O alcance dos efeitos dos sacramentais

vaticano

Diác. Ignácio Montojo, EP

Os efeitos que produzem os sacramentais são principalmente espirituais” (CDC, 1166). Os que normalmente pede a Igreja são em forma de graças atuais para auxilio no exercício da virtude, muito especialmente em ordem às virtudes teologais infusas – fé, esperança e caridade –, a perdoar os pecados veniais, à melhor preparação para a recepção dos sacramentos e à proteção contra os demônios seja por meio de exorcismos ou de bênçãos.

Mesmo as indulgencias, por exemplo, são sacramentais pelos quais é obtida – por obra da Igreja administradora como ministra da Redenção do tesouro dos méritos de Cristo e dos santos – a remissão da pena temporal devida a Deus pelos pecados e que deveria ser satisfeita no Purgatório. Do mesmo modo, no caso das bênçãos constitutivas as quais consagram de maneira permanente para o serviço de Deus uma coisa ou uma pessoa, sua eficácia, é também de caráter infalível.

Mas quem diz efeitos “principalmente espirituais” está admitindo implicitamente a possibilidade de obter graças materiais desde que estas cooperem para a obtenção dum bem espiritual maior na ordem amorosa e sumamente sapiencial da Providência. Tais pedidos poderão ser, por exemplo, o alivio de nossos sofrimentos, o afastamento dos castigos divinos, a cura de doenças, uma abundante colheita ou uma viagem bem sucedida, etc., sempre desde que sejam conforme a vontade de nosso Pai Celeste e, insistimos, para a maior santificação da alma e com vistas à vida eterna.

Os sacramentais oferecem, pois, aos fiéis bem dispostos a possibilidade de santificar quase todos os eventos da sua vida por meio da graça divina que, como vimos, flui dos méritos da Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo e, neste caso, é administrada pela Santa Igreja. Neste sentido preparam para receber com fruto os sacramentos.

Mas é preciso considerar que, se bem que seus efeitos não dependem principalmente da disposição moral do ministro ou do sujeito, pode esta concorrer a uma eficácia maior, pois Deus outorga seus dons em quantidade e qualidade maior em virtude do mérito e disposições que concorrem em quem os administra, confere ou recebe. É mesmo que acontece com a oração. Serão mais eficazes na medida em que nos identificarmos, por nossa religiosidade profunda, com a Igreja que opera através deles e com sua intenção. Pode-se dizer nesse sentido – e é tal a tese defendida por muitos teólogos – que os sacramentais operam quase ex opere operato (REGATILLO apud MARTÍN, 2002: 1647), ou seja que eles não tem o poder natural, como os sacramentos, de operar a graça, mas sim de obtê-la da misericórdia e bondade de Deus. São ajudas poderosas com as quais se recebe, por isso mesmo, proteção contra as tentações, graças e ajudas segundo o caso, assim como capacidade operativa e graças atuais para corresponder a vontade de Deus segundo a vocação e carisma próprios.

Entretanto, deve-se sempre levar em consideração que a oração da Igreja, Esposa Mística de Nosso Senhor Jesus Cristo, não pode deixar de ser plenamente aceita pela Divindade e, por tanto, se bem que o sacramental não é totalmente infalível como o sacramento (desde que devidamente recebido) senão que segue, como vimos, as regras habituais da oração, e ainda que opera mais por via de misericórdia que de justiça, não deixa de ser evidente que sua eficácia supera de longe a duma obra boa feita sem ser sacramental, tanto quanto pode ter de aceito e sumamente agradável à Divina Majestade a oração da Esposa amantíssima, indefectivelmente santa, castíssima e fidelíssima de Jesus Cristo. Isto mais se aplicará, se couber, quanto a principal finalidade é contribuir à santificação dos fieis.

As sete palavras de Jesus

cruz-livroMons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

Afirma São Tomás que “o último na ação é o primeiro na intenção”. Pelos derradeiros atos e disposições de alma de quem transpõe os umbrais da eternidade, chegamos a compreender bem qual foi o rumo que norteou sua existência.

No caso de Jesus, não só na morte de cruz, mas também, de forma especial, em suas últimas palavras, vemos o sentido mais profundo de sua Encarnação. Nelas encontramos uma rutilante síntese de sua vida: constante e elevada oração ao Pai, apostolado através da pregação, conduta exemplar, milagres e perdão.

A cruz foi o divino pedestal eleito por Jesus para proclamar suas últimas súplicas e decretos. No alto do Calvário se esclareceram todos os seus gestos, atitudes e pregações. Maria também compreendeu ali, com profundidade, sua missão de mãe.

Jesus é a Caridade. A perfeição dessa virtude, nós a encontramos nas “Sete Palavras”. As três primeiras têm em vista os outros (inimigos, amigos e familiares); as demais, a Si próprio.

1ª Palavra: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34)

Pai — É o mais suave título de Deus. Nessa hora extrema, Jesus bem poderia invocá-Lo chamando-O Deus. Percebe-se, entretanto, claramente a intenção do Redentor: quis afastar, dos fautores daquele crime, a divina severidade do Juiz Supremo, interpondo a misericórdia de sua paternalidade. Chega-se a entrever a força de seu argumento: se o Filho, vítima do crime, perdoa, por que não o fazeis também Vós?

É a primeira “palavra” que os divinos lábios d’Ele pronunciam  na cruz, e nela já encontramos o perdão. Perdão pelos que Lhe infligiram diretamente seu martírio. Perdão que abarca também todos os outros culpados: os pecadores. Nesse momento, portanto, Jesus pediu ao Pai também por mim.

