Pregação de João e Batismo de Jesus

batismo-jesusJosé Afonso Sulzbach de Aguiar, EP

Havia cerca de quatro séculos que nenhum profeta fazia ouvir sua voz em Israel quando, no 15º ano do reinado de Tibério César, aproximando-se os dias anunciados por Daniel em relação à vinda do Messias, um súbito alvoroço percorreu Jerusalém e toda a Judeia. Nas margens sagradas do Jordão – o legendário rio, palco de deslumbrantes milagres e grandiosas cenas – aparecera um varão penitente, um enviado de Deus no espírito de Elias. João Batista era seu nome.

            Modelo de anacoreta até o momento de cumprir sua missão, o filho de Zacarias e Isabel abandonou a longa, austera e mística solidão em que vivera e desceu até o vale do Jordão, para onde convergiam de todos os lados caravanas, a fim de aí pregar palavras de um religioso temor: “Fazei penitência porque está próximo o Reino dos Céus” (Mt 3, 2).

            Multidões de israelitas afluíam para ouvi-lo e receber o seu batismo, símbolo da purificação do coração necessária para merecer o Reino dos Céus. O batismo de João – que era de preparação, de penitência, não ainda o Sacramento – produzia um afervoramento espiritual como nunca se vira antes em Israel. “Pessoas de Jerusalém, de toda a Judeia e de toda a circunvizinhança do Jordão vinham a ele. Confessavam seus pecados e eram batizados por ele nas águas do Jordão” (Mt 3, 5-6).

            E o arauto do Altíssimo apresentava- se sempre como mero precursor, dizendo sem cessar: “Eu vos dou um batismo de água, para que façais penitência. Mas, Aquele que virá depois de mim é mais poderoso do que eu; eu não sou digno de desatar a correia de Suas sandálias; Ele vos batizará no fogo e no Espírito Santo” (Mt 3, 11).

            Seis meses havia que o santo Precursor preparava os filhos de Israel para o encontro com o Messias, quando foi Jesus ao Jordão “a fim de ser batizado por ele” (Mt 3, 13). Ao notar a presença do Inocente no meio da multidão, João inclinou-se e Lhe disse: “Eu devo ser batizado por Ti e Tu vens a mim!” (Mt 3, 14). Jesus respondeu-lhe: “Deixa por agora, pois convém que cumpramos toda a justiça”. E João, obediente, O batizou (cf. Mt 3, 13-15).1

            Quando Jesus saiu da água, o Céu se abriu e o Espírito Santo pairou sobre Ele na forma de uma pomba. “E ouviu-se dos Céus uma voz: Tu és o Meu Filho muito amado; em Ti ponho as Minhas complacências” (Mc 1, 11). Grandiosa manifestação divina com a qual o Pai, o Filho e o Espírito Santo, unidos na obra da Redenção proclamavam a instituição do Sacramento mais necessário para a nossa Salvação.2

 

            Os Sacramentos, o que são?

            De acordo com o Catecismo da Igreja Católica, “os Sacramentos são sinais eficazes da graça, instituídos por Cristo e confiados à Igreja, por meio dos quais nos é dispensada a vida divina. Os ritos visíveis, sob os quais eles são celebrados, significam e realizam as graças próprias de cada Sacramento. Produzem fruto naqueles que os recebem com as disposições exigidas”.3

            No mesmo sentido – embora de forma mais sintética – se expressa o conhecido teólogo padre Antonio Royo Marín, OP, que afirma serem os Sacramentos “sinais sensíveis instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo, para significar e produzir a graça santificante naquele que os recebe dignamente”.

            Acompanhemos o douto dominicano na explicação dos termos desta breve e precisa definição.

            Os Sacramentos são, em primeiro lugar, sinais. – Ou seja, remetem a algo diferente de si mesmos, como a balança simboliza a justiça, ou a bandeira representa a Pátria.

            São sinais sensíveis. – Podem, portanto, ser percebidos pelos sentidos corporais. E o que acontece, por exemplo, com a água no Batismo, o pão e o vinho na Eucaristia, ou o óleo na Crisma e na Unção dos Enfermos.

            Foram instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo. – De acordo com São Tomás, “institui algo quem lhe dá vigor e força”. 5 Assim sendo, somente Nosso Senhor pode ser causa dos Sacramentos, e não a Igreja, “pois a graça santificante brota, como de seu manancial único, do Coração transpassado de Cristo”.6 Segue-se também daí que, como ensina São Pio X, não cabe à Igreja, “inovar nada acerca da substância mesma dos Sacramentos”.7

            Para significar e produzir a graça santificante. – A água do Batismo, por exemplo, lava o corpo do batizado para representar a purificação de sua alma, que fica limpa de todo pecado. E a Eucaristia, nos é dada sob a forma de alimento corporal, para simbolizar o alimento espiritual que a alma recebe pela presença real de Cristo em corpo, sangue, alma e divindade.

            Naquele que os recebe dignamente. – Para que os Sacramentos produzam a graça santificante é necessário que quem os recebe não oponha a eles nenhum obstáculo ou empecilho voluntário. Daí que seja requerido possuir o estado de graça para receber a Confirmação, Eucaristia, Unção dos Enfermos, Ordem e Matrimônio. E estar arrependido, ao menos com atrição sobrenatural,8 para receber a absolvição no Sacramento da Penitência, ou o Batismo quando se trata de pessoa em idade de uso da razão.

            Cabe notar, por fim, que os Sacramentos têm um caráter universal; Jesus Cristo não os instituiu unicamente para alguns escolhidos, mas adotisim para proveito de todos os homens.

                       

            Vida natural e vida sobrenatural

            Levando mais longe a analogia entre o plano simbólico e o plano da graça, São Tomás de Aquino estabelece na Suma Teológica um interessante paralelo entre a vida natural e a vida sobrenatural produzida pelos Sacramentos.9

            Enquanto, na vida natural, o homem é gerado, cresce e se alimenta; na vida sobrenatural, a alma nasce pelo Batismo, atinge a estatura e a força perfeitas pela Confirmação e nutre-se pela Eucaristia. E “como o homem incorre às vezes em enfermidade corporal ou espiritual, sendo esta o pecado, é necessário que seja curado da doença”.10 É esta a função da Penitência (Reconciliação), que restabelece a saúde, e da Unção dos Enfermos, que limpa a alma dos vestígios e sequelas deixados em sua alma pelo pecado.

            A esses cinco Sacramentos unem-se o do Matrimônio e o da Ordem – sendo este último análogo ao poder que recebe um homem para “reger a multidão” e exercer funções públicas – completando assim o número de sete.

            “A partir daí – conclui o Doutor Angélico – fica clara a questão do número dos Sacramentos, também enquanto visa à rebelião do pecado, pois o Batismo se dirige contra a falta de vida espiritual; a Confirmação, contra a fraqueza de alma que se encontra nos recém-nascidos; a Eucaristia, contra a fragilidade da alma diante do pecado; a Penitência, contra o pecado atual cometido depois do Batismo; a Unção dos Enfermos, contra as sequelas do pecado não suficientemente tiradas pela Penitência, ou provenientes da negligência ou da ignorância; a Ordem, contra a desorganização da multidão; o Matrimônio, contra a concupiscência pessoal e contra o desaparecimento da humanidade que acontece pela morte”.11

            “Nada permanece, portanto, à margem da influência benfazeja dos Sacramentos”, observa o padre Antonio Royo Marín.”Por meio deles a vida humana toda é santificada e o homem encontra-se provido com divina abundância de tudo quanto necessita para assegurar sua salvação eterna”.12

 

            O único Sacramento indispensável para a salvação

            Na tradicional relação estabelecida por São Tomás, o Batismo, novo nascimento espiritual, é o primeiro dos sete Sacramentos.13 Mas ele o é também do ponto de vista da necessidade, pois é o único Sacramento indispensável para cada um de nós, individualmente, alcançarmos a Bemaventurança eterna.14

            Assim o afirma com toda precisão o próprio São Tomás: “É pois, claro, que todos são obrigados ao Batismo e que, sem ele, não pode haver salvação para os homens”.15 E mais bela e claramente ainda o próprio Nosso Senhor: “Se alguém não renasce na água e no Espírito Santo, não pode entrar no Reino dos Céus” (Jo 3, 5).16

            Ora, “convém à misericórdia de quem ‘quer que todos os homens se salvem’, que permita encontrar-se facilmente o remédio para a salvação”.17 Daí que a matéria do Batismo seja uma matéria comum, a água, que qualquer um pode obter. E daí também que o ministro do Batismo, em circunstâncias excepcionais, possa ser qualquer pessoa, mesmo um não ordenado, homem ou mulher, e até mesmo um herege ou um pagão.18 Para o Sacramento ser válido, a Igreja só exige que seja utilizada a matéria do Sacramento, observada a forma e aplicada a intenção de fazer o que Ela própria faz, abstraindo de qualquer heresia ou infidelidade.

