Sempre que deixa de ser respeitado, a história tem demonstrado que a ordem jurídica que o avilta perde estabilidade futura e se deteriora rapidamente”. (GANDRA, 2009: 3)