Embora não houvesse fundamento para escusar o desvario e ingratidão do povo, a sanha dos algozes, a inveja e ódio dos príncipes e dos sacerdotes, etc., tão infinita foi a Caridade de Jesus que Ele argumenta com o Pai: “porque não sabem o que fazem”.

A ausência absoluta de ressentimento faz descer do alto da cruz a luminosidade harmoniosa e até afetuosa do amor ao próximo como a si mesmo. Ouvindo essa súplica, chegamos a entender quanta isenção de ânimo havia em Jesus, na ocasião em que expulsou os vendilhões do Templo: era, de fato, o puro zelo pela casa de seu Pai.

2ª Palavra: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43)

A cena não podia ser mais pungente. Jesus se encontra entre dois ladrões. Um deles faz jus à afirmação da Escritura: “Um abismo atrai outro abismo” (Sl 41, 8). Blasfema contra Jesus, dizendo: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo, e salva-nos a nós” (Lc 23, 39).

Enquanto esse ladrão ofende, o outro louva Jesus e admoesta seu companheiro, dizendo: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício? Para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez mal algum” (Lc 23, 40-41).

São palavras inspiradas, nas quais transparecem a santa correção fraterna, o reconhecimento da inocência de Cristo, a confissão arrependida dos crimes come­tidos. São virtudes que lhe preparam a alma para uma ousada súplica: “Senhor, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino!” (Lc 23, 42).

Ao referir-se a Jesus enquanto “Senhor”, o bom ladrão professa sua condição de escravo e reconhece-O como Redentor. O “lembra-te de mim” é afirmativo, não tem nenhum sentido condicional, pois sua confiança é plena e inabalável. Compreende a superioridade da vida eterna sobre a terrena, por isso não pede aquilo que, para o mau ladrão, constitui um delírio: o afastamento da morte, a recuperação da saúde e da integridade.

O bom ladrão confessa publicamente a Nosso Senhor Jesus Cristo, ao contrário até mesmo de São Pedro, que havia três vezes negado o Senhor. Tal gesto lhe fez merecer de Jesus este prêmio: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43).

Jesus torna solene a primeira canonização da história: “Em verdade…”

A promessa é categórica até quanto à data: hoje. São Cipriano e Santo Agostinho chegam a afirmar ter recebido o bom ladrão a palma do martírio, pelo fato de, por livre e espontânea vontade, haver confessado publicamente a Nosso Senhor Jesus Cristo.

3ª Palavra: “Junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cleófas, e Maria Madalena. Quando Jesus viu sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: ‘Mulher, eis aí teu filho’. Depois disse ao discípulo: ‘Eis aí tua mãe’. E dessa hora em diante o discípulo a levou para a sua casa” (Jo 19, 25-27).

Com essas palavras, Jesus finaliza sua comunicação oficial com os homens antes da morte (as quatro outras serão de sua intimidade com Deus). Quem as ouve são Maria Madalena, representan­do a via da penitência; Maria, mulher de Cleófas, a dos que vão progredindo na vida espiritual; Maria Santíssima e São João, a da perfeição.

Consideremos um breve comentário de Santo Ambrósio sobre este trecho: “São João escreveu o que os outros calaram: [pouco depois de] conceder o reino dos céus ao bom ladrão, Jesus, cravado na cruz, considerado vencedor da morte, chamou sua Mãe e tributou a Ela a reverência de seu amor filial. E, se perdoar o ladrão é um ato de piedade, muito mais é homenagear a Mãe com tanto carinho… Cristo, do alto da cruz, fazia seu testamento, distribuindo entre sua Mãe e seu discípulo os deveres de seu carinho” (in S. Tomás de Aquino, Catena Aurea).

É arrebatador constatar como Jesus, numa atitude de grandioso afeto e nobreza, encerrou oficialmente seu relacionamento com a humanidade, na qual se encarnara para redimi-la. Do auge da dor, expressou o carinho de um Deus por sua Mãe Santíssima, e concedeu o prêmio para o discípulo que abandonara seus próprios pais para segui-Lo: o cêntuplo nesta terra (Mt 19, 29).

É perfeita e exemplar a presteza com que São João assume a herança deixada pelo Divino Mestre: “E dessa hora em diante, o discípulo a levou para a sua casa” (Jo 19, 27). São João desce do Calvário protegendo, mas sobretudo protegido pela Rainha do céu e da terra. É o prêmio de quem procura adorar Jesus no extremo de seu martírio.

4ª Palavra: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27, 45)

Jesus clama em alta voz. Seu brado fende não somente os ares daquele instante, mas os céus da história. Nossos ouvidos são duros, era indispensável falar com força. Jesus não profere uma queixa, nem faz uma acusação. Deseja, por amor a nós, fazer-nos entender a terrível atrocidade de seus tormentos. Assim mais facilmente adquiriremos clara noção de quanto pesam nossos pecados e de quanto devemos ser agradecidos pela Redenção.

Como entender esse abandono? Não rompeu-se — e é impossível — a união natural e eterna entre as pessoas do Pai e do Filho. Nem sequer separaram-se as naturezas humana e divina. Jamais se interrompeu a união entre a graça e a vontade de Jesus. Tampouco perdeu sua alma a visão beatífica.

Perdeu Jesus, isto sim, e temporariamente, a união de proteção à qual Ele faz menção no Evangelho: “Aquele que me enviou está comigo; ele não me deixou sozinho” (Jo 8, 29). O Pai bem poderia protegê-Lo nessa hora (cfr. Mc 14, 36; Mt 26, 53; Lc 22, 43). O próprio Filho poderia proteger seu Corpo (Jo 10, 18; 18, 6), ou conferir-lhe o dom de incorruptibilidade e de impassibilidade, uma vez que sua alma estava na visão beatífica.