 

            Batismo e Pecado Original

            Convêm, por fim, não esquecer que a necessidadeeste   Sacramento, conforme explica Besson, “é consequência dos efeitos do Pecado Original e das restituições prometidas pelo Homem-Deus”.19

            Cada um de nós pecou em Adão, e a morte entrou em nossa alma com o pecado; do mesmo modo, cada um de nós foi salvo no novo Adão, e para que a vida dEle entre na nossa alma é preciso que recebamos a graça do Batismo. “Sob as águas do Batismo, a mancha primitiva é apagada da fronte da humanidade; e com o título de filho batizado e regenerado, o homem decaído recupera seus direitos e sua herança celestial. Esta necessidade abrange todos os homens”.20

            Por isso, pouco tempo após seu nascimento, a criança é levada às fontes batismais por um padrinho que responde por sua Fé, e curva sob a água santa sua fronte ainda marcada com o pecado original.21 Consumado o rito, a criança ergue-se livre, inocente e imaculada, com o indelével sinete da ordem sobrenatural. Era escrava, e seus grilhões foram quebrados; estava morta, e foi ressuscitada.

 

            Dois principais efeitos

            Quais são os principais efeitos desse Sacramento?

            Em seu já mencionado livro Somos hijos de Dios, o padre Royo Marín enumera sete, com a precisão própria do teólogo. O Catecismo da Igreja Católica, sob uma focalização mais pastoral, afirma serem principalmente dois: a purificação dos pecados e o novo nascimento no Espírito Santo.22

            Pouco há a afirmar em relação ao primeiro deles, senão que a purificação é tão completa que “todos os pecados são perdoados: o pecado original e todos os pecados pessoais, bem como todas as penas do pecado”.23

            Mas além de assim limpar a alma, este Sacramento “faz do neófito uma criatura nova, um filho adovo de Deus que se tornou participante da natureza divina, membro de Cristo e co-herdeiro com Ele, templo do Espírito Santo”.24

            Com efeito, o Batismo nos torna membros do Corpo de Cristo e nos incorpora à Igreja. Através dele, a vida de Jesus Cristo circula em todo o Corpo, levando Sua graça capital a todos os membros e permitindo-lhes alcançar a graça e as virtudes: “Da cabeça que é Cristo deriva sobre Seus membros a plenitude da graça e da virtude, conforme o Evangelho de João: ‘De Sua plenitude todos nós recebemos’ (Jo 1, 16)”.25

            Assim, na ordem da satisfação, da redenção, do mérito, da oração, do sacerdócio: tudo se tornou comum entre Jesus Cristo e nós, porquanto a Igreja inteira, Corpo Místico de Jesus Cristo, pode ser considerada como uma só pessoa com Ele, conforme ensina São Tomás de Aquino.26

 

            A Paixão de Cristo é comunicada ao neófito

            As consequências desta doutrina têm um alcance maior do que se pensa, a ponto de São Paulo afirmar que pelo Batismo, o crente comunga na morte de Cristo, é sepultado e ressuscita com Ele.27 Sobre isto, comenta São Tomás: “Pelo Batismo somos incorporados na Paixão e Morte de Cristo. Diz Paulo: ‘Se estamos mortos com Cristo, cremos que também viveremos com Ele’.

            Demonstra-se assim que a todo batizado a Paixão de Cristo é comunicada para servir de remédio, como se ele próprio tivesse sofrido e morrido.

            Ora, a Paixão de Cristo é satisfação suficiente para todos os pecados de todos os homens. Por isso, quem é batizado, é liberto do reato de toda pena devida por seus pecados, como se ele próprio tivesse oferecido uma satisfação suficiente por todos os seus pecados”.28

 

Somos filhos de Deus

            Mas talvez o mais tocante e assombroso efeito do Batismo seja produzir a filiação divina.

            Deus tem apenas um filho segundo a Sua natureza, que é o Verbo Encarnado. Só a Ele o Pai transfere eternamente a natureza divina em toda a sua infinita plenitude. Porém, a graça santificante – que é um dos efeitos do Batismo – confere aos neófitos uma participação real e verdadeira nessa filiação “por uma adoção intrínseca, a qual põe em nossa alma, física e formalmente, uma realidade absolutamente divina, que faz circular o próprio sangue de Deus nas veias de nossa alma. Graças a este enxerto divino, a alma se faz participante da mesma vida de Deus. Trata-se de uma verdadeira geração espiritual, um nascimento sobrenatural que imita a geração natural e recorda, por analogia, a geração eterna do Verbo de Deus”.29

            Em uma palavra, a graça santificante, para a qual o Batismo nos abre as portas, não nos dá apenas o direito de nos chamarmos filhos de Deus, senão que nos faz tais em realidade. “Inefável maravilha – conclui o padre Royo Marín – que pareceria inacreditável se não constasse expressamente na divina Revelação”.30 Poderia Deus ter feito mais algo por nós?

 

Notas

1 Durante sua recente visita ao lugar onde fora batizado Jesus, o Papa Bento XVI explica o porquê deste gesto do Redentor: “Jesus se colocou na fila com os pecadores e aceitou o batismo de penitência de João como um sinal profético da sua própria Paixão, Morte e Ressurreição para o perdão dos pecados” (10/5/2009).

2 São Tomás afirma que este Sacramento foi instituído quando Cristo foi batizado, se bem que a necessidade de recebê-lo só tenha sido notificada à humanidade depois da sua Paixão e Ressurreição (cf. ST III, q. 66, a. 2).

3 CIC n. 1131-1132.

4 ROYO MARÍN, OP, Pe. Antonio. Somos hijos de Dios. Madrid: BAC, 1977, p. 93.

5 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 64, a. 2. Cf. Denzinger – Hünermann, n. 1864.

6 ROYO MARÍN, OP, Op. cit., p. 93-94. 7 Denzinger – Hünermann, n. 3556.

8 A atrição, ou contrição imperfeita, é o arrependimento suscitado pelo temor do castigo. Para melhor conhecer as diferenças entre atrição e contrição perfeita, pode-se consultar Arautos do Evangelho, n. 84, dezembro 2008, p. 34-35.

9 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 65, a. 1.

10 Idem, q. 65, a. 1, resp.

11 Idem, ibidem.

12 ROYO MARÍN, OP, Op. Cit., p. 94.

13 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 65, a. 2, resp.

14 Cf. Idem, q. 65, a. 3, ad. 3; a. 4, resp. A Penitência e a Ordem sacerdotal são também de necessidade absoluta, mas a primeira só é requerida para aqueles que pecaram depois do Batismo, e a segunda é imprescindível para a Igreja, não para os indivíduos (cf. ST III, q. 65, a. 4).

15 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, III q. 68, a. 1, resp.

16 Não trataremos neste artigo do batismo de sangue (dos mártires não batizados) nem do de desejo, pois embora produzam os mesmos efeitos do Batismo sacramental, não são eles sacramentos propriamente ditos (cf. ST III, q. 66, a. 11, ad. 2). O leitor interessado em conhecer o que São Tomás afirma sobre ambos, pode consultar o art. 12 da questão 66 (batismo de sangue) e o art. 2 da q. 68 (batismo de desejo). Sobre o problema da crianças não batizadas que não alcançaram o uso da razão, ver a Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé de 19 de abril de 2007.

17 Cf. AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 67, a. 3.

18 Cf. Idem, q. 67, a. 3-5.

19 BESSON, Mgr. Louis François Nicolas. Les Sacrements. Paris: Reaux- Bray, 1886, p. 116.

20 Idem, ibidem.

21 Sobre a conveniência de não postergar o Batismo das crianças ver Suma Teológica, III, q. 68, a. 3 e 9.

22 Cf. CIC §1262. O Rvmo. Pe. Royo Marín, em sua obra Somos hijos de Dios, faz a relação sistemática dos efeitos do Batismo que reproduzimos no Box anexo.

23 CIC n. 1263.

24 CIC n. 1265.

25 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, III, q. 69, a. 4. Afirma também São Tomás: “Pelo Batismo renascemos para a vida espiritual, própria dos que crêem em Cristo. […] Ora, a vida e a união dos membros com a cabeça da qual recebem o sentido e o movimento” (Suma Teológica, III, q. 69, a. 5).

26 Cf. Idem: “Deve-se dizer que cabeça e membros são como uma única pessoa mística. Portanto, a satisfação de Cristo pertence a todos os fiéis como membros Seus” (ST III, q. 48, a.2 ad 1). “Toda a Igreja, que é o Corpo Místico de Cristo, é considerada como uma só pessoa com sua cabeça, que é Cristo” (ST III, q. 49, a. 1 Resp).

27 Cf. CIC n. 1227.

28 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, III, q. 69, a. 4, Resp.

29 ROYO MARIN, OP, Op. cit., p. 20-21.

30 Idem, p. 21.

(Revista Arautos do Evangelho, Jul/2009, n. 91, p. 22 à 27)

O Filho de Deus com a Sua encarnação uniu-se, de certo modo, a todo o homem

Diác. Francisco Berrizbeitia, EP

Trata-se aqui de um antigo ensinamento enraizado no Novo Testamento[1] e que o Concílio Vaticano II propõe: “O Filho de Deus com a encarnação uniu-se, de certo modo, a todo o Homem.” Isto nos esclarece que, por um lado, a união hipostática só a fez Cristo uma vez com a Encarnação na Sua humanidade em concreto e, portanto, essa hipóstase está completa nEle e não com a humanidade.