Mas assim determinou a Santíssima Trindade: a debilidade da natureza humana em Jesus deveria prevalecer por um certo período, a fim de que se cumprisse o que estava escrito. Por isso Jesus não se dirige ao Pai como em geral procedia, mas usa da invocação “meu Deus”.

A ordem do universo criado é coesa com a ordem moral. Ambas procedem de uma mesma e única causa. Se a primeira não se levanta para se vingar daqueles que dilaceram os princípios morais por meio de seus pecados, é porque Deus lhe retém o ímpeto natural. Se assim não fosse, os céus, os mares e os ventos se ergueriam contra toda e qualquer ofensa feita a Deus. Mas como frear a natureza diante do deicídio? Por isso, na hora daquele crime supremo, “cobriu-se toda a terra de trevas”… (Mt 27, 45).

5ª Palavra: “Tenho sede.” (Jo 19, 28)

Assinala o evangelista que Jesus dissera tais palavras por saber “que tudo estava consumado, para se cumprir plenamente a Escritura”. Vendo um vaso cheio de vinagre que havia por ali, os soldados embeberam uma esponja, “e fixando-a numa vara de hissopo, chegaram-lhe à boca” (Jo 19, 28-29).

Cumpria-se assim o versículo 22 do salmo 68: “Puseram fel no meu alimento; na minha sede deram-me vinagre para beber”.

Qual a razão mais profunda desse episódio? É um verdadeiro mistério.

Jesus derramara boa quantidade de seu preciosíssimo Sangue durante a flagelação. As chagas, em via de cicatrização, foram reabertas ao longo do caminho e ainda mais quando Lhe arrancaram as roupas para crucificá-Lo. O pouco sangue que Lhe restava escorria pelo sagrado lenho. Por isso, a sede tornou-se ardentíssima. Além desse sentido físico, a sede de Jesus significava algo mais: o Divino Redentor tinha sede da glória de Deus e da salvação das almas.

E o que lhe oferecem? Um soldado lhe apresenta, na ponta de uma vara, uma esponja empapada de vinagre. Era a bebida dos condenados.

Podemos de alguma maneira aliviar pelo menos esse tormento de Jesus? Sim! Antes de tudo, compadecendo-nos d’Ele com amor e verdadeira piedade, e apresentando-Lhe um coração arrependido e humilhado.

Devemos querer ter parte nessa sede de Cristo, almejando acima de tudo à nossa própria santificação e salvação, com redobrado esforço, de modo a não pensar, desejar ou praticar algo que a Ele não nos conduza. Para Ele será uma água fresca e cristalina nossa fuga vigilante das ocasiões próximas de pecado. Compadeçamo-nos também dos que vivem no pecado ou nele caem, e trabalhemos por sua salvação. Em suma, apliquemo-nos com ânimo na tarefa de apressar o triunfo do Imaculado Coração de Maria.

O Salvador clama a nós do alto da cruz que defendamos, mais ainda que o bom ladrão, a honra de Deus, procurando conduzir a opinião pública para a verdadeira Igreja. É nosso dever buscar entusiasmadamente a glória de Cristo, “que nos amou e por nós se entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor.” (Ef 5, 2).

6ª Palavra: “Tudo está consumado.” (Jo 19, 30)

A Sagrada Paixão terminara e, com ela, a pregação. Todas as profecias haviam se cumprido, conforme interpreta Santo Agostinho: a concepção virginal (Is 7, 14); o nascimento em Belém (Mq 5, 1); a adoração dos Reis (Sl 71, 10); a pregação e os milagres (Is 61, 1; 35, 5-6); a gloriosa entrada em Jerusalém no dia de Ramos (Zc 9,9) e toda a Paixão (Isaías e Jeremias).

Na Cruz foi vencida a guerra contra o demônio: “Agora é o juízo deste mundo; agora será lançado fora o príncipe deste mundo” (Jo 12, 31). No paraíso terrestre, o demônio adquirira de modo fraudulento a posse deste mundo, com o pecado de nossos primeiros pais. Jesus a recuperou como legítimo herdeiro.

Consumado também estava o edifício da Igreja. Este iniciou-se com o batismo no Jordão, onde foi ouvida a voz do Pai indicando seu Filho muito amado, e se concluiu na cruz, na qual Jesus comprou todas as graças que serão distribuídas até o fim do mundo através dos sacramentos.

Para que o preciosíssimo Sangue do Salvador ponha fim ao império do demônio em nossas almas, é preciso que crucifiquemos nossa carne com seus caprichos e delírios, combatendo também o res­peito humano e a soberba. Jesus nos abriu um caminho que, aliás, todos os santos trilharam.

7ª Palavra: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.” (Lc 23, 46)

Estabeleceu-se na Igreja, desde os primórdios, o costume de enco­mendar as almas dos fiéis defuntos, a fim de que a luz perpétua os ilumine.

Jesus, porém, não tinha necessidade de encomendar sua alma ao Pai, pois ela havia sido criada no pleno gozo da visão beatífica. Desde o primeiro instante de sua existência, encontrava-se unida à natureza divina na pessoa do Verbo. Portanto, ao abandonar o corpo sagrado, sairia vitoriosa e triunfante. “Meu espírito”, e não alma, provavelmente aqui significaria a vida corporal de Jesus.

Mas Jesus aguardava sua ressurreição para logo. Ao entregar ao Pai a vida que d’Ele recebera, sabia que ela Lhe seria restituída no tempo devido.

Com reverência tomou o Pai Eterno em suas mãos a vida de seu Filho unigênito, e com infinito comprazimento a devol­veu, no ato da ressurreição, a um corpo imortal, impassível e glorioso. Abriu-se, assim, o caminho para a nossa ressurreição, ficando-nos a lição de que ela não pode ser atingida senão pelo calvário e pela cruz.