Podemos dizer também que graças a esse “certo modo” que se deu com a Encarnação, a união com toda a humanidade se fez no plano salvífico, pois constitui a base pela qual Cristo elevou o homem de sua miséria fazendo-o partícipe de Sua vida divina. Por isso, a Igreja ao proclamar na sua liturgia “O félix culpa[2], canta a alegria do Povo de Deus por, ao pecarem nossos primeiros pais, o Verbo fazer-se carne e resgatar o gênero humano com sua morte e ressurreição e nos conceder o dom do Espírito. Uma coisa está clara e é o mistério, a grandeza e a beleza a qual Cristo elevou o homem de sua prostração a participar de um convívio com a Trindade, a uma comunio com ela. Sem falar da promessa da Sua presença diária na Eucaristia. Jesus não se deixa vencer em graça e generosidade para com o homem.

A tradição dos primeiros padres da Igreja quis explicar-nos o contexto na figura do Bom Pastor e da ovelha perdida como símbolo de toda a humanidade pecadora. Assim o descreve Gregório de Nisa (contra Apoliarem XVI):[3]

Esta oveja somos nosotros, los hombres. Que nos hemos separado con el pecado de las cien ovejas razonables. El Salvador carga sobre las espaldas la oveja toda entera.  Porque no se ha perdido solo una parte, sino porque se había perdido toda entera, por eso toda entera ha sido acompañada. El pastor la lleva en sus espaldas, o sea en su divinidad. Por esta asunción llega a ser una sola cosa con Él.

É interessante constatar como esta idéia de Cristo estava enraizada profundamente na Igreja, de tal forma que as interpretações mais antigas na arte paleocristã, que se conhece de Cristo, pintam-no ou esculpem-no como o Bom Pastor, levando sobre os seus ombros a ovelha. Também na Liturgia está assinalado o quarto domingo depois da Páscoa, justamente como a festividade do Bom Pastor.

Santo Agostinho comenta o fato, também resgatado da tradição de que:

Cuando ora el cuerpo del Hijo no se separe de sí a su Cabeza, de tal manera que ésta sea un solo salvador de su cuerpo, nuestro Señor Jesucristo Hijo de Dios, que ora por nosotros, ora en nosotros y es invocado por nosotros.[4]

Esta constitui a misteriosa conexão que se estabeleceu na Encarnação de Cristo, como cabeça que salva o corpo e que, sendo cabeça, ficou indissoluvelmente unida ao corpo, de tal maneira que a plenitude deste último, causada pela cabeça, constitui a salvação do mesmo Cristo, já não pensável sem o corpo da sua Igreja. Portanto, temos dois movimentos: um da cabeça ao corpo e outro do corpo à cabeça. Nada do que ocorre na cabeça é alheio ao corpo e vice-versa.

Conclui-se com um pensamento do teólogo, hoje Papa Bento XVI, em 1968, sobre a GS 22:

Pela primeira vez num documento da Igreja temos uma versão completamente nova da teologia cristocêntrica. Sobre a base de Cristo, esta ousa apresentar a teologia como antropologia e se mostra radicalmente teológica pelo fato de ter incluído o homem no discurso de Deus por meio de Cristo, manifestando deste modo a profunda unidade da teologia.[5]


[1] Ver Jo 1, 12-14; Fl 2, 5-7; 4, 4-7; Ef 4, 20-23; Hb 2, 17; 1Jo 15, 19.

[2] O félix culpa, quae talem et tantum meruit habere redemptorem (Precónio da Vigília Pascal).

[3] LADARIA L.,  “Jesucristo, salvación de todos”, San Pablo-U.Comillas, Madrid 2007, p. 105.

[4] Idem, p. 106.

[5] GALLAGHER M., “Ludici per il corso TFC004”7, PUG, Roma 200, p. 10. (tradução nossa)

A Imaculada Conceição: “Piedosa crença” que se tornou dogma

imaculadaMons. João Clá Dias, EP

Os mais antigos Padres da Igreja, amiúde se expressam em termos que traduzem sua crença na absoluta imunidade do pecado, mesmo o original, concedida à Virgem Maria. Assim, por exemplo, São Justino, Santo Irineu, Tertuliano, Firmio, São Cirilo de Jerusalém, Santo Epifânio, Teódoro de Ancira, Sedulio e outros comparam Maria Santíssima com Eva antes do pecado. Santo Efrém, insigne devoto da Virgem, A exalta como tendo sido “sempre, de corpo e de espírito, íntegra e imaculada”. Para Santo Hipólito Ela é um “tabernáculo isento de toda corrupção“. Orígenes A aclama “imaculada entre imaculadas, nunca afetada pela peçonha da serpente“. Por Santo Ambrósio é Ela declarada “vaso celeste, incorrupta, virgem imune por graça de toda mancha de pecado”. Santo Agostinho afirma, disputando contra Pelágio, que todos os justos conheceram o pecado, “menos a Santa Virgem Maria, a qual, pela honra do Senhor, não quero que entre nunca em questão quando se trate de pecados”.
Cedo começou a Igreja – com primazia da Oriental – a comemorar em suas funções litúrgicas a imaculada conceição de Maria. Passaglia, no seu De Inmaculato Deiparae Conceptu, crê que a princípios do Século V já se celebrava a festa da Conceição de Maria (com o nome de Conceição de Sant’Ana) no Patriarcado de Jerusalém. O documento fidedigno mais antigo é o cânon de dita festa, composto por Santo André de Creta, monge do mosteiro de São Sabas, próximo a Jerusalém, o qual escreveu seus hinos litúrgicos na segunda metade do século VII.
Tampouco faltam autorizadíssimos testemunhos dos Padres da Igreja, reunidos em Concílio, para provar que já no século VII era comum e recebida por tradição a piedosa crença, isto é, a devoção dos fiéis ao grande privilégio de Maria (Concílio de Latrão, em 649, e Concílio Constantinopolitano III, em 680).
Em Espanha, que se gloria de ter recebido com a fé o conhecimento deste mistério, comemora-se sua festa desde o século VII. Duzentos anos depois, esta solenidade aparece inscrita nos calendários da Irlanda, sob o título de “Conceição de Maria”.
Também no século IX era já celebrada em Nápoles e Sicílias, segundo consta do calendário gravado em mármore e editado por Mazzocchi em 1744.
Em tempos do Imperador Basílio II (976-1025), a festa da “Conceição de Sant’Ana” passou a figurar no calendário oficial da Igreja e do Estado, no Império Bizantino.
No século XI parece que a comemoração da Imaculada estava estabelecida na Inglaterra, e, pela mesma época, foi recebida em França. Por uma escritura de doação de Hugo de Summo, consta que era festejada na Lombardia (Itália) em 1047. Certo é também que em fins do século XI, ou princípios do XII, celebrava-se em todo o antigo Reino de Navarra.

Séculos XII-XIII: Oposições
No mesmo século XII começou a ser combatido, no Ocidente, este grande privilégio de Maria Santíssima.
Tal oposição haveria ainda de ser mais acentuada e mais precisa na centúria seguinte, no período clássico da escolástica. Entre os que puseram em dúvida a Imaculada Conceição, pela pouca exatidão de idéias à matéria encontram-se doutos e virtuosos varões, como, por exemplo, São Bernardo, São Boaventura, Santo Alberto Magno e o angélico São Tomás de Aquino.

Século XIV: Escoto e a reação a favor do dogma
O combate a esta augusta prerrogativa da Virgem não fez senão acrisolar o ânimo de seus partidários. Assim, o século XIV se inicia com uma grande reação a favor da Imaculada, na qual se destacou, como um de seus mais ardorosos defensores, o beato espanhol Raimundo Lulio.
Outro dos primeiros e mais denodados campeões da Imaculada Conceição foi o venerável João Duns Escoto (seu país natal é incerto: Escócia, Inglaterra ou Irlanda; morreu em 1308), glória da Ordem dos Menores Franciscanos, o qual, depois de bem fixar os verdadeiros termos da questão, estabeleceu com admirável clareza os sólidos fundamentos para desvanecer as dificuldades que os contrários opunham à singular prerrogativa mariana.
Sobre o impulso dado por Escoto à causa da Imaculada Conceição, existe uma tocante legenda. Teria ele vindo de Oxford a Paris, precisamente para fazer triunfar o imaculatismo. Na Universidade da Sorbonne, em 1308, sustentou uma pública e solene disputa em favor do privilégio da Virgem.
No dia dessa grande ato, Escoto, quando chegou ao local da discussão, prosternou-se diante de uma imagem de Nossa Senhora que se encontrava em sua passagem, e lhe dirigiu esta prece: “Dignare me laudare te, Virgo sacrata: da mihi virtutem contra hostes tuos”. A Virgem, para mostrar seu contentamento com esta atitude inclinou a cabeça – postura que, a partir de então, Ela teria conservado…
Depois de Escoto, a solução teológica das dificuldades levantadas contra a Imaculada Conceição se tornou casa dia mais clara e perfeita, com o que seus defensores se multiplicaram prodigiosamente. Em seu favor escreveram inúmeros filhos de São Francisco, entre os quais se podem contar os franceses Aureolo (m. em 1320) e Mayron (m. em 1325), o escocês Bassolis e o espanhol Guillermo Rubión. Acredita-se que esses ardorosos propagandistas do santo mistério estejam na origem de sua celebração em Portugal, nos primórdios do século XIV.
O documento mais antigo da instituição da festa da Imaculada nesse país é um decreto do Bispo de Coimbra, D. Raimundo Evrard, datado de 17 de Outubro de 1320. A par dos doutores franciscanos, cumpre ainda mencionar, entre os defensores da Imaculada Conceição nos séculos XIV-XV, o carmelita João Bacon (m. em 1340), o agostiniano Tomás de Estrasburgo, Dionísio, o Cartuxo (m. em 1471), Gerson (m. em 1429), Nicolau de Cusa (m. em 1464) e outros muitos esclarecidos teólogos pertencentes a diversas escolas e nações.