AVE CRUX, SPES UNICA.

O conceito de pecado original e suas consequências

Pe. Ricardo Basso, EPview

No livro do Gênesis 1, 27 vem descrita a criação do homem por Deus (Cf. Bíblia Sagrada, 2008: 16), constituído em um estado de santidade e de justiça original, que era uma participação da vida divina (Cf. Catecismo da Igreja Católica – doravante indicado por CIC –, 1999: 107, §375); e sua posterior queda e expulsão do Paraíso, com a perda do estado de graça e dos dons preternaturais com que Deus o cumulou, como o de integridade, desfrutando assim de impassibilidade e de imortalidade (Bíblia Sagrada, 2008: 17-18). Gozava, portanto, de felicidade plena. Fora criado não apenas bom, mas em “amizade com o Criador e em total harmonia consigo mesmo e com a criação que o rodeava que só serão superadas pela glória da nova criação em Cristo” (CIC, 1999: 107, §374).

Uma proibição apenas lhe fora imposta: não comer do fruto da árvore do bem e do mal, que havia no centro do Éden (Bíblia Sagrada, 2008: 16). Surpreendentemente, o primeiro homem sucumbe à prova, aparentemente tão simples, com graves consequências para si e para todos os seus descendentes. Perdeu ele, assim, o estado de inocência.

“O gênero humano inteiro é em Adão “sicut unum corpus unius hominis – como um só corpo de um só homem”. Em virtude desta “unidade do gênero humano”, todos os homens estão implicados na justiça de Cristo. […] Sabemos, porém, pela Revelação, que Adão havia recebido a santidade e a justiça originais não exclusivamente para si, mas para toda a natureza humana: ao ceder ao Tentador, Adão e Eva cometem um pecado pessoal, mas este pecado afeta a natureza humana, que vão transmitir em um estado decaído. É um pecado que será transmitido por propagação à humanidade inteira, isto é, pela transmissão de uma natureza humana privada da santidade e da justiça originais. E é por isso que o pecado original é denominado “pecado” de maneira analógica: é um pecado “contraído” e não “cometido”, um estado e não um ato. […] E a privação da santidade e da justiça originais, mas a natureza humana não é totalmente corrompida: ela é lesada em suas próprias forças naturais, submetida à ignorância, ao sofrimento e ao império da morte, e inclinada ao pecado (esta propensão ao mal é chamada ‘concupiscência’)” (CIC, 1999: 115).

E nas potências da alma humana, que originalmente estavam ordenadas, com as potências intelectivas governando e comandando as sensitivas, foi introduzida a desordem.

“O ‘domínio’ do mundo que Deus havia outorgado ao homem desde o início realizava-se antes de tudo no próprio homem como domínio de si mesmo. O homem estava intacto e ordenado em todo o seu ser, porque livre da tríplice concupiscência que o submete aos prazeres dos sentidos, à cobiça dos bens terrestres e à auto-afirmação contra os imperativos da razão. […] É toda esta harmonia da justiça original, prevista para o homem pelo desígnio de Deus, que será perdida pelo pecado de nossos primeiros pais” (Id.: 108).

Para atingir a perfeição, necessita o homem doravante vencer a natureza enfraquecida e inclinada ao mal.

No homem, a inteligência iluminada pela Fé deve orientar a vontade, e esta governar a sensibilidade. Todo o homem agiria assim ordenado em função da razão e da Fé. Ocorre que depois do pecado original, a sensibilidade humana tende sempre a revoltar-se contra o jugo da vontade, e esta, a não seguir os ditames da razão, a qual, por sua vez, tende a se dissociar da Fé. Portanto, a primeira tendência da humanidade decaída é para o domínio dos instintos desordenados. “Somente à luz do desígnio de Deus sobre o homem compreende-se que o pecado é um abuso da liberdade que Deus dá às pessoas criadas para que possam amá-Lo e amar-se mutuamente” (Id.: 110). “É preciso conhecer a Cristo como fonte da graça para conhecer Adão como fonte do pecado” (Id.: 110).

“O relato da queda (Gn 3) utiliza uma linguagem feita de imagens, mas afirma um acontecimento primordial, um fato que ocorreu no início da história do homem. A Revelação dá-nos a certeza de fé de que toda a história humana está marcada pelo pecado original cometido livremente por nossos primeiros pais” (Id.:110-111).

Por ser inteligente, tem o homem o livre arbítrio para, com o auxílio da graça divina e uma boa formação moral, vencer essas más tendências, caminhando para a perfeição. “Faz parte da perfeição do bem moral ou humano que as paixões sejam reguladas pela razão” (CIC, 1999: 479).

Tendo havido o pecado original, a natureza humana ficou tendente ao mal.

71. Assim pois, os filhos de Adão nascem privados da justiça original, isto é, da graça santificante e do dom de integridade. A privação desta graça constitui o que se chama o pecado original, pecado em sentido lato, que não implica ato algum culpável da nossa parte, senão um estado de decadência, e, tendo em conta o fim sobrenatural a que persistimos destinados, uma privação, a falta duma qualidade essencial que deveríamos possuir, e, por conseguinte, uma nódoa, ou mácula moral, que nos afasta do reino dos céus.