Séculos XV-XVI: acirradas disputas
Em meados do século XV, a Imaculada Conceição foi objeto de renhido combate durante o Concílio de Basiléia, resultando num decreto de definição sem valor dogmático, posto que este sínodo perdeu a legitimidade ao se desligar do Papa.
Entretanto, crescia cada dia mais o número das cidades, nações e colégios que celebravam oficialmente a festa da Imaculada. E com tal fervor, que nas cortes da Catalunha, reunidas em Barcelona entre 1454 e 1458, decretou-se pena de perpétuo desterro para quem combatesse o santo privilégio.
O autêntico Magistério da Igreja não tardou a dar satisfação aos defensores do dogma e da festa. Pela bula Cum proeexcelsa, de 27 de Fevereiro de 1477, o Papa Sixto IV aprovou a festa da Conceição de Maria, enriqueceu-a de indulgências semelhantes às festas do Santíssimo Sacramento e autorizou ofício e missa especial para essa solenidade.
Pelos fins do século XV, porém, a disputa em torno da Imaculada Conceição de tal maneira acirrou os ânimos dos contendores, que o mesmo Papa Sixto IV se viu obrigado a publicar, em data de 4 de setembro de 1483, a Constituição Grave Nimis, proibindo sob pena de excomunhão que os de uma parte chamassem hereges aos da outra.
Por essa época, festejavam a Imaculada célebres universidades, como as de Oxford, de Cambridge e a de Paris, a qual, em 1497, instituiu para todos os seus doutores o juramento e o voto de defender perpetuamente o mistério da Imaculada Conceição, excluindo de seus quadros quem não os fizesse. De modo semelhante procederam as universidades de Colônia (em 1499), de Magúncia (em 1501) e a de Valência (em 1530).
No Concílio de Trento (1545-1563) se ofereceu nova ocasião para denodado combate entre os dois partidos. Sem proferir uma definição dogmática da Imaculada Conceição, esta ssembléia confirmou de modo solene as decisões de Sixto IV. A 15 de Junho de 1546, na sessão V, em seguida aos cânones sobre o pecado original, acrescentaram-se estas significativas palavras: “O sagrado Concílio declara que não é sua intenção compreender neste decreto, que trata do pecado original, a Bem-aventurada e imaculada Virgem Maria, Mãe de Deus, mas que devem observar-se as constituições do Papa Sixto IV, de feliz memória, sob as penas que nelas se cominam e que este Concílio renova”.
Por esse tempo, começaram a reforçar as fileiras dos defensores da Imaculada Conceição os teólogos da recém-fundada Companhia de Jesus, entre os quais não se achou um só de opinião contrária. Aliás, pelos primeiros missionários jesuítas no Brasil temos notícia de que, já em 1554, celebrava-se o singular privilégio mariano em nosso País. Além da festa comemorada no dia 8 de Dezembro, capelas, ermidas e igrejas eram edificadas sob o título de Nossa Senhora da Conceição.
Entretanto, a piedosa crença ainda suscitava polêmicas, coibidas pela intervenção do Sumo Pontífice. Assim, em outubro de 1567, São Pio V, condenando uma proposição de Bayo que afirmava ter morrido Nossa Senhora em conseqüência do pecado herdado de Adão, proibiu novamente a disputa acerca do augusto privilégio da Virgem.

Séculos XVII e seguintes: consolidação da “piedosa crença”
No século XVII, o culto da Imaculada Conceição conquista Portugal inteiro, desde os reis e os teólogos até os mais humildes filhos do povo. A 9 de Dezembro de 1617, a Universidade de Coimbra, reunida em claustro pleno, resolve escrever ao Papa manifestando-lhe a sua crença na imaculabilidade de Maria.
Naquele mesmo ano, Paulo V, decretou que ninguém se atrevesse a ensinar publicamente que Maria Santíssima teve pecado original. Semelhante foi a atitude de Gregório XV, em 1622.
Por essa época, a Universidade de Granada se obrigou a defender a Imaculada Conceição com voto de sangue, quer dizer, comprometendo-se a dar a vida e derramar o sangue, se necessário fosse, na defesa deste mistério. Magnífico exemplo que foi imitado, sucessivamente, por grande número de cabidos, cidades, reinos e ordens militares.
A partir do século XVII também foram se multiplicando as corporações e sociedades, tanto religiosas como civis, e até mesmo estados, que adotaram por padroeira à Virgem no mistéiro de sua Imaculada Conceição.
Digna de particular referência é a iniciativa de D. João IV, Rei de Portugal, proclamando Nossa Senhora da Conceição padroeira de seus “Reinos e Senhorios”, ao mesmo tempo que jura defendê-La até à morte, segundo se lê na provisão régia de 25 de março de 1646. A partir deste momento, em homenagem à sua Imaculada Soberana, nunca mais os reis portugueses puseram a coroa na cabeça.
Em 1648, aquele mesmo Monarca mandou cunhar moedas de outro e prata. Foi com estas que se pagou o primeiro feudo a Nossa Senhora. Com o nome de Conceição, tais moedas tinham no anverso a legenda: JOANNES IIII, D. G. PORTUGALIAE ET ALBARBIAE REX, a Cruz de Cristo e as armas lusitanas. No reverso: a imagem da Senhora da Conceição sobre o globo e a meia lua, com a data de 1648 e, nos lados, o sol, o espelho, o horto, a casa de ouro, a fonte selada e a Arca da Aliança, símbolos bíblicos da Santíssima Virgem.
Outro decreto de D. João IV, assinado em 30 de junho de 1654, ordenava que “em todas as portas e entradas das cidades, vilas e lugares de seus Reinos”, fosse colocada uma lápide cuja inscrição exprimisse a fé do povo português na imaculada Conceição de Maria.
Igualmente a partir do século XVII imperadores, reis e as cortes dos reinos começaram a pedir com admirável constância, e com uma insistência de que há poucos exemplos na História, a declaração dogmática da Imaculada Conceição.
Pediram-na a Urbano VIII (m. em 1644) o Imperador Fernando II da Áustria; Segismundo, Rei da Polônia; Leopoldo, Arquiduque do Tirol; o eleitor de Magúncia; Ernesto de Baviera, eleitor de Colônia.
O mesmo Urbano VIII a pedidos do Duque de Mântua e de outros príncipes, criou a ordem militar dos Cavaleiros da Imaculada Conceição, aprovando ao mesmo tempo seus estatutos. Por devoção à Virgem Imaculada, quis ele ser o primeiro a celebrar o augusto Sacrifício na primeira igreja edificada em Roma sob o título da Imaculada, para uso dos menores capuchinhos de São Francisco.
Porém, o ato mais importante emanado da Santa Sé, no século XVII, em favor da Imaculada Conceição, foi a bula Sollicitude omnium Ecclesiarum, do Papa Alexandre VII, em 1661. Neste documento, escrito de sua própria mão, o Pontífice renova e ratifica as constituições em favor de Maria Imaculada, ao mesmo tempo que impõe gravíssimas penas a quem sustentar e ensinar opinião contrária aos ditos decretos e constituições. Esta bula memorável precede diretamente, sem outro decreto intermediário, a bula decisiva de Pio IX.
Em 1713, Felipe V de Espanha e as Cortes de Aragão e Castela pediram a solene definição a Clemente XI. E o mesmo Rei, com quase todos os Bispos espanhóis, as universidades e Ordens religiosas, a solicitaram a Clemente XII, em 1732.
No pontificado de Gregório XVI, e nos primeiros anos de Pio IX, elevaram-se à Sé Apostólica mais de 220 petições de Cardeais, Arcebispos e Bispos (sem contar as dos cabidos e ordens religiosas) para que se fizesse a definição dogmática.

O triunfo da Imaculada Conceição
Enfim, chegado era o tempo. Em 2 de fevereiro de 1849, Pio IX, desterrado em Gaeta, escreveu a todos os Patriarcas Primazes, Arcebispos e Bispos do orbe a Encíclica Ubi primum, questionando-lhes acerca da devoção de seu clero e de seus povos ao mistério da Imaculada Conceição, e seu desejo de vê-lo definido. De um total de 750 Cardeais, Bispos e vigários apostólicos que em seu seio contava então a Igreja, mais de 600 responderam ao Sumo Pontífice. Levando-se em conta as dioceses que estariam vacantes, os prelados enfermos e as respostas perdidas, pode-se dizer que todos atenderam à solicitação do Papa, manifestando unanimemente que a fé de seu povo era completamente favorável à Imaculada Conceição, e apenas cinco se diziam duvidosos quanto à oportunidade de uma declaração dogmática. Afirmara-se a crença universal da Igreja. Roma iria falar, a causa estava julgada.
Agora – são palavras de uma testemunha da bela festa de 8 de dezembro de 1854 – transportemo-nos ao augusto templo do Chefe dos Apóstolos (Basílica de São Pedro de Roma). Nas suas amplas naves se comprime e se confunde uma imensa multidão impaciente, porém recolhida. É hoje em Roma, como outrora em Éfeso: as celebrações de Maria são em toda a parte populares. Os romanos se aprestam a receber a definição da Imaculada Conceição, como os efesianos acolheram a da maternidade divina de Maria: com cânticos de júbilo e manifestações do mais vivo entusiasmo.
Eis no limiar da Basílica o Soberano Pontífice. Circundam-no 54 Cardeais, 42 Arcebispos e 98 Bispos dos quatro cantos do orbe cristão, duas vezes mais vasto que o antifo mundo romano. Os Anjos da Igrejas estão presentes como testemunhas de fé de seus povos na Imaculada Conceição. Subitamente, irrompem as vozes em tocantes e reiteradas aclamações. O cortejo dos Bispos atravessa lentamente o longo corredor do Altar da Confissão. Sobre a cátedra de São Pedro está sentado seu 258º sucessor.
Iniciam-se os santos mistérios. Logo o Evangelho é anunciado e cantado nas diversas línguas do Oriente e do Ocidente. Eis o solene momento marcado para o decreto pontifício. Um Cardeal carregado de anos e de méritos, aproxima-se do trono: é o decano do Sacro Colégio; feliz está ele, como outrora o velho Simeão, por ver o dia da glória de Maria … Em nome de toda a Igreja, dirige ele ao Vigário de Cristo uma derradeira postulação.
O Papa, os Bispos e toda a grande assembléia caem de joelhos; a invocação ao Espírito Santo se faz ouvir; o sublime hino é repetido por cinqüenta mil vozes ao mesmo tempo, subindo aos Céus como imenso concerto.
Cessado o cântico, ergue-se o Pontífice sobre a cátedra de São Pedro; sua face é iluminada por celeste raio, visível efusão do Espírito de Deus; e de uma voz profundamente emocionada, em meio às lágrimas de alegria, pronuncia ele as solenes palavras que colocam a Imaculada Conceição de Maria no número dos artigos de nossa fé:
“Declaramos – disse ele -, pronunciamos e definimos que a doutrina de que a Bem-aventurada Virgem Maria, no primeira instante de sua conceição, por singular graça e privilégio de Deus Onipotente, em atenção aos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de culpa original, essa doutrina foi revelada por Deus, e deve ser, portanto, firme e constantemente crida por todos os fiéis”.

O Cardeal decano, prostrado segunda vez aos pés do Pontífice, suplicou-lhe então que a publicase as cartas apostólicas contendo a definição. E como promotor da fé, acompanhado dos protonotários apostólicos, pediu também que se lavrasse um processo verbal desse grande ato. Ao mesmo tempo, o canhão do Castelo de Santo Angêlo e todos os sinos da Cidade Eterna anunciavam a glorificação da Virgem Imaculada.
À noite, Roma, cheia de ruidosas e alegres orquestrazs embandeirada, iluminada, coroada de inscrições e de emblemas, foi imitada por milhares de vilas e cidades em toda a superfície do globo.
O ano seguinte pode ser chamado o Ano da Imaculada Conceição: quase todos os dias foram assinalados por destas em honra da Santíssima Virgem.
Em 1904, São Pio X celebrou, juntamente com toda a Igreja Universal, com grande solenidade e regozijo, o cinqüentenário da definição do dogma da Imaculada Conceição.
O Papa Pio XII, por sua vez, em 1954 comemorou o primeiro centenário dessa gloriosa verdade de fé, decretanto o Ano Santo Mariano. Celebração esta coroada pela Encíclica Ad Coeli Reginam, na qual o mesmo Pontífice proclama a soberania da Santíssima Virgem, e estabelece a festa anual de Nossa Senhora Rainha.

(CLÁ DIAS, JOÃO. Pequeno Ofício da Imaculada Conceição Comentado. Artpress. São Paulo, 1997, pp. 494 à 502)

Cada homem tem também uma vocação única

Pe. José Victorino de Andrade, EP

A vocação de cada homem pode ser entendida num sentido genérico, aplicando-se a todos os batizados, como o pode ser num sentido estrito. Cada homem tem uma vocação única. No Documento Final do Congresso sobre Vocações para o Sacerdócio e a Vida Consagrada na Europa (1998, p.22), da Pontifícia Obra para as Vocações Eclesiásticas decorrente de 5-10 maio 1997, nos é dada a definição de vocação entendida nos seus vários sentidos:

“Como a santidade é para todos os batizados em Cristo, assim existe uma vocação específica para cada vivente; e, como a primeira tem suas raízes no Batismo, assim a segunda se liga ao simples fato de existir. A vocação é o pensamento providente do Criador sobre cada criatura, é a sua idéia-projeto, como um sonho muito querido por Deus, porque a criatura é muito querida por Ele. Deus-Pai o quer diferente e específico para cada vivente”.

De fato, o ser humano “chamado” à vida encontra em si a imagem daquele que o chamou. Vocação é, portanto, a proposta divina de realizar-se segundo essa imagem, e é única, singular, irrepetível, justamente porque tal imagem é inexaurível. Cada criatura está chamada a exprimir um aspecto particular do pensamento de Deus. Ali encontra seu nome e sua identidade; afirma e coloca em segurança a sua liberdade e originalidade.

Portanto, se todo ser humano, desde o nascimento, tem a própria vocação, existem na Igreja e no mundo várias vocações que, enquanto num plano teológico exprimem a semelhança divina impressa no homem, em nível pastoral-eclesial respondem às várias exigências da nova evangelização, enriquecendo a dinâmica e a comunhão eclesial: A Igreja particular é como um jardim florido, com grande variedade de dons e carismas, movimentos e ministérios (cf. ibidem).

Via Pulchritudinis: caminho privilegiado

Diác. Felipe Ramos, EP

São Tomás não compôs nenhum tratado específico sobre a beleza, e tampouco a tratou de modo esquemático.

Por outro lado, o Aquinate interpreta o conceito de graduação para remeter a um máximo sempre no conceito dos transcendentais,[1] “facetas” do ser, por assim dizer. Os exemplos que ele nos oferece na quarta via são bonum, verum e nobile. Bonum e verum ele sempre enumerou entre os transcendentais,[2] mas e o nobile? Seria também um transcendental?

Não é possível dizer com absoluta certeza o que o Angélico quis dizer exatamente com nobile, pois há inclusive diversas interpretações. Uma delas é o conceito filosófico de valor que também pode ser interpretado como propriedade transcendental.[3]

Entretanto, podemos bem crer que ele quis se referir à beleza quando fala de nobreza na quarta via. Em outras obras relaciona a nobreza com a beleza: “Quia est nobilis, sive pulcher[4] ou “nobilitas enim seu pulchritudo[5] ou “nam ipse invenit res omnes secundum diversos gradus pulchritudinis et nobilitatis esse dispositas”.[6] Portanto, ele os toma nessas partes praticamente como sinônimos.

Independentemente do significado implícito da palavra nobile, podemos relacionar a beleza como uma das perfeições absolutas aplicáveis à quarta via. Mas faz-nos crer que de modo mais arquitetônico tratasse ele da beleza.

A apreensão do belo é mais misterioso e matizado do que parece. A beleza ― este “transcendental esquecido” segundo expressão de E. Gilson ― não é apenas uma qualidade sensorial (quae visa placent)[7], mas uma verdadeira “epifania do ser” em que Deus manifesta a Sua ação embelezadora[8] nas criaturas segundo um mais e um menos.

Quando entendemos o belo segundo os axiomas: “splendor veritatis”,[9] splendor bonitatis ou “splendor ordinis”,[10] contemplamos o esplendor da criação em seus diversos graus nos transcendentais.[11] Assim, o belo enquanto transcendental na linha do bonum,[12] possui propriedades fundamentais de integritas (perfeição), proportio (equilíbrio entre as partes) e claritas (clareza) do objeto conhecido. Desta forma, aquilo que é apetecível (bonum), inteligível (verum) e aprazível se torne como numa síntese, admirável.