72. E, como o dom de integridade ficou igualmente perdido, arde em nós a concupiscência, a qual, se lhe não resistimos corajosamente, nos arrasta ao pecado atual. Somos, pois, relativamente ao estado primitivo, diminuídos e feridos, sujeitos à ignorância, inclinados ao mal, fracos para resistir às tentações. […]

74. Conclusão. O que se pode dizer é que, pela queda original, o homem perdeu esse belo equilíbrio que Deus lhe tinha dado [grifo nosso]; que é, relativamente ao estado primitivo, um ferido e um desequilibrado, como bem o mostra o estado presente das nossas faculdades. […] as paixões precipitam-se com ardor, com violência até, para o bem sensível ou sensual, sem se inquietarem com o lado moral, procurando arrastar ao consentimento a vontade. […]75. B) As faculdades intelectuais, que constituem o homem propriamente dito, a inteligência e a vontade, foram atingidas também pelo pecado original. […] 1) [A nossa inteligência] Em lugar de subir espontaneamente para Deus e para as coisas divinas, em vez de se elevar das criaturas ao Criador, como o houvera feito no estado primitivo, tende a absorver-se no estudo das coisas criadas sem remontar à sua causa […]. b) A nossa mesma vontade em lugar de se submeter a Deus, tem pretensões à independência; custa-lhe sujeitar-se a Deus e sobretudo aos seus representantes na terra. […] E quantas vezes se não deixa ela arrastar pelo sentimento e pelas paixões!( TANQUEREY, 1961: 36-38)

Portanto, especialmente a sensibilidade, os instintos do homem ficaram desordenados, em contínua revolta contra a inteligência e a vontade.

E Tanquerey (1961: 379-380) completa, sobre a perda da harmonia interna no homem:

789. Efeitos das paixões desordenadas.

Chamam-se desordenadas as paixões que tendem para um bem sensível proibido, ou até mesmo para um bem permitido, mas com demasiada sofreguidão e sem o referir a Deus. Ora, estas paixões desordenadas:

Cegam a alma, lançando-se para o seu objeto com impetuosidade, sem consultar a razão, deixando-se guiar pelo instinto ou pelo prazer. Ora, nisto há um elemento perturbador que tende a falsear o juízo e a obscurecer a reta razão. Como o apetite sensitivo é cego, por natureza, se a alma se deixa guiar por ele, cega-se a si mesma: em vez de se deixar conduzir pelo dever, deixa-se fascinar pelo prazer do momento. É como uma nuvem que a impede de ver a verdade; obcecada pela poeira que as paixões levantam, a alma já não vê  claramente a vontade divina nem o dever que se lhe impõe e deixa de ser apta para julgar retamente das coisas.

Fatigam a alma e fazem sofrer. […]

2) Daqui um sofrimento tanto mais intenso quanto mais vivas são as paixões: porque elas atormentam a pobre alma, até serem contentadas, e, como o apetite vem com o comer, reclamam as paixões cada vez mais; se a consciência protesta, impacientam-se, agitam-se, solicitam a vontade para que ceda aos seus caprichos que incessantemente renascem: é uma tortura inexprimível.

c) Enfraquecem a vontade. Solicitada em sentidos diversos por essas paixões rebeldes, vê-se forçada a vontade a dispersar as próprias forças, que por isso mesmo vão enfraquecendo. Tudo o que cede às paixões, aumenta nelas as exigências e diminui em si as energias. […] E não tardará o momento em que a alma enfraquecida caia no relaxamento e na tibieza, disposta a todas as capitulações.

d) Maculam a alma. Quando esta, cedendo às paixões, se une às criaturas, abate-se ao nível delas e contrai a sua malícia e as suas manchas; em vez de ser imagem fiel de Deus, torna-se imagem das coisas a que se apega; grãos de pó, manchas de lodo vêm embaciar-lhe a beleza e opor-se à união perfeita com Deus.

E o que resta ao homem fazer para vencer essa “lei do pecado”?

A luta contra a desordem das paixões. “Do ponto de vista psicológico, não cabe dúvida de que o remédio capital contra as paixões desordenadas será sempre uma vontade firme e decidida de vencer” (MARIN, 2001: 369-370, §252).

Portanto, o segredo do bom êxito no grande embate espiritual que o homem trava na vida está na boa formação da vontade, para que esta queira o que deve querer segundo a Lei de Deus e não atendendo a “lei do pecado”.

A verdadeira felicidade

caminhoThiago de Oliveira Geraldo

Mesmo entre as diversas opiniões existentes na atualidade, a ordem moral prevalece sobre todas as demais relacionadas com o operar humano, pois diz respeito ao homem enquanto tal, e as outras ao homem em face a fins particulares.1

Para São Tomás, a moral não se restringe ao âmbito dos religiosos e muito menos a uma atitude particular, mas sustenta ele que o ato humano praticado afeta o ser humano no seu conjunto — “o homem enquanto homem e enquanto moral”.2

Entretanto, o ser humano não é inerte, mas movimenta-se em direção à felicidade que é própria à sua natureza, ou seja, a bem-aventurança. Portanto, o homem percorre uma caminhada neste mundo a fim de atingir a meta de plena felicidade — apesar de não a alcançar por inteiro nesta vida.3

Se a moral tomista, portanto, nos coloca diante da perspectiva da unidade do ser humano enquanto praticante do ato e desejoso da felicidade com vistas a um fim último, pode-se dizer que uma força intrínseca move o homem à prática do bem.4

A expressão “força intrínseca” ressalta o papel criador de Deus, que opera por meio das três Pessoas da Santíssima Trindade. Isto incorre em que o homem contém em si certas verdades estabelecidas por Deus, não com o intuito de aprisioná-lo numa moral cruel, mas de libertá-lo para a verdadeira felicidade que consiste em praticar os atos moralmente bons e, com isto, assemelhar-se mais a Ele.5

____________

1 Cf. JOÃO PAULO II. La perenne validità dell’etica tomista. In: Doctor Comunnis. Roma, 1992, ano XLV, n. 1, p. 4.

2 S Th I-II, q. 21, a. 2.

3 Cf. PIEPER, Josef. Felicidade e contemplação, lazer e culto. São Paulo: Herder, 1969, p. 17-18.

4 Cf. Veritatis Splendor, n. 7.

5 Cf. LAUAND, Luiz Jean. Tomás de Aquino, hoje. Curitiba: Champagnat, 1993, p. 41.

A ruptura da lei perante Deus

Diác. José de Andrade, EPluz

A inobservância da lei Divina e natural acarreta em si uma forma de penalidade munida de contornos próprios. Desta forma, a perturbação e o não cumprimento das prescrições definidas poderão conduzir ao pecado,1 que consiste precisamente numa transgressão à Lei de Deus, embora coincida com a violação da lei natural. Uma vez que Deus ordena desde toda a eternidade o que é conveniente e proporcionado à natureza racional,2 consistiria numa ruptura com esta ordem e, portanto, com Deus, se o homem viesse a recusar e menosprezar a lei natural enquanto participação da criatura racional na lei eterna. Consequentemente, romper com a Lei pode trazer uma sanção na vida futura, que consiste na perda eterna da felicidade.

De acordo com São Tomás de Aquino, Deus ama os homens chamando-os à visão de Deus, que supera o comum estado da natureza, outorgando-lhes não só a graça nesta terra, como a glória no Céu. Porém, aqueles que pecam fazendo mau uso de sua liberdade, e de seu livre arbítrio, perdem nesse mesmo instante a graça, e o Supremo Juiz reprova-os imputando-lhes a devida culpa que é causa de uma pena eterna, aplicada na vida futura.3 Verifica-se então uma dupla decorrência relativa à transgressão: em sua peregrinação terrena o pecador perde a posse de Deus – antecipação da felicidade eterna – consequência que se assemelha, de certo modo, a um prelúdio daquela mesma reprovação eterna que se dá após o juízo.

Entretanto, também o não cumprimento das leis humanas, quando providas das condições que as legitimam e validam, obrigam em consciência diante de Deus e a sua transgressão poderá constituir um verdadeiro pecado,4 cuja gravidade dependeria, sobretudo, do grau de rompimento com a lei divina a ela adjacente.

______________

1 Ver, por exemplo, um estudo relativamente recente de FUCEK, Ivan. Il Peccato Oggi. Roma: Università Gregoriana, 1996. Em geral no capítulo VI, La natura del peccato e dei peccati; em particular nas páginas 169 e 175.

2 Cf. ROYO MARÍN, Antonio. Teologia moral para seglares. 2. ed. Madrid: BAC, 2007. Vol. I. p. 129.

3 Cf. S. Th. q. 23, a. 3; 7.

4 ROYO MARÍN, Antonio. Op. Cit. p. 140.

O sacerdócio comum dos fiéis

Mons. João S. Clá Dias, EP

Fim ano sacerdotalAo se tratar da Eucaristia como Sacramento de unidade da Igreja, não se pode deixar de falar do sacerdócio comum dos fiéis, o qual, embora essencialmente distinto, é inteiramente real, participando também do sacerdócio de Cristo. Os fiéis exercem-no “na recepção dos Sacramentos, na oração e ação de graças, no testemunho da santidade de vida, na abnegação e na caridade operosa” (LG 10). A constituição dogmática Lumen Gentium especifica ainda o modo pelo qual os fiéis leigos exercem o sacerdócio comum na Eucaristia: pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, oferecem a vítima divina e a si mesmos a Deus; assim, quer pela oblação quer pela sagrada comunhão, não indiscriminadamente, mas cada um a seu modo, todos tomam parte na ação litúrgica (cf. LG 11).

São Tomás define com precisão os limites do sacerdócio comum dos fiéis, antecipando de algum modo o conceito explicitado e definido no já mencionado documento conciliar:

O leigo justo une-se a Cristo pela fé e caridade em uma união espiritual e não pelo poder sacramental. Por isso, tem o sacerdócio espiritual para oferecer hóstias espirituais de que se fala no Salmo: ‘O sacrifício que Deus quer é um espírito contrito’. E também na Carta aos Romanos: ‘Oferecei-vos a vós mesmos em sacrifício vivo’. Daí, a palavra de Pedro sobre ‘a santa comunidade sacerdotal para oferecer sacrifícios espirituais’ (S. Th. III, q. 82, a. 1, ad 2).

Embora os leigos exerçam um sacerdócio real, é preciso não confundi-lo com o ministerial nem diminuir a este último seu verdadeiro alcance, pois o sacerdote do Novo Testamento exerce o insubstituível papel de mediador, em Cristo, entre Deus e os homens, ao mesmo tempo em que coopera na construção da unidade da Igreja, pela celebração da Eucaristia.

As outras funções sacerdotais, inclusive a de absolver os pecados, são compreendidas por São Tomás como ordenadas a guiar os fiéis para a Mesa da Salvação, onde também oferecerão o sacrifício eucarístico, em união com o sacerdote ministerial, e participarão do banquete celestial do Corpo e Sangue do Senhor.

Ao se tratar da Eucaristia como Sacramento de unidade da Igreja, não se pode deixar de falar do sacerdócio comum dos fiéis, o qual, embora essencialmente distinto, é inteiramente real, participando também do sacerdócio de Cristo. Os fiéis exercem-no “na recepção dos Sacramentos, na oração e ação de graças, no testemunho da santidade de vida, na abnegação e na caridade operosa”.