Diante disso, a alma humana ao admirar o belo se eleva de tal maneira sobre si mesma que poderíamos glosar a São Paulo: não sou em quem vivo, mas é a própria Beleza que vive em mim. Tornamo-nos verdadeiramente reflexos d’Aquele que admiramos. Por isso, sob influxo de atração ao sublime, chegamos a ter um conhecimento de Deus superior ainda que as vias da verdade, a ponto que o conhecido esteja no conhecedor e o desejado esteja em quem o deseja[13]. Neste âmbito afirma o documento Via Pulchritudinis:

“Esse apelo aos filósofos pode surpreender, mas a Via Pulchritudinis não é, talvez, uma Via Veritatis na qual o homem se empenha por descobrir a bonitas do Deus de Amor, fonte de toda beleza, de toda verdade e de toda bondade? O belo, como também a verdade ou o bem, nos conduz a Deus, Verdade primeira, Bem supremo e Beleza. Mas o belo fala mais do que a verdade ou o bem. Dizer de um ser que é belo não significa apenas reconhecer nele uma inteligibilidade que o torna amável. E dizer, ao mesmo tempo, que especificando o nosso conhecimento ele nos atrai, também nos cativa através de um influxo capaz de despertar um maravilhar-se. Se ele expressa certo poder de atração, ainda mais, talvez, o belo expressa a própria realidade na perfeição de sua forma. Isso é a epifania. Ele a manifesta expressando sua íntima clareza. Se o bem expressa o desejável, o belo expressa ainda mais o esplendor e a luz de uma perfeição que se manifesta” (ASSEMBLEIA PLENÁRIA DOS BISPOS, 2007, p. 17).

Com muito propósito foi a Via Pulchritudinis qualificada como “caminho régio para conduzir a Deus” (Ass. Plen. dos BISPOS, 2007, p. 17). Quase que se poderia dizer que esta seria a única via para chegar a Deus pelo homem hodierno.

Ora, se utilizarmo-nos desta grande força de atração que é a beleza, ela poderá verdadeiramente salvar o mundo.[14] Caso contrário, esta terra só poderá tender a uma autêntica antinomia do desígnio divino nas criaturas.

In: Lumen Veritatis, n. 10.


[1] Ver o belo como transcendental: LOBATO, Abelardo apud PICKAVÉ, Martin, & AERTSEN Jan A.. Die Logik des Transzendentalen. Berlin: de Gruyter, 2003.

[2] No De Veritate I, 1 enumera ele seis: ens, res, unum, aliquid, verum, bonum. Já no I Sent., dist. 8, q. 1, a. 3. enumera apenas três: unum, verum, bonum.

[3] Ver MONDIN, Battista. Dizionario enciclopedico del pensiero di San Tommaso d’Aquino. Bologna: Ed. Studio Domenicano, 2000, p. 709-714.

[4] Super Epistolam B. Pauli ad Galatas lectura, cap. 2, lect. 2.

[5] Idem.

[6] In Symbolum Apostolorum, a. 1.

[7] S. Theol. Ia., q. 5 a. 4, ad 1.

[8] (Pulchrifica) Cf. In Div. Nom., IV, lect. 5, n. 340.

[9] Segundo Platão.

[10] Segundo Santo Agostinho.

[11] O belo é chamado por Maritain: «Splendeur de l’être et de tous les transcendantaux réunis». MARITAIN, Jacques ; MARITAIN, Raïssa. Oeuvres complètes 1, [1906 – 1920]. Fribourg, Suisse: Ed. Univ, 1986, p. 663.

[12] (Sola ratione differens). S. Theol. q. 27, a. 1, ad tertium.

[13] Cf. S. Theol. Ia., q. 8, a. 3, co.

[14] Cf. DOSTOIEVSKI, Fiodor Mikhailovitch, O idiota. (trad. José Geraldo Vieira) São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 422-423

A vida contemplativa

Diac. Inácio Almeida, EP

Ao analisarmos as imensas obras levadas a cabo por São Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Alberto Magno e outros grandes santos, concluímos que esses homens, apesar de suas atividades quase incessantes, mantiveram-se na mais constante união com Deus, pois foi pela contemplação das coisas divinas que eles hauriram sua amplíssima capacidade de ação.

Para São Tomás[1], aqueles que são chamados às obras da vida ativa, erram se julgam que este dever os dispensa da vida contemplativa. Tal dever é um acréscimo desta vida e não lhe diminui a intensidade. Desta forma, “as duas vidas, longe de se excluírem, reclamam-se, supõem-se, misturam-se, completam-se mutuamente; e, se por alguma circunstância, tivermos que preferir uma à outra, é sem dúvida a vida contemplativa que se deve escolher, pois é a mais perfeita e a mais necessária” (CHAUTARD, 1962, p. 54).

Em geral, o homem moderno tem uma errônea concepção do que seja propriamente a vida contemplativa, e desconhece a importância da contemplação como elemento propulsor da ação, pois os verdadeiros místicos ou contemplativos

“são homens de senso prático e de ação, não (só) de raciocínio e teoria. Têm o espírito da organização, o dom do comando, e revelam-se muito bem dotados para os negócios. As obras que fundam, oferecem condições de vida e duração; em conceber e dirigir as suas empresas dão prova de prudência e arrojo, e dessa justa apreciação das possibilidades que caracteriza o bom senso. E, de feito, o bom senso parece ser a sua qualidade principal: um bom senso que não é perturbado por exaltação alguma doentia ou imaginação desordenada, e a que anda junto o mais raro poder de penetração” (MONTMORAND citado por TANQUEREY (1955, p. 62).

Chautard (1962) nos adverte que: “a ação, para ser fecunda, carece da contemplação; quando esta atinge certo grau de intensidade, difunde sobre a primeira algum tanto do seu excedente e, por meio dela, a alma vai haurir diretamente no coração de Deus as graças que a ação se encarrega de distribuir”.

O mesmo autor também afirma que na alma dos santos, a ação e a contemplação se unem formando uma perfeita harmonia. Por esta razão se pode afirmar que São Tomás foi ao mesmo tempo um contemplativo, bem como um dos homens mais ativos de seu século. A vida contemplativa vivifica as ocupações exteriores; só ela é capaz de comunicar simultaneamente o caráter sobrenatural e a real utilidade das coisas. A união das duas vidas, contemplativa e ativa, constitui o verdadeiro apostolado.

“O apostolado supõe almas capazes de estuar de entusiasmo por uma idéia, de se consagrar ao triunfo de um princípio. Sobrenaturalize-se a realização desse ideal pelo espírito interior […], e logo teremos a vida mais perfeita em si mesma, a vida por excelência, visto como os teólogos a preferem à simples contemplação: Praefertur simplici contemplationi” (CHAUTARD, p. 56).

É desta ação brotada na contemplação que fez com que São Tomás de Aquino e outros grandes santos fossem ao mesmo tempo ardentes contemplativos e apóstolos valorosos. Podemos até dar tréguas a nossos trabalhos exteriores; mas, pelo contrário, nunca devemos diminuir nossa aplicação às coisas espirituais.

Pois de acordo com Chautard(1962, p. 57):

“Bom é contemplar a verdade; porém, melhor ainda é comunicá-la aos outros. Refletir a luz é algo mais que recebê-la. Iluminar vale mais que luzir debaixo do alqueire. Pela contemplação, a alma alimenta-se; pelo apostolado, dá-se (Sicut majus est illuminare quam lucere solum, ita majus est contemplata aliis tradere, quam solum contemplare).[2]


[1] Recorda-se aqui a afirmação de São Tomás: “Quem é chamado da vida contemplativa para a ativa, não sofre uma subtração, mas deve fazer antes uma adição” (Cum aliquis a contemplativa vita ad activam vocatur, non fit per modum substractionis, sed per modum additionis, Suma Teológica, 2, 2.ae, q. 182, a. 1).

[2] “Pois, assim como é mais o iluminar do que somente luzir, assim, é mais transmitir aos outros o fruto da contemplação do que somente contemplar”. (Suma Teológica, IIa IIae, q. 188, a. 6)

A vocação de Santa Teresinha nos seus manuscritos

Pe. Alex Barbosa Brito, EPsta-teresinha

Ao analisarmos os Manuscritos foram encontrados diversos trechos em que aparece o termo Santidade e o seu correlato: a Perfeição. Através de tais excertos, pudemos depreender qual o conceito que a autora possui a tal respeito, bem como as diversas idéias que se entrelaçam com esta temática.

No primeiro trecho, vemos como Santa Teresinha, pergunta-se a si mesma porque todas as almas não recebiam igual medida de graças. Admira-se ela de vê-lo prodigalizar favores extraordinários a santos que o tinham ofendido, como São Paulo, Santo Agostinho, e aos quais forçava, por assim dizer, a receberem suas graças. Por outro lado, nossa santa contempla outros que eram acariciados por Nosso Senhor deste o berço até o túmulo, sem lhes deixar no caminho o menor tropeço que os tolhesse de se levantarem até Ele, predispondo essas almas com tantos favores, a ponto de não empanarem o brilho imaculado de sua veste batismal. Diante disto, questiona-se a respeito do fato de os pobres selvagens, por exemplo, morrerem em grande número, antes mesmo de ouvir pronunciar o nome de Deus.