São Tomás define com precisão os limites do sacerdócio comum dos fiéis, antecipando de algum modo o conceito explicitado e definido no já mencionado documento conciliar:

O leigo justo une-se a Cristo pela fé e caridade em uma união espiritual e não pelo poder sacramental. Por isso, tem o sacerdócio espiritual para oferecer hóstias espirituais de que se fala no Salmo: ‘O sacrifício que Deus quer é um espírito contrito’. E também na Carta aos Romanos: ‘Oferecei-vos a vós mesmos em sacrifício vivo’. Daí, a palavra de Pedro sobre ‘a santa comunidade sacerdotal para oferecer sacrifícios espirituais’.

Embora os leigos exerçam um sacerdócio real, é preciso não confundi-lo com o ministerial nem diminuir a este último seu verdadeiro alcance, pois o sacerdote do Novo Testamento exerce o insubstituível papel de mediador, em Cristo, entre Deus e os homens, ao mesmo tempo em que coopera na construção da unidade da Igreja, pela celebração da Eucaristia.

As outras funções sacerdotais, inclusive a de absolver os pecados, são compreendidas por São Tomás como ordenadas a guiar os fiéis para a Mesa da Salvação, onde também oferecerão o sacrifício eucarístico, em união com o sacerdote ministerial, e participarão do banquete celestial do Corpo e Sangue do Senhor.

A família: Formadora nos valores humanos e cristãos

familiasPe. Mariano Antonio Legeren, EP

Um dos principais desafios que a família cristã enfrenta é o de formar a consciência moral dos filhos, numa época na qual os valores morais vão sendo diluídos. Isto torna muito mais importante do que nunca que os filhos sejam educados no amor à verdade objetiva — baseada na natureza humana e na lei revelada —, à justiça, à caridade e à pureza de corpo e de alma.

Dificilmente os mais jovens saberão resistir à onda hedonista e relativista sem o aprendizado em família, o exemplo e o apoio dos pais. Urge, portanto, recolocar a família em seu devido contexto, como lugar principal e privilegiado de formação e educação, transmissora das virtudes e valores.

A Exortação Apostólica Familiaris Consortio faz referência ao ensinamento de São Tomás de Aquino, para ressaltar a alta missão dos pais a esse propósito. “O dever educativo recebe do sacramento do matrimônio a dignidade e a vocação de ser um verdadeiro e próprio ‘ministério’ da Igreja a serviço da edificação dos seus membros. Tal é a grandeza e o esplendor do ministério educativo dos pais cristãos, que São Tomás não hesita em compará-lo ao ministério dos sacerdotes: ‘Alguns propagam e conservam a vida espiritual com um ministério unicamente espiritual: é a tarefa do Sacramento da ordem; outros fazem-no quanto à vida corporal e espiritual o que se realiza com o Sacramento do matrimônio, que une o homem e a mulher para que tenham descendência e a eduquem para o culto de Deus’”.1

É no lar, e somente ali, que se podem desenvolver “alguns valores fundamentais que são imprescindíveis para formar cidadãos livres, honestos e responsáveis, por exemplo, a verdade, a justiça, a solidariedade, a ajuda ao débil, o amor aos outros por si mesmos, a tolerância, etc.”.

De pouco adiantará os governos se preocuparem em desenvolver o ensino, dotarem as escolas de equipamentos sofisticados e caros e investir na formação de professores, sem antes procurar fortalecer a instituição da família. Difícil será, sem a ajuda dela, combater a criminalidade, a corrupção e tantas outras mazelas.

A superação de todos os problemas da sociedade moderna — seja no nível psicológico, seja no social ou político — está condicionada, como vimos, à revitalização da sua célula básica: a família.

Porém, todos os esforços e as iniciativas humanas por fazer reflorescer esta instituição serão insuficientes sem que as bênçãos e a Graça de Deus se pousem sobre ela.

Só com a ajuda de Graças intimamente ligadas ao Sacramento do Matrimônio, a família poderá cumprir sua importante missão nesta Terra e preparar para o Céu as almas daqueles que a compõem.

Assim lembrou o Papa Bento XVI na clausura do V Encontro, celebrado em Valência, Espanha: “A família cristã — pai, mãe, filhos — está chamada a cumprir os objetivos assinalados não como algo imposto de fora, mas como um dom da graça do Sacramento do matrimônio infundida nos esposos. Se eles permanecerem abertos ao Espírito e pedirem a sua ajuda, Ele não deixará de lhes comunicar o amor de Deus Pai manifestado e encarnado em Cristo. A presença do Espírito ajudará os esposos a não perder de vista a fonte e medida do seu amor e entrega, e a colaborar com Ele para o refletir e encarnar em todas as dimensões da sua vida. Desta forma, o Espírito suscitará neles o anseio do encontro definitivo com Cristo na casa de seu Pai e nosso Pai”.2

_________

1 João Paulo II, Exortação Apostólica Familiaris Consortio, n. 38.

2 Bento XVI, homilia por ocasião do encerramento do V Encontro Mundial das Famílias, 9/7/2006.

Corrimãos da escada da vida

Mons. João S. Clá Dias, EP

A teologia moral de Santo Agostinho, tanto como a ética de Aristóteles, foram as fontes das doutrinasalianca escolásticas sobre a razão moral. Em De Libero Arbitrio, o bispo de Hipona afirmara que a moralidade exige da vontade humana sua conformidade com as prescrições da lei imutável e eterna, impressa na nossa mente. Tal lei, chamada de summa ratio (“razão suprema”), deve ser sempre obedecida. Por seus padrões é que são julgados os bons e os maus.[1]

Concorde com a tese agostiniana,[2] São Tomás procura definir meticulosamente a lei eterna acentuando de início que ela “não é senão a razão da sabedoria divina, na medida em que ela dirige todos os atos e movimentos”.[3] Essa lei — que se identifica com a Providência Divina — é, portanto, o princípio ordenador de todo o universo criado: “Toda a comunidade do universo é governada pela razão divina. E assim a própria razão do governo das coisas em Deus, como príncipe do universo, tem razão de lei”.[4] Assim, a suprema lei é o próprio Deus, sendo eterna como Ele é eterno; é a Sabedoria de Deus “que move todas as coisas para seu devido fim”.[5] E todas as coisas são avaliadas segundo a lei eterna, seguindo-se daí que dela todas participam de algum modo, e suas propensões para seus atos e fins próprios vêm da impressão em si dessa lei.