Levando em consideração esta questão, tal Doutora da Igreja assevera que foi o próprio Jesus que lhe desvendou este mistério, pondo-lhe diante dos olhos o livro da natureza, através do qual ela compreendeu que todas as flores por Ele criadas são formosas, que o esplendor da rosa e a brancura do lírio não eliminam a fragrância da violetinha, nem a encantadora simplicidade da bonina, entendendo, desta maneira, que se todas as pequenas flores quisessem ser rosas, perderia a natureza sua gala primaveril (MENINO JESUS, 2003). De tal figura tira o seguinte ensinamento para a vida espiritual:

Outro tanto acontece no mundo das almas, que é o jardim de Jesus. Quis Ele criar os grandes Santos que podem comparar-se aos lírios, e às rosas; mas criou também os mais pequenos (sic), e estes devem contentar-se em serem boninas ou violetas, cujo destino é deleitar os olhos do Bom Deus, quando as humilha debaixo de seus pés. Consiste a perfeição em fazer sua vontade, em ser o que Ele quer que sejamos… (MENINO JESUS, 2003: 26-27, grifo nosso).

Como observamos no trecho acima, o que há de relevante para aquele que busca a perfeição, é a total conformidade com a vontade de Deus e, conseqüentemente a total fidelidade aos desígnios a seu respeito. É a essa realidade que alude Santa Teresinha no trecho supracitado, no qual percebemos na autora uma consciência muito clara da diversidade de vias para as quais os homens são chamados.

No segundo excerto selecionado, Santa Teresinha conta um fato de sua infância, no qual Leônia, sua irmã, procurou-a e sua outra irmã, Celina, com uma cesta cheia de vestidos e lindos retalhos, oferecendo-lhes tudo. Esta tomou um pacotinho de cordões. Nossa Santa, após uma curta reflexão, declarou: – Escolho tudo! Apoderando-se da cesta sem nenhuma formalidade (MENINO JESUS, 2003).

A respeito deste fato, tece a seguinte consideração:

“E compreendi que para se tornar santa era preciso sofrer muito, ir sempre atrás do mais perfeito e esquecer-se a si mesmo [sic]. Compreendi que na perfeição havia muitos graus e que cada alma era livre no responder às solicitações de Nosso Senhor, no fazer muito ou pouco por Ele, numa palavra, no escolher entre os sacrifícios que exige. Então, como nos dias de minha primeira infância, exclamei: “Meu Deus, escolho tudo”. Não quero ser santa pela metade. Não me faz medo sofrer por vós, a única coisa que me dá receio é a de ficar com minha vontade. Tomai-a vós, pois “escolho tudo” o que vós quiserdes!…” (MENINO JESUS, 2003: 42)

No terceiro trecho a ser considerado, Santa Teresinha comenta como era a formação que, nos tempos de infância, recebia de sua irmã Maria, a qual lhe explicava a importância de não deixar passar nenhuma oportunidade sem procurar juntar as riquezas celestes, dando a entender a grande infelicidade daqueles que nem querem se dar ao trabalho de estender a mão para as agarrar, deixando-as passar ao largo. Desse modo, consoante deixa explícito, sua irmã lhe ensinava a fidelidade nas mínimas coisas (MENINO JESUS, 2003).

Nossa Santa elogia a eloqüência de Maria, imaginando em sua pueril inocência que, se os pecadores mais empedernidos a ouvissem, converter-se-iam (MENINO JESUS, 2003).

Conta, também, neste excerto, um fato que se deu em sua minoridade, no qual uma de suas mestras da Abadia lhe perguntou o que fazia nos dias de folga quando estava sozinha. Teresinha respondeu-lhe que se punha atrás de sua cama, num vão que ali havia, fácil de se fechar com o cortinado, ficando a “pensar”. Sua professora, então, lhe perguntou no que pensava, ao que ela respondeu que cogitava em Deus, na vida, na eternidade… Afinal, que pensava… Muito se divertindo tal religiosa à sua custa (MENINO JESUS, 2003). Sobre este episódio, acrescenta nossa Santa: “Compreendo agora que, sem o saber fazia oração, e que o bom Deus já me instruía em segredo”. (MENINO JESUS, 2003: 89)

No quarto trecho, Santa Teresinha manifesta que foi sempre seu grande desejo ser santa, entristecendo-se pelo fato de a distância que havia entre os Santos e ela poder se comparar à que existe entre uma montanha e um grão de areia, espezinhado pelos transeuntes (MENINO JESUS, 2003).

Ao invés de desanimar, argumenta que o Bom Deus não seria capaz de inspirar-lhe desejos irrealizáveis, não sendo sua pequenez um obstáculo (MENINO JESUS, 2003).

Deste modo, nossa Santa procura um meio de ir para o céu por uma trilha bem reta, bem curta e inteiramente nova. Assim, introduz a figura do elevador, que, naquele tempo, acabara de ser inventado, afirmando que gostaria de encontrar um elevador para se reerguer até Jesus, buscando nos Sagrados Livros uma indicação do objeto de seus desejos. Com efeito, encontra neles as seguintes palavras: “Se alguém é pequenino, venha a mim” contidas no capítulo 94 do livro dos Provérbios, indo com o pressentimento de haver achado o que procurava, com a vontade de saber o que Deus faria a um pequenino que respondesse ao Seu chamado (MENINO JESUS, 2003). Continuando suas reflexões, encontra o seguinte trecho no mesmo capítulo aludido acima: “Como uma mãe acaricia o filhinho, assim vos consolarei, e vos acalentarei em meu regaço” (MENINO JESUS, 2003), a respeito do que faz a seguinte exclamação: “Oh! nunca vieram alegrar minha alma palavras mais ternas e mais melodiosas! O elevador que me conduzirá até ao céu, são vossos braços, ó Jesus! Por isso, não preciso ficar grande. Devo, pelo contrário, conservar-me pequenina, que venha a ser sempre mais”. (MENINO JESUS, 2003: 226-227)

O quinto e último excerto é o mais sublime de todos, pois é nele que Teresinha explicita a sua vocação à Santidade.

Ela inicia tal pensamento da seguinte maneira: “Ser tua esposa, ó Jesus, ser carmelita, ser mãe das almas pela união contigo, deveria ser bastante para mim… Mas assim não acontece… Sem dúvida, as três prerrogativas constituem exatamente minha vocação: Carmelita, Esposa, e Mãe” (MENINO JESUS, 2003: 211).

Depois do que afirma sentir em si outras vocações:

“Sinto em mim a vocação de GUERREIRO, de SACERDOTE, de APÓSTOLO, de DOUTOR, e de MÁRTIR. Sinto, afinal, a necessidade, o desejo de realizar por ti, Jesus, todas as obras, as mais heróicas… Sinto na alma a coragem de um Cruzado, de Zuavo Pontifício. Desejaria morrer no campo de batalha pela defesa da Igreja…[…]” (MENINO JESUS, 2003: 211).

Como seus desejos a martirizavam, abriu as epístolas de São Paulo, dando com os olhos nos capítulos 12 e 13 da primeira aos Coríntios. Comenta que leu no primeiro deles que nem todos podem ser apóstolos, profetas, doutores, etc e que a Igreja se compõe de membros diversos, de modo que o olho não pode ser mão ao mesmo tempo.

Dando continuação esta leitura, deparou-se com uma passagem na qual o Apóstolo convida seus destinatários a buscar os dons maiores, mostrando que os mais perfeitos não são nada sem o Amor, o qual é o caminho por excelência, que leva a Deus com segurança. (MENINO JESUS, 2003). Ao que acrescenta que

“a resposta era clara, mas não satisfazia os meus anseios, não me dava paz… Como Madalena insistia em debruçar-se sobre o túmulo vazio e acabou encontrando o que procurava, assim também, debruçando-me até as profundezas do meu nada, ergui-me a tal altura, que pude alcançar o meu objetivo… A resposta era clara, mas não satisfazia os meus anseios, não me dava paz… Encontrara, enfim, tranqüilidade… Tomando em consideração o corpo místico da Igreja, não me identificava em nenhum dos membros descritos por São Paulo, por outra, queria identificar-me em todos eles. A caridade deu a chave de minha vocação. […] Compreendi que o AMOR ABRANGE TODAS AS VOCAÇÕES, ALCANÇANDO TODOS OS TEMPOS E TODOS OS LUGARES… NUMA PALAVRA, É ETERNO…” (MENINO JESUS, 2003: 213).

E, para concluir tal raciocínio, faz de uma maneira vibrante e entusiasmada, a seguinte assertiva: “Então, no transporte de minha delirante alegria, pus-me a exclamar: Ó Jesus, meu amor, minha vocação, encontrei-a afinal: MINHA VOCAÇÀO É O AMOR!….” (MENINO JESUS, 2003: 214)

Considerando o que acima foi explicitado nós podemos concluir, de acordo com o pensamento da Doutora da Igreja aqui focalizado:

1) Que a santidade consiste antes de tudo em estar disposto por completo a fazer a vontade de Deus.

2) Que para tanto se faz necessário o sofrimento.

3) Que os meios para obter a santidade são a oração e a fidelidade nas pequenas coisas.

4) Que se faz necessário deixar-se levar, sem impor obstáculos, por esse Divino Elevador, que é Jesus Cristo, através da compenetração da própria fragilidade, da confiança, e da completa fidelidade às suas luzes e graças.

5) Que a vocação específica de Santa Teresinha é o Amor.

A proposta de santidade impele à perfeição na caridade

Pe. José Victorino de Andrade, EP

“Sede perfeitos como vosso Pai do Céu é perfeito” (Mt 5, 48). Para São Tomás de Aquino, esta proposta que Nosso Senhor nos faz na sequência do Sermão das Bem-Aventuranças não pode ser inatingível pelo homem, pois neste caso jamais lhe poderia ser prescrito.[1] Portanto, tem de ser possível chegar à perfeição nesta vida, e esta consiste, de acordo com Santo Agostinho, na ausência dos desejos desordenados que se opõem à caridade. O Aquinense acrescenta a esta doutrina tudo quanto possa impedir que o afecto da mente se dirija totalmente a Deus, sem o que não poderá haver caridade, que é a perfeição da vida cristã.[2]

O Catecismo da Igreja Católica aclara esta questão:

O exercício de todas as virtudes é animado e inspirado pela caridade, que é o ‘vínculo da perfeição’ (Cl 3,14); é a forma das virtudes, articulando-as e ordenando-as entre si; é fonte e termo de sua prática cristã. A caridade assegura e purifica nossa capacidade humana de amar, elevando-a à perfeição sobrenatural do amor divino (n. 1827).

Embora alguns autores prefiram distinguir o convite à perfeição da vocação relativamente à santidade, os termos se interpenetram na medida em que a perfeição pode e deve ser um notável caminho para a santificação.[3] De acordo com São Paulo (Cl 1, 28), é a perfeição em Cristo que os homens devem almejar para se apresentar diante de Deus e dos demais. A Lumen Gentium recorda que “todos os fiéis, seja qual for o seu estado ou classe, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade” (n. 40), ou seja, à santidade.

Esta comum vocação de todos os homens à santidade, seja qual for o seu estado, é atestada pelo Catecismo da Igreja Católica[4] e por numerosos documentos do Concílio Vaticano II.[5] Conforme Bento XVI: “No contexto da vocação universal à santidade (I Ts 4, 3) encontra-se a vocação especial para a qual Deus exorta todos os indivíduos”.[6]

A Constituição Dogmática Lumen Gentium dedica-lhe um capítulo inteiro,[7] exortando o cristão a ser exemplo para todo o próximo na medida em que, praticando os conselhos evangélicos, edifica toda a sociedade:

A prática destes conselhos, abraçada sob a moção do Espírito Santo por muitos cristãos, quer privadamente quer nas condições ou estados aprovados pela Igreja, leva e deve levar ao mundo um admirável testemunho e exemplo desta santidade (n. 39).

E que maior caridade poderá haver do que aquela que se manifesta na santidade? Esta é a verdadeira caridade, que permanecerá sempre, conforme nos explica o Papa Bento XVI na sua encíclica, caridade na verdade. Por isso afirmava já São Tomás: “Quem vive na caridade, participa em todo o bem que se faz no mundo”,[8] e ainda: “O ato de um realiza-se mediante a caridade do outro, daquela caridade por meio da qual todos nós somos um só em Cristo”.[9]


[1] Cf. S. Th. II-II Q. 184, a. 2.

[2] Loc. Cit.

[3] Ver a este respeito NETTO DE OLIVEIRA, José. Perfeição ou Santidade e outros textos espirituais. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2002.

[4] Ver, por exemplo, n. 941, 1533, 2013.

[5] Entre outros: Lumen Gentium, n. 32; Gaudium et Spes, n. 34 ; Gravissimum Educationis, n. 2; Presbyterorum Ordinis, n. 2.

[6] Visita Ad Limina Apostolorum dos Bispos do Canadá – Atlântico. 20 mai. 2006. Disponível em : <www.vatican.va>.

[7] Capítulo V: A Vocação de todos à santidade na Igreja.

[8] Symb. Apost.

[9] IV Sent. d. 20, a. 2; q. 3 ad 1.

Só Deus sacia por completo todos os desejos do coração humano

L'AngelusPe. José Victorino de Andrade, EP

Dificilmente se encontrará alguém que não anseie e procure a felicidade. Esta demanda foi posta por Deus no coração de todos os homens que, à semelhança de Santo Agostinho, apenas descansam quando O encontram e n’Ele “repousam” (Confissões I, 1). O início do Catecismo da Igreja Católica começa exactamente com esta temática, lembrando que o homem é capaz de Deus. Entretanto, esta insaciabilidade leva não só ao desejo de uma realização pessoal, no âmbito da vocação específica de cada um, como também da sociedade doméstica à qual pertence, e mesmo da comunidade, na qual se insere e vive.

Ensina-nos o Compêndio de Doutrina Social da Igreja que “o bem comum da sociedade não é um fim isolado em si mesmo; ele tem valor somente em referência à obtenção dos fins últimos da pessoa e ao bem comum universal de toda a criação” (n. 170). Ou seja, a realização pessoal nunca se faz de um modo isolado, mas num contexto, numa sociedade, peregrinação nesta terra herdada para o Homem a dominar através do seu trabalho, e colher os frutos, obtendo o alimento com o suor do rosto (Gn 1, 28-29; 3, 19).

Assim, a felicidade terrena, imperfeita, não se torna “num mar de alegrias, de contínua beatitude, que, durará sempre” (Is 35, 10), pois falta-lhe a visão beatífica – totus sed non totaliter -, de Deus. Peregrinando pelo mundo, a felicidade será sempre relativa, mas essa busca incessante estará por trás de tudo aquilo que o homem opera.

É impossível que a criatura racional dê um só passo voluntário que não esteja encaminhado, de uma ou outra forma, para a sua própria felicidade, já que, […] todo agente racional obra por um fim, que coincide com um bem (aparente ou real) e, pelo mesmo, conduz à felicidade (ROYO MARÍN, Antonio. Teología Moral para Seglares. 7. ed. Madrid: BAC, 2007. Vol. I. p. 22).

Por isso, explica São Tomás de Aquino que todos desejam alcançar a beatitude, entretanto, diferem nos meios para obtê-la, procurando-a através de riquezas, prazeres, ou outras coisas. Porém, o fim, ainda que implicitamente, permanece o sumo bem para o qual tendem todos os homens (S. Th. I-II, q. 1. a. 7.). Ora, este é identificado pelo Pe. Royo Marín, OP como sendo o próprio Deus:

Não é nem pode ser outro que o próprio Deus, Bem infinito, que sacia por completo o apetite da criatura racional, sem que absolutamente nada possa desejar fora dele. É o Bem perfeito e absoluto, que exclui todo o mal e enche e satisfaz todos os desejos do coração humano (Op. cit.  p. 23).

O hedonismo sofredor e a caridosa felicidade

Dom Miguel de Mañara fundador Santa Caridad Sevilla

Pe. José Victorino de Andrade, EP

Sócrates falava da eudaimonia, referindo-se ao homem que procura a felicidade como um princípio de vida. Na verdade, estamos sempre à procura dela. É muito raro, ou praticamente inexistente, aquele que não deseja ser feliz, ou que não quer ver o salutar sentimento de alegria estampada no rosto daqueles que o rodeiam. Porém, ser verdadeiramente feliz, não significa a permanente ausência de dificuldades nesta vida, mas conviver com elas, superá-las, deixar-se purificar e vencer pelo constante apelo à conversão.

Imagine qual destas duas personagens poderiam ser objeto de maior admiração: Um marinheiro que passou por tempestades e tormentas, com o rosto marcado pela aventura e pelas dificuldades que enfrentou… ou um barqueiro de água doce que rema em águas mansas e adormece embalado… A vida passa pelas dificuldades do nosso marinheiro, e há que remar contra a maré, contra o vento e as tempestades, que são os sofrimentos da vida. Entretanto, a mentalidade hedonista do homem contemporâneo, tende mais a identificar-se com o segundo elemento, o barqueiro… cuja vida mansa não quer ser interrompida por nada que quebre as delícias e os prazeres, em que até mesmo remar um pouco, custa muito.

Mas, a fuga ao infortúnio provoca geralmente um fenômeno adverso e incontornável. Pergunte-se, a quem tem mais experiência na vida, se nunca passou por uma doença, infelicidade, problemas… Entretanto, raramente procurados. Uma vez que o homem se depara diante deles, não se tornam vãos, e têm a capacidade de tornar as pessoas mais maduras, e por vezes até mesmo mais felizes. A patente alegria quando uma dor passou, é maior do que quando permanecemos sem o quadro doloroso; uma enfermidade debelada, acarreta uma satisfação acrescida. O desafio ultrapassado, maior júbilo. O que significa que a dificuldade passageira poderá ser uma ponte para um estado de felicidade maior do que a estabilidade permitiria.

Afinal, a dor e o sofrimento também parecem ser necessários a fim de que se manifestem alguns dos sentimentos mais elevados do ser humano, tais como o amor e a alteridade. Por exemplo, a atenção que é devotada a alguém quando está doente ou sofrendo. Fisicamente, a pessoa pode não estar bem, mas é sensível ao fato de que o carinho e a atenção a ela aumentaram. Por outro lado, o nosso amor pelos outros também dilata, quando vemos que estão necessitados ou com sofrimentos. E a solidariedade torna-se realidade, ou melhor, caridade, diante da perspectiva de todos aqueles pequeninos, aos quais Jesus devota o seu pedido de atenção (Mt 25, 40), fazendo-se além de servo, sofredor com eles (cf. Isaías 53).