Nas questões 90 a 108 da Suma Teológica, parte I-II, São Tomás se estende genialmente sobre o significado e o alcance da lei eterna e sobre as outras leis que dela derivam: a lei natural, a lei divina e a lei humana.

Começando pela lei natural, ele a define como “a participação da lei eterna na criatura racional”, sendo proporcionada pela “luz do intelecto posta em nós por Deus, através da qual conhecemos o que devemos fazer e o que devemos evitar”,[6] por ser uma norma imperativa para dirigir os atos livres do homem.

Noutro lugar, São Tomás descreve a lei natural como os primeiros princípios da atividade moral humana, evidentes de si, não demonstráveis.[7]

Ninguém pode, com sinceridade e no uso normal de suas faculdades mentais,[8] negar a existência dessa lei natural, segundo a qual há obras boas e outras más por sua própria natureza. São Tomás afirma que todos os homens conhecem pelo menos os princípios comuns da lei natural.[9] Diz ele ainda que, “quanto aos princípios comuns da razão quer especulativa, quer prática, a verdade ou retidão é a mesma em todos, e igualmente conhecida”.[10] Quer dizer, não há quem não conheça a distinção entre bem e mal, e nossa obrigação de optar pelo primeiro e rejeitar o segundo se apresenta à inteligência com força de lei.

Também a lei humana positiva tem a obrigação de se conformar com a Sabedoria de Deus. É a ela que o Aquinate se refere quando afirma que, como “o fim último da vida humana é a felicidade ou bem-aventurança […] é necessário que a lei vise maximamente à ordem que é para a bem-aventurança”.[11] A lei temporal não pode colidir com a lei eterna, mas deve secundá-la.

A lei divina — consolidada nos Dez Mandamentos — mostra ao homem o caminho a seguir para praticar o bem e atingir seu fim. São Tomás se pergunta se, havendo já a lei natural e as leis humanas, é preciso também haver uma lei divina positiva. Ele inicia sua resposta lembrando que a bem-aventurança eterna, para a qual o homem foi criado, “excede a proporção da potência natural humana”. Assim faz-se necessário que, “acima da lei natural e humana, fosse dirigido também a seu fim pela lei divinamente dada”.[12]

Todas essas leis são como que corrimãos numa longa e difícil trajetória, numa escada colocada sobre um abismo. Pode ser que esses corrimãos pareçam limitações absurdas à liberdade. Na realidade, são anteparos que Deus nos concedeu para proteger a verdadeira liberdade e para nos auxiliar na ascensão até Ele.

Como estão equivocadas certas correntes de educação que procuram instilar na criança e no jovem a ideia de que os princípios morais são frios e cruéis! O certo, afirmam elas, seria optar por uma moral “amiga”, relativa, dependente apenas das circunstâncias, dos casos particulares, e esquecer tais princípios.

É supérfluo realçar a nocividade de tal doutrina para o tesouro acumulado a partir do primeiro olhar sobre o ser. E que resultados funestos trazem para a sociedade como um todo. Basta olharmos para o que vai se passando à nossa volta…


[1] De Libero Arbitrio, I, 1.6.15.48-49; 51: “Illa lex quae summa ratio nominatur cui semper obtemperandum est et per quam mali miseram, boni beatam vitam merentur […], potestne cuipiam intellegenti non incommutabilis aeternaque videri? An potest aliquando iniustum esse, ut mali miseri, boni autem beati sint? […] Ut igitur breviter aeternae legis notionem, quae impressa nobis est, quantum valeo, verbis explicem, ea est, qua iustum est, ut omnia sint ordinatissima”.

[2] Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 1: “Sed contra est quod Augustinus dicit quod lex aeterna est summa ratio, cui semper obtemperandum est”.

[3] S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Nihil aliud est quam ratio divinae sapientiae, secundum quod est directiva omnium actuum et motionum”.

[4] S. Th. I-II, q. 91, a. 1: “Tota communitas universi gubernatur ratione divina. Et ideo ipsa gubernationis rerum in Deo sicut in principe universitatis existens, legis habet rationem”.

[5] S. Th. I-II, q. 93, a. 1. “Moventis omnia ad debitum finem”.

[6] Collationes in decem praeceptis, Proœmium: “Lex naturae […] nihil aliud est nisi lumen intellectus insitum nobis a Deo, per quod cognoscimus quid agendum et quid vitandum”.

[7] Cf. S. Th. I-II, q. 94, a. 2. “Sunt quaedam principia per se nota”.

[8] “Alguma pessoa dotada de inteligência”, dizia Santo Agostinho (op. cit. 1.6.15.48).

[9] Cf. S. Th. I-II, q. 93, a. 2.

[10] S. Th. I-II, q. 94, a. 4. “Quantum ad communia principia rationis sive speculativae sive practicae, est eadem veritas seu rectitudo apud omnes, et aequaliter nota”.

[11] S. Th. I-II, q. 90, a. 2. “Oportet quod lex maxime respiciat ordinem qui est in beatitudinem”.

[12] S. Th. I-II, q. 91, a. 4. “Excedit proportionem naturalis facultatis humanae. Ut supra legem naturalem et humanam, dirigeretur etiam ad suum finem lege divinitus data